Editorial

Era uma vez a psicanálise. Uma novidade que abriu caminhos perturbadores e inaugurou seções em locais tão diversos como alas hospitalares, departamentos universitários empoeirados e em periódicos para os quais leitores enviavam cartas com suas aflições emocionais. No agora, já constituída como um campo do saber, é destinatária de demandas de cessão da finalmente verificada violência característica à sua formação. A conformação da experiência a conceitos, normas e processos deve ser debatida, exposta, denunciada e modificada.

O tratamento de corpos adoecidos e insubordinados à saúde que havia ganho um novo reino – a saber, aquele do inconsciente – passa por uma nova volta na espiral da crítica que aponta para o rigor como desculpa para o adestramento dos corpos. Rigor mortis, diriam alguns.

O lugar daqueles não adestrados, os que trabalham o trabalho de fato é o de fora. Deixaremos aqueles que se nos afeiçoam mais entrar desde que de modo tímido e pedindo prolíficas escusas em suas proposições. Um adestrado, tal qual Pedro Vermelho. Quem sabe assim não se possa até frequentar um salão parisiense?

Mas isso é óbvio que é pouco, muito pouco. Trata-se de mergulharmos mais fundo nos meandros organizativos do poder psicanalítico e suas configurações patologicamente ocidentais, despudoradamente burguesas e violentamente coloniais.

Assim, o modo binário de movimentação epistêmica (passar de uma diferença ao seu oposto) deve dar lugar a um deslizamento transmutativo no qual as diferenças se sucedem metonimicamente sem guardar o sentido de uma ruptura violenta com o anterior.  Mudanças de paradigmas para além da oposição, do contrário, da revolta. Assim a migração de um locus que inviabiliza a existência e animaliza para o outro lado da fronteira, aquele da democracia, se dá com a força reivindicatória que tem que ignorar os códigos de ettiquete para transformar sua estrutura de poder.

A armadilha epistêmica, no entanto, é afeita àquela do capital; a suave absorção do monstro real transformado em algo mastigável. Assim, de modo disruptivo, inovador e plural, a psicanálise é muitas – tão diversa como os bancos.

A diferença burguesa entre o social e o político, entre o público e o privado, entre o analista e a análise está em questão. No entanto, as crenças em sua superação têm se mostrado um tanto exageradas. Uma verdadeira multidão está engajada na produção de diferentes diferenças, de novas formas de vida, de novos novos singulares, mas tudo se dá como se uma porca enorme girasse em falso em torno de um parafuso demasiado pequeno. Daí nada se positiva e a multidão é ainda um monstro sem rosto e coração.

O objeto psicanalítico não pode prescindir da tensão do que se apresenta para se fiar naquilo do que deveria ser. O outro é ainda a partir do eu e a psicotização talvez seja mais um projeto neurótico.