Muito além da família: somos filhos de mil homens

por Luciana Pires

Prosseguia no insondável que os filhos são.
*
Valter Hugo Mãe

Partiremos da premissa de que um humano precisa de um outro humano para vir a ser, para sobreviver aos primeiros tempos e para se incluir no mundo e na rede simbólica de conversa com humanos. Chamaremos de cuidador primário este outro sustentador da sobrevida dos primórdios. Um humano precisa de outro humano sintonizado a ele, um outro humano que aceite renunciar a si mesmo por um certo intervalo de tempo, em nome de se sintonizar às necessidades prementes de um outro humano. Esta condição de sintonia fina presente nos cuidadores primários é sinequanon para o advento humano.

Devemos, contudo, conferir os devidos limites a essa afirmativa. Comunidade, irmãos, escola, instituições de acolhimento, famílias adotivas, psicanalista infantil e tantos outros se entrincheiram nessas fronteiras.

O outro humano tem lugar fundamental para o advir humano. Não é verdade, porém, que esse cuidado primário só se obtenha na família e, ainda menos, que uma família se sustente por si só. Os primeiros anos de vida são muito importantes na organização de um trilho de porvir e muitas vezes esse outro primário é a mãe ou o pai, mas tantas outras vezes não é. E esse cuidador primário só pode fazer seu papel se outros estiverem disponíveis para ele e mesmo para o bebê.

Embora reconheçamos a suma importância dos primeiros tempos, é certo que nunca acaba neste primeiro instante o cuidado humano. Nós adultos bem sabemos disso: não é porque tivemos um bom começo de vida que outros problemas de importante abalo não nos aguardem no porvir. Mesmo que os princípios da vida tenham se dado a contento, nada garante que um evento futuro não possa fazer ruir todo o alicerce construído milimetricamente nos primeiros anos. Valter Hugo Mãe afirma que “uma criança nascia para o futuro, nunca era uma coisa apenas do presente [,] (…) as crianças são para depois, nunca apenas para agora. (…)”,[1] reforçando o caráter germinativo e enigmático que o futuro sempre reserva.

No livro Canção de ninar, de Leila Slimani, encontramos a descrição dos primeiros tempos de uma maternidade que, na contramão do que viemos aqui afirmar, se entendia autossuficiente.

Mila era um bebê frágil, irritável, que chorava sem parar. Ela não ganhava peso, recusava o peito da mãe e as mamadeiras que o pai preparava. Debruçada sobre o berço, Myriam tinha até esquecido o mundo lá fora. Suas ambições se limitavam a fazer aquela filha magrinha e chorona ganhar alguns gramas. Os meses passavam sem que ela se desse conta. (…) Myriam não queria nem ouvir falar de baby-sitter. Só ela era capaz de responder às necessidades da filha.[2]

Quando a filha tinha um ano e meio, Myriam engravidou de novo de Adam, e as coisas se tornaram insustentáveis. O projeto de suficiência do núcleo familiar, ou mais especificamente de suficiência da mãe, caiu por terra.

Ela não tinha ideia do que viria. Com duas crianças, tudo ficou mais complicado: fazer compras, dar banho, ir ao médico, fazer a faxina. As contas se acumularam. Myriam ficou sombria. Começou a detestar as saídas ao parque. (…) Os caprichos de Mila a irritavam, os primeiros balbucios de Adam lhe eram indiferentes. Ela sentia cada dia um pouco mais a necessidade de ficar sozinha e tinha vontade de gritar como uma louca na rua. Eles me devoram viva, pensava, às vezes.[3]

Por fim, decidiu “que aquela felicidade simples, muda, prisional, não era suficiente para consolá-la.”[4]

Doar-se aos inícios de um outro comporta uma ordem de sacrifício que flerta com o impossível, e por isso uma rede de sustentação é fundamental. Uma rede de cuidados diretos com bebê, instalando a possibilidade de alternância, e uma rede de cuidados dirigida ao cuidador. Para que um adulto possa abrir mão de seu próprio contorno egóico e narcísico, de sua própria situação no mundo, para que possa se suspender por um instante e com isso se sintonizar às necessidades de um nascimento humano, de um porvir humano, este adulto precisa ser suportado por outros círculos de acolhimento cultural e comunitário.

Papai, mamãe, filhinho só existem porque existe o moço que traz comida, aquele outro que pescou, porque existe alternância, porque não se está o tempo todo com os filhos, porque existe o apoio dos professores, dos vizinhos e dos amigos. A vivência do isolamento decorrente da epidemia de Covid marcou a ferro e fogo essa certeza: não dá para ser só pai e mãe, não dá para pai e mãe serem sós. O estado de isolamento social fez cair por terra a falácia da auto-suficiência da família nuclear, e mais do que nunca constatamos que para uma família dar conta de criar seus filhos é preciso a rua, a escola, o hospital, a família extensa, os amigos, a arte e tantas outras coisas. Muitos outros além dos pais são cuidadores fundamentais.

O homem chegou aos 40 anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.

Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade. (…)

Carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. (…)

O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera. (…) Acreditou que o afeto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família.

Acontecia assim porque, aos quarenta anos, o Crisóstomo assumiu a tristeza para reclamar a esperança.[5]

Nem sempre a família será a instituição cuidadora do humano nos inícios. Tantas vezes a adoção é um modo de garantia das condições iniciais para uma vida humana e, em geral, diante dessa solução se monta um discurso de ressentimento do tipo “ai, mas devia ser o pai e a mãe de barriga”. No livro O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, cujo trecho acabamos de citar, encontramos uma aposta de constituição amorosa na contramão desse ressentimento, permitindo que parentalidade e filiação sejam pensadas em moldes diferentes. Na passagem acima, acompanhamos a construção de um apelo de adoção por parte do personagem Crisóstomo, que afirma sua predisposição para se colocar no lugar de outro primário de alguém.

Crisóstomo, homem de 40 anos, pescador, solteiro, queria ter um filho. E encontra Camilo, menino de 14 anos que havia se tornado órfão pela segunda vez, após a morte de seu avô adotivo. Camilo foi um filho muito desejado por sua mãe, uma mulher anã que engravidara de um de seus 15 amantes e morrera no parto. “A criança era o resto de uma conta de outro corpo que, ao morrer, parecia revoltar-se na tentativa de deixar memória”.[6]

Com a morte de sua mãe, Camilo fora adotado pelo velho Alfredo. Alfredo, por sua vez, era viúvo de Carminda, cujo apelido era Minda e que muito desejara, sem jamais conseguir, parir um filho. “Sentado com o Camilo no colo, [Alfredo] pensou: Minda, o nosso menino chegou. Deixou depois a mão sobre a cabeça do menino, como se assim lhe pusesse a alma certa no corpo, e sorriu.”[7] Alfredo se autodenominava seu avô. E foi na casa dele que Crisóstomo encontrou Camilo, desconsolado com a recente morte do avô, e o levou para criar em sua casa.

Era um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios.[8]

Havia também Isaura, mulher desvirginada, “enjeitada e diminuta”, com quem ninguém queria se casar. Casou-se então com Antonino, homem maricas. “Era uma ideia comum, essa de os homens maricas procurarem mulheres enjeitadas para casamentos de aparência.”[9] Assim como Crisóstomo e Camilo, Isaura “era uma mulher carregada de ausências e silêncios. (…) Para dentro da Isaura a Isaura caía”.[10] Após a (segunda) adoção de Camilo, Isaura e Crisóstomo se conhecem, se encantam um com o outro e passam a viver juntos.

O modelo mamãe-papai-filhinho era impossível a eles, enjeitados da família tradicional. Crisóstomo e Isaura nunca haviam se casado, Antonino era gay, a mãe de Camilo era anã a quem se supunha nenhuma sexualidade, Alfredo e Carminda jamais conseguiram engravidar. Longe da fantasiada completude das famílias tradicionais – que vimos com Myriam no romance de Slimani -, os integrantes do laço adotivo que Hugo Mãe arma são figuras marcadas por ausências e vazios. Neles, as feridas antecedem o encontro amoroso.[11]

Uma outra adoção acontece em um enredo periférico do romance: Matilde adota Mininha.

Estava a decidir por uma filha, como se lhe nascesse com sete anos, um atraso, mas ainda muito futuro em compensação. (…) Era necessária uma abundância de tudo, matéria, espírito e idade, para regressar ao tempo de educar alguém. Não quis contar, nem pelos dedos nem por alto, o quanto arriscava com aquele sentimento, o quanto se vulnerabilizava, talvez tola, por uma esperança nova de voltar a ser mãe.[12]

Sabemos que, independentemente da idade da criança, se ela vir a se alojar verdadeiramente e com confiança no laço adotivo, recuperará um tanto dos desesperos de um recém-nascido e apelará ao laço a mesma ordem de sintonia fina. Não é da contagem de anos que se trata, mas da intensidade da abertura primordial para uma constituição em dependência.

Nem todas as crianças são cuidadas pela família de origem, algumas são cuidadas por famílias adotivas e outras ainda são cuidadas por instituições de acolhimento. Nem sempre a família de origem é o melhor lugar de cuidado. Muitas crianças passam a infância inteira, até seus 18 anos, em uma instituição de acolhimento e é premente reconhecermos o lugar de cuidado primário dessas instituições, que são muito mais do que um lugar de espera pela adoção. Pensar que o cuidado só começa com a adoção produz crianças que não se alojam nos laços da instituição e passam os anos como se a vida mesmo só fosse acontecer depois. Ali é uma vida.

É evidente que é para além da família que o humano deve acontecer. Se você cria uma criança para ir se afastando do corpo a corpo com os cuidadores primários, num vetor em direção à comunidade, quando a comunidade desaba necessariamente ocorre um apelo regressivo. Uma comunidade saudável é necessária enquanto endereçamento do desenvolvimento humano. É de Françoise Dolto a frase de que depois dos 7 anos, a família dos vizinhos importa mais do que a própria família.[13] Um dos últimos feitos de Dolto em vida foi a criação da Maison Verte, uma instituição que visa favorecer a passagem entre o ambiente doméstico e o comunitário, para que essa passagem se dê do modo menos traumático e mais enriquecedor possível. Trata-se de um projeto-ponte que intenta propiciar com que a cultura da família e a cultura mais ampla possam se articular de modo harmônico.

Falta por vezes à psicanálise, sobretudo àquela dedicada à infância, o reconhecimento do lugar de entrada do além da família na vida das crianças e adolescentes, legitimando a escola, os amigos, as bandas de música como interlocutores constitutivos dignos e necessários à saúde mental dos pacientes. Já acompanhei casos de adolescentes retraídos, nesse novo nascimento que é tarefa da adolescência, às voltas com uma dificuldade de se desprender do entorno familiar e se inserir em seu contorno de amigos e colegas. E, em alguns desses casos, quando o adolescente timidamente passou a se interessar por algum colega ou algum ídolo da cultura adolescente, o analista associou o elo estabelecido com esses novos outros às relações com os cuidadores primários, o que de algum modo passou uma rasteira no passo hesitante que o adolescente constituía, remetendo novamente ao colo familiar. É uma espécie de cacoete psicanalítico a hipervalorização dos tempos primevos, o que acaba por inserir as figuras do pai e da mãe até mesmo onde não são chamados.

Muitas vezes os outros necessários para além da família ficam presos na posição de ressentimento que apontamos acima — ‘devia ser o pai ou a mãe’ — e com isso ao invés de ampliarem a rede de cuidado da criança e assim fortalecerem não apenas a criança, como também o cuidador, atem-se a uma posição condenatória que implode todo campo de cuidado. É assim que ouvimos no livro Canção de ninar as seguintes frases dirigidas a Myriam. São frases sádicas de pessoas que se eximem da consternação que a implicação numa rede de cuidado traz, apontando os pais como falhos e por conseguinte estabelecendo um ideal de cuidadores que tudo sabem e por isso não são habitados por ausências, silêncios e precipícios (como os personagens envolvidos na criação da rede humanizante de “mil homens” que seguiremos acompanhando).

Se a senhora soubesse! É o mal do século. Todas essas pobres crianças estão abandonadas a si mesmas, enquanto os pais são devorados pela mesma ambição. É simples, eles correm o tempo todo. A senhora sabe qual é a frase que os pais mais dizem a seus filhos? “Vamos logo!”. E, claro, somos nós que aguentamos tudo. As crianças nos fazem pagar por sua angústia e seu sentimento de abandono.[14]

afirma a professora dos filhos de Myriam. Essa professora parece dizer que se os pais fizessem bem seu trabalho, elas professoras não estariam sobrecarregadas de angústias. Mas onde já se viu cuidado sem angústia?

Em outro momento, a sogra Sylvie, mãe de Paul, ataca Myriam:

Sylvie a repreendeu por dedicar tempo demais à profissão, ela que, no entanto, tinha trabalhado durante toda a infância de Paul e sempre se vangloriado de sua independência. Ela a chamou de irresponsável, de egoísta. Enumerou as viagens profissionais que Myriam tinha feito mesmo quando Adam estava doente e Paul terminava a gravação de um álbum. Era sua culpa, ela dizia, se as crianças eram insuportáveis, tirânicas, caprichosas.[15]

Insuportáveis, tirânicas e caprichosas: esses adjetivos atribuídos às crianças nos inserem no ambiente de onipotência que esse modo de concepção da família e do cuidado infantil produz.

Entendo que o psicanalista de crianças é um desses outros que nossa cultura disponibiliza para atuar na rede de círculos concêntricos de cuidado das crianças. O psicanalista faz parte desses outros laços cuidadores da nossa cultura. E precisamos nos prevenir para não incorrer no ressentimento que apontamos acima, alargando o coro dos que dizem que se a criança precisa de mais alguém é porque os pais não foram bons, ou ainda é porque os pais foram maus. Cuidemos para não carregar nas entrelinhas de nosso fazer uma culpabilização dos pais, que faz crer que toda vez que colhermos bons resultados em nossas intervenções clínicas com nossos pacientes-crianças, concluímos que os pais não fizeram como deviam a parte deles. Que o nosso bem fazer não corresponda ao mal fazer deles. Como vimos dizendo, sabemos de antemão que o cuidado do humano precisa de muitos além da família. E que outros sejam convocados é uma prerrogativa, não indício de uma falha. Pais são limitados, por suposto. E o bem fazer de um pai e de uma mãe depende do bem fazer de tantos outros ao redor.

Ao longo de toda sua obra, Donald Winnicott sustenta uma posição ética de reconhecimento do valor e sabedoria das mães no cuidado de seus filhos, sempre atento para que seu lugar de especialista não enfraqueça o lugar dos pais. É nesse sentido que podemos entender seu convite para que os psicanalistas aprendam com a observação dos modos de cuidado que as mães conferem a seus bebês, fazendo saltar das entrelinhas da cultura os modos de bem cuidar do psiquismo humano. É assim que toda vez que Winnicott se refere ao par mãe-bebê, sabemos que está se referindo também à dupla analista-paciente. Que o analista aprenda com as mães a cuidar de seus pacientes.

Ele queria ser alguém que fala junto aos pais e entendia que os cuidados de uma criança são sempre uma construção singular e particular. Era tamanho seu esforço para driblar o lugar do especialista que ensina de modo verticalizado às mães como devem criar seus filhos, que, em seus programas de rádio na BBC, entre os anos 40 e 60, ouvimos Winnicott proferir uma fala calma e lenta, em um tom a meio caminho entre o masculino e o feminino.[16]

Percebemos, no entanto, que essa ética winnicotiana, transformada em ação em seus textos teóricos e conversas de rádio, acabou reforçando a ideia de que porque os pais intuitivamente muito sabem, poderiam prescindir de quaisquer outros. Junta-se a isso a observação de que os programas de rádio foram encomendados a Winnicott e outros especialistas da infância com o claro propósito de recuperar o valor das famílias que se encontravam destruídas e desmembradas no pós-guerra.[17] Era importante para o governo que a força política das famílias fosse restituída, e esses programas foram pensados no bojo de uma espécie de campanha de propaganda nacional do valor da família. Na história da penetração da obra winnicotiana, acompanhamos, assim, um reforço da hiper responsabilização dos pais no cuidado das crianças.

Quando tive minha primeira filha, lembro que encontrei nas palavras das escritoras americanas do livro O bebê. O primeiro ano de vida de seu filho[18] um antídoto contra o efeito culpabilizante que as falas das pessoas que encontrava na rua me traziam. Para aqueles tantos que diante do choro do bebê diziam: – É porque ela não está bem agasalhada, – Deve estar com fome, quando foi que comeu?, – Deve estar com dor de barriga, a senhora amamenta?, as autoras nos encorajavam a responder: Por quê? O seu bebê não chorava? Essa confrontação produzia um deslize sutil e fundamental ao confirmar o desamparo original, assombro inerente aos primeiros tempos, em toda e qualquer dupla de cuidado-cuidador. É um alívio saber dos precipícios que a todos nós habita.

Na passagem abaixo do conto A legião estrangeira, Clarice Lispector visibiliza este côncavo de ausências e silêncios que possibilita a abertura para a adoção de um outro:

O menino menor não suportou mais:

— Você quer ser a mãe dele [de um pintinho que piava]?

Eu disse que sim, em sobressalto. Eu era enviada junto àquela coisa que não compreendia a minha única linguagem: eu estava amando sem ser amada. A missão era falível, e os olhos de quatro meninos aguardavam com a intransigência da esperança o meu primeiro gesto de amor eficaz. (…) Abri a boca, ia dizer-lhes a verdade: não sei como.

Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz. Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então — então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite — então estendo a mão e salvo uma criança.[19]

Lispector estabelece uma relação de causalidade: falibilidade, ignorância e escuridão tornam possível o gesto de cuidado e adoção. Não é apesar de não saber que a mãe salva, é justamente por não saber que ela salva. Essa proposição faz eco ao caminho amoroso construído no romance O filho de mil homens e está em oposição ao projeto de parentalidade contemporânea que o romance Canção de Ninar veicula.

Ao acompanhar o Instagram de uma amiga que posta fotos de uma maternidade feliz, Myriam devaneia: “Nós só seremos felizes (…) quando não precisarmos mais uns dos outros. Quando pudermos viver uma vida para nós mesmos, uma vida que nos pertença, que não tenha a ver com os outros. Quando formos livres.”[20] Mais além, recorda as expectativas de paternidade de seu marido, antes do nascimento dos filhos:

Quando Myriam engravidou, [o marido] ficou louco de alegria, mas avisou aos amigos que não queria que sua vida mudasse. Myriam disse a si mesma que ele tinha razão e olhou para seu homem, tão esportivo, tão bonito, tão independente, com ainda mais admiração. Ele tinha prometido zelar para que a vida deles continuasse luminosa.[21]

Filhos nascidos, colhem-se os efeitos frustrantes de seu sonho inicial:

Alguma coisa estava morta e não era só a juventude e a despreocupação. Ele não era mais inútil, precisavam dele e ele tinha obrigações quanto a isso. Tornando-se pai, ele ganhou princípios e certezas. (…) Sua generosidade ficou relativa. Seus entusiasmos esfriaram. Seu universo encolheu.[22]

O ressentimento com a experiência de dependência e desamparo inerentes ao envolvimento na sustentação de outras vidas, faz com que Paul, marido de Myriam, se feche defensivamente em certezas, o que esfria e encolhe seu campo afetivo.

Myriam e Paul veem-se envolvidos em um projeto profundamente individualista de família e cuidado que configura uma dificuldade genuína de se conceber em interdependência com os outros.[23] O terror que acompanha desde o começo o romance Canção de Ninar é por fim o horror do estrangulamento de um projeto de cuidado individualista incapaz de se fazer habitar seja pelo desamparo ou pelo coletivo. Desse jeito não é possível, o romance parece denunciar; a exclusão do desamparo e da solidariedade da rede de cuidado humana conduz a um trágico fim. Nada mais oposto do que aconteceu com Crisóstomo, Matilde, Isaura e Antonino que viveram com a parentalidade a expansão generosa do cuidado para o todo da humanidade.

O evento dos filhos traz o risco de fechamento na própria família e de esquecimento da amplitude da coletividade, traz consigo o risco de que em nome da família se deixe de cuidar do mais amplo – que é condição de sobrevivência da família, inclusive. É nesse sentido que Contardo Calligaris afirmava que a família é, na história, uma grande matriz “do mal e da imoralidade” e é em nome desse espantalho, entre outros, “que a humanidade se permitiu cometer seus piores crimes.”[24]

Foi exatamente este fenômeno que assistimos estupefatos, no Brasil, em 2015, durante a votação do impeachment da presidente Dilma, na qual 136 deputados justificaram seu voto em nome da própria família. Assistíamos à decisão sobre os destinos da presidência de um país, um voto em um contexto de projeto coletivo portanto, ser justificado por motivações privadas — em nome de meu filho, de minha filha e de meu cachorro. Que concepção de mundo é essa que acha louvável que se escolha o destino de um presidente da república em nome do microcosmo familiar? Do mesmo modo, nosso ex-presidente Bolsonaro afirmava sem pudor que se puder beneficiar um filho seu, assim o fará — acreditando, inclusive, que essa atitude o qualifica como bom presidente.

O problema dessa atitude é quando se entende que se deve beneficiar a família em detrimento do coletivo. O problema dessa atitude é quando ela vem junto com uma concepção de família desarticulada da coletividade. Que possamos, porém, retirar da vivência familiar e da contundência da importância de um outro para o advir humano um espírito de cuidado para além das quatro paredes do lar. No episódio 33º da 4ª temporada do GregNews, intitulado “Boa noite, família”, que foi ao ar em novembro de 2020[25], ouvimos Duvivier pregar a expansão da concepção de família em direção ao coletivo, defendendo uma ideia de família que não é um núcleo afetivo único e não se define só por amor ou genética. Família aqui entendida como uma rede de compromissos e responsabilidade profunda com o outro. Pois como diz Hugo Mãe, “os filhos (…) são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma.”[26]

REFERÊNCIAS

CALLIGARIS, Contardo. “Qualidade moral de nossa conduta depende da capacidade de agir sozinho”. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 de out de 2020.

DOLTO, Françoise (1985). A causa das crianças. Tradução de Ivo Storniolo e Yvone C. T. da Silva. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2005.

EISENBERG, Arlene; MURKOFF, Heide; HATHAWAY, Sandee (2003). O bebê. O primeiro ano de vida de seu filho. Tradução de Jefferson Camargo e Marcelo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes.

HUGO MÃE, Valter (2012). O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo.

KAHR, Brett. “The Public Psychoanalyst: Donald Winnicott as broadcaster”. In Joyce, Angela (2018). Donald Winnicott and the History of the Present. Understanding the Man and His Work. Londres: Karnac Books Ltd., pp. 111-121.

KARPF, Anne. “Beyond the consulting room: Winnicott the broadcaster”. In Joyce, Angela (2018). Donald Winnicott and the History of the Present. Understanding the Man and His Work. Londres: Karnac Books Ltd, pp. 123-131.

LISPECTOR, Clarice (1964). “A legião estrangeira”. In A legião estrangeira. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999, pp. 86-100.

MELVILLE-THOMAS, Rachel. “A word in your ear: Winnicott on the radio”. In Horne, Anne e Lanyado, Monica (2012). Winnicott’s children: independent psychoanalytic approaches wth children and adolescents. Reino Unido e Estados Unidos: Routledge, 2012, pp. 157-170.

PHILIPS, Adam; Taylor, Barbara (2010). On kindness. New York: Picador.

PLATÃO. “O banquete”. Tradução de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. In Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

SLIMANI, Leila (2016). Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, 2018.


Luciana Pires é psicanalista, com especialização pela Tavistock Clinic, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP. Organizadora do livro “Françoise Dolto: cultura psicossomática e clínica” (Blucher), autora do livro “Do Silêncio ao Eco: Autismo e Clínica Psicanalítica” (Edusp), além de vários artigos e capítulos em livros. Supervisora do grupo Sustentar – Psicanalise, Infâncias e Saúde Pública do Instituto Sedes Sapientae e coordenadora de grupos de estudos em psicanálise. E-mail luciana.pires@uol.com.br



[1] Hugo Mãe, Valter [2011]. O filho de mil homens. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012, p. 64; grifo da autora.

[2] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 14.

[3] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 15; grifo da autora.

[4] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 18; grifo da autora.

[5] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 11-12 e 14-15; grifo da autora.

[6] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 63.

[7] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 66.

[8] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 15; grifo da autora.

[9] Hugo Mãe, Valter [2011]. O filho de mil homens. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012, p. 54; grifo da autora.

[10] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 60.

[11] É assim também no discurso que Aristófanes profere sobre o amor n’O banquete de Platão. Conta o mito que seres andróginos que habitavam a Terra ameaçaram os deuses com sua potência e auto-suficiência. Foram por isso cortados ao meio, resultando em um homem e uma mulher. Esta seria a origem do amor: humanos lançados em uma eterna busca por sua metade complementar e que, ao se encontrarem, unem as feridas produzidas pelo corte divisório. (Platão 1987)

[12] Hugo Mãe, Valter [2012]. O filho de mil homens. Editora Cosac Naify, São Paulo, p. 154; grifo da autora.

[13] Dolto, Françoise [1985]. A causa das crianças. Tradução de Ivo Storniolo e Yvone C. T. da Silva. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2005.

[14] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 35.

[15] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 110.

[16] Karpf, Anne. “Beyond the consulting room: Winnicott the broadcaster”. In Joyce, Angela (2018). Donald Winnicott and the History of the Present. Understanding the Man and His Work. Londres: Karnac Books Ltd, p. 126.

[17] Melville-Thomas, Rachel. “A word in your ear: Winnicott on the radio”. In Horne, Anne e Lanyado, Monica (2012). Winnicott’s children: independent psychoanalytic approaches wth children and adolescents. Reino Unido e Estados Unidos: Routledge, 2012, p. 157.

[18] Eisenberg, Arlene; Murkoff, Heide; Hathaway, Sandee [2003]. O bebê. O primeiro ano de vida de seu filho. Tradução de Jefferson Camargo e Marcelo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes.

[19] Lispector, Clarice [1964]. “A legião estrangeira”. In A legião estrangeira. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999, pp. 88-89.

[20] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 37.

[21] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 101.

[22] Slimani, Leila [2016]. Canção de Ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Editora Planeta, São Paulo, 2018, p. 103; grifo da autora.

[23] “Independence and self-reliance are now the great aspirations, ‘mutual belonging’ is feared and unspoken; it has become one of the great taboos of our society.” (p. 6) “What it feels like to be a parent in a society where kindness is incidentally praised while being implicitly discouraged. Kindness—that is, the ability to bear the vulnerability of others, and therefore of oneself—has become a sign pf weakness.” (p. 8). Agradeço a Maíra Mamud Godoi pela lembrança desse trecho do livro On kindness de Adam Philips (2010).

[24] Calligaris, Contardo. “Qualidade moral de nossa conduta depende da capacidade de agir sozinho”. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 de out de 2020.

[25] Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=ghQ9Oa9fR3w>. Consultado em: 13/11/2023.

[26] Hugo Mãe, Valter [2011]. O filho de mil homens. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012, p. 181.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | PIRES, Luciana (2023) Muito além da família: somos filhos de mil homens. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -15, p. 3, 2023. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2023/12/22/n-15-03/&gt;.