Tradução | William Zeytounlian
No fim de seu ensino, a partir de 1973, Lacan formula algumas proposições desconcertantes concernindo a formação dos analistas e a transmissão da psicanálise. Elas são tão perturbadoras que quase não provocaram eco e suscitaram poucos comentários. No entanto, levar em conta tais orientações surgidas no fim de sua obra me parece essencial para compreender o que foi a profunda originalidade da aventura lacaniana.
Desta forma, em 1973, em sua intervenção no Congresso da Escola Freudiana de Paris, na cidade francesa La Grande-Motte, Lacan afirma, ao falar da experiência do passe:
Eis o que obtenho após ter proposto esta experiência (o passe). Obtenho algo que, justamente, não é absolutamente da ordem do discurso do mestre, nem do magistério, ainda bem menos alguma coisa que partiria da ideia de formação; eu falei das formações do inconsciente (…): nunca falei da formação analítica. Eu falei de formação do inconsciente. Não há formação analítica, mas, da análise, emerge uma experiência que é erroneamente qualificada como didática. Não é a experiência que é didática (…), por que creem vocês que eu tentei apagar por completo este termo, didática, e que falei de psicanálise pura? (…) Isso não impede uma análise de ser didática, mas o didatismo da coisa, eis como melhor o situamos: dei-lhes uma lição sobre ele no ano passado[1], sobre o que está em jogo na chamada experiência interrogativa em relação ao animal. Colocamos, como vocês sabem, diversos animais em pequenos labirintos. (…) O que fazemos? Nós os ensinamos a aprender. (…) Assim, vendo as coisas por este ângulo, após uma experiência analítica que implica certamente a conquista de um saber, do que se pode abordar deste saber que está ali antes de o sabermos, a saber, o inconsciente (…). É neste sentido, e somente neste sentido, que uma análise é didática[2].
Não é verdade que Lacan nunca falou de formação analítica e seria fácil encontrar numerosas referências em sua obra nas quais ele aborda esta questão. A partir daí, o que podemos escutar nesta afirmação: não há formação analítica? Para tentar compreendê-la, convém definir o que Lacan entende por análise didática na época desta intervenção.
Sabemos que a IPA faz a distinção entre análise terapêutica e análise didática — uma servindo a tratar, a outra a “fabricar” analistas — um dos pilares da formação analítica. Porém, para Lacan, esta distinção é vã, já que toda análise é didática pela simples razão de que o analisante faz nela a aquisição de um saber e, às vezes, de uma relação específica a este. Mas, se toda análise é didática, nem todas fazem do analisante um analista. O que diferencia o saber adquirido em toda análise daquele que conduzirá à escolha de se tornar analista? O primeiro, cuja essência é principalmente imaginário-simbólica, permite, através de efeitos de criação de sentido, fazer desaparecer os sintomas e, sem nenhuma dúvida, “melhorar a posição do sujeito[3]”. É esta dimensão que a primeira parte da obra de Freud, ainda impregnada pelo método catártico, ressalta. Efetivamente, a psicanálise foi, num primeiro tempo, considerada essencialmente como uma hermenêutica do inconsciente[4]. É a partir do tratamento do homem dos lobos[5], sustentado pela reconstrução e pela rememoração da cena primitiva, que Freud será levado a reconhecer um furo no saber inconsciente do sujeito. Furo real no simbólico, indicando a ascendência do real sobre o simbólico. É o reconhecimento deste furo que conduzirá Freud a elaborar o conceito de recalque originário e, igualmente, a modificar profundamente a teoria analítica e, como consequência, a prática.
É aqui que o segundo tipo de saber aparece. Não mais um saber de essência imaginário-simbólica, ainda que este último não seja de modo algum a se desprezar, mais a ressurreição de um saber articulado ao real e, portando, furado. É o ato de se levar em conta algo que vai mais longe que o inconsciente[6], que, para além dos efeitos terapêuticos não negligenciáveis de uma análise, permitirá ao analisante, ao se apoiar em um “toque do real[7]” encontrado em sua análise pessoal, orientar o tratamento não somente a partir da elucidação do sentido, mas igualmente de seu mais-além, que faz corte se apoiando neste toque do real que não cessa de não se escrever.
É, creio eu, o que Lacan propõe nomear, no contexto de sua intervenção em La Grande-Motte, “formação do inconsciente”. “Formação do inconsciente” que é preciso escutar aqui em seu sentido literal: ou seja, aquele pelo qual o analisante, em seu processo de se tornar analista, forma seu inconsciente, que, até então, se manifestava apenas sob os auspícios das “formações do inconsciente” (sonhos, lapsos, sintomas…). Ele o forma não apenas como lugar de um saber não sabido, mas igualmente como estrutura em torno de um ponto incognoscível. Unnerkant, para retomar o termo alemão utilizado por Freud em A interpretação dos sonhos[8] e traduzido por Lacan como “o impossível de reconhecer[9]”. Formação do inconsciente que se revela, in fine, deformação, uma vez que consiste em se confrontar a esse toque do real que não cessará de atormentar o sujeito que terá aceito de a ele se expor.
Esta experiência[10] sob transferência do inconsciente poderá, então, desembocar não apenas na melhora da posição do sujeito, mas igualmente na articulação de um saber preexistente, ainda que insabido, e de um desejo singular. Eis aqui a única e verdadeira base do que temos o hábito de nomear formação analítica.
De fato, a condição sine qua non para se tornar analista é mesmo, desde o início da história da psicanálise, ter se submetido, às suas próprias custas, a uma psicanálise pessoal aprofundada. Os estudos e diplomas não são suficientes para tanto. Eis o que deveria permitir responder às pessoas que intencionam criar diplomas universitários de psicanálise, assim como àqueles que se inquietam com isso: não se trata nesses casos de formação analítica, mas de informação analítica. Informação que não é sem interesse, como Freud já o afirmava em 1913 em O interesse da psicanálise[11]. Mas não se trata de modo algum de formação analítica. Como Freud observava em seu texto Sobre o ensino da psicanálise nas universidades: o estudante aprenderá, no curso deste ensino, algo da psicanálise, no sentido em que ele vai ouvir falar dela e que sua cultura, com isso, será enriquecida. Contudo, isso é obviamente insuficiente, posto que se trata menos de aprender algo da psicanálise do que de aprender algo pela psicanálise. É esta aprendizagem pela psicanálise que proponho chamar de “formação do inconsciente”, no singular, para distinguir das formações do inconsciente. Não há formação analítica para além do divã, poderíamos resumir. Há apenas uma formação do inconsciente que conduz a se tornar analista, formação eminentemente singular que Lacan indexa sob o nome de “desejo do analista[12]”.
A outra citação de Lacan sobre a qual eu gostaria de me apoiar data de 1979, ao término de um importante colóquio da Escola Freudiana de Paris consagrado à questão da transmissão, Lacan conclui muito brevemente e declara:
Tal qual eu consigo pensá-la agora, a psicanálise é intransmissível. É bem incômodo. É bem incômodo que cada analista seja forçado — já que é mesmo preciso que ele seja forçado — a reinventar a psicanálise. Se eu disse em Lille que o passe havia me decepcionado, é mesmo por isso, pelo fato de que é preciso que cada psicanalista reinvente, a partir do que ele conseguiu pelo fato de ter sido psicanalisante por um tempo, que cada analista reinvente o modo pelo qual a psicanálise pode durar[13].
Depois de ter afirmado que não há formação analítica, eis aqui Lacan declarando enfaticamente que a psicanálise é intransmissível. Creio ser possível sustentar que esta segunda afirmação é complementar à precedente ou, para dizer de um outro modo, que as duas são uma e a mesma coisa, revelando uma das arestas mais agudas da aventura lacaniana.
Se não há formação analítica e se a psicanálise é intransmissível, então, o que estamos fazendo agora e por que estamos aqui reunidos? Jacques-Alain Miller em seu texto Jacques Lacan e a voz propõe uma hipótese tão divertida quanto estimulante.
Se nós falamos tanto, se nós fazemos colóquios, se nós tagarelamos, se nós cantamos e se nós escutamos os cantores, se nós fazemos música e se nós a escutamos (…) é para fazer calar (…) a voz como objeto pequeno a[14].
Não é delicioso ver Jacques-Alain Miller sustentar que, se nós frequentamos tão assiduamente os colóquios, é para nos tornar surdos à voz? Mas se a tese é sedutora e, sem dúvida, justa, eu gostaria de responder de outra forma que por um chiste. Se levamos a sério as proposições de Lacan, se não há formação analítica e se a psicanálise é tão intransmissível, o que faço agora e o que farei daqui a alguns instantes quando escutarei a próxima conferencista? A resposta a que me empenharei a justificar hoje é a seguinte: o que fazemos nestes momentos é testemunhar como, de receptor da mensagem siderante vinda do real encontrada no curso de nossa análise pessoal, nós tentamos permanecer analista nos tornando emissor e passador deste toque do real encontrado ao longo do processo. O que nos leva, de um certo modo, a dizer a maior parte do tempo sempre a mesma coisa. Nossas elucubrações teóricas sendo apenas variações psicanalíticas sobre um mesmo tema. A teoria seria, muitas vezes, a arte de acomodar os restos não analisados, posto que inanalisáveis, de nossa análise. O que temos o hábito de nomear transmissão da psicanálise seria de fato, como Lacan pôde dizê-lo, e no melhor e raríssimo caso, apenas a tentativa de “reinventar a psicanálise” a partir deste toque do real encontrado ao longo da análise pelos que se arriscam a tomar a palavra para tentar compreender sua origem.
A aventura lacaniana seria, a partir daí, caracterizada por uma radicalização da descoberta freudiana: o eu não é o senhor em sua casa, e a formação e a transmissão psicanalítica devem tirar daí todas as consequências. A transmissão não pode ser feita pelo sentido egoico, mas sim pela colocação em ressonância do sujeito a partir deste toque do real. Furo real no simbólico que não cessa de não se escrever, mas que é possível de se colocar em ressonância se articulado ao furo simbólico no real, o que significa que se a psicanálise é intransmissível, ela não é, contudo, não-transmissível.
Explico-me.
Radicalizar a descoberta freudiana é sustentar que, se a prática analítica pode ser uma questão da revelação[15] e do desvendamento[16], ela é essencialmente confrontação a um real intratável (incognoscível, irrepresentável, inimaginável) que convém apreender não pelo pensamento, o que é impossível, mas pela descoberta de que é possível ser ensinado por este encontro.
“É muito precisamente disso que se trata na análise, (…) é fazer que o Real (…) ultrapasse o simbólico[17].” afirma Lacan na lição de 13 de janeiro de 1975 de seu seminário R.S.I., indicando firmemente que é essencial orientar a análise levando em conta a ascendência do real sobre o simbólico.
A partir daí, minha tese é a seguinte: se Lacan afirmou que a psicanálise é intransmissível, corolário de “não há formação analítica”, ele não cessou de mostrar durante todo o seu ensino que ela não é não-transmissível se o analista é ensinável pela experiência do toque do real que ele pôde ter durante sua análise pessoal. Se a psicanálise é de fato intransmissível, como o afirma Lacan, convém definir as condições que farão com que ela não seja não-transmissível. E é o fato de que a psicanálise, ainda que intransmissível, não seja não-transmissível, que faz com que nós estejamos reunidos hoje. Em que o fato da psicanálise, em determinadas condições, não ser não-transmissível se diferencia do fato que ela é, segundo Lacan, intransmissível?
A psicanálise é intransmissível fora da análise pessoal; mais-além do que ela pode significar, ela é habitada por um ponto de silêncio que faz com que ela não possa oferecer seu manual de instrução definitivo, de modo que ela não dá garantia ao psicanalista de saber como se joga esta partida que é a psicanálise. Se Lacan pôde dizer que a psicanálise é intransmissível, é porque na transmissão fora do um a um da clínica algo se perverte pelo fato de que nem tudo poderia ser nela transmitido, o que leva muitas vezes, inelutavelmente, a um modo de transmissão que é o do mestre. Ou seja, da imposição de um saber. O mestre sabe a verdade sobre a letra do texto, a comunica impondo-a, se preciso, violentamente. Trata-se de uma transmissão da psicanálise pelo recalque, o que a torna propriamente intransmissível. A hipótese de Alain Didier-Weill é que Freud, ao criar a I.P.A., teria feito esta escolha da transmissão pelo recalque… deixando a alguns outros a vir a tarefa de reencontrar o gume de sua mensagem[18].
Se proponho pensar a psicanálise como não não-transmissível, é para dizer sobre o fato de que o simbólico fura o real, e o real o simbólico: a dupla negação (não e não) é a via pela qual esse real não-cognoscível pode aceder à dignidade de “formação do inconsciente”, no sentido que o defini anteriormente. Uma vez que, se há na experiência analítica algo que não pode se articular em teoria, o toque do real que nela pode ser encontrado, ele cria a convicção. Todo o resto sendo apenas crença, e vocês se lembram que Freud desejava proteger a psicanálise tanto dos médicos do que dos padres[19]. Quanto a isso, pode ocorrer durante uma primeira seção que a pessoa sentada na minha frente me diga, acreditando me chocar ou me provocar: “Você sabe, não? Eu não acredito no inconsciente”. Ao que eu respondo inevitavelmente: “Que ótimo: eu também não!”. De fato, eu não sou um crente do inconsciente. Para mim, o inconsciente é uma hipótese que pode ser demonstrada e cuja colocação em ato pela transferência permite ao analisante se confrontar a este toque de real que o levará à sua convicção da existência deste. Não há necessidade alguma de acreditar nele, porém, é essencial de a ele se expor. Já que todo o resto, até mesmo o que estou agora fazendo, diz respeito a uma informação psicanalítica mais ou menos pertinente, mais ou menos interessante, mais ou menos vã… Dito de uma forma mais brutal: o que a análise não pôde produzir, o grupo ou a escola analítica, a leitura dos textos ou o controle, não poderão suprir.
O que Lacan formularia da seguinte forma em 1958:
Quem não souber levar suas análises didáticas até esta virada em que se revela com tremor que todas as demandas articuladas durante a análise, e mais do que qualquer outra aquela que esteve em seu princípio, de se tornar analista, e que chega então a termo, eram apenas transferências destinadas a manter no lugar um desejo instável ou duvidoso em sua problemática, nada sabe do que é preciso obter do sujeito para que ele possa assegurar a direção de uma análise, ou apenas interpretá-la a bom conhecimento de causa[20].
Para completar esta reflexão, quase 10 anos mais tarde, em 9 de outubro de 1967, Lacan lançará esta frase, tornada célebre desde então: “O psicanalista só se autoriza dele mesmo[21]–[22]”. “Autorizar-se de si mesmo” não significa de forma alguma “autorizar-se por si mesmo”, o que seria um pleonasmo, já que a forma reflexiva do verbo supõe implicitamente que o sujeito e o objeto da ação sejam os mesmos. Contudo, “autorizar-se de” é uma expressão própria à língua francesa, que significa “amparar-se de”, “valer-se de”, “recorrer à proteção de”, “invocar o testemunho de”. Não poder se amparar em nada além desta “formação do inconsciente” surgida no curso da análise, e não em um saber transmitido em uma escola ou nos livros, deixa o psicanalista em uma solidão absoluta da qual ele apenas pode sair ao ousar se arriscar a tomar a palavra a partir deste lugar de um saber extremamente particular. A partir daí, o ato do sujeito que se autoriza de si mesmo não o remete a um mesmo de ordem egoica, mas sim a uma radical alteridade que é igualmente ele mesmo. Vocês devem ter reconhecido a definição que Lacan dá à extimidade: “este lugar central, esta exterioridade íntima, esta extimidade que é a Coisa[23]”.
Isto implica que o analista não opera com o que ele já sabe — mesmo que ele tenha que saber[24] —, mas a partir do ponto de enigma encontrado em sua análise pessoal, ponto de enigma que ele continua a colocar em trabalho em suas elaborações teóricas, e que o permite reconhecer o que pode provocar enigma no analisante. O modo pelo qual cada um tentará reinventar a psicanálise será feito a partir do que a sua análise pessoal pôde revelar de sua relação com o real, que é o do desejo e da sua causa.
O objetivo, por certo, não é o de permanecer siderado por este enigma, nem tampouco resolvê-lo. Sabemos, desde Édipo, que nem sempre é bom resolver enigmas… O objetivo será moldar este enigma para que ele possa servir a construir uma bricolagem pessoal que permita destinar-se em uma montagem teórica, artística, um engajamento amoroso, profissional ou social… Resumindo, tudo o que poderá permitir experimentar que é possível existir, ou seja, manter-se de pé, apesar da inibição, dos sintomas e da angústia, diante de si. Assim, se estabelece uma fidelidade a si mesmo que não tem nada a ver com a crença narcísica em si mesmo (a tão famosa confiança em si), mas sim com a fidelidade a este real que me orienta e sobre o qual eu não sei quase nada, exceto os estilhaços que dele pude vislumbrar.
Isto não é de forma alguma simples, e Freud o experimentou de maneira amarga:
(…) Eu não esperava que alguém que tivesse compreendido a análise com uma certa profundidade pudesse novamente renunciar a perder sua compreensão. E, no entanto, a experiência cotidiana com os pacientes havia mostrado que a reflexão total dos conhecimentos analíticos adquiridos pode produzir, a partir de qualquer extrato mais ou menos profundo em que se encontra uma resistência particularmente forte; mesmo que tenhamos obtido junto a um determinado paciente, ao preço de um doloroso trabalho, que ele tenha cernido alguns elementos do saber analítico e que ele os maneje como seu bem próprio, nós podemos ainda assim nele constatar que, sob o domínio da primeira resistência que aparecer, ele entrega aos quatro ventos tudo o que aprendeu e se defende como em seus belos dias de debutante. Foi-me preciso aprender que psicanalistas podem agir exatamente como pacientes em análise[25].
Ao formalizar sua proposição de 1967 sobre o passe, Lacan sublinha que os psicanalistas são regularmente tentados a se desviar da própria análise. Já que confrontar-se ao fato de que o Outro não existe, e que, consequentemente, nós estamos sozinhos, responsáveis por nossos atos, condenados a nos autorizar, é algo difícil de suportar para cada um de nós e, portanto, nós podemos às vezes preferir, mesmo frequentemente, quando nossa análise pessoal nos conduziu até esta constatação, continuar a fazer existir um Outro para nele acreditar, ainda que sob o preço de uma perda radical da liberdade vislumbrada.
Contudo, é apenas a instabilidade do efeito da análise oriunda deste toque do real que permite aos psicanalistas, tomados um a um, de promover os avanços do discurso psicanalítico, fazendo deles A.E., Analisantes Eternos, ou seja, sempre em trabalho de despertar. A sobrevivência da psicanálise não depende, portanto, dos modos de funcionamento do grupo analítico, de sua escola, mais sim de cada psicanalista, um a um, e de nossa responsabilidade em fazer ressoar este toque do real que nos fez psicanalista. A questão do psicanalista se coloca a partir daí, não como uma identidade adquirida pela aprendizagem de uma disciplina, mas colocada em vibração com a própria questão: “Analista, será[26] que o terei sido[27]?”. Esta é a terrível questão que se impõe a nós no après-coup, no só depois, de nosso ato. Esta questão, nem sempre é certo que possamos respondê-la de forma afirmativa, mas o fato mesmo de que ela seja colocada testemunha aquilo que faz a própria ética da prática analítica: só existe psicanálise orientada pelo real. ♦
REFERÊNCIAS
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* Jean-Michel Vives é Professor de psicopatologia clinica da Universidade Côte d’Azur, Psicanalista – Toulon, França.
** William Zeytounlian é mestre em História pela UNIFESP, tradutor e psicanalista. Atualmente, realiza pesquisa de doutorado em Letras (FFLCH-USP).
[1] Trata-se da lição de 26 de junho de 1973. LACAN, Jacques (1972-1973) Le Séminaire, livre XX, Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 128. Nesta lição, Lacan comenta os dispositivos de aprendizagem aos quais os psicólogos experimentais submetem ratos a labirintos.
[2] LACAN, Jacques (1973) Intervention dans la séance de travail “Sur la passe” du samedi 3 novembre. Lettres de l’École freudienne, Paris, n° 15, 1975, p. 191.
[3] LACAN, Jacques (1962-1963) Le Séminaire, livre X, L’angoisse. Paris : Seuil, 2004, p. 69-70.
[4] Apesar de certas indicações restritivas freudianas, com a designação de umbigo do sonho em A interpretação dos sonhos, desde 1900.
[5] FREUD, Sigmund (1914) « À partir de l’histoire d’une névrose infantile ». In : Œuvres Complètes, Tome XIII. Trad. Jean Laplanche. Paris : P.U.F., 1994, p. 1-119.
[6] “Este ano, digamos que, com esse insabido que sabe do Um-equívoco (Une-bévue, homofonia francesa para o Unbewusst freudiano), tento introduzir algo que vai mais longe que o inconsciente”. LACAN, Jacques (1976) Le Séminaire. L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, inédito, seção do 16 de novembro. DIDIER-Weill, Alain. (2010) Un mystère plus lointain que l’inconscient. Paris : Aubier.
[7] LACAN, Jacques (1974) « Télévision ». In : Autres Écrits. Paris : Seuil, p. 527. Contrariamente ao que alguns colegas podem escrever, não se trata de um “toque de real”, mas sim de um “toque do real”. Notar a diferença entre as duas formulações é essencial aqui. Um toque de real pode ser entendido como um pouco de real misturado à realidade (como na expressão: “Para obter esta cor, é preciso acrescentar um toque de azul”). Porém, um toque do real deve ser entendido no duplo sentido de ser tocado pelo real e de tocá-lo. Contrafazendo Sacha Guitry, poderíamos dizer que, com este toque do real: “Sou contra o real, completamente contra…”.
[8] “Cada sonho tem pelo menos um ponto no qual ele é insondável, de algum modo, um umbigo pelo qual ele se correlaciona ao não-conhecido”. FREUD, Sigmund (1900) « L’interprétation des rêves ». In : Œuvres complètes, Tome IV. Trad. Laplanche. Paris : PUF, 2010, p. 146.
[9] LACAN, Jacques (1975) “L’ombilic du rêve est un trou”. Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter. La cause du désir, Paris, n°102, pp. 327-350, 2019.
[10] Experiência, etimologicamente, nos envia à travessia de um perigo. “‘Experiência’ vem do latim experiri, experimentar, provar. O radical é periri, que encontramos igualmente em periculum, perigo, risco. A raiz indo-europeia é per, à qual se ligam a ideia de ‘travessia’ e, secundariamente, a de ‘prova’. Em grego, são numerosos os derivados que marcam a travessia, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais-além; peraô, passar através; perainô, ir até o fim; peras, termo, limite […] Os confins entre um sentido e outro são imprecisos. Da mesma forma que em latim periri, tentar, e periculum, que quer dizer primeiramente prova e, em seguida, perigo. A ideia de experiência como travessia se distingue mal, no nível etimológico e semântico, da ideia de risco. A ‘experiência’ é, a princípio e fundamentalmente sem dúvida, se colocar em perigo”. LACOUE-LABARTHE, Philippe (1997) La poésie comme expérience. Paris : Christian Bourgois, p. 30.
[11] FREUD, Sigmund (1913) « L’intérêt de la psychanalyse ». In : Œuvres Complètes, Tome XII. Trad. Laplanche. Paris : PUF, 2005, pp. 95-125.
[12] Esta expressão aparece pela primeira vez na obra de Lacan em 3 de maio de 1961. “Tento neste ano recolocar a questão fundamental que nos é colocada em nossa experiência pela transferência, orientando o pensamento de vocês em direção ao que deve ser, para responder a este fenômeno, a posição do analista. Esforço-me nisso de apontar no nível mais essencial o que deve ser esta posição diante do apelo do ser, o mais profundo, que emerge no momento em que o paciente vem nos pedir nossa ajuda e socorro. É o que, para ser rigoroso, correto, não parcial, para ser tão aberto quanto indica a natureza da questão que nos é colocada, eu formulo perguntando o que deve ser o desejo do analista”. LACAN, Jacques (1960-1961) Le séminaire, Livre VIII, Le transfert. Paris : Seuil, 2001, p. 315.
[13] LACAN, Jacques (1978) Conclusions. Lettres de l’École, Paris, n°25, Transmission, vol II, p. 219-220, 1979.
[14] MILLER, Jacques-Alain (1988) « Jacques Lacan et la voix ». In : La voix. Paris : La lysimaque, 1989, p. 184.
[15] “Enquanto na jouïs-sens (‘ouço-sentido’, termo que remete à homofonia possível no idioma francês com gozo, jouissance, e ouvir sentido, abrindo a possibilidade de escutá-lo como gozo do sentido ouvido), o inconsciente se desvela, pelo gozo outro o real se revela como lugar de existência de um real começando (…). A experiência da revelação não é a experiência de um significante enviando a um outro significante; como na produção artística, ela é experiência de um significante abrindo a um real vibratório do qual a arte nos dá a suspeição. Um tal real é o inaudito ao qual remete uma nota musical, é o invisível ao qual reenvia um toque pictórico”. DIDIER-WEILL, Alain (2010) Un mystère plus lointain que l’inconscient. Paris : Aubier, p. 15-16.
[16] Que implica em levantar os véus do semblante.
[17] LACAN Jacques (1975) Le séminaire, R.S.I., inédit. Consultation en ligne le 25/09/2022 <ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1975.01.13.pdf>
[18] “Ao justificar o Passe como possibilidade de tornar transmissível a psicanálise, Lacan se destaca de Freud, que, ao confiar o destino da psicanálise a I.P.A., aposta na possibilidade de torná-la transmissível por meio do recalque”. DIDIER-WEILL, Alain (2002) « Pour un lieu d’insistance », Bulletin freudien, Transmission, n° 40. Consulté en ligne le 8/10/2022, <www.association-freudienne.be/pdf/bulletins/39-02Weill_40.OK.pdf>. É esta transmissão por recalque que permitirá e fará todo o interesse do retorno a Freud feito por Lacan.
[19] “Não sei se vocês compreenderam o laço secreto entre ‘a análise e os não-médicos’ e ‘a ilusão’. No primeiro, quero proteger a análise contra os médicos, no segundo, contra os padres”. Carta de 25 de novembro de 1928 à Pfister. FREUD, Sigmund (1909-1939) Correspondance avec le pasteur Pfister. Paris : Gallimard, 1966, p. 183
[20] LACAN, Jacques (1958) « La direction de la cure et les principes de son pouvoir ». In : Écrits. Paris, Seuil, p. 636.
[21] LACAN, Jacques (1967) « Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École ». In : Autres Écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 243.
[22] Será apenas bem mais tarde que a fórmula “e de alguns outros” aparecerá, contrariamente ao que escutamos com frequência. “Mesmo se o analista só se autoriza de si mesmo, isto não quer dizer que ele o decida sozinho. Ele se autoriza também de alguns outros”. LACAN, Jacques (1974) Le Séminaire, Les non-dupes errent. Inédit, séance du 9 avril 1974. Consultation le 27/09/2022. <ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1974.04.09.pdf>
[23] LACAN, Jacques (1959-1960) Le Séminaire, Livre 7, L’éthique de la psychanalyse. Paris : Seuil, 1986, p. 167.
[24] “Isto não autoriza de forma alguma o psicanalista a contentar-se em saber que ele não sabe nada, porque o que está em questão é o que ele tem a saber”. LACAN, Jacques (1967) « Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École ». in : Autres Écrits. Paris : Seuil, 2001, p. 249.
[25] FREUD, Sigmund (1914) « Contribution à l’histoire du mouvement psychanalytique ». In : Œuvres Complètes (Trad. Laplanche). Paris : PUF, 2005, p. 295.
[26] Este “será” (tradução para o “est-ce” francês), equívoco aqui, remete, sem dúvida ao sujeito, escrito com um grande S (lido neste idioma de forma homônima a essa construção verbal).
[27]“O que se realiza em minha história não é o passado definido do que foi, posto que já não é mais, nem mesmo o perfeito do que foi no que eu sou, mas o futuro anterior do que eu teria sido pelo que estou me tornando”. LACAN, Jacques (1953) « Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse ». In : Écrits. Paris : Seuil, 1966, p. 300.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | VIVES, Jean-Michel (2023) “Não há formação analítica”. [Trad. William Zeytounlian] Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -15, p. 4, 2023. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2023/12/22/n-15-04/>.