Desenvolvimento e reivindicações da psicanálise

[Entwicklung und Ansprüche der Psychoanalyse]

por Otto Rank e Hanns Sachs

Tradução | Pedro Fernandez de Souza

Imago, vol. 1, n. 1, 1912, pp. 1-16.

Nota do tradutor

O seguinte artigo de Otto Rank e Hanns Sachs é o texto de abertura da revista Imago, fundada por eles em 1912. A revista já nasce com muita importância dentro do círculo psicanalítico: em seu primeiro volume é publicado o primeiro ensaio de Totem e Tabu, de Freud, que viria a publicar ainda outros textos seminais na revista, como é o caso do famoso Das Unheimliche, em 1919. O subtítulo da revista já indica o seu objetivo: Zeitschrift für die Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften, “Revista para a aplicação da psicanálise às ciências do espírito”. Trata-se da colocação em prática, da concretização de um projeto esboçado por Freud já desde a Traumdeutung, de 1900: utilizar os conhecimentos e os métodos psicanalíticos — oriundos da prática clínica com as psiconeuroses e com a interpretação de fenômenos psíquicos “desviantes”, como o sonho, o esquecimento e o ato falho — no âmbito das “ciências do espírito” ou “humanidades”, como costumamos designá-las hoje. O texto introdutório de Otto Rank e Hanns Sachs, além de ser um documento histórico fundamental, explicita com clareza esse projeto, partindo das primícias neuropáticas da psicanálise e chegando à sua abertura para um futuro mais amplo e mais diversificado, em seu contato mutuamente fertilizante com a poética, a história, a sociologia, a mitologia, e assim por diante

Desenvolvimento e reivindicações da psicanálise

O conhecimento da origem e da estrutura de algumas doenças dos nervos — enigmáticas até então —, as assim chamadas psiconeuroses, e a técnica de cura criada a partir desse conhecimento aparentemente têm pouco direito de reivindicar interesse fora da disciplina médica, e menos ainda de imputar a si a capacidade de exercer uma influência fecunda nas ciências do espírito. Se a psicanálise pode, no entanto, fazer tais reivindicações, é porque se desfez da limitação ao domínio patológico, ao qual deve a sua origem, e aplicou exitosamente o que havia aí encontrado nos processos e produtos da vida anímica normal. Através da ampliação nessa direção, respaldada por numerosos colaboradores, obtida no curso do seu desenvolvimento, ela pode hoje viger como psicologia plenamente válida, que não se limita ao laboratório, mas é aplicável a todos os fenômenos anímicos tal como os produz a vida real. Da psique individual, porém, não é difícil encontrar a passagem para a compreensão das formas culturais como precipitado da cooperação de inúmeras almas individuais. Descrever brevemente o curso desse desenvolvimento e indicar com isso os lugares em que, ao nosso ver, os caminhos se bifurcam em direção ao futuro: eis a tarefa das próximas páginas.

Em 1880, um médico vienense, Dr. Josef Breuer, no caso de uma garota gravemente histérica que ele tratou com o auxílio da hipnose, fez uma descoberta que parecia apta a ser o fundamento de um novo processo curativo. Ele descobriu precisamente que os fenômenos de sua doença desapareciam depois que a paciente, hipnotizada, reencontrasse em sua memória a ocasião esquecida para o primeiro surgimento desse sintoma, e a emoção, que naquela ocasião original por algum motivo não havia encontrado escoamento, fosse plenamente vivenciada (ab-reagida) durante o ato de narrar. Dr. Breuer comunicou essa experiência a um jovem colega que se havia familiarizado com os fenômenos enigmáticos da hipnose e da sugestão com Charcot e Bernheim. De colaborador inicial de Breuer, ele se tornou o criador do método psicanalítico e o fundador de uma nova concepção da vida da alma: Sigmund Freud.

Em seu prosseguimento da experiência de Breuer, Freud logo eliminou o uso da hipnose. No início, contudo, parecia muito pouco promissor querer acessar recordações do paciente que ele não conseguia mais recuperar em sua memória sem alterações do seu estado de consciência. Já que, não obstante, foi provado pela prática de Breuer que aquelas impressões esquecidas ainda surtiam efeito na vida anímica do enfermo, mesmo num estado normal e inalterado de consciência, Freud concluiu que aqui existia apenas uma aparência de esquecimento a enganar a consciência do enfermo, e que teria de haver um método que tornasse esse esquecido novamente consciente ainda que sem a hipnose. Ele se viu diante da tarefa de encontrar e dominar as forças que mantinham essas recordações importantes e efetivas longe da consciência. Da natureza das recordações inconscientes descobertas com o método de Breuer, depreendia-se de onde advinha essa força. Eram impressões e pensamentos que o paciente considerava incompatíveis com a sua personalidade e que por isso, ao ocorrerem, haviam sido recusados como penosos, ou mesmo intoleráveis. A consequência desse sentimento penoso foi o esforço de retirar a representação chocante da atenção, de reprimi-la da consciência, e por meio disso a descarga libertadora dos afetos correspondentes foi impedida. Agora também era compreensível que conexão havia entre as recordações reprimidas, tornadas inconscientes, e os sintomas. Como estes desapareciam tão logo aquelas recordações se haviam tornado conscientes, eles devem ter servido de substituto para o que desaparecera da vida anímica consciente, mas que manifestamente continuava a surtir efeito no estado de repressão[1]. De acordo com esse ponto de vista, portanto, os afetos jamais foram totalmente aniquilados, mas apenas alterados, separados das representações às quais estiveram originalmente ligados, para serem transpostos (convertidos) em algo corporal, no caso de uma predisposição adequada, ou para permanecerem no domínio puramente psíquico e serem soldados a outras representações, o que esclarece, por exemplo, a absurdidade de algumas representações obsessivas. Resulta disso uma notável analogia, no microcosmo anímico, da manutenção e transposição de forças conhecida no domínio da Física.

Uma vez que essas representações reprimidas se tornaram tão incomumente importantes para a vida anímica do enfermo, podia-se presumir que elas exerceriam influência determinante na direção do aparelho psíquico tão logo fossem abolidas as habituais representações direcionadas a metas do pensamento intencional. O psicoterapeuta deixava o paciente proferir a primeira e imediata ideia “livre”[2] que se apresentasse à sua consciência, independentemente de ela parecer pertencer ou não àquilo que se estava buscando. Se agora o paciente relatasse todas as suas ideias e não as suprimisse, embora elas lhe parecessem inoportunas, sem sentido ou mesmo penosas, podia-se sempre verificar que essa massa, aparentemente incoerente e escolhida de forma aleatória, estava ligada associativamente entre si e com o reprimido, de forma que ao fim da cadeia de pensamentos o reprimido mesmo fora encontrado. A ideia, portanto, era determinada pelos “complexos” reprimidos e de forma alguma era aleatória, como pressupõe o ponto de vista genérico, segundo o qual, em vez da que foi dada, uma outra ideia poderia muito bem ter surgido. Essa fundamental hipótese de trabalho da psicanálise foi provada de forma exata, em sua completa legitimidade, através dos experimentos associativos da escola de Zurique, e com isso a lei da causalidade, há muito tempo universalmente postulada, que enuncia com fundamento suficiente a severa necessidade e ligação de tudo o que acontece, inclusive do que aparentemente é o mais acidental, também auferiu validade para a vida psíquica. Dessa lei segue a pressuposição, significativa para nossa inteira concepção da vida anímica, segundo a qual o material fornecido pelo analisando não pode conter nada senão os derivados do reprimido em diferentes graus de distanciamento; ou melhor, que ele de fato contém o reprimido, mas não em sua feição original, intolerável para a consciência, mas sim numa forma encoberta e distorcida. A mesma força que antes causara a repressão estava agora em ação como resistência contra o retorno do reprimido, e de acordo com sua intensidade o encobrimento e a distorção tiveram de ser maiores ou menores. Quem quiser tentar interpretar jamais deve perder de vista essa eficácia da resistência e deve apreender o material com que se depara como se lê um jornal que, num país com severa censura à impressa, se expressa sobre assuntos proibidos e por isso usa, como auxílio, a forma da alusão, ironia (representação pelo contrário) etc. Em gazetas desse tipo, não se deve procurar o mais importante no editorial; este será inteiramente incolor, e o revolucionário, por cuja causa a página foi escrita, terá de ocultar-se nas notas aparentemente mais irrelevantes, que para o não iniciado nada têm a ver com política.

A técnica interpretativa, adquirida com base nessas pressuposições através de árdua experiência e observação individual, torna possível uma cuidadosa investigação sobre a constituição daquelas representações reprimidas, que tiveram de ser excluídas da consciência; elas todas se mostraram, sempre e sem exceção, oriundas da esfera da vida sexual e amorosa, ou seja, da sexualidade, devendo esse conceito ser tomado no mais amplo sentido. Com essa palavra, não se indicam apenas os processos indubitavelmente sexuais, mas também se inclui sua parcela em todos os impulsos anímicos até suas ramificações mais refinadas e seus prolongamentos mais afastados, tal como nós os designamos com a palavra amor, utilizada para expressar impulsos tão diferentes.

O estudo aprofundado, advindo do método curativo catártico de Breuer, de uma série de doenças nervosas peculiares e até então incompreendidas pelos médicos levou primeiramente ao reconhecimento de que essas enfermidades, que aparentam ser tão absurdas e supérfluas ao seu entorno, têm sentido, importância e propósito, muito embora a compreensão de seu funcionamento seja inacessível ao próprio doente. A psicanálise vivenciou a primeira surpresa e necessidade de autocontemplação com a descoberta inesperada de que todas aquelas impressões e processos anímicos que haviam sido esclarecidos como as causas do adoecimento da alma podiam ser demonstrados na mesma extensão também em pessoas que permaneceram normais, e até mesmo naquelas capazes de conquistas especialmente elevadas. A conversão histérica era somente a caricatura daquilo que todos nós sentimos como a expressão corpórea normal da emoção; a repressão de representações desprazíveis é corriqueira para nós todos no afastamento de recordações indesejadas e no seu resultado, o esquecimento; e a comunicação inibida por considerações convencionais, na forma da representação indireta, da alusão etc., nós a utilizamos continuamente na vida em sociedade. A vida anímica do doente psíquico nos mostra esses fenômenos anímicos, assim como todos os outros, somente numa exageração extrema, e com isso até nos facilita a inspeção da mecânica dos acontecimentos gerais da alma. Ao, por um lado, trazer mais perto da compreensão por meio da aproximação aos acontecimentos normais as enigmáticas “doenças nervosas” — que até então, por meio do ríspido contraste com o normal, eram encaradas como incompreensíveis e mesmo risíveis —, por outro lado os processos patologicamente distorcidos no neurótico lançam uma luz esclarecedora nas obscuras profundezas dos nossos processos anímicos.

A psicanálise foi quem primeiro tornou acessível a vida anímica inconsciente no homem em sua plena abrangência e em sua total importância. Os filósofos já haviam falado de um inconsciente, mas compreendiam com isso apenas, por assim dizer, um reservatório de pensamentos sempre acessível, que serviria para um alívio da consciência, dotado de um pequeno escopo de ação. O inconsciente aberto psicanaliticamente, ao contrário, é completamente inacessível ao indivíduo, e seu conteúdo é tão estranho à consciência, quando consegue captá-lo, ou mesmo frequentemente intolerável, que ela inicialmente não pode reconhecê-lo como sua propriedade psíquica. Com toda razão nos perguntarão aqui como nós sabemos de tudo isso, se o inconsciente deve representar uma região psíquica em que — tal como as mães — nenhum mortal consegue penetrar. Há felizmente até mesmo aqui uma chave que abre ao não iniciado o reino fechado do espírito: o método psicanalítico. Tendo sido aperfeiçoado e testado nas causas do adoecimento neurótico, que se enraízam profundamente no inconsciente, ele pôde logo se aventurar no estudo do inconsciente no indivíduo normal. Tinha-se de fato a chave, no entanto faltava aqui a entrada que o neurótico oferecia em seus tormentosos e intrusivos sintomas. Também aqui, porém, se requeria apenas um pouco de autoconfiança — como a psicanálise já havia conquistado — para reconhecer que também nosso pensar e agir corretos, aparentemente regidos apenas por considerações lógicas, também revelavam em inúmeros lugares, embora amiúde pouco destacáveis, a misteriosa atuação de certas forças anímicas que não eram conhecidas pela pessoa concernida. Aqueles atos falhos da vida cotidiana, inofensivos e que mal se notam, que parecem nascer por um investimento insuficiente da atenção, tais como os lapsos na fala, na escrita[3] etc., mostraram-se como exteriorizações completamente determinadas de uma contravontade inconsciente que invadiu o ato de forma disruptiva. Nos lapsos de fala e escrita amiúde colabora, por exemplo, a tendência suprimida de expressar o oposto do que é desejado conscientemente; nos descuidos, uma necessidade de ferir outras pessoas ou de autopunição. Assim, a partir de tais atos falhos era possível tornar disponível o inconsciente tal como a partir das ideias “livres”, tão logo se encontrasse o procedimento tradutório correto para a linguagem do inconsciente.

Um fenômeno anímico muito mais geral e importante, que desde os tempos mais antigos atraiu a atenção do homem, podia agora ser também compreendido, caso ele fosse encarado como um daqueles sintomas “nervosos” sem sentido e sem propósito, e caso se utilizasse com ele o método e o conhecimento aí adquiridos. Trata-se do sonho. No fenômeno do sonho, comum a todos os homens, pode-se reconhecer o mais nitidamente possível e estudar o mais abundantemente possível o inconsciente. Naturalmente aqui também é necessário um trabalho interpretativo, e é lícito não parar naquilo que permanece aderido como recordação quando acordamos — o conteúdo manifesto do sonho —, mas devemos procurar descobrir, através da análise, as fantasias e recordações subjacentes — os pensamentos latentes do sonho. A distância entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos latentes do sonho, que jamais pode ser negligenciada e à qual se deve atribuir a aparente falta de sentido do sonho, é gerada por meio da resistência, que no estado de sono diminui significativamente, mas não é inteiramente anulada. É a tarefa da técnica psicanalítica de interpretação desfazer o efeito deformador dessa força que nós chamamos de “censura”, e assim restabelecer o verdadeiro sentido do sonho.

Nisso, mostra-se com recorrência regular que em última instância jaz como fundamento do sonho um impulso de desejo há muito tempo alimentado e que caiu vítima da repressão, mas que forneceu a força motriz para que o sonho se concretizasse. Ele empresta a intensidade psíquica indispensável para a formação do sonho aos desejos recentes do dia anterior que não tiveram solução e que, por isso, continuam exigindo escoamento, os quais, por sua vez, podem ser de natureza inofensiva e indiferente, mas geralmente têm conteúdo erótico e proibido. O sonho é, por conseguinte, uma realização de desejo, que, porém, deve ao mesmo tempo satisfazer as exigências de diferentes camadas psíquicas, pois ele figura como realizados os desejos do dia e os da infância — estes, contudo, geralmente apenas sob o mais cuidadoso ocultamento.

Na deformação onírica colabora não meramente a censura endopsíquica, mas também uma série de outras condições às quais o sonho tem de satisfazer para poder tornar-se capaz de chegar à consciência. O material sobremodo rico e ramificado dos pensamentos oníricos latentes tem de ser “condensado” de modo fortemente concentrado; isso ocorre por meio da contração do que é congênere ou similar, em que podem ser usadas mesmo as relações mais superficiais, como por exemplo uma homofonia silábica, para a figuração da conexão séria, mais profunda; onde não existem tais ligações ou pontes verbais superficiais, tenta-se criá-las artificialmente, o que não raro confere ao sonho e ao subsequente trabalho de interpretação a aparência da busca pelo espirituoso. Já que o material do pensamento deve ser reproduzido sobretudo em imagens visuais, o trabalho onírico é forçado pela consideração pela figurabilidade a omitir as relações lógicas dos pensamentos oníricos entre si. Também a forma de expressão mais importante, a do desejo, não pode ser reproduzida enquanto tal, como optativo, mas apenas de modo que o desejado seja figurado como já ocorrido. Ademais, tem lugar um deslocamento da valência psíquica dentro do material, por cuja causa o mais importante nos pensamentos oníricos é frequentemente apenas insinuado por um detalhe no conteúdo do sonho, enquanto coisas secundárias, quando se mostram úteis somente como pontos nodais, em que várias linhas de pensamento se encontram, atingem uma nitidez maior e um tratamento mais detalhado. Nesse deslocamento do afeto da vida onírica se havia encontrado o modelo normal e concomitantemente a prova para a possibilidade da violenta separação, que surte efeito patológico, do afeto e da sua representação, que torna incompreensíveis os pensamentos oníricos, eles mesmos lógicos e dotados de sentido, do mesmo modo que as peculiares representações obsessivas do neurótico ou as formações delirantes de pessoas insanas.

Da mesma forma, porém, também a tentativa do enfermo de conferir um cunho lógico a essas formações incompreendidas encontrou seu modelo na assim chamada “elaboração secundária” do sonho, a qual se esforça por juntar os componentes heterogêneos em uma estrutura unitária e coerente, por vezes até mesmo aparentemente lógica. Nesse trabalho, seja ele mais ou menos exitoso, tem novamente grande participação a censura, que em todos esses processos procura ser vitoriosa, seguindo suas tendências de deformação e ocultamento.

Tal como o inconsciente, que na neurose chega a exercer efeitos patológicos, se manifestou como o conteúdo mais original da nossa alma, e a consciência, em contraposição, apareceu apenas como um órgão sensorial para a recepção de qualidades psíquicas, da mesma forma a repressão proposital de uma representação para fora da consciência logo se revelou também como um caso especial do mecanismo repressivo que funciona normalmente de forma automática a serviço da autopreservação psíquica. Tanto a repressão neurótica quanto a normal, no entanto, são possíveis apenas com base num processo repressivo mais antigo, comum a todos os homens, que possibilita a integração da nossa vida instintual[4], que primitivamente trabalha apenas por interesse próprio e por prazer, na cultura, erigida sobre a renúncia parcial do indivíduo. O neurótico havia apenas falhado na repressão especial de um complexo desagradável individual, e ele teve de falhar, porque já antes fracassara na primeira tentativa de repressão com que se deparou. Essa transformação e repressão do impulso instintual primitivo, necessária para todo desenvolvimento normal, é o modelo do processo repressivo descrito acima, determinante para a causação da neurose; a repressão do neurótico é uma forma de recorrer àquele mecanismo da infância. O peculiar esquecimento das impressões da infância, mesmo daquelas que a criança já apreendia corretamente e já sabia avaliar completamente, a precondição daquele “esquecimento”, capaz de efeito patológico, de vivências traumáticas, que pode novamente ser anulado por meio da psicanálise. A superação daquilo em que o neurótico fracassa permite ao homem normal sua integração e colaboração cultural e mesmo, em circunstâncias especialmente favoráveis, um rendimento significativo, mais elevado. Quais impulsos são decisivos para esse resultado é o que mostra com mais nitidez o quadro exagerado da neurose, como cuja causa se destacou em última instância a incapacidade do eu de lidar com seu esmagador instinto sexual. Na neurose, essa luta foi decidida em detrimento do eu; o homem de cultura, por outro lado, consegue a vitória, mas apenas por meio de um contínuo empenho nesse conflito jamais completamente resolvido, cuja manutenção fornece a força motriz para a monstruosa máquina cultural, que transpõe uma parte dessas energias psíquicas em valores necessários e úteis, os quais, todavia, devem servir por fim ao aumento de prazer do eu, ainda que por um descomunal desvio.

Logo se tornou claro que todos esses complicados processos, que mal podem ser acompanhados no homem de cultura, e no neurótico apenas sob grandes dificuldades, poderiam ser mais bem estudados num período em que o resultado da luta repressiva ainda não estava decidida: a saber, na infância. O conteúdo do inconsciente, que é obscuro e discernido por vias laboriosas, assim como as precondições da repressão, captadas com dificuldade, jazem a céu aberto na infância, caso se possuam olhos para isso. O fato de que no neurótico e no fenômeno psíquico mais próximo à neurose, o sonho, procuram impor-se impulsos sexuais com os quais o homem de cultura se confronta apenas com repulsa, mas os quais ele um dia deve ter sentido como seus, justificou a pressuposição de que os germes e os dispositivos para antigos impulsos instintuais sexuais se encontram na criança numa nitidez ainda desinibida.

A infância não é, de modo algum, assexual; pelo contrário, os impulsos posteriormente integrados ao instinto sexual existem independentemente uns dos outros. O prazer no ataque e na inflicção de dor (sadismo) assim como sua contraparte (masoquismo), o prazer de ver e o de desnudar-se (voyeur e exibicionista), o prazer nas funções evacuatórias e nos seus produtos (coprofilia) e o pendor indistinguível pelo próprio sexo, assim como pelo alheio. Se se quisesse descrever a vida sexual da criança com a terminologia válida para os adultos, dever-se-ia designá-la como perverso-polimorfa.

Naturalmente, a sexualidade infantil não se manifesta nas formas habituais para nós, adultos; em especial, falta-lhe a relação íntima com a zona genital e, em estágios iniciais, também com outra pessoa. De início, a criança busca prazer no próprio corpo, ao conseguir para si o prazer secundário (experimentado ao sugar o seio materno assim como na emissão dos produtos do metabolismo) independentemente dessas funções (como, por exemplo, a assim chamada “sucção jubilosa”). Nesses modos de satisfação, a criança depende apenas de si mesmo e é totalmente independente do mundo externo, que ela ainda não aprendeu a dominar; nós chamamos esse período de puro autoerotismo.

A masturbação, que frequentemente surge no período lactente, se junta a essa atividade autoerótica. Todas aquelas partes do corpo que na tenra infância tinham a capacidade de fornecer prazer tampouco a perdem na vida posterior. Elas de fato perdem sua independência tão logo a zona genital obtenha o primado após o ingresso na maturação, e se subordinam, no homem normal, à satisfação final vinculada a essa zona. Sua importância, porém, jaz no fato de que elas ajudam a induzir essa satisfação final, pois através da sua estimulação se origina a tensão necessária para a descarga definitiva. A estimulação daquelas partes do corpo que servem ao prazer infantil (beijo) e a satisfação de instintos parciais infantis (prazer de ver, prazer de dominar) funcionam como prazer prévio, isto é, elas fornecem um pequeno ganho de prazer como uma bonificação, para colocar em ação o mecanismo de tensão necessário para se alcançar o prazer final.

Assim que a criança adquire compreensão e interesse em seu ambiente, ela busca a satisfação prazerosa, que originalmente seu próprio corpo lhe concedia, também nas pessoas que lhe são próximas. A necessidade de ternura despertada pelos pais e cuidadores ocasiona uma atividade de amor anímica e corpórea, onde a lei da atração sexual pelo outro sexo entra em vigor: o amor do filho aplica-se acima de tudo à mãe; o da filha, ao pai. Esse amor, que, com a efervescência da alma infantil, quer possuir sozinho a pessoa amada sem dividi-la com ninguém, leva ao ciúme para com o genitor do mesmo sexo, assim como para com irmãos, especialmente os mais novos, que vieram depois, através de cujo nascimento a criança, até então amada de forma exclusiva, é privada de uma parte da ternura parental. A aversão ao adversário se manifesta não raro na forma de a criança desejar a sua morte. A ideia da morte não tem para a criança aquele significado terrível que tem para os adultos, ela com isso deseja apenas a desaparição definitiva do rival mais forte. O protótipo do desejo de cada filho é o Édipo do antigo mito, que espanca o pai até a morte e possui a mãe.

Entretanto, como a esse ciúme se contrapõe o amor infantil, que é suficientemente intenso também para com o genitor menos amado, surgem aqui os primeiros conflitos da alma infantil, que o mais das vezes terminam com a repressão da atitude hostil para com os parentes próximos. Essas primeiras afeições e desafeições são, como qualquer observador da infância que seja livre de preconceitos pode se convencer, altamente passionais e mostram grande similaridade com as manifestações do enamoramento entre os adultos. O respeito, a piedade e o amor paternal das crianças são apenas os remanescentes, transformados por meio da educação, dessa relação, que não é de forma alguma regida por motivos éticos, mas tem, antes, um acento inicialmente libidinoso. A primeira atitude com que se lida na infância permanece um modelo para o amor e para o ódio da vida inteira, e a sua importância para eventos anímicos posteriores não pode ser subestimada.

No pai, porém, a criança venera sempre o poderoso soberano segundo cuja vontade a família — e a visão infantil ainda não se estende além disso — é guiada. O pai se torna o protótipo da autoridade, o que, aliás, ele se tornou também segundo o desenvolvimento histórico da espécie humana; os sentimentos de reverência que se dirigem a ele são transferidos para as figuras criadas à sua imagem, o rei e a divindade (Deus, o Pai).

Os companheiros de brincadeiras e os irmãos, muito embora inicialmente apenas rivais, são logo entrelaçados nesse círculo de relações emocionais. Para com eles, permite-se livre curso sobretudo às tendências agressivas, que não teriam espaço para com os adultos mais fortes, como então quase todas as brincadeiras infantis visam a derrotar e dominar. As crianças aplicam essa concepção agressiva (sádica), posta em ação na brincadeira, também para o comércio sexual dos adultos, quando elas — fato que ocorre mais amiúde do que geralmente se supõe — têm a oportunidade de observá-lo inteiro ou em parte. Elas veem aí algo que a parte mais forte faz com violência à mais fraca.

Também a pergunta “de onde vêm as crianças” ocupa o espírito infantil desde cedo e intensivamente. A fábula da cegonha ou uma inverdade similar narrada pelos adultos inicialmente tem apenas a consequência de que a confiança em sua superioridade e a fiabilidade do seu ambiente é pela primeira vez abalada. Em oposição a isso, elas formam espontaneamente certas teorias sexuais típicas, nas quais as partes do corpo mais importantes da criança na sua própria vida instintual desempenham sempre o papel principal. Por meio desses problemas e eventuais observações, a criança recebe o estímulo para uma investigação independente, cuja supressão pelos pais pode levar a uma grave inibição da curiosidade infantil e na vida posterior frequentemente à adoção da crença cega na autoridade.

Todos esses primeiros instintos e afetos de maneira alguma são extintos e aniquilados por influências posteriores; uma correnteza à qual se contrapõe uma barragem não é com isso totalmente impedida, mas tem de encontrar outras vias para suas massas de água e franquear um novo leito. Assim, também aqueles primeiros instintos alteram sua forma sob influências orgânicas e educacionais ou são separados dos seus objetos originais, mas agora impróprios, e são redirecionados para outros objetos, de maior valor. Em especial a libido tem de ser descolada dos membros da família, pois “deixar pai e mãe”, ou seja, sair da unidade familiar, é a primeira exigência da cultura em seus princípios.

O redirecionamento dos instintos do seu domínio grosseiramente sexual para um objeto de satisfação mais elevado, adaptado ao nível social alcançado, nós chamamos de sublimação. Por meio dela o indivíduo obtém sua capacidade de colaborar para a cultura como um todo; ali onde ela não tem sucesso suficiente e os instintos infantis se agarram ao seu objeto primordial, fazem sua aparição o perverso e o criminoso — recaídas em estados superados. Um outro caminho para a ordenação decorre, para os instintos reprimidos, do seu ordenamento em pares; cada um é o mais intimamente vinculado ao seu instinto oposto. Se um dos dois se mostra como o mais forte e toma a dianteira, então aquele que age no sentido contrário é reprimido. Já que a este está agora impedida toda descarga direta, ele se exterioriza por meio da intensificação do instinto oposto vinculado a ele, que alcança assim uma intensidade anormal e uma posição dominante na vida anímica. Esse processo — a formação reativa — é, junto à sublimação, de decisivo valor cultural. Assim, uma criança fortemente predisposta à crueldade, ao crescer, tentará usar esse instinto na integração cultural, ao tornar-se, por exemplo, um cirurgião entusiasmado com sua disciplina científica (sublimação), ou um partidário fervoroso da proteção dos animais e um apóstolo da humanidade (formação reativa). Aquele que tem prazer em ver (voyeur) se voltará, no caso de uma predisposição favorável, para as artes visuais a fim de dar vida aos seus instintos; se, no entanto, essa via estiver fechada para ele por conta de resistências internas ou externas, em consequência da domesticação do seu instinto [Instinkt] excessivamente forte ele se torna especialmente pudico e fica facilmente indignado ante a reprodução da nudez. Pelos instintos sexuais e pela maneira de sua utilização é determinado em primeiro lugar, portanto, o caráter da pessoa. Aqui é o ponto de onde se deverá encetar uma educação sensata. Pois não é preciso enfatizar que uma doutrina que impute aos afetos e vivências da infância a maior importância para o desenvolvimento de toda a vida posterior tem de dar uma elevada importância à pedagogia, mas também introduz uma série de novos problemas.

A reviravolta decisiva se consuma nos anos que antecedem a puberdade; por conta das transformações e lutas que se sucedem no interior, que correm paralelamente à adaptação cultural, as exteriorizações diretas do instinto sexual parecem cessar completamente nesse período, para apenas irromper com intensidade elevada e forma alterada na puberdade. Com base nessas investigações, o instinto sexual do adulto normal apareceu não como algo unitário, como antes, mas sim como a síntese de uma série de instintos parciais, que já desde a infância haviam subsistido independentemente uns ao lado dos outros, mas apenas na puberdade, concomitantemente à maturação somática dos órgãos sexuais, foram fundidos numa unidade.

Apenas pelo êxito dessa síntese o sexo oposto se torna o objeto sexual exclusivo; e o ato sexual, a meta sexual. Ali onde ela fracassa por conta de uma inibição do desenvolvimento ou pode ser desfeita posteriormente, despontam os desvios identificados como perversões no lugar da vida sexual normal. Se, porém, essa estagnação ou refluência na perversão se torna insuportável para a personalidade, intervém então o mecanismo da repressão, cujo fracasso nós temos de considerar como o causador da neurose. A neurose se revela, pois, como o negativo da perversão.

Nesse período de latência entre a primeira maré alta sexual (na idade de três a quatro anos) e a segunda, a da puberdade, os instintos que entrementes foram cortados do mundo exterior se põem em ação em formações da fantasia. O colorido exótico e a variedade desconcertante desses devaneios são já conhecidos e foram repetidamente descritos em obras de arte autobiográficas. Como a análise mostrou, sua verdadeira essência é um compromisso entre a antiga cobiça infantil e a aspiração adulta pelas metas do homem de cultura de pleno direito. Sua ligação estreita com a sexualidade infantil implica que, no curso do desenvolvimento e do amadurecimento, eles sejam gradualmente puxados para baixo, para o inconsciente. Esses devaneios tratam geralmente da relação com a família, sobre cuja coloração libidinosa a repressão exerce um efeito decisivo. A vivência infantil de satisfação, que àquela época não pode ser alcançada na realidade, é agora vivenciada apenas numa fantasia em que, no entanto, o que é indecente não pode mais surgir de forma desvelada. O apreço exagerado pelos pais, já por nós descrito, regressa em sua representação enquanto figuras muito poderosas do bem e do mal (reis, magos, fadas etc.). Os desejos maus do fantasiador são atribuídos à figura para a qual se direcionam, e assim se originam as personagens, comuns a todos os mitos e contos de fadas, do rei que persegue o filho ou o tio, da rainha que persegue a filha ou a enteada. Essas fantasias, que o sonhador traz a um contexto unificado de modo a formar um grande “romance familiar”, mantêm sua posição dominante até que os objetos reais e permitidos da escolha amorosa ganhem importância; elas geralmente contribuem nessa escolha, de modo que a indelével fixação nos pais se torna determinante, pois a moça escolhe seu marido à imagem do pai e o jovem procura reencontrar a mãe em sua amada.

Os impulsos instintuais da infância, aparentemente desvanecidos, estão portanto subterraneamente ativos também nos adultos e exercem efeito determinante em suas ações, seu caráter e em todas as suas exteriorizações; o antigo desejo infantil, porém, não se satisfaz completamente nem na vida sexual normal nem na forma alterada adquirida através de sublimação ou formação reativa, e procura por pontos de ruptura ali onde as resistências criadas pelas exigências culturais são mais fracas. O que se passa no interior da alma individual, nos estados especiais, propícios para tais rupturas, do sonho e da neurose, reaparece do mesmo modo na vida anímica da humanidade inteira, cuja expressão é o progresso da cultura. Os mesmos conflitos nos quais o neurótico falha e para cuja superação o homem normal trabalha a vida inteira, com maior ou menor sucesso, criam descomunais formações de ruptura na religião, no mito e na arte, para os impulsos instintuais que se tornaram poderosos, mas inutilizáveis na vida prática da cultura. Essas formações da fantasia coletiva servem, como o sonho e a neurose, para a satisfação de todos os instintos condenados à repressão, mas elas, à diferença do sonho, que é associal, e da neurose, que é antissocial, são realizações completamente exitosas e socialmente adaptadas, nas quais, apesar de sua origem egoísta, cada indivíduo encontra justificação, consolo e satisfação, e elas por isso são inseridas e acolhidas na cultura geral como a posse mais valiosa da humanidade. Não é nenhuma coincidência, por conseguinte, que elas em algum grau correspondam a certos sonhos típicos, que ressurgem em homens diferentes sempre com significado igual ou similar e que derivam dos impulsos instintuais típicos e dos complexos da alma infantil desvanecida. Assim, nós podemos compreender os sonhos do intercurso sexual com a mãe e da morte do pai, que são tão amiúde narrados e foram relatados diversas vezes já pelos antigos, somente a partir do complexo parental e dos típicos desejos infantis provenientes dele, que encontraram igualmente a sua expressão humana universal na saga e na literatura de Édipo, eternamente eficazes. Os afetos e paixão que dão direção à vida humana preenchem não somente a fantasia do sono, que nós chamamos de sonho, mas também aquela outra atividade da imaginação, que sempre tem como objetivo final figurar a satisfação dos desejos deixados insatisfeitos pela realidade. Naqueles homens cuja existência se dissolve quase inteiramente no fantasiar, mas cujas fantasias são tão poderosas e criativas que ainda conseguem estremecer de forma libertadora o ânimo da posterioridade, ou seja, nos artistas, esse eterno anseio da humanidade encontra sua mais pura e completa expressão. O ocultamento de desejos reprimidos tem de ser aqui naturalmente mais cuidadoso e mais complicado, pois as fantasias devem resistir à crítica da censura plenamente atuante, que não foi rebaixada pelo estado de sono. Uma quantidade elevada de satisfação, portanto, será alcançada por uma obra de arte se ela concretizar o mais fielmente possível as situações aspiradas pelo reprimido e se ao mesmo tempo ela souber encontrar uma roupagem bem-sucedida a ponto de não entrar em colisão com as forças reinantes na vida consciente da alma. De acordo com a maior participação da consciência, a “elaboração secundária” tem um campo de ação incomparavelmente mais amplo do que no sonho. Não obstante, a impressão gerada pelo jogo das forças intelectuais no artista e no apreciador da arte é sempre apenas aparentemente o verdadeiro portador de deleite; na realidade, ela tem apenas a função do prazer prévio, e o verdadeiro prazer, que frequentemente revolve a alma em suas profundezas, é gerado pela possibilidade da descarga de afeto para os instintos primordiais, que de costume estão submetidos aos grilhões da repressão. Essa resolução sem luta com a censura é sentida como purificação da alma dos rebotalhos da paixão: a eficácia da tragédia, pelo menos, foi descrita já por Aristóteles como purificação — κάθαρσις [catarse].

Como uma outra forma de expressão que fornece ao homem de cultura, mesmo que lhe falte a predisposição artística, a possibilidade de dar vazão aos seus complexos reprimidos nós aprendemos a estimar o chiste[5]. Nele, dá-se parcialmente vida ao instinto agressivo, de costume inibido; em especial a piada obscena, através da intervenção de um terceiro, torna possível dar continuidade a uma agressão sexual na fantasia, mesmo que ela tenha se tornado impossível na realidade, e inclusive a fazer da pessoa perturbadora um companheiro de diversão e um aliado. No chiste, contribui para o sucesso do velamento, de forma similar ao que ocorre na obra de arte, acima de tudo a forma, que por si só já desperta prazer e à qual cabe, durante o gozo, a tarefa de incitar o instinto ao prazer final através da oferta de uma bonificação, de um prazer prévio; uma tarefa similar, portanto, à que os restos das formas infantis de satisfação devem cumprir no gozo sexual dos adultos. Também a alegria na forma advém, tal como o prazer prévio sexual, de fontes infantis de prazer, na medida em que não houver sido ganha economizando o próprio esforço psíquico; assim, por exemplo, a rima e o jogo de palavras, que são oriundos do divertimento infantil com as consonâncias verbais. Outros modos de figuração, dos quais se servem a obra de arte e o chiste de modo similar ao que faz o sonho, são, além disso, a condensação e o deslocamento.

Um meio de figurar, de forma velada, complexos reprimidos e possivelmente o mais importante de todos, pois o encontramos em ação em cada exteriorização do inconsciente, é o simbolismo. Ele foi reconhecido primeiramente por meio da interpretação dos sonhos como a linguagem predileta do inconsciente e de fato merece o estudo mais pormenorizado devido à sua recorrência em quase todas as exteriorizações do funcionamento anímico. Na infância da humanidade, em que o pensamento conceitual-abstrato havia apenas começado a se desenvolver, a maioria dos processos de pensamento ocorria mediante representações simbólicas. Por isso, nós encontramos mais desenvolvido o simbolismo nos produtos de tal período inicial, ou seja, em costumes cultuais, em mitos religiosos, em contos fantásticos e em lendas de heróis. No sonho, nossa capacidade de produzir relações conceituais afunda de volta ao patamar infantil e se serve desse mesmo simbolismo, tais como escombros da vida espiritual da pré-história. Por isso, como na obra de arte, é possível encontrar também neles amplas analogias com o sonho, e o insight analítico sobre a essência da formação e a utilização dos símbolos, adquirido na vida onírica, pode também ser usado exitosamente em tais produtos da psique coletiva. Também eles expressam desejos reprimidos num velamento correspondente à altura respectiva do nível cultural, só que não são o produto de uma psique individual, mas sim de uma multidão fundida numa unidade através da procura comum pelas mesmas fontes de prazer. No curso da tradição, eles sofrem sempre novas sobreposições e deformações, de modo que seu sentido original não pode mais tornar-se acessível sem o conhecimento da técnica interpretativa psicanalítica, em especial, porém, do simbolismo.

Uma parte significativa dessas figurações [Darstellungen] simbólicas no culto e no mito se ocupa com os órgãos da procriação e com o ato da procriação, que em antigos patamares culturais eram venerados, per excellentiam de forma divina, como portadores de alegria e dadores de vida, como testemunham os cultos do falo, de Lingam[6] e inúmeros outros exemplos. Quanto mais se elevaram as reivindicações da repressão, e com isso a vergonha, tanto mais a veneração foi deslocada do objeto original para suas reproduções simbólicas; tais símbolos substitutos se desenvolveram, por conseguinte, em grande abundância e variedade. À medida que a coisa originalmente venerada se tornava mais e mais velada, o velamento foi venerado cada vez mais intensivamente. Os símbolos dessa veneração genital, como por exemplo a cobra para o órgão masculino da procriação, e as caixas carregadas em procissões cerimoniais para o órgão feminino, ainda desempenham em nossos sonhos os mesmos papéis que lhes cabiam oficialmente nos cultos secretos há muito desvanecidos. Outros símbolos ilustram as relações sexuais, como o touro, tão frequentemente um animal sacrificial e venerado, ilustra a força masculina; e os grãos de cereais dos mistérios elêusicos, a fecundação da mulher.

Vimos que mitos e cultos servem para criar uma possibilidade de satisfação, através da fantasia e do exercício simbólico, para aqueles anseios cuja execução efetiva rebaixaria os homens do seu nível de cultura e os tornaria novamente selvagens. Ali onde essas válvulas de segurança não funcionam, não falta o recuo aos patamares culturais já superados — a perversão e o crime. Nas primeiras eras do desenvolvimento, todas essas criações dos afetos reprimidos, encarregadas de uma tarefa tão importante, confluem numa unidade: a religião. Mito e culto sem tendência religiosa são quase impensáveis, mas também as artes visuais, a música e a poesia jazem originalmente a seu serviço e obtêm apenas mais tarde um valor independente. Na religião nós vemos a primeira e mais poderosa guardiã de todas as conquistas culturais; compete a ela neutralizar os perigosos instintos antissociais e assim possibilitar a elevação da ética. Por isso mesmo, o fundamento de todo tipo de prática religiosa é uma fantasia que está na mais crassa contraposição à renúncia de prazer exigido na relação com o mundo circundante real. A satisfação que cada indivíduo deve negar a si mesmo é projetada para fora e atribuída ao deus, a fim de ainda se gozar dela pela via da identificação, da “união com a divindade”. Gradualmente, então, é tomada também dessas fantasias a forma indecente; elas mantêm uma tendência moralizadora, mas os antigos afetos ainda luzem nelas. Também a religião, portanto, é uma das numerosas formações de compromisso: ela torna livre a via para uma moralidade mais elevada e satisfaz secretamente os impulsos reprimidos. Ocasionalmente, no entanto, uma tal formação de compromisso pode também fracassar, de modo a agir contrariamente aos próprios objetivos, e assim também a religião muito frequentemente deve ter oferecido o ensejo para a vivência dos instintos mais adversos à cultura, os sadomasoquistas, em vez de lhes proporcionar deflexão e sublimação.

Retrospectivamente, vemos agora o amplo caminho que o desenvolvimento da psicanálise já percorreu. Originalmente a serviço apenas de interesses terapêuticos e por isso estreitamente vinculada ao caso individual, ela logo recebeu uma profusão de confirmações e estímulos por parte daquelas ciências que se ocupam com fenômenos da coletividade. Mitologia e folclore, psicologia da religião e história do Direito produziram numerosos paralelos. A relação, no entanto, começou gradualmente a se inverter, e todos aqueles domínios recebem agora da psicanálise um novo método para a solução de seus próprios problemas. Visto que o inconsciente colaborou no surgimento de todas as formações psíquicas e culturais, na religião e nos costumes, na linguagem e no Direito, é impossível examiná-las completamente sem conhecer o modo de trabalho do inconsciente. Esse conhecimento, porém, só pode ser adquirido a partir dos produtos do inconsciente na psique individual, acima de tudo na psiconeurose e na vida onírica normal.

Todas as cambiantes configurações que o espírito humano criou para si como meio de expressão de seus desejos e afetos imortais no decorrer do desenvolvimento, dos primitivos moradores das cavernas até o nível cultural do nosso tempo, formam em grande parte o objeto com que se ocupam as ciências do espírito. Para elas, pois, a relação com a vida da alma é a base comum. Um estudo efetivo da alma, que atribui às fantasias — as quais constantemente jorram das profundezas do inconsciente — o amplo campo de aplicação que elas merecem e é capaz de reconduzi-las, através de todas as suas estratificações e mudanças de significado, às suas verdadeiras raízes, deve por isso fecundar todas as ciências do espírito e trazer-lhes novos problemas e novas soluções.

Nestas páginas, tenta-se provar que a psicanálise já é capaz de fazer jus à tarefa que lhe foi posta.


* Otto Rank foi um dos primeiros discípulos de Freud, dos poucos que não eram médicos. Em 1912, defendeu sua tese de doutorado, em que interpretava a saga de Lohengrin com conceitos freudianos. Em 1925, aproximadamente, rompe com Freud e vai morar nos EUA. Morre em 1939, cerca de um mês depois da morte de Freud.

** Hanns Sachs foi, assim como Rank, um dos primeiros discípulos de Freud que não tinham formação médica. Era formado em Direito e exercia a profissão de jurista, antes de se dedicar à psicanálise. Com a ascensão de Hitler, muda-se para Boston em 1932. Em 1939, funda a American Imago, revista fundamental no campo psicanalítico até os dias de hoje. Morre em 1947, em Boston.

*** Pedro Fernandez de Souza é psicólogo (USP-RP), doutorando em Filosofia da Psicanálise (UFSCar), professor universitário, escritor, tradutor e leitor, antes de tudo.



[1] Verdrängung, em alemão, termo que também pode ser traduzido por “recalque”. Nossa tradução procura manter expresso o pertencimento da palavra alemã ao extenso campo semântico da raiz dr-. Druck, por exemplo, é “pressão” (cf. Ausdruck, “expressão, Eindruck, “impressão”). Um dos fatores componentes do Trieb freudiano é o Drang, que pode ser traduzido por “ímpeto”, “impulso” ou mesmo “pressão”. (N. de T.)

[2] Aqui, os autores descrevem o método da “associação livre”, como se costuma chamar. A palavra usada por eles (e muito frequentemente pelo próprio Freud) não é, porém, Assoziation, mas sim Einfall, que denota algo que literalmente incidiu na consciência. Para traduzi-la, seguimos a sugestão de Paulo César de Souza em sua tradução de Freud e adotamos a palavra “ideia”, que nos parece neutra o suficiente. (N. de T.)

[3] Aqui, Rank e Sachs empregam uma série de verbos substantivados com o prefixo ver-, que nesse caso indica um desvio ou um erro: Versprechen (“dizer errado”), Verschreiben (“escrever errado”) e Vergreifen, que não tem uma tradução muito fácil. Indica uma espécie de confusão ou troca de objetos numa determinada ação: o primeiro exemplo desse ato falho dado por Freud em sua Psicopatologia da vida cotidiana, de 2001, é o de chegar à casa de outra pessoa e, para tentar abrir sua porta, pegar as chaves da própria casa. (N. de T.)

[4] A tradução de Trieb é uma das mais controversas no campo psicanalítico. As opções mais aceitas são “instinto”, “impulso” ou “pulsão”. Optamos por “instinto”, seguindo uma vez mais Paulo César de Souza, que verte Trieb por “instinto” tanto nas traduções de Freud quanto nas de Nietzsche. Curiosamente, Rank e Sachs usam o termo Instinkt apenas uma vez no texto — e aparentemente como sinônimo de Trieb. (N. do T.)

[5] “Chiste” traduz aqui, por força da tradição tradutória, a palavra Witz, que designa a espirituosidade de um homem, sua capacidade de jogar com palavras e situações de modo a provocar riso e regozijo. (N. de T.)

[6] No hinduísmo, uma representação da divindade Shiva. Pode ser interpretado como símbolo de energia, de produtividade, especialmente da produtividade feminina. (N. de T.)




COMO CITAR ESTE ARTIGO | RANK, Otto & SACHS, Hanns (1912) Desenvolvimento e reivindicações da psicanálise [Trad. Pedro Fernandez de Souza]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -16, p. 3, 2024. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2024/08/01/n-16-03/>.