Notas esparsas sobre ciência, fantasia e psicanálise

por Saulo Moraes de Assis

Na introdução do primeiro de três ensaios escritos por Freud com o propósito de fornecer contribuições a uma “psicologia do amor”, ele faz a seguinte afirmação: “[…] a ciência é a mais completa renúncia do princípio do prazer que a nossa atividade psíquica é capaz de fazer.”[1]. É bastante salutar que tal introdução venha maculada como um exercício de renúncia ao princípio do prazer, não por desejo do autor, mas por ser essa a forma típica como as ciências produzem e comunicam seus resultados. As ciências, por querer explicar o mundo através dos usos da razão, se distancia daquilo que caracteriza o princípio do prazer, o seu ponto de partida, isto é, “os processos anímicos inconscientes”[2]. Mesmo a psicanálise, ao se pretender ciência, precisa encaminhar-se como princípio de realidade. Parece ser essa uma demanda intrínseca a toda pretensão explicativa.

O que prefigura contraposto aqui é uma ideia do que pode ser ordenado — e, eventualmente, até deva — e aquilo que escapa ao ordenamento. As ciências, inclusive a psicanálise, buscam fornecer algum ordenamento, para os conceitos, para os dados clínicos, e transformar isso em algo compreensível, transmissível e refutável. Nessa pretensão explicativa algo valioso é perdido, algo que não pertence àquela satisfação mais primitiva ao qual o princípio do prazer está submetido, mas ao seu confronto com as “reais circunstâncias do mundo exterior”[3]. Não é por outra razão que os artistas estão em um lugar privilegiado para falar das intrincadas tramas amorosas assolando o “coração dos incautos”[4], pois eles não apenas falam desses processos inconscientes, mas fazem “seu próprio inconsciente falar”[5].

No entanto, o trecho sobre a ciência também parece carregar um marcador importantíssimo. Enquanto a ciência é “a mais completa renúncia” ao princípio do prazer, essa renúncia tem um limite dado por aquilo que nossa psique é capaz de fazer. Freud poderia ter dito: “a ciência é a mais completa renúncia do princípio do prazer” e ponto final. Mas não o fez. Não o fez por saber que uma renúncia total com o princípio do prazer nunca é possível! A história do nosso desenvolvimento individual é a história desse processo de passagem de um princípio do prazer para um princípio de realidade, passagem nunca completamente concluída. Freud reforça essa ideia quando chama esse de nosso “ponto fraco”, pois é sempre possível fazer “voltar ao domínio do princípio do prazer, processos de pensamento que já se haviam tornado racionais”[6]. Portanto, a diferença entre o trabalho do cientista e do artista estaria em que o primeiro busca ao máximo escapar dos processos inconscientes que orientam nossos pensamentos, entregando como resultado uma reconstrução organizada da realidade; no que concerne ao segundo, ele “efetua uma reconciliação dos dois princípios, […] transforma suas fantasias em realidades de um novo tipo, valorizadas pelos homens como reflexos preciosos do real”[7]. Para Freud, o cientista se propõe uma tarefa que exige o máximo de renúncia ao qual um sujeito é capaz, enquanto o artista nos lança para uma tentativa de reconciliação com o irreconciliável e nisso mesmo está seu valor.

Quando a palavra “cientista” foi primeiramente cunhada por William Whewell em 1834, ele tinha em mente associar o termo filósofo natural — como eram chamados aqueles que produziam ciência — com o termo “artista”[8]. Isso pode ser facilmente descoberto até por quem não estuda questões relativas à história das ciências, basta lembrar que o nome do mais importante livro de Isaac Newton — aquele que atormentou a vida de muitos adolescentes com os princípios da mecânica clássica — se chamava Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Talvez esse lugar onde Freud coloca a ciência tenha a ver com essa distância pressuposta no próprio mobile da atividade científica e outras atividades humanas.

No momento em que Freud escreve o trecho que motiva esse texto — por volta de 1910 —, talvez houvesse uma profunda esperança no papel que a ciência ocupa em nossa vida mental e no seu lastro social. Isso adquire uma nova perspectiva para Freud vinte anos depois. Em O Mal-estar na Civilização (1930), ao se confrontar com uma das questões mais fundamentais para a qual os seres humanos empenharam seus esforços — a questão sobre a finalidade da vida —, a ciência é novamente tematizada e entendida como uma forma de “gratificação substitutiva”. A vida humana é particularmente difícil e exige de nós a capacidade de lidar com uma quantidade enorme de privações e sofrimentos. Por isso, é necessário criar recursos para suporta-la. São apresentados três desses recursos: “poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis”[9]. A atividade científica é uma forma de gratificação substitutiva, pois sua busca ajudaria a atenuar muitas formas de sofrimento.

Percebam que não é o resultado da empreitada científica o que nos ajuda a atenuar nosso sofrimento, mas a busca por uma forma de vivenciar o prazer cuja consequência é uma forma de satisfação substitutiva. Sem dúvida, muitas pesquisas científicas — e a psicanálise é um bom exemplo — têm como resultado a produção de técnicas e ferramentas com o propósito direto de ajudar os seres humanos a lidar com seus sofrimentos. Mas nem toda produção científica se materializa em formas de lidar com o sofrimento, além de que muitas produções científicas nem sequer têm o sofrimento humano como sua meta direta ou indireta. A empreitada científica é uma gratificação substitutiva por redirecionar nosso desejo para outras metas e, a partir da aproximação com essas metas, alcançar algum nível de satisfação.

Uma distinção precisa ser estabelecida. Uma coisa é tratar do modo próprio como a atividade científica pretende considerar seus objetos de estudo, outra coisa, é buscar compreender a que propósito a atividade científica se presta. Se essa distinção for pertinente, então é apenas no primeiro caso que é possível uma renúncia ao princípio do prazer, mas não no segundo. Pelo contrário, o propósito da ciência é, em sua própria natureza, lidar com o sofrimento inerente à existência humana. Como gratificação substitutiva ela é um modo através do qual nossa cultura pode oferecer alternativas ao sofrimento humano, isso ocorre tanto no nível teórico como no nível prático. No nível teórico, o conhecimento científico, ao fornecer explicações para eventos aparentemente aleatórios, tirando deles seu caráter intencional, ajuda as pessoas a desmistificar o mundo e, por exemplo, não observar nos fenômenos naturais formas de punição divina. No nível prático, o avanço da técnica e da tecnologia contribuem para um melhor manejo de formas de sofrimento. Inclusive, a atividade científica é responsável por desenvolver muitas “substâncias inebriantes” capazes de nos tornar insensíveis ao mundo — de medicamentos às tecnologias da informação.

É significativo que a ciência se distancia do princípio do prazer, por uma questão de método, mas se reaproxime dele por uma questão de propósito. A ciência serve, antes de tudo, aos nossos anseios de uma vida sem sofrimento, mas também se presta muito bem ao papel de meta libidinal em um mundo onde as exigências da cultura impõe um limite para nossos desejos — ou ao menos para a realização deles. O desenvolvimento técnico oriundo da ciência, como o próprio Freud observa, nos permite “proceder ao ataque à natureza, submetendo-a à vontade humana”[10]. E qual não seria o grande propósito em curso quando o princípio do prazer toma a frente (novamente) que não submeter tudo mais a sua própria vontade? É verdade que apesar da aproximação de Whewell entre as palavras “cientista” e “artista”, e do que tenho tentado sinalizar aqui como uma demanda do princípio do prazer operando na atividade científica, precisamos ser cautelosos. Enquanto o princípio de realidade vai substituindo o princípio de prazer no curso do desenvolvimento do sujeito, a fantasia também vai perdendo espaço.

Uma inspeção no nível do senso comum sobre a ciência pode nos levar a defender que a fantasia, essa “atividade de pensamento que permaneceu livre do teste da realidade e submetida somente ao princípio do prazer”[11], esteja fora dos intentos científicos. Mas uma vez não é preciso ir muito a fundo na história do desenvolvimento científico para notar como isso não pode ser verdadeiro. O próprio domínio da natureza, a ideia de que seremos, enquanto espécie humana, capazes de “submeter” toda natureza à nossa vontade, é um grandioso devaneio. Nada menos verossímil. Além de não conseguirmos submeter a natureza à nossa vontade, corremos o risco de uma extinção iminente justamente por realizar uma primitiva disposição a atividade da fantasia — nesse caso, a fantasia do domínio e da submissão, tão importantes nos desenvolvimentos iniciais da vida humana.

Muitas metas que outrora foram consideradas científicas podem, sem muito esforço, ser compreendidas como fantasias, no sentido explicitado por Freud anteriormente, quão seja, livres ao teste da realidade e submetidas apenas ao princípio do prazer. Só é possível afirmar algo aparentemente contraditório como isso, compreendendo o caráter histórico e dinâmico da ciência, por um lado e, por outro, reafirmando a distinção entre a racionalidade pretendida — e muitas vezes alcançada — pelos métodos e práticas científicas, mas que não é um ingrediente necessário em seus propósitos mais amplos ou mais íntimos. O prefácio da obra de Newton, aludida anteriormente, possui uma interessante passagem que explicita esses propósitos mais amplos e íntimos do autor: “muito do que concerne a Deus, no que diz respeito a falar sobre ele a partir das aparências das coisas, pertence certamente à filosofia natural”[12]. Não chega a surpreender, mas é curiosa a associação de Newton entre a explicação científica — ainda nomeada por ele como “filosofia natural” — e aquilo que concerne a Deus. Atualmente, poucos, para não dizer nenhum, trabalho científico sério se arriscaria a associar explicações científicas com um desvelar de Deus a partir da aparência das coisas explicadas empiricamente. A necessidade do autor em concluir seu livro, um dos mais importantes tratados científicos de todos os tempos, falando de Deus, diz mais sobre Newton do que sobre Deus[13], parafraseando aquela famosa frase falsamente atribuída a Freud. Os desejos íntimos impressos na atividade científica são dos mais variados tipos. Newton não está sozinho.

Nem todos os desejos são aparentemente tão inócuos. Como meta da atividade científica muitas fantasias deram corpo às maiores atrocidades, em nome da ciência, milhares já foram mortos na tentativa de alcançar o ser humano perfeito, a raça perfeita, a cura da dor ou do sofrimento. Uma fantasia, sem dúvida. Sabemos, não apenas com Freud, que um ser humano sem sofrimentos e sem os limites que a cultura lhe impõe não existe. A neurose é justamente o desfecho dessa tensão intransponível entre “o interesse da autopreservação e as exigências da libido, uma luta que o Eu vencera, mas ao custo de severo sofrimento e renúncia”[14]. E apesar de a ciência ser uma forma de atenuar esse sofrimento, pela produção de explicações e também de artefatos, ela parece ser muitas vezes uma forma de mobilizar as mais primitivas fantasias: a fantasia da extinção da dor, da compreensão absoluta, da vida eterna, do controle do mundo natural ou mesmo da vida psíquica. A imagem do homem computacional talvez seja um bom exemplo dessa última fantasia, a fantasia de que um dia teremos controle absoluto sobre os processos mentais, bastando para isso um eletrodo na área correta do cérebro ou uma pílula que ative a adequada combinação de neurotransmissores.

Parece-me que ao voltar ao tema sobre o que caracteriza a ciência, analisada agora sob um viés cultural, Freud dê uma abertura maior para compreender a empreitada científica não como uma renúncia ao princípio do prazer, mas como uma forma auxiliar nessa busca. Se for possível encontrar na motivação das muitas empreitadas científicas desejos ocultos, propósitos íntimos e variadas fantasias, então talvez seja possível não contrapor o princípio do prazer às grandiosas — e muitas vezes também terríveis — realizações humanas, não apenas nas artes, mas também na ciência.

Possivelmente não é o caso de defender que Freud tenha mudado de ideia sobre a ciência, ora vista como a mais completa renúncia ao princípio do prazer de que somos capazes, ora como gratificação substitutiva, sendo assim, uma forma de aplacar os nossos anseios libidinais, atenuando-os. O intervalo de quase vinte anos que separa os textos pode ter mostrado a Freud que a nossa mais completa renúncia ainda é uma parcela bem pequena daquilo demandado pelo princípio do prazer. Isso pode justificar nossa recorrente — e ao que tudo indica, insuperável — tendência em regressar ao “domínio do velho princípio do prazer”[15]. Isso abre um enorme campo de possibilidades para um olhar psicanalítico na empreitada científica.

Referências

FREUD, Sigmund. (1910) Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem (Contribuições à Psicologia do Amor I). In: Obras Completas, Volume 9 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 260-9.

_______.(1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 81-91.

_______.(1930) O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, Volume 18 [Trad. Paulo César de Souza].. São Paulo: Cia das Letras, 2010, pp. 12-92.

NEWTON, Isaac. (1687) Princípios Matemáticos de Filosofia Natural. [Trad. de André Koch Torres Assis]. São Paulo: EDUSP, 2012.

ROSS, Sydney. Scientist: The story of a word. In: Annals of Science, Vol. 18, n.º 2, junho 1962


Saulo Moraes de Assis é psicanalista em formação e professor de Filosofia no Instituto Federal da Bahia (IFBA), possui mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem como áreas de interesse: Epistemologia, Filosofia da Ciência, Difusão do Conhecimento e Psicanálise. email: sauloassis@ifba.edu.br orcid: https://orcid.org/0000-0001-8568-9836



[1] FREUD, Sigmund. (1910) Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem (Contribuições à Psicologia do Amor I). In: Obras Completas, Volume 9 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013; p.260.

[2] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 82.

[3] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.83)

[4] Essa expressão está presente em um famoso trecho da Bíblia, Romanos, 16:18: “Porquanto essas pessoas não estão servindo a Cristo, nosso Senhor, mas sim a seus próprios desejos. Mediante palavras suaves e bajulação, enganam o coração dos incautos.” Curioso notar no trecho, a contraposição entre servir ao Senhor (o grande pai) e servir aos próprios desejos.

[5] FREUD, Sigmund. (1910) Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem (Contribuições à Psicologia do Amor I). In: Obras Completas, Volume 9 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013; p.260.

[6] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p.85.

[7] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p.86

[8] ROSS, Sydney. Scientist: The story of a word. In: Annals of Science, Vol. 18, n.º 2, junho 1962; p. 72.

[9] FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, Volume 18 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p.20.

[10] FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, Volume 18 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 22.

[11] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 84.

[12] NEWTON, Isaac. (1687) Princípios Matemáticos de Filosofia Natural. [Trad. de André Koch Torres Assis]. São Paulo: EDUSP, 2012; p.330.

[13] Em nota anterior, citei uma passagem bíblica e sinalizei a presença da ideia do “grande Pai”. Talvez um comentário adicional devesse ser feito sobre a necessidade em fazer menção a Deus sob a luz do texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921). Nesse texto, a figura do pai da horda, o desejo de tomar seu lugar e a presença da divindade aparecem intimamente relacionadas.

[14] FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, Volume 18 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p.54.

[15] FREUD, Sigmund. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: Obras Completas, Volume 10 [Trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p.87.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ASSIS, Saulo de Moraes (2024) Notas esparsas sobre ciência, fantasia e psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -16, p. 7, 2024. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2024/08/12/n-16-07/>.