A ficção e suas fantasias: uma leitura da Unheimliche de Freud

[La fiction et ses fantômes – Une lecture de l’Unheimliche de Freud]

por Hélène CixousTradução | Davi Andrade Pimentel & Flavia Trocoli

 

“La fiction et ses fantômes – Une lecture de l’Unheimliche de Freud”, Poétique: revue de théorie et d’analyse littéraires, n. 10, 1972.[1]

 

Avancemos aqui uma leitura bífida, entre literatura e psicanálise, com uma atenção dupla ao que se produz e ao que se dissimula nas dobras do texto, ora conduzidas por Freud, ora duplicando-as no percurso que nos parece menos com um discurso do que com um estranho romance teórico: há alguma coisa de “selvagem” no Unheimliche, um sopro, um espírito de provocação que, por vezes, pega desprevenido o próprio autor, ultrapassando-o e incluindo-o. Freud e o objeto de seu desejo (: a verdade sobre o Unheimliche)[2] se acendem em fogos recíprocos. Texto da incerteza: fio apertado, remendado em seus enlaces e desenlaces, este texto de Freud, para ir ao encalço do conceito das Unheimliche, a Inquietante Estranheza,[3] inscrito estranhamente em um sistema de inquietudes. Nada menos tranquilizador, para o leitor, do que essa perseguição meticulosa, prudente — mas tortuosa, interminável — nada mais inquietante do que esse estudo (de “alguma coisa”, domínio, movimento emotivo, conceito, impossível de determinar, variável em sua forma, a intensidade, a qualidade, o conteúdo), nada mais fugidio do que essa busca cujo movimento constitui o labirinto que a suscita; o estranho propõe por toda parte sua necessidade secreta. Desenvolvimento envolvente cuja operação contraditória é executada por um duplo do autor: a Hesitação. Um Texto e sua sombra hesitante, e sua dupla evasão. Enlaces: mas o que se reúne aqui, é logo desfeito, do que se afirma, se suspeita, os fios conduzem à sua seção ou a algum emaranhamento. No espaço-labirinto, comparecem personagens citados como testemunhas, interrogados, esclarecidos, e logo reenviados ao canto de alguma rua ou parágrafo. Ele se produz sob os olhos do leitor, inevitavelmente, na forma de um teatro de marionetes em que verdadeiras bonecas e simulacros de fantoche, vida verdadeira e vida falsa, são acionados por um maquinista soberano, mas caprichoso. Fios esticados, articulados, emaranhados. Cenas centradas; dispersadas. Contos começados; suspendidos. Tudo, aqui, gira rápido. A leitura salta de uma borda à outra. Pensa-se seguir uma demonstração; sente-se o terreno se rachar: o texto introduz algumas raízes sob o solo, outras são aéreas. O que aqui figura como ciência, mais adiante se assemelha a um romance. Metáfora dele mesmo, esse texto avança, como lembra Mallarmé de Hamlet, lendo o livro dele mesmo, anotando o que em retorno a memória profetiza. O my prophetic soul!

Um texto de incerteza, leitura suspeita, mas fascinante: pois, se na troca do texto e de sua leitura, nesse jogo de sedução em que o texto tem sempre um tempo de avanço, a dúvida do texto produz a dúvida do leitor, e ela pode produzir igualmente seu prazer e sua audácia.

Assim, aqui, estará em questão o estranho prazer que provoca a leitura do texto freudiano, e o que, inseparavelmente, o duplica: um mal-estar que molda o de Freud, o descreve, e só pode raramente distinguir-se dele.

É por meio de dois caminhos, como se verá, que Freud conduz sua pesquisa sobre alguma coisa aterrorizante que constitui o nó do Unheimliche. É através de dois caminhos de leitura que nos deixaremos conduzir, por Freud e apesar de Freud, pelo certo e pelo hipotético, entre ciência e ficção, ou ainda, também, entre “simbolizado” e “simbolizante”, com e por ambivalência, em conformidade com a natureza indecidível de tudo o que concerne ao Unheimliche: vida e ficção, vida – como – ficção, mito edipiano, complexo de castração, criação literária. Indeciso, o analista, o psicólogo, o leitor, o escritor: a multidão de sujeitos nomeados ou anônimos que aparecem e desaparecem na moldura do texto, a partir de Freud e por ele mesmo contrariado, eles vão, pelo menos, por dois caminhos que nos reconduzem à nossa insatisfação. Nós, inicialmente, nos deixando conduzir, somos dóceis ao chamado de Freud, e com ele decepcionados: é que a complexidade da análise, sua atmosfera sufocante, fazem par com a incerteza do analista. Jogo ou re-jogo da hesitação? A análise que coloca a questão de um recalcamento em dobras não está aqui e ali marcada pelos efeitos que sua produção faz surgir naquele que a conduz? Tudo se passa como se o Unheimliche retornasse sobre o próprio Freud em uma viciosa partilha do perseguido ao perseguidor; como se um certo recalcamento de Freud fosse motor, a todo momento re-presentando a análise do recalcamento que Freud conduz: a Unheimliche[4] está no princípio da análise feita por Freud. Ela secreta a Unheimliche da análise que se faz dela. Veremos que o nosso papel de leitor desempenhado na Unheimliche é um estranho papel duplo de outro leitor, aquele ao qual estamos por vezes espectralmente identificados, aquele do Homem da areia: segundo Freud[5], as lentes perigosas que circulam do contador ao herói infeliz saltam para os olhos do leitor que elas lançam na horrível singularidade do mundo dos duplos: não pode haver dúvida sobre a identidade duvidosa dos personagens ameaçadores; entretanto, o que os olhos complementares percebem não tem lugar nem no real, nem no verossímil, mas somente na Unheimliche, no desconhecido ou no irreconhecível. Se a história do olho remete sempre à castração, não é uma simples história de Édipo; por meio do jogo incessante da substituição, o olho é multiplicado e o trabalho familiar do olho torna-se a enigmática produção de duplos espalhados, grãos de fogo, estrelas, binóculos, lunetas, visão de muito longe ou de muito perto, segredo teatral que o texto freudiano mimetiza, toca ligeiramente e logo foge.

Por três vezes Freud se deixa ir ao encontro da Unheimliche e tenta descrevê-la, a partir da dúvida; toda a empreitada se designa desde o começo e, ao mesmo tempo, como um ato de temeridade teórica e como a resposta a uma solicitação vinda de um domínio a explorar. Convite sutil à transgressão, da parte da Unheimliche; resposta, ou, talvez, antecipação da parte de Freud. O desejo não é estranho ao que é uma aventura; ele garante a ela o vai-e-vem e articula os desvios e os entreatos.

Primeiro tempo: em quatro parágrafos, em prólogo, Freud se justifica — até a desculpa: como Freud toma posse de um lugar que não parece pertencer à jurisdição analítica, o domínio “ao lado”. A psicanálise tomará posse de um domínio da estética negligenciado pela estética; mas essa não é a primeira incursão desse gênero: há muito tempo que a obra de arte “chama” por Freud e que ele cobiça os seus efeitos sedutores; sua desculpa aqui se funda sobre a questão da emoção, sobre a necessidade de um dia estudar sua economia frustrante. Os movimentos emotivos não são objetos de estudo para a psicanálise; eles só formariam a trama de efeitos submetidos à estética. A psicanálise se interessa pela “vida psíquica”, pelo domínio “profundo”. Destaca-se aqui o mistério da criação literária; o segredo dessa invejável potência do criador que chega a nos seduzir, eis o que fascina Freud: “As liberdades do autor, os privilégios da ficção para evocar e inibir” as emoções ou os fantasmas do leitor, o poder de levantar ou abaixar a barra da censura. Daí seus gestos múltiplos para iniciar uma teoria desse poder, sob o nome de bônus da sedução,[6] ou prazer preliminar: teoria do prazer que vem frequentemente como um a mais a qualquer desenvolvimento vizinho. Como em Der Dichter und das Phantasieren (1907), em que a proposição teórica só intervém como remorso de um texto apoiado sobre as fantasias do criador. Nele, sente-se essa mistura de desconfiança e atração com a qual Freud gira em torno desse prazer (que aponta para o princípio do prazer e além[7]) feito da reunião de dois tipos de gozo: do bônus da sedução (Verlockungsprämie) produzido pela satisfação formal, aquela que, por sua vez, permite o “verdadeiro” gozo; convergência de várias fontes de gozo. Inicialmente, Freud invoca a técnica do criador pela qual é superada a repulsa que causa a fantasia do outro enquanto outro. A ars poetica favoreceria um processo de identificação, ela trabalha “nos limites existentes entre cada eu [moi] e os outros eus [moi]”. O prazer formal — ligado à representação — esconderia e permitiria a liberação de um outro gozo de fontes mais profundas. Talvez, então, façamos um retorno às nossas próprias fantasias depois do desvio pelo outro, pelo “alívio” de nossa “alma”. Todavia, se a teoria do bônus da sedução parece em princípio repousar sobre uma “temática” hedonista[8], ela deixa escapar — daí o deslocamento da teoria — o que nenhum tema ou significado pode recobrir, e que é justamente a Unheimliche.

Freud apresenta o Unheimliche, ao mesmo tempo, como um “domínio” e como um “conceito”, numa designação elástica. É porque o “domínio” permanece indefinido, e o conceito é sem centro: o Unheimliche, primeiro, somente se apresenta à margem de outra coisa. Freud a aparenta, em relação a outros conceitos que lhe são semelhantes (pavor, medo, angústia): ele está na “família”, aquela que, no entanto, não é da família. Freud declara que é certo que o emprego do Unheimliche é incerto. A indeterminação faz parte do “conceito”. Nele, o enunciado e a enunciação se reencontram. Enunciado incercável: no entanto, Freud, defendendo a existência do Unheimliche, quer se ater ao sentido, ao real, à realidade do sentido das coisas. Ele procura, portanto, “o fundo do sentido”. Logo a análise fica ancorada na denotação. Porém, trata-se de um conceito em que toda denotação é conotação.

Terceiro parágrafo: Freud volta ao ponto da questão no que concerne ao aporte do estético e do médico-psicológico, com muito rigor: ele assinala os limites da estética que são da ordem do recalcamento e da determinação ideológica: essa ciência trata dos sentimentos positivos e repele os sentimentos contrários (o feio como valor positivo quase não fez o seu caminho na tradição). Surge o estudo neuropsiquiátrico de E. Jentsch[9]. Ele é, diz Freud, ao mesmo tempo interessante e decepcionante: predecessor insuficiente, porém respeitado, Jentsch representará, doravante, a atitude “laica”, “intelectual” e, de fato, antianalítica, por sua aproximação fenomenológica da estranheza. De imediato, Freud atribui uma razão subjetiva ao fracasso de Jentsch: ele não consultou “a fundo” a literatura; ele se ateve à experiência cotidiana; ele, então, perde “todo direito à prioridade”. É a literatura que a psicanálise quer interrogar. Por meio de um sistema de prioridades, uma hierarquia se instala.

Freud apela ao ainda-não-teorizado, notadamente à “sensibilidade”, à sua justamente, exemplar e, no entanto, diferente da média, “singularmente pouco sensível” à Unheimliche. Freud, infiltrado sob “o autor deste ensaio”, sublinha aqui Jentsch e entra na cena em modo duplo: ator e diretor, analista e analisante. “Há muito tempo que ele nada experimentou ou encontrou que tenha lhe dado a impressão…”. Interrogado pela empreitada do autor, o tema torna-se lugar de uma estupefação: o que lhe foi familiar, agora lhe é estranho. As coisas não sabem mais atingi-lo… Então, é preciso ir ao encontro delas: assim, o estudioso, a fim de experimentar em si mesmo os estados que estuda, se impele, se excita, para que surja a representação que tomará o lugar da experiência. Primeiro retorno do que foi perdido: a procissão dos fantasmas[10] é sub-repticiamente inaugurada. Em seguida, como em reação contra um nostos desejado, mas que recusa a melancolia, Freud retorna do particular ao universal, ou quase: ele apela à “maioria dos homens”, a um consenso quase impossível: e se a Unheimliche fosse reconhecível da mesma maneira por todos? Esperança paradoxal, logo se pensa, pois é da lógica da Unheimliche permanecer estranha. Não é preciso repelir a esperança: o risco patético que se corre ao apoiar o científico sobre o não-científico lembra o desvio constitutivo da Unheimliche entre o familiar e o estranho, que Freud coloca como limiar para sua busca. Assim como a Unheimliche, ainda indeterminada, se beneficia do estatuto de conceito, do mesmo modo, o não-científico reveste a dignidade do científico.

Nessa reentrância equívoca, em que o autor confessa o tema hesitante de sua pesquisa, o texto se bifurca na direção das escolhas de método: fazendo da indecisão a ocasião para um progresso. Bifurcação: “pode-se escolher entre duas vias”. As duas conduzem diferentemente ao mesmo resultado, que relança o processo; uma (a linguística) ou outra (a vida cotidiana) ou as duas. De ambivalência à ambivalência, ora a linguagem como geral, ora o mundo como série de casos particulares; contudo, essas duas vias só nos são propostas uma única vez, a escolha feita por Freud, sendo a via já seguida: Freud nos impõe uma ordem inversa àquela que ele seguiu. Só-depois, a história da busca se apresenta por outra via. Como se ele tivesse desejado começar pelo indecidível da Unheimliche, o que está depositado na linguagem.

O caminho inverso: uma história de UN.: Freud anuncia um levantamento lexical comentado a partir do ponto de suspensão de Jentsch: o que há além do não-familiar, do novo? O ponto de vista psicológico exposto por Jentsch (o Unheimliche como incerteza intelectual)[11], a parte concernente ao ver, ao saber, ao entorno, ocupa o primeiro estágio da pesquisa: o Unheimliche como o que surge a partir do mundo para o sujeito. Eis a posição de Jentsch imediatamente deposta e deslocada: o que diz a língua?

A sequência lexical, viagem da referência através das línguas estrangeiras, compõe um verbete de dicionário polilinguístico. Por meio dessa exposição de definições, o mundo retorna, amostragem do cotidiano, da economia doméstica e familiar, do doméstico, e no entanto… essa casa organizada, longe de nos domesticar, essa cadeia de citações que Heimliche ou Unheimliche dispõe, produzem em nós um efeito de um enorme discurso delirante: o mundo se oferece numa redução enganadora, não sem a perversão polimorfa do dicionário-criança: o conjunto desses verbetes propaga uma névoa onírica, todo inventário lexical jogando necessariamente com o limite do sentido literal e com o seu sentido figurado. E é o próprio Freud que extirpa desse amontoado confuso a coisa-a-mais: é in extremis que o dicionário produz o indício: “Chama-se unheimlich tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, e que se manifesta.” (Schelling, 32, 6 4 9, etc)[12]. Assim, por um lado, a empreitada lexicológica é mimetizada pelo verbete que funciona também como metáfora de sua própria cena. Por outro lado, Schelling, em sua entrada levanta bruscamente a cortina: “Tudo que deveria ter permanecido escondido”. Schelling liga o Unheimliche a uma falta contra o pudor. É no fim que aparece a ameaça do sexo. Mas ela sempre esteve lá, no próprio acoplamento e na proliferação de Heimliche e de Unheimliche: quando um toca o outro, o verbete do dicionário se fecha, fecha a história do sentido sobre ela mesma, desenhando nesse gesto a figura do andrógino: a palavra se reagrupa, Heimliche e Unheimliche se casam, se associam.

No final dessa estranha travessia das línguas, Unheimliche pode ser figurada nesse mito: da Heimliche à Unheimliche, o sentido ao passar se reproduz, onde ele se apaga, é atiçado. A oposição se arrefece, a distância só terá sido o espaço de estreitamento, a fênix engendra o seu mesmo. Aliás, o comentário de Freud se esforça para atenuar o caráter perturbador da junção, dispondo um certo descompasso dos contrários: repugnância notável ao reconhecer o (re)estreitamento absoluto. A coincidência com o contrário provém, diz ele, da pertença da Heimliche a dois grupos de representações “muito afastados um do outro”. O que coloca indiretamente a questão da hierarquia da relação dual entre os dois termos: há inversão da Heimliche em Unheimliche ou, antes, a partir da Heimliche, há a emergência, pela Unheimliche, de um novo conceito? Eis aqui a aposta da procura: o que retém de fato a atenção de Freud é alguma coisa novíssima enunciada por Schelling sobre o conteúdo do conceito e que, no entanto, não se “encontra” nele; mas nele se insinua pela floresta barroca do dicionário, domínio inquietante do muito próximo, ameaça da indistinção.

Lembre-se que Freud procede, em relação ao leitor, pelo modo de pensar inverso ao seu: o que veio por fim foi o sexo como o que no começo estava ignorado, pois Freud começava pela sublimação. Dois fios se enlaçaram: um primeiro fio pela ambivalência do sentido que vai até o encontro de seu contrário; um segundo fio que liga a observação de Schelling: a constatação da ambivalência lexical se encontra sexualmente carregada nele. Freud coloca o dedo no ponto nodal. Ele puxa os fios e aperta.

A escolha de um exemplo feliz: retorna-se ao cruzamento dos caminhos e toma-se aquele que passa pelo mundo. Novamente invoca-se a opinião de Jentsch para logo afastá-la. No lugar do dicionário, a cena duplicada dos “objetos” animados, o resumo feito por Freud da posição de Jentsch é, em si, uma pequena cena realmente suprimida. Feito isso, “o autor” introduz aqui a preocupação com o teatro, com tudo o que o teatro representa como simulacro do vivo e do que a vida como cena pode esconder de teatral. Sobre a cena e a cena da cena pode se colocar a relação entre a descoberta feita por Freud na ordem da verdade científica e o mecanismo da ficção; o próprio texto de Freud funciona à maneira de uma ficção: o extenso trabalho sobre as pulsões do eu, a redistribuição dramática por essa ou aquela via, os suspenses e surpresas, os impasses, tudo isso se assemelha ao trabalho específico da ficção, “o autor” exercendo os seus direitos privilegiados de narrador que o analista não pode se permitir. “Melhor que qualquer outro”, diz Freud, é o escritor que se dispõe a fazer nascer o Unheimliche. Escritor é também o que Freud quer ser. Freud vê no escritor aquele que o analista deve interrogar; na literatura, o que a psicanálise deve interrogar para se conhecer. Ele está, em relação ao escritor, como o Unheimliche em relação ao Heimliche: no limite, sua estranheza em relação à criação se quer e se sente como “um caso” da criação. O enigma da Unheimliche tem uma resposta literária, anuncia Freud depois de Jentsch, e essa resposta é a mais certa.

Tão logo se apropriou do exemplo de Jentsch (à maneira infantil do: esta boneca era minha), ele se declara o seu verdadeiro mestre; o predecessor, afirma Freud, não havia usado direito! Ao procedimento de deslocamento não falta uma audácia picante: manobra de velhaco! Por um lado, Freud cita a citação de Jentsch, que lê O Homem da Areia a partir do personagem da Autômata, a boneca Olímpia. Ao mesmo tempo, ele afasta a interpretação de Jentsch. Este reconecta o Unheimliche à “manobra psicológica” de Hoffmann, que consiste em produzir e preservar a incerteza sobre a verdadeira natureza de Olímpia. Viva ou inanimada? Freud rejeita o argumento psicológico? Que seja. Ele se aproveita disso para deslocar a Unheimliche (Jentsch já a havia mostrado como descentrada em relação à atenção do leitor, e se mantendo pelo subterfúgio desse descentramento) a partir da boneca até o Homem da Areia; assim, sob a dissimulação da crítica analítica da incerteza, a boneca deixada em segundo plano já está, de fato, na armadilha. Seu recalcamento se fará, além do mais, com o consentimento ou com a cumplicidade — do leitor: pois Freud, doravante, se coloca sob nossa proteção; sua preocupação real e constante do ponto de vista do leitor, sua atenção, sua exigência de comunicabilidade, que procedem de sua necessidade familiar de compartilhar, guiar, ensinar e se justificar, — essa instância pedagógica presente em todo seu discurso —, desta vez, se produzem pela astúcia da denegação. “Espero obter o assentimento da maioria dos leitores do conto”, diz o orador que não se aventura sem essa aliança à qual ele insiste em retornar. O diálogo com o leitor é também artifício teatral, em que a resposta precede e envolve a questão. Daí a remeter sem mais demora o episódio de Olímpia ao gênero satírico, portanto a eclipsá-lo a propósito da Unheimliche, não há sequer um passo. E recebemos a areia nos olhos, sem mais debate.

Em seguida, a narrativa de O Homem da Areia por Freud: a narrativa fiel, parece, não é uma paráfrase. Freud tem prazer com a necessidade estruturante de re-escrever o conto, a partir do centro designado como tal a priori: toda a história repassa, desse modo, pelo Homem da Areia e pelo arrancar dos olhos. Considerando que o procedimento de Freud é a repetição invertida de seu primeiro trabalho, vê-se como é a partir do termo que se re-escreve demonstrativamente o conto: leitura estreitada como a Unheimliche sobre a Heimliche. Daí, para o leitor, o sentimento justamente de que esse conto (o de Freud) não é tão Unheimliche quanto aquele: o alguma-coisa-de-novo que deveria ter permanecido escondido, sem dúvida, está aqui muito exposto? Ou então Freud tornou muito familiar o estranho? A carta foi roubada? É preciso ler os dois Homem da Areia para perceber o que desliza de um ao outro. Conto condensado, o de Freud está também singularmente deslocado para uma história linear, lógica, de Nathanael, fortemente articulada à maneira de um “caso”, desde as recordações de infância até o delírio e o fim trágico. Ao longo do percurso, Freud intervém de maneiras diversas: por um lado, para reconduzir o fantástico ao racional (a Unheimliche à Heimliche); por outro, para estabelecer explicitamente as ligações que não são dadas como tais no texto. Essas intervenções têm como efeitos: redistribuir o conto atenuando quase até o apagamento as personagens que se destacam da Heimliche, como Clara e seu irmão; neutralizar a incerteza colocada sobre Olímpia, logo empurrá-la também para o grupo da Heimliche; diminuir claramente o estofo do conto reduzindo, em particular, seu aspecto de descontinuidade na exposição, o encadeamento, a sucessão de narradores portanto os pontos de vista; organizando assim um face a face entre O Homem da Areia e Nathanael muito mais intenso e obsedante, mas também menos surpreendente do que o original permite. Se o olho do leitor está aplicado no satânico óculos do óptico (para Hoffmann, sugere Freud, que empresta inúmeras intenções ao “autor”), o papel dos óculos tal como é posto em jogo por Freud é de uma inquietante complexidade: eles parecem dever servir para fazer desaparecer a dúvida que paira sobre a intenção do autor: ele nos conduz para a vida real ou para o fantástico? Sem dúvida (repetição, insistência de Freud sobre a recusa da dúvida): por uma série de pequenos atos de violência precipitados, Freud salta de efeito em efeito (aparentemente da causa ao efeito) até o “ponto de certeza”, de realidade, que ele quer colocar como pedra angular sobre a qual fundar sua argumentação analítica. Força-nos a aceitar essa “conclusão” de efeitos retroativos, ou a nos tirar de um jogo arriscado. Joguemos: acreditando que há encadeamento real e não somente simulacro do encadeamento em tal declaração peremptória.[13] Se confiarmos na lógica do “consequentemente”, não duvidaremos, como Freud, que Coppola seja Coppelius logo o Homem da Areia na realidade; e pensaremos que Nathanael não é delirante, mas clarividente. Deixemo-nos ser tomados por essa soma de efeitos (e, também, por essa unidade fictícia do leitor e do analista), por essa “arte da interpretação”. Não sem guardar o desejo secreto de desentocar o que não deveria ter permanecido escondido por tal leitura seletiva.

Freud podou o conto de seu dispositivo de narração densa, da heterogeneidade de seus pontos de vista, do detalhe “supérfluo” (o lado “ópera” da narrativa, com seus coros de estudantes, de cidadãos, do cortejo de mediações mais ou menos úteis à intriga), de todo significante que não parecesse participar da economia temática. Porém, esse corte no bosque hoffmannesco (Freud se lamenta, aliás, de sua densidade) não é observado em seu próprio gesto? Já que não se trata realmente de um corte, mas antes de um resumo: como se a insistência sobre a privação dos olhos contaminasse o próprio olhar que “opera” o texto lido. A parte da pantomima, tão dilacerante no conto de Hoffmann[14], eis justamente o que faz o encanto de sua criação, esse súbito encerramento de teatro de feira, esse salto a partir da Erinnerung através da relação epistolar até a cena de carnaval, da interioridade dos sujeitos à sua exteriorização, essa re-duplicação de um real comum por um real extraordinário (que interdita a instalação da leitura em um ou em outro mundo, que obriga o leitor a tombar de uma borda a outra e, de fato, não importa qual seja o eixo real — imaginário), essa excreção soberba é claramente expulsa por Freud: daí o contestável processo de incerteza intelectual, que o conduz a essa dança entre o psicológico e o psicanalítico. A demonstração sinuosa se desdobra atenta ao que está em jogo, refletindo o incômodo de Freud. E para decretar, por exemplo, que a incerteza sobre tal ponto não é tão incerta quanto isso: Coppola = Coppelius. Mas é por paronomásia. A retórica não faz o real. Perceber as identidades apazigua. Mas e perceber as identidades “incompletas”? Reduzindo “a incerteza” “intelectual” a uma incerteza retórica, Freud não corre risco lexical: uma vez que o vocabulário de Jentsch destaca a psicologia, Freud se dá a possibilidade de excluir inteiramente essa incerteza enquanto ela for “intelectual”. Quando a Unheimliche recalca o motivo jentschiano, não há, de fato, o recalcamento do recalcamento? Jentsch não diz mais do que Freud quer ler?

Os olhos no bolso: cabe a nós lermos o equívoco desta frase de Freud, e aquilo que ela censura: “Essa história narrada rapidamente não deixa subsistir nenhuma dúvida.” Compreendemos: a história de Hoffmann. Ou compreendemos: a história-narrada-rapidamente. Porém, é realmente a história-contada em sua rapidez que desloca e ratifica a dúvida. Pensar esse “pensamento da narrativa” como deformação do pensamento do texto, à maneira que se fala do pensamento do sonho: Freud “narra”, de fato, como ele teria traduzido o rébus do sonho. Ele elabora, na realidade a partir de uma conclusão que relança a análise no círculo sempre intra-analítico. Conclusão de dois gumes: 1) exclusão da “incerteza intelectual”, o que permite a imposição da interpretação analítica; e oculta Olímpia — Focalização sobre Nathanael; 2) do Homem da Areia, Freud alega o medo de ficar cego e o que a ele se substitui. O Homem da Areia, por sua vez, é ocultado pela equação redutora: Homem da Areia = perda dos olhos (o que, no entanto, não é tão simples). Assim, de uma só vez, as duas grandes figuras extraordinárias são descartadas e, com elas, o teatro de Hoffmann: uma metade do corpo textual é eliminada. Ficam os olhos: o terreno freudiano se faz menos movente; estamos em um lugar fortemente sustentado por observações e por saber teórico (“explicar”, “instruído”, “aprendido”): por um lado, o medo de perder a visão é um fato da experiência cotidiana, que os clichês sublinham; trata-se aqui de um terror familiar. Por outro lado, o estudo de três formações (sonho, fantasias, mitos) do inconsciente mostra que esse medo esconde um outro, aquele da castração. Édipo, convocado aqui brevemente, testemunha que a enucleação é uma atenuação da castração. Ora, castração — enucleação — Édipo — se afirmam aqui nos mesmos confins teóricos, sem que se possa estar seguro, entretanto, de sua posição relativa no conjunto que eles constituem. Caso se articule, a ênfase é colocada mais sobre a castração que sobre o Édipo; a análise da Unheimliche pode, então, passar pela análise da questão nuclear Édipo-castração. Freud, além disso, não elaborou nada de direto no que concerne à articulação complexo de castração/Édipo. É o complexo de castração que levará o menino a liquidar seu Édipo: o complexo de castração tem valor de um interdito; ele “intervém”, então, diretamente no nuclear edipiano, mas isso é uma intervenção ou uma articulação? Freud parte do medo que o menino tem de ver o pênis ser levado embora: portanto, seria preciso interrogar esse princípio e o fato de que Freud jamais tenha abandonado (ou desejado abandonar) o caráter sexual da castração, do mesmo modo seria preciso interrogar também aqui o retorno ao pai que a castração implica. Na verdade, toda a análise da Unheimliche deve ser (des-lida),[15] percebida – (veremos cada vez mais claramente) como marcada pela resistência de Freud à castração, sua efetivação e seu além.

É preciso, para Freud, que a castração faça lei de seu próprio enigma: “A enucleação é só uma atenuação da castração”: como sustentar essa afirmação, em que Freud reconhece logo que ela é contestável “do ponto de vista racional”? De fato, se poderia inverter os termos (a castração como atenuação…) ou equivalê-los: a enucleação ou a castração. Freud abandona uma não-prova por uma outra não-prova, pela afirmação que o segredo da castração não remete a nenhum segredo mais profundo do que o anunciado pela angústia: o medo da castração remete à castração e, mais ou menos, a seu processo de substituição (relação substitutiva, Ersatzbeziehung, do pênis pelo olho, e por outros órgãos[16]). Kein tieferes Geheimnis: “nenhum segredo mais profundo”, diz Freud: o “sentimento fortemente obscuro” de resistência à ameaça de castração é o mesmo para todo o grupo de representações para a perda de um órgão. O trabalho teórico de Freud se apoia sobre a qualidade do medo. A atenção repousa, então, sobre esse sentimento forte e obscuro que é o estranho da inquietude.

O que há do outro lado da castração? “Nenhuma outra significação” a não ser o medo (a resistência) da castração. É essa nenhuma-outra-significação (Keine andere Bedeutung) que se apresenta (apesar de nosso desejo de a des-organizar) no jogo infinito das substituições, pelo qual volta, eclipsando-se novamente, o que é o inatingível movimento do medo. É essa esquiva do medo no medo, essa “máscara” que não mascara nada, artifício do temor que reconduz ao temor, segredo impensável já que ele não dá acesso a nenhum outro sentido: sua “agitação” (Unruhe, diria Hoffmann) é sua afirmação. Mesmo aqui, não é tudo repercussão, propagação descontínua do eco, mas do eco como deslocamento, e não como se remetesse a algum significado transcendente? É, realmente, a partir do acontecido como lugar que ressoa (e não surge) o efeito do estranho, o significante relacional que é a Unheimliche. Um significante relacional: pois a Unheimliche é de fato compósita, ela se infiltra nos interstícios, ela afirma a pequena abertura por onde se gostaria de garantir a articulação. É o que sublinha Freud com uma espécie de obstinação, sob a forma de interrogações insistentes que são, de fato, o mesmo que proposições enfáticas: todavia a “questão” por que (máscara de porque) investe de autoridade a teoria diante da obrigação de dar conta dos traços “arbitrários” do conto. O que aparece então, como reflexo da argumentação freudiana é o “arbitrário” da exigência apoiando-se sobre o sentido: uma relação de garantia recíproca instala aqui sua reverberação; pois é da recusa em admitir a insignificância de certos traços que nasce a hipótese destinada a preencher os buracos (esses traços “se tornam plenos de sentido”), sem a qual a narrativa seria castrada. O medo da castração vem ao socorro do medo da castração.

É logo depois do enunciado das proposições (relacionadas com a morte do pai; relacionadas com o entrave causado ao amor; afirmação do arbitrário das proposições contrárias à sua) que, pela adjetivação de infantil, qualificada como complexo da castração, é reintroduzida a boneca e seu duplo: Olímpia, “boneca” adulta, objeto do desejo de Nathanael, e a boneca, brinquedo das garotinhas, servem de caução ao adjetivo infantil. Freud inicia aqui uma exposição relativa à infância: todo sintoma, lapso, sonho como um ramo de forquilha que encontra um acontecimento de infância. O sujeito “nós” cita o caso de uma (paciente) garotinha de oito anos cujo “olhar penetrante” teria sido capaz, pensava ela, de dar vida às bonecas. Nesse exemplo se cruzam três efeitos do desejo: — a atitude histérico-mágica[17] (o olhar pode produzir um efeito de ação direta); o olho (penetrante), olho-pênis; a boneca secretamente viva; pelo exemplo é novamente lançado o motivo Boneca ao lado do debate sobre a clivagem Jentsch-Freud. Freud assinala o deslocamento do medo sobre o desejo ou a crença da criança na vida da boneca. (Mas Nathanael não tem “medo” de Olímpia.) Eis o que parece contraditório. Sobre isso, a pesquisa encerra esse capítulo com um suspense (compreenderemos “mais tarde”) teórico e romanesco. Assim que aparece a boneca, a narrativa desvia e foge. No entanto, ela não é relegada a um lugar mais profundo do que aquele, metáfora tipográfica do recalcamento, sempre muito próximo e, no entanto, negligenciável de uma nota.

Nota a Olímpia: ou a outra história de O Homem da areia[18]: em nota, Freud nos oferece, de fato, uma segunda narrativa que seria apenas “reconstruída”, narrativa primitiva, originária, mais próxima da interpretação de um caso do que do deslocamento operado a partir desses elementos pela imaginação do criador. Não se trata mais aqui do Homem da Areia, mas de sua versão analítica. Coppelius é então designado como o pai temível. Freud revela a estrutura de um mito, em funcionamento análogo àquele que opera nas neuroses. Esse Homem-da-areia é também uma releitura sub-reptícia do Homem-dos-Lobos (com alguns elementos tomados do Homem-dos-Ratos): papel da babá de Nathanael, e da niânia[19] do Homem dos Lobos; pai decomposto em pai antigo e pai novo, Deus-porco e pai terno; reedição do pai pelo professor de latim, Sr. Wolf (fios do filho-filius-filha) e por Spalanzani. Certamente a analogia não tem nenhum valor científico; mas são justamente as citações dessa história que embelezam (sem que Freud remeta aos Kleiner Schriften zur Neurosenlehre) a continuação dessa análise. A presença em filigrana desses casos permite a Freud a aceleração de seu argumento e justifica a aparente “imprudência”. Resulta que, se na ordem desse novo texto, Olímpia desmembrada, reparafusada, remontada, ganha uma nova importância, ela é logo recuperada pela interpretação: “Materialização da posição feminina de Nathanael em relação a seu pai”, diz Freud. Certamente. A homossexualidade retorna ao real por meio dessa encantadora figura. Mas Olímpia não é somente “um complexo liberado” de Nathanael que se apresenta a ele sob o aspecto de uma pessoa. Se ela é apenas isso, por que a dança, o canto, a maquinaria, o mecânico não são postos em jogo nessa ocasião, ou teorizados por Freud? O que fazer com essas marionetes que assombraram as cenas do romantismo alemão[20]?

Novamente a bela Olímpia é apagada pelo que representa, pois Freud não tem olhos para ela. Ela parece obscena, essa mulher que surge onde “nós” não a esperávamos, e que leva Freud a fazer um tal desvio. E se a boneca se tornasse uma mulher? Se ela estivesse viva? Se, ao olhá-la, se desse vida a ela?

Recolocada, afastada da cena, a boneca sai… entre dois atos.

Re-nascimento e história do duplo: Lugar para outra aventura: Freud nos conta agora uma “história surpreendente”, aquela do nascimento e da evolução do Duplo, produto e esconderijo da castração; esse conto fantástico se desenrola em várias cenas simultâneas, numa libertação espaço-temporal digna da ficção. “O autor, que dispõe de muitas liberdades, possui também aquela de escolher de acordo com sua preferência o teatro de sua ação”, diz Freud do criador invejado. Nesse momento, Freud dispõe dessas liberdades: é porque ele mantém seu texto nessas regiões indistintas e libidinais onde a luz da lei não impõe ainda sua lógica e onde a descrição, a Hipótese plural, todos os jogos do espírito pré-teórico têm livre acesso. Essa história do duplo se assemelha ao romance do “mestre inigualável” do Unheimliche que “apresenta toda uma reunião de temas aos quais se poderia atribuir o efeito estranhamente inquietante…”. O conjunto (do romance, da história) é “bastante frondoso” e emaranhado para que se possa tentar um excerto. O que faz o leitor desconcertado? Ele se “contenta em escolher entre esses temas” os mais notáveis, a fim de neles investigar o que ele deseja encontrar. E o resto? Puxa-se um fio. Resta a tapeçaria. E, portanto, Freud para satisfazer seu desejo sempre governado por uma economia da “confusão”, da profusão: a Unheimliche estende suas nervuras, enigmas e aparições em direção a um fundo histórico-mítico. Primeira reunião: a rede das manifestações do Duplo; “telepatia”, identificação de um com o outro, troca do eu estranho pelo próprio eu, cisão, substituição, reduplicação do eu, enfim constante retorno do mesmo (esse último traço anotado como fim por Freud), repetição dos mesmos traços, caráter, destino etc. Segunda reunião: os pesquisadores do Duplo: Otto Rank, Hoffmann, Freud, o psicanalista, o psicólogo “comum”, o inventor literário, o poeta Heine; conjunto de interrogações que remonta à pré-história sobre um fundo de deuses e demônios. Uma antropologia mítica se desenha. Terceira reunião: uma braçada de exemplos anedóticos, literários, biográficos, pequenas anedotas[21] ou recordações, minicontos no conto. Esses três conjuntos compostos de elementos heteróclitos, dispersados, se recompõem numa grande desordem do sentido, por pontos de interseção ou de atração que, muitas vezes, o acaso parece reger. No entanto, eles estão cristalizados pelo contato com a quarta reunião, que perturba o todo: quarta reunião: cada tema é o duplo de um outro tema (ou o pendente), a alma primitiva remete à figuração da linguagem onírica; à arte egípcia; à alma da criança, por um sistema de metáforas ou de representações que a psicanálise articula: “signo algébrico”, a Unheimliche é o que mascara “o egoísmo ilimitado”, o narcisismo primário. Mas signo inconstante, ela passa da afirmação da sobrevivência ao anúncio da morte. “Signo mensageiro”, a Unheimliche faz alusão à pulsão de morte (como todo o texto é mensageiro de Jenseits des Lustprinzips) no interior da qual o fortalecimento da vida pelo duplo é substituído pelo batimento da anulação, do alívio: daí o texto, reforçado, reduplicado, pivotante, aliviado, mensageiro dele mesmo.

Em filigrana, nessa análise da silenciosa linguagem da morte, o tema da infância diversificado em narcisismo primário inicia o desenvolvimento histórico do eu: a história do eu se inscreve na história do tema como num face a face. Clareira do texto em meio ao matagal: por mais involuído que ele seja, por mais nodoso, eis que, a todo momento, indica outros caminhos, animado por outras questões. Um cortejo de problemas diferidos o acompanha: daí a alusão ao delírio patológico, da piscadela ao Egito etc. A historicidade do eu, que tenta Freud, corresponde à sua diferenciação em duas instâncias; o duplo se nutre historicamente dos rebentos rejeitados do eu pela instância crítica, ao longo do tempo; incorporação cuja fantasia suscita, por sua vez, a metáfora de uma consumação inquietante: o duplo absorve também as eventualidades não realizadas de nosso destino das quais a imaginação não quer tirar os dentes. Se esse eu, considerado de um ponto de vista teórico e posto em cena pelo ponto de vista descritivo, nos reconduz, por tudo o que nele se aloja, ao imaginário lacaniano, ele produz, sobretudo, na leitura, a figura fantasmática do inacabamento e da repressão, e não do duplo, do sósia, ou do reflexo, mas da boneca nem viva nem morta, impossível. Expulsa, e por quê?

Constatação do fracasso: absolutamente nada do que Freud disse explica o esforço de defesa do eu e o exílio do duplo. Uma hipótese nos reconduz a posições filogenéticas quando Freud estuda os “temas” psicanalíticos através do encadeamento histórico coletivo, no plano da raça. Sinuosidade em torno do Duplo que nos parece ser “decorado” com uma nova forma de provocação: dessa vez é o grau extraordinário da Unheimliche que nos escapa, Unheimliche enriquecida. Ainda um laço, ainda uma perturbação do eu, ainda Hoffmann ligado dessa vez ao conjunto das inquietudes. A ficção resiste e volta, Hoffmann é, de forma cada vez mais clara, o duplo (por cisão, por substituição?) de Freud. Tudo se passa então como se Hoffmann voltando incitasse Freud a produzir uma espécie de ficção: dois ou três pequenos contos escandem o longo desenvolvimento relativo à repetição do mesmo, caso supremo da Unheimliche. A repetição será regulada pelo “não deveria ter” se repetido. No primeiro conto biográfico, Freud se expõe num movimento típico de denegação: dando-se a ver, ele se cobre de linguagem, de um pudor, que o descobre comicamente: o psicanalista psicanalisado pela psicanálise que ele instrui.

Primeiro conto: “Certa vez, numa tarde quente de verão”, começa Freud… e nesse estilo que oscila entre a relação realista e o desvio analítico, o incerto briga com o certo. “Não há dúvida” sobre a natureza do bairro, diz Freud. Mas, para o leitor, a dúvida se instala aqui e ali, colhe as mulheres maquiadas (bonecas?) e a errância — em retornos obsedantes, de Freud. Mais um retorno e, no lugar do desespero que Freud diz ter experimentado, é o cômico irresistível de Mark Twain que ressoa. Pergunta: depois de quanto tempo de repetição o desespero se torna cômico? O “grau” de repetição supõe toda uma reflexão que Freud se abstém realmente de empreender: ele quer permanecer sexualmente abaixo do ridículo… Aí está uma ocasião de castração malsucedida!

Segundo conto: o retorno do número 62. “Vocês” é o herói desditoso dessa história de séries. Banal, essa evocação dos pequenos mistérios do cotidiano, que mostra como um número inanimado pode se tornar um mau espírito. 62, por seus retornos, funciona como um mestre maléfico do tempo. “Vocês” seriam tentados a lhe atribuir um sentido: aqui a operação de estranheza se complica por essa mediação do número. O mundo repete (e não o eu como na história precedente). Freud faz questão do acaso na medida em que Acaso seria uma espécie de concreção analítica. Qual sentido vocês dariam ao 62? Se vocês não estão “blindados” contra a superstição, compreenderão a tentação do sentido: “vocês”. Sobretudo se vocês nasceram em 1856 e escrevem em 1919 um texto que persegue a pulsão de morte, então vocês serão o autor em condicional, fugindo do anúncio de seu fim, mascarado por um vocês por meio do qual o eu se identifica com o leitor: é sua própria morte que Freud nos dá; o substituto é o leitor; e aquele que excedeu um ano da idade prevista para o seu falecimento, não é de algum modo um fantasma?

Depois disso, você, Freud, se insinua novamente sob o Freud analista, e enquanto a ameaça do 62 se afasta de novo, o processo primário que ela tinha substituído na cena reaparece.

Troca de trajetos subterrâneos. O princípio do prazer e seu além impõem seus reinos inquietantes: projeção súbita diante da cena do automatismo da repetição surdo e cego, dominante, o mais íntimo das atividades psíquicas (ou seja, a boneca mais arcaica e mais secreta). O demônio, a criança que brinca, a neurose, não suficientemente conscientes, se tocam, bons condutores que são da Unheimliche. O texto dá um nó. Detém-se. Interrompe-se. Desejo pelo indiscutível: vocês precisam da certeza, diz Freud. E para citar ainda por remorso ou compulsão; mais um conto, duvidoso, mitológico e velado: o Anel de Polícrates ou Aquele que é muito feliz deve temer a inveja dos deuses.

Belo exemplo desse “diálogo” mudo com a morte que reclama sua dívida, ou seja, sempre a troca com a própria vida, no sentido mais vivo possível.

Esse momento é aquele da mais incisiva resistência de Freud à sua própria descoberta: ele difere, recua, regressa ou patina na pesquisa, faz mais um desvio (recordação da história do Homem dos Ratos). Assim, pelos cruzamentos resultantes do mitológico e do clínico, indo do mais cotidiano ao mais teórico, por um extravagante leque de exemplos, se erige o estranho império do baixo.

Retornemos ao olho pelo mau olhado numa leitura feita entre a superstição e a oftalmologia. Novamente os fios se emaranham: fio clínico, fio da superstição, fio da explicação analítica. Projeto sobre o outro meu desejo de prejudicar e seu olho me devolve esse olhar: por isso o “mau olhado” do texto que nos olha de esguelha, a partir das regiões mais remotas de nossa história, quando defendíamos nossa onipotência, nossa ilimitação contra a ameaça da realidade. Do tempo em que os homens eram deuses, do tempo do “animismo”.

A atividade psíquica inconsciente aparece como uma forma derivada do animismo primitivo. Ligado ao narcisismo, o animismo reintroduz o duplo. Freud não sai do sistema da Unheimliche porque ninguém sai dele; trata-se de ver com o olho estranho o trajeto encerrado por um retorno-repetição ao léxico, na representação exata do primeiro circuito lexical; o estranho é o que está próximo, a Heimliche passa insensivelmente à Unheimliche, que é o íntimo da intimidade, a “verdadeira” intimidade. Retoma-se o encadeamento verificando a solidez dos nós: a semelhança não produz o pavor se ela não provém de si apesar de si: portanto o duplo se exterioriza não somente como angústia, mas como retorno da angústia. Narciso está adornado de angústia. A Unheimliche se transforma em Heimliche. A Unheimliche recalcada se manifesta novamente sob a forma da Unheimliche.

Repetição? Mas deslocada por Freud, no mesmo círculo cada vez mais estreito em direção a um alvo descentrado, fugidio. Insistente: do mesmo modo é a insistência da Heimliche que provoca a Unheimliche. A insistência do familiar, a longo prazo, produz o estranho. Unheimliche: intensidade de uma vibração que faz passar (em vez de produzir) ao mesmo retornado. O que “tornou outra” essa Unheimliche, que não tem nada de nova nem de estranha, foi somente o processo de recalcamento. A vibração muda a carga dos sinais.

Todos os homens são mortais? “Se manifesta novamente”: a imediata figura da Estranheza é o Fantasma. O Fantasma é a ficção da nossa relação com a morte concretizada pelo espectro também na literatura. A relação com a morte procura o mais alto grau da Unheimliche. Nada mais notório e mais estranho ao pensamento do que a mortalidade. Capítulo fascinante sobre a morte contestada, sobre a recusa da morte como instrumento da ordem moral e da autoridade pública; velada pela crença ideológica no além.

Por que essa potência da morte? Por sua aliança com a incerteza científica e com o pensamento primitivo. “A morte” não tem rosto na vida. No nosso inconsciente não tem lugar “para a representação da nossa mortalidade”. Representação impossível, a morte é o que imita, por essa impossibilidade mesma, uma realidade da morte. Ela vai mais longe. Significante sem significado. Segredo absoluto, absolutamente novo, que deveria permanecer escondido, pois se ele se manifesta para mim, é porque estou morto: só os mortos conhecem o segredo da morte. A morte nos conhecerá; nós não a conheceremos.

Aqui o texto não avança mais senão por sobressaltos; quem é aquele que poderia tecer o tecido da morte? A teoria, repelida violentamente pelo irredutível da Unheimliche, gira hesitante e curvada em torno do corpo inexplicável da Unheimliche. Nada é novo, tudo está sempre retornando, salvo a morte. Por que esse temor dos mortos ainda tão potente em nós?, pergunta Freud; porque, diz ele, “o morto se tornou o inimigo do sobrevivente”; se ele volta, é para levá-lo (você leitor, crédulo, ou sutil pensador no fim de sua vida) à sua “nova existência”, para a morada dele (a Heimliche, esse país-mortal onde não entra a metáfora, o sentido, o rosto). Para levá-lo: é sempre o deslocamento, insidioso movimento, por onde os contrários se comunicam, é o entre que se infecta pela estranheza. Há bastante a dizer, de fato, sobre o Fantasma e a ambiguidade do Voltar: pois o que o torna intolerável não é que ele seja o anúncio da morte, nem mesmo a prova de que a morte existe, já que ele não anuncia e não prova nada mais, esse Fantasma, do que o seu voltar; é porque ele apaga o limite entre dois estados: nem vivo nem morto, passante, o morto retorna à maneira do recalcado: é o seu voltar que produz a fantasia, como é o retorno do recalcado que (re)inscreve o recalcamento. A morte, finalmente, não é nada mais que a perturbação do limite. Morrer é o impossível. Estar morto: o incerto absoluto. Se tudo o que está perdido volta, como Freud demonstrava na Traumdeutung, nada jamais está perdido; se tudo é substituível, nada jamais está desaparecido; nada jamais está suficientemente morto; a relação da presença à ausência é, em si, um imenso sistema da “morte”; tecido esburacado do real, fantasmatização do presente. Em último caso, uma pequeníssima quantidade de presença podendo substituir, valer por uma existência, a vida no real concreto pode recuar até o vazio. Olímpia não é inanimada. Desse modo, se avança, no domínio da vida, a potência estranha da morte, como a Unheimliche na Heimliche, como o vazio preenche a falta.

Antes da invasão da morte (que o analista, “o homem da ciência no fim de sua própria vida”, não pode dominar pela teoria, mas que ele desorganiza por uma estratégia complexa, um movimento de esquivas e de pontas), Freud evoca o quadro da defesa tradicional: as “respostas” dos homens à morte são todas da ordem da Fundação, das instituições ideológicas, religião, política. Evolução do animismo primitivo à ordem moral.

Novamente um nó de exemplos: então, a tecelagem de referências nunca terá fim? Freud procede por justificativas e adições: mais um, é o último, mais um instante, isso não basta. Desses acréscimos incessantes emana uma angústia direta; o texto não quer se desvencilhar; a demonstração se inquieta, se fortalece, se duplica em camadas; desse modo, rápido, outra vez um nó: o lançador de mau olhado, mais a epilepsia, mais a loucura, mais a Idade Média e a demonologia, mais o diabolismo da pessoa (Mefisto) e a paciente difícil, e por aí vai; “membros cortados, uma cabeça decepada, pés que dançam sozinhos”: mais um exemplo, ao mesmo tempo, a metáfora dessa grande reunião em que os membros formam um conjunto sempre desmembrado, cada um conservando uma atividade independente. Acúmulo. Mas, no fim, a figura de um corpo de exemplos emerge, mas sem se “mostrar”, figura de figuras; corpo que retorna à sua deslocação. É esse “corpo” que Freud “coroa” (pela coroa, apelo por uma cabeça que não está lá) com uma ideia surpreendentemente inquietante: a fantasia do enterrado vivo: sua cabeça (ausente) textual, reintroduzida no corpo materno, volúpia horrível. Assim a Unheimliche que entra de novo na Heimliche, a cabeça primeiro, nascendo ao avesso.

Liebe ist Heimweh: o amor é a saudade de casa, diz a sabedoria popular. Heimweh: mal du pays [saudade de casa], formulação sempre atravessada pela interpretação que lê remorso, desejo, por “mal”. Porém essa ideia de um mal é também o mal que lhe (fez) faz a casa, destinalmente. Que casa? Aquela de onde se vem, “a antiga pátria dos filhos da humanidade”. Aquela de onde se vem jamais sendo senão aquela para onde se retorna. Você está no caminho do retorno, que passa pela casa dos filhos, o corpo materno. Você já passou por aqui: você reconhece a paisagem. Você está desde sempre no caminho do retorno. Por que a paisagem materna, o heimisch, o familiar, se torna tão inquietante? A resposta está menos escondida do que pode parecer. O apagamento da separação; a realização do desejo, que em si apaga um limite; tudo o que, exercendo no real o movimento da vida, permite que se aproxime de um objetivo, sobretudo no fim de sua vida, tudo o que supera, abrevia, economiza, promove a satisfação; parece afirmar as forças da vida; tudo isso tem uma outra face virada para a morte, que é o desvio da vida. O efeito de abreviação que afirma a vida afirma a morte.

O fantasma do enterrado vivo figura a confusão da morte e da vida: morte na vida, vida na morte, não-vida na não-morte. E a castração? É o corte; é também o outro do enterrado vivo: um pouco de morte demais na vida; um pouco de vida demais na morte, no cruzamento fusional. Não há recurso a um dentro/fora. Você está sempre lá. Não há inversão, de um termo pelo outro. Daí o horror: você poderia estar morto vivo, você pode estar num estado duvidoso.

O próprio da perturbação do limite é essa mobilidade ameaçadora, esse arbitrário do deslocamento contra o qual o recalcamento se opõe. “O prefixo Un é a marca do recalcamento”, diz Freud. Acrescentemos: Toda a análise da Unheimliche é em si um Un, uma marca do recalcamento e a vibração perigosa da Heimliche. Unheimliche é somente a outra face da repetição da Heimliche; essa repetição é bifacial: o que surge e/é o que é repelido. Do mesmo modo como o texto que se impele e se repele até um desfecho arbitrário. (A Unheimliche é sem fim, mas é preciso realmente que o texto termine). E essa “conclusão” se lança novamente e se dá como recorrência e como reserva.

Haverá um desfecho para a hesitação teórica?

Se a análise oscilou, por seus apelos a exemplos, entre a “vida” e os “livros”, é porque há uma diferença entre a Unheimliche que se encontra e aquela que se imagina. É porque a todo momento se representa uma dobragem, uma “distinção importante” que só se percebe claramente na articulação literatura e vida: a dobragem do recalcado e do superado. A Unheimliche do Recalcado estaria ligada ao ressurgimento das pulsões infantis avivadas por uma dose de ameaça, de perigo: é um conteúdo de representações que é recalcado, ou seja, uma realidade psíquica, a realidade material não tendo poder sobre as representações (fantasias do corpo materno, complexo de castração).

O outro tipo de Unheimliche, o Superado, tem a mesma raiz primitiva que o Recalcado, depois bifurca: teríamos tido, em tempos antigos, um pensamento animista que teria se dissipado com a prova da realidade material. Superar não quer dizer expulsar: as novas convicções são às vezes ultrapassadas por um retorno das velhas crenças que um feito real, tamanha coincidência extraordinária, parece confirmar. Mas quando ela “volta”, nós a vemos ressurgir sem a angústia que dá o retorno da pulsão; e novamente a prova da realidade sempre a neutraliza.

Essa distinção reduplica uma outra distinção que a manifesta, mas atravessando-a: aquela que se faz entre vida e ficção, de maneira alguma separadas, mas trocadas.

O Superado poderá se tornar angustiante na ficção. Em contrapartida, a ficção pode anular o Recalcamento do conteúdo psíquico. A estranheza do recalcado, a estranheza do superado trocam suas operações e seus efeitos na troca entre vida e ficção (a tal ponto que Freud lembra da impossibilidade de distingui-las “claramente” na vida real). Seus limites se confundem. A distinção feita é, ela mesma, um produto da ficção.

Esse último desenvolvimento seria, contudo, bastante claro, se Freud não relançasse afinal a dúvida retroativamente, evocando-a nos pontos de onde ele parecia tê-la extraído. O corpo inteiro dos exemplos está estremecido. A dúvida também é duvidosa, jamais foi banida o suficiente. Ela jamais é certa o suficiente. Se a Unheimliche se encontra contestada, no real, pela influência dos fatos, ela pode ganhar em virtude inquietante, mas ela se faz mais rara. Na ficção, a Unheimliche, dispensada da prova de realidade, dispõe de recursos suplementares.

Por uma teoria da ficção: A ficção está ligada à economia da vida por um vínculo tão inegável e ambíguo quanto aquele que passa da Unheimliche à Heimliche: ela não é irreal, ela é a “realidade fictícia”, a vibração da realidade. A Unheimliche na ficção ultrapassa e compreende a Unheimliche da vida real. Mas se a ficção é uma outra forma da realidade, compreende-se que o segredo da Unheimliche não remete a um segredo mais profundo do que aquele da Unheimliche que envolve a Unheimliche. Como a morte ultrapassa a vida.

O que é na realidade a ficção? Questão que assombra os arredores do texto freudiano, mas que nele não entra. “O que é estranhamente inquietante na ficção, na imaginação, na poesia, merece de fato uma consideração à parte.” E mais adiante: “A ficção pode criar novas formas da sensação de Unheimliche que não existem na vida real”: a análise se volta agora para um outro objeto, aquele que ela atravessou sem parar e sem jamais esgotá-lo: a ficção. Não se trata aqui somente de examinar o enigma da Unheimliche, mas também o enigma da ficção enquanto tal, e da ficção em sua relação privilegiada com a Unheimliche. A ficção se (re)apresenta primeiro como uma Reserva da Unheimliche — seja como uma reserva ou uma suspensão da Unheimliche, por exemplo, no mundo dos Contos de Fadas onde o inacreditável nunca é inquietante, porque anulado pela convenção do gênero; a realidade ficcional é, portanto, ininterrupta. Multiplicação do efeito pela interrupção do contrato entre o autor e o leitor, procedimento “revoltante” da parte do autor, que nos deixa errar até o fim, sem defesa contra a Unheimliche. Isso só é possível se o Superado jamais for completamente superado. O impossível poderia então se representar como possível. (Distingamos aqui a ausência na realidade por impossibilidade, da ausência por morte). O impossível não é a morte; e a morte não é impossível. Para Freud, as variações do Superado só acentuam de fato a mistificação. Falsa morte. O verdadeiro segredo da ficção estaria em outro lugar.     

A ficção, pela invenção de novas formas de Unheimliche, é o demasiado estranho: se se representa a Unheimliche como uma forquilha cujos ramos apontam um para o estranho e o outro para o angustiante, vê-se, no extremo do estranho, a ficção apontar para o desconhecido: o novo novíssimo, pelo qual ela está ligada com a morte.

Reserva do Recalcado, a ficção é finalmente o que resiste à análise e, portanto, a atrai mais. O escritor sozinho (“sabe”), tem a “liberdade” de evocar ou de inibir a Unheimliche, em outras palavras de suscitar ou de recalcar o Recalcamento. Mas essa “liberdade” permanece inanalisável; outra forma da Unheimliche; aquela, única?, em que aquilo que “deveria ter permanecido escondido” não escapa à lei da representação, misteriosa para qualquer um que não seja ela mesma.

De onde nós estamos, leitores incansavelmente inquietos, não podemos nos impedir de pensar que Freud não tem muito o que invejar de Hoffmann pela “arte ou pela astúcia” de provocar o efeito de Unheimliche. Nem sempre, claro, é esse o caso. Se experimentamos esse incômodo ao ler o ensaio de Freud, é porque o autor é seu duplo num jogo indissociável à margem de seu próprio texto: ele está nele, ele se safa dele, a cada curva frasal. É por isso, e sobretudo, que a Unheimliche remete a nenhum segredo mais profundo do que ela mesma: toda procura produz sua própria anulação, todo texto em torno da morte é um texto morto que volta. O recalcamento da morte ou da castração escreve a morte (ou a castração) em todo lugar. Dizer a morte é morrer. Dizer a castração é ou, de fato, superá-la, (portanto anulá-la, castrá-la) ou, de fato, efetuá-la. “No fundo”, a aventura de Freud nesse texto é dedicada ao paradoxo mesmo da escrita que estende seus signos para “manifestar” o segredo que ela “contém” (conteúdo-retido), e que sempre (se-a) ultrapassa mortalmente. “Sobre a solidão, o silêncio, a escuridão ‘sempre lá desde a infância’ não podemos dizer nada”, salvo sua permanência, diz Freud. Do mesmo modo sobre a Unheimliche e seu duplo, a ficção, não podemos dizer nada; salvo isto: que ela não desaparece nunca inteiramente… que ela “re-apresenta” o que na solidão, no silêncio, na escuridão (não) nos será (jamais) apresentado: nem real, nem fictícia, a “ficção” secreção da morte, antecipação da não-representação, híbrida, corpo composto de linguagem e de silêncio que, no movimento que lhe dá corda, e que ela dá corda, boneca, inventa os duplos, e a morte.

REFERÊNCIAS

DERRIDA, Jacques (1970) “La double séance”. Tel quel, vol. 42, n. 43.

FERENCZI, Sándor (1916) Sex in Psychoanalysis. New York: Dover Publications, 1956.

FREUD, Sigmund (1919) “L’inquiétante Étrangeté” [“A Inquietante Estranheza”]. In: Essais de psychanalyse appliquée [Ensaios de psicanálJise aplicada]. Paris: Gallimard, 1971.


* Hélène Cixous nasceu em Orã, na Argélia, país do qual partiu em 1955 para seguir os estudos na França, onde vive até hoje. Ao longo da década de 1960, enquanto colaborava com iniciativas feministas e participava do movimento contestatório que culminaria em maio de 1968, desenvolveu seu doutorado acerca da obra de James Joyce. Ao lado de Jacques Derrida, participou da criação da Universidade de Vincennes (Paris 8), onde foi responsável, em 1974, pela fundação do que viria a se tornar o Centro de Estudos Femininos e de Estudos de Gênero. Escritora prolífica, tanto de ensaios quanto de teatro e ficção, recebeu prêmios importantes, como o Médicis (1969) e o Marguerite Duras (2014), tornando-se conhecida no Brasil especialmente por ter sido uma das grandes entusiastas e promotoras da obra de Clarice Lispector no continente europeu. Sempre em diálogo com a psicanálise, Cixous chegou a afirmar, numa matéria publicada em 26 de fevereiro de 1976 — dia da estreia da encenação de Retrato de Dora (Blucher, 2024) — que, enquanto autora, ela trabalha “o mais perto possível do inconsciente”, de modo que é “para essa outra cena” que se abre a sua escrita.

** Davi Andrade Pimentel é professor, pesquisador e tradutor. Atualmente, é Pós-doutorando Sênior, com bolsa de pesquisa fomentada pela Faperj, no Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pesquisa e traduz a obra ficcional da escritora Hélène Cixous. Publica regularmente artigos científicos sobre literatura francófona e sobre tradução, tais como: “Roubaram-lhes suas armas, por isso gritam: Ájax e Hélène Cixous” (Desenredo, 2024); “Questões de leitura e de tradução em Double Oubli de l’Orang-Outang, de Hélène Cixous” (Aletria, 2023); e “Traduzir o (in)traduzível idioma de Hélène Cixous” (Caligrama, 2023). Neste ano de 2024, pela editora Cultura e Barbárie, foi publicada a sua tradução do livro De Kafka a Kafka, de Maurice Blanchot. E está no prelo, também pela editora Cultura e Barbárie, a publicação de sua tradução da narrativa de Maurice Blanchot: Aminadab.

*** Flavia Trocoli é Professora de Teoria Literária na UFRJ, pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. Membro-fundador do Centro de Pesquisas Outrarte — a psicanálise entre a ciência e a arte. Autora dos livros A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno (2015) e Hélène Cixous — a sobrevivência da literatura (2024). Com Danielle Magalhães escreveu No avesso da genealogia: netas, avós l(2024). Traduziu com Carla Rodrigues Demorar: Maurice Blanchot, de Jacques Derrida (2015) e coordenou a tradução de A chegada da escrita, de Hélène Cixous (2024).



[1] Em 1974, uma segunda versão desse texto é publicada como capítulo no livro Prénoms de personne pela editora Seuil. (N. de T.)

[2] Na obra de Hélène Cixous, há uma tipografia própria, com a qual a escritora joga — numa espécie de performatividade encenada por seu idioma literário — tanto com o tema a ser apresentado, quanto com a própria estrutura da língua francesa. Há, portanto, um jogar, no sentido de brincar com a língua francesa, mas também de descentrar a língua francesa, o seu corpo gramatical enrijecido, fazendo com que, tal como uma boneca articulada, a língua faça movimentos muitas vezes inesperados, como o que ocorre neste texto em relação, sobretudo, à pontuação. Logo, por exemplo, haverá muitas intervenções dos “dois pontos”, que exigirá do leitor uma visão mais depurada do texto que está sendo lido, bem como associações que somente o leitor poderá contribuir ao texto. Como uma provação, podemos nos questionar o que ocuparia esse espaço deixado “vazio” por Cixous que antecede os “dois pontos” desta oração entre parênteses. Talvez o objeto de desejo não dito de Freud, ou por ele recalcado? Cabe a cada leitor, agora, interpretar o que Cixous nos apresenta. (N. de T.)

[3] FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté” [“A Inquietante Estranheza”]. In: Essais de psychanalyse appliquée [Ensaios de psicanálise aplicada]. Paris: Gallimard, 1971, pp. 163-210.

[4] Nas traduções brasileiras mais recentes do texto Das Unheimliche, de Freud, os tradutores optaram por traduzir a palavra-conceito Unheimliche freudiana por: o estranho, na tradução de Eudoro Augusto Macieira de Souza (Edição Standard, 1996); o inquietante, na tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras, 2010); o infamiliar, na tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares (Autêntica, 2019); e o incômodo, na tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr. (Blucher, 2021). Em todos, a tradução de Unheimliche segue um viés do masculino neutro, não marcado, como a se aproximar do artigo neutro alemão das que acompanha a palavra-conceito Unheimliche no título freudiano Das Unheimliche. Contudo, neste texto de Cixous, o caráter neutro de Unheimliche passa a ser declinado no feminino, como a sugerir um possível desvelamento do feminino no masculino do que a palavra Unheimliche, em Freud, vela, oculta ou recalca. Na leitura de Freud de O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann, segundo Cixous, a supressão da boneca Olímpia, logo, do feminino, é a marca de seu recalcamento. O feminino recalcado por Freud – o objeto de seu recalcamento. Desse modo, na perspectiva cixousiana, o Unheimliche freudiano não é da ordem do masculino, mas do feminino. Ou seja, o Unheimliche se desvela em a Unheimliche. Uma interessante interpretação sobre a Unheimliche freudiana se encontra na seção “Nota a Olímpia: ou a outra história de O Homem da areia”, em que Cixous questiona o modo como a boneca Olímpia entra no texto freudiano por meio de uma nota de rodapé. Ou seja, a sua presença se faz no debaixo do texto (como um objeto recalcado) e jamais na parte de cima do texto, do texto dito principal.  (N. de T.)

[5] Cf. FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté”. In: Essais de psychanalyse appliquée. Paris: Gallimard, 1971, pp. 180-181.

[6] Para uma leitura mais aprofundada do conceito freudiano Verlockungsprämie (bônus da sedução), indicamos a leitura do artigo “Freud e a experiência da ficção”, de Bernardo Barros de Oliveira, publicado na revista O que nos faz pensar. Sítio do artigo: <oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/oqnfp/article/view/943>. (N. de T.)

[7] Das Unheimliche foi publicado na Imago, vol. 5, em 1919. Além do princípio do prazer, em maio de 1920, mas, segundo o próprio Freud, foi escrito em 1919. Cf. a relação de composição – publicação desses dois textos (inseparáveis) em forma de quiasma. Eles remetem um ao outro.

[8] Cf. DERRIDA, J. (1970) “La double séance”. Tel quel, vol. 42, n. 43, p. 38.

[9] Citado por Freud (p. 164), o estudo foi publicado em 1906. Relação singular de Freud com seu predecessor fascinante: lhe parecerá realmente, apesar de tudo, que a Unheimliche tenha qualquer coisa a ver com a intelectualidade. [Cf. JENTSCH, E. (1906) “Psicologia do incômodo”. In: FREUD, S. (1919) O incômodo. Trad. P. S. de Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2021 (N. de E.)]

[10] No original: “la procession des revenants”. Em português, o substantivo francês revenant tanto pode ser traduzido por retornante (o ser humano que retorna após um longo período desaparecido ou viajando) quanto pode ser traduzido por fantasma (o ser espectral que retorna dos mortos ou, como no caso deste texto cixousiano, que retorna de um lugar recalcado). Optamos, portanto, para seguir o fio do desenvolvimento do pensamento de Cixous, por traduzir revenant por fantasma. (N. de T.)

[11] Quando o conceito de Unheimliche for apresentado por Freud em forma de citação de outro autor, o Unheimliche virá no masculino-neutro conforme se apresenta nos textos dos autores citados. (N. de T.)

[12] Cf. FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté”. In: Essais de psychanalyse appliquée. Paris: Gallimard, 1971, pp. 165-175. O texto de Freud é escandido pelo motivo linguístico, ora desdobrado, ora dissimulado.

[13] FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté”. In: Essais de psychanalyse appliquée. Paris: Gallimard, 1971, pp. 180-181: “A conclusão do conto mostra bem que o óptico Coppola é realmente o advogado Coppelius e, consequentemente, também o homem da areia. — Não se trata mais aqui de uma questão de incerteza intelectual…”

[14] Em todo conto de Hoffmann, há sempre uma cena dupla (ver a Princesa Bambilla, Uma noite com Don Juan, Kreisleriana etc…)

[15] No original: “est à (dé-lire)”. Neste momento de seu texto, Cixous, ao seccionar o substantivo délire [delírio] em duas palavras, “dé” [des] e “lire” [ler], e logo depois uni-las por meio de um hífen, joga com a fantasmagoria de uma desleitura (do real, possivelmente) presente na constituição do corpo, e no sentido, da palavra francesa délire. (N. de T.)

[16] Cf. o capítulo X, “Symbolism”, em: FERENCZI, S. (1916) Sex in Psychoanalysis. New York: Dover Publications, 1956.

[17] FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté”. In: Essais de psychanalyse appliquée. Paris: Gallimard, 1971, p. 184.

[18] FREUD, S. “L’inquiétante Étrangeté”. In: Essais de psychanalyse appliquée. Paris: Gallimard, 1971, pp. 182-183, nota.

[19] Do russo, няня, “babá” (N. de E.).

[20] Herança transmitida por Goethe (Fausto I e II) do Puppenspiel medieval e voltada à cena, até o apagamento mesmo da noção de imaginário, por Kleist, por Hoffmann, entre filosofia e delírio ao ponto de encontro entre várias linguagens: a dos olhos, a da memória, a do corpo, a do enigma, a do silêncio (ver o eco gravado por Hans Bellmer).

[21] No original: “fabliaux”. Segundo Erich Auerbach, em Introdução aos estudos literários, o termo fabliaux é definido como: “contos humorísticos em verso, chamados, segundo o termo picardo, de fabliaux”. Em nossa contemporaneidade, esses contos humorísticos ganharam a forma de contos, ou narrativas, anedóticos.  AUERBACH, Erich (1949) Introdução aos estudos literários. Trad. J. P. Paes. São Paulo: CosacNaify, 2015, p. 193. (N. de T.)




COMO CITAR | CIXOUS, Hélène (1972) A ficção e suas fantasias: uma leitura da Unheimliche de Freud [Trad. D. A. Pimentel & F. Trocoli]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17, p. 1, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2024/11/18/n-17-01/>.