Uma rebelião contra a passividade

por Renata Conde

Em 1931 Freud publicava o artigo Sobre a sexualidade feminina[1]. O psicanalista investigou a mulher, o feminino e a sexualidade ao longo de toda a sua obra. Nos anos vinte lançou textos polêmicos que nutrem controvérsias até hoje. Na última década de sua vida[2], depara-se com novas questões despertadas pelo crescente número de mulheres analistas que passam a produzir cada vez mais. O artigo sobre o qual discorrerei nessas páginas é efeito da interlocução com as novas profissionais.

Pretendo apresentar o texto de Freud a partir de torções que o tempo nos permite realizar[3]. O núcleo de seu trabalho é a formulação da ideia de que haveria três saídas para a feminilidade: Inibição, Complexo de Masculinidade e “Feminilidade Normal” (aspas minhas — porque não consigo escrever sem estranhar). Quando diz “saída”, está se referindo à saída da menina do Complexo de Édipo em direção à feminilidade, ou ao tornar-se mulher.

Proponho ser possível ler essas saídas como concernentes a ambos os sexos, não apenas ao feminino, como respostas perante a percepção da diferença sexual. Nessa direção, faço uma releitura dessas três alternativas: Inibição, Complexo de Masculinidade (chamarei de Negação da Diferença) e “Feminilidade normal” (proporei como Amor).

Para chegar nessa elaboração, acompanho o caminho de Freud no texto selecionado para esta discussão. O que aborda como novidade nesse momento são as experiências pré-edípicas, em especial nas meninas. Retoma suas formulações anteriores, nas quais sustenta que o menino sai do Complexo de Édipo pelo Complexo de Castração e na menina se dá o oposto: ela entra no Complexo de Édipo pelo Complexo de Castração.

Aponta que, para ambos os sexos, o primeiro amor é a mãe. Sustenta ainda que “mãe” pode ser um conjunto de pessoas cuidadoras, entre as quais todas se organizam na ideia de mãe. Acredito ser possível ver nessa colocação uma abertura para o descolamento da mulher da função de cuidado.

Reconhece que a relação entre a menina e a mãe é de fundamental importância e de pouco conhecimento. Esse aspecto é valioso: a elevação dessa relação íntima e quase invisível à relevância psíquica não é algo que se possa ignorar.

Freud afirma que consegue entender o fenômeno no menino, que ele teme a castração e, por medo, abandona seu primeiro amor para, então, incorporar as figuras parentais. Mas, considera difícil entender como isso se daria na menina, posto que não haveria esse temor. Ele investiga a relação pré-edípica, apontando que ela é constituída por quatro itens: ciúmes, frustração, Complexo de Castração e ambivalência. Voltarei a eles.

Nessa fase pré-edípica, o psicanalista destaca que a diferença entre os sexos não seria pautada pelos genitais, posto que as zonas erógenas seriam as mesmas em ambos os sexos. Mas se verificaria a diferença entre as posições passiva e ativa. Diz que a atividade seria uma característica masculina e a passividade seria feminina. Isso porque ele nomeia que só há uma libido, e esta seria masculina. A libido seria algo identificado pela ação, pela atividade, justamente. Dentro de dois anos, Freud irá questionar se isso bastaria para identificar a libido como masculina (na Conferência sobre a Feminilidade, de 1933[4]), sublinhando que o mais importante seria a concepção de libido única, contra a noção de que haveria duas formas libidinais, importando menos se seria masculina ou feminina.

A atividade é um movimento de descoberta do mundo. Ela promove excitação, que, se não encontra destino, desenvolve-se enquanto raiva, que, por sua vez, se não endereçada, resulta em angústia. Ou seja, uma excitação que não se realiza enquanto ação sobre o mundo retorna enquanto angústia gerando frustração. Daí o efeito ser uma posição passiva. A passividade é uma atividade frustrada.

Freud discorre sobre a dinâmica atividade-passividade. Vale destacar:

As metas sexuais da menina diante da mãe são de natureza tanto ativa quanto passiva, e são determinadas pelas fases da libido que a criança atravessa. A relação entre atividade e passividade merece aqui nosso particular interesse. É fácil observar que em todo âmbito da vida psíquica, não apenas no da sexualidade, uma impressão recebida passivamente pela criança suscita a tendência a uma reação ativa. Ela procura fazer o mesmo que antes foi feito nela ou com ela. Isso é parte do trabalho de domínio do mundo exterior que é chamada a fazer, e pode mesmo levar a que se empenhe em repetir impressões que teria motivo para evitar, por seu conteúdo doloroso. Também a brincadeira infantil é posta a serviço desse propósito de complementar uma vivência passiva com uma ação ativa, como que anulando-a dessa maneira. […] É inegável que temos aí uma rebelião contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo.[5]

Freud atribui à atividade uma função constitutiva do humano[6], a criança age sobre o mundo como sente este agindo com e sobre ela. Há uma rebelião contra a passividade. Isto é, trata-se de um movimento enérgico, impulsionado com força e desejo. Freud expõe que isso se verifica “em todo âmbito da vida psíquica, não apenas no da sexualidade”[7]. Ilustrando a proposição do parágrafo citado, podemos pensar nas brincadeiras de escolinha, comuns entre as crianças, quando estas se colocam na posição ativa da professora, refazendo a cena que vivenciam na posição passiva de alunos. Também nas brincadeiras de fantasia, quando promovem falas como a imortalizada pelo poeta “agora eu era herói”[8], e criam mundos nos quais dentro deles são heróis, agentes[9].

Partindo desta centralidade sobre a atividade na vida humana, não é difícil observar a frustração na constituição feminina. A menina é impedida de explorar o mundo, é educada ao universo doméstico, tendo seus ímpetos ativos coibidos desde a mais tenra idade. A partir desse texto de Freud, podemos depreender que a posição passiva ser associada à feminilidade é efeito da frustração. O autor não escreve isso, mas nos brinda com observações que nos permite deduzi-lo. Talvez esse seja o ponto mais interessante do artigo.

Vale aqui traçar um diálogo com Simone de Beauvoir, que, em 1949, em O Segundo Sexo[10], aborda também a passividade. A escritora francesa escreve esta obra em dois tomos, sendo o primeiro Fatos e mitos e o segundo A experiência vivida. No volume I, aborda os discursos sobre a mulher, apontando graus de verdade e mentira que circulam. No seguinte, recupera minuciosamente a vivência da mulher desde o seu nascimento, dedicando um capítulo à infância, o qual é valioso para ser comparado com o que escreve Freud sobre a sexualidade infantil da menina.

De início, argumenta que a criança pequena tem repertório de vida para expressar algo aprendido, educado socialmente, e não inato.

Se bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é por que misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada.[11]

Na sequência, destaca a dimensão histórica, cultural e política do aspecto da passividade feminina:

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher “feminina” é um traço que se desenvolve desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A imensa possibilidade para o menino está em que sua maneira de existir para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo […]. Sem dúvida, experimenta-se também para outrem, põe em questão sua virilidade, do que decorrem em relação aos adultos e a outros colegas, muitos problemas. Porém, o mais importante é que não há oposição fundamental entre a preocupação dessa figura objetiva, que é a sua, e sua vontade de se afirmar em projetos concretos. É fazendo que ele se faz ser, num só movimento. Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu ‘ser-outro’; ensinam-lhe que para agradar, é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se enquanto sujeito; se a encorajassem nisso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia de um menino.[12]

Contrapondo a filósofa ao psicanalista, deparamo-nos com encontros e desencontros entre as obras. É interessante notar como Simone desmonta o argumento que faz uma referência imediata da menina à passividade. Sua contribuição enriquece nosso olhar para o texto de Freud, oferecendo-nos material para o estranhamento e a crítica. Vemos, com ela, que a passividade feminina é uma consequência da socialização da menina, e não um destino psicológico determinado sexualmente. Reencontramos a relação da posição passiva com uma frustração. A menina é frustrada em sua atividade, o que lhe empurra à passividade.

Disso decorre que a frustração é um dos elementos da relação amorosa entre menina e mãe. Além deste, Freud aponta outros três: ciúmes, Complexo de Castração e ambivalência. Os ciúmes são constantes, posto que a criança vê a mãe tendo outros amores para além dela (irmã(o)(s), pai, trabalho, entre outros) e isso faz desse amor permanentemente insatisfeito. A relação sexual com a mãe jamais se realiza (em uma relação saudável), mesmo que o sujeito a imagine como desdobramento dos cuidados desde a amamentação e a higiene íntima. A criança é excitada pela mãe através dessas manifestações de cuidado e amor conforme vai descobrindo seu corpo — e com isso, o prazer — e passa a reivindicar novas estimulações. A contradição aparece quando ela descobre o prazer fálico, já que é aí que encontra a interdição do incesto. Na amamentação e no desfralde, a criança suga o seio da mãe e recebe seu toque quando é limpada. Não percebe a proibição do erótico. A criança se excita com isso, mas não insere sua sensação nesse campo de representação, pois ainda não tem repertório para tal. É quando passa a se excitar falicamente que ela encontra a proibição, a princípio inesperada e incompreendida. Desse modo, fica insatisfeita e frustrada (mais uma vez). Como consequência disso, a relação com a mãe é sempre ambivalente. A mesma pessoa que a excita não lhe atende. Além disso, a mesma pessoa que lhe cuida, que ofereceu seu corpo para lhe gestar, entregando-lhe sua carne como nutriente, é a que delimita a separação dos corpos, proibindo o coito. Mais ainda, a mãe se ausenta. Não se faz presente o tempo todo. Cada vez mais. A entrada na fase fálica coincide com um ganho de autonomia da criança que autoriza uma maior independência entre mãe e filho(a) de modo que haja cada vez mais ausência da mãe. Portanto, esse amor é também ódio, frequentemente. Quando a criança demanda e a mãe não atende porque não quer, não pode ou não está, o amor torna-se ódio.

Desse amor vivo, paradoxal e intenso nasce a descoberta do mundo — não é coincidência que se chame Complexo de Édipo. O Complexo de Castração é efeito dessa pesquisa. A menina percebe a diferença anatômica entre os sexos, mas nota também algo além disso: a desigualdade de gênero. Freud não faz essa elaboração, mas penso ser necessário acrescentar essa leitura para que seja possível acessar esse texto nos dias de hoje. Mais uma vez, Simone de Beauvoir ilumina essa questão:

A sorte da menina é muito diferente. Nem mães, nem amas têm reverência e ternura por suas partes genitais; não chamam a atenção para esse órgão secreto do qual se vê o invólucro e não se deixa pegar; em certo sentido a menina não tem sexo. Não sente essa ausência como uma falha; seu corpo é evidentemente uma plenitude para ela, mas ela se acha situada no mundo de um modo diferente do menino e um conjunto de fatores pode transformar a seus olhos a diferença em inferioridade.[13]

Ao perceber a desigualdade, a menina se frustra (como de costume). Freud entende que nesse ponto a menina se perceberia castrada. Articulando com Beauvoir, penso que a menina percebe a desigualdade, mas não necessariamente a representa nesses termos. Sentir-se inferior é efeito da socialização que inferioriza as mulheres.

Desse ponto, do Complexo de Castração, Freud afirma que há uma passagem para o Complexo de Édipo, que seria também uma mudança de objeto amoroso. A menina deixaria de ter a mãe como objeto de amor, para privilegiar o pai, entrando assim no que o psicanalista original designou como como Complexo de Édipo. A transição de um complexo a outro viria, na teoria freudiana, porque “o primeiro amor tem que acabar” — é demasiado intenso, exaure o sujeito e acaba por desgastar-se (dimensão filogenética) — ou porque a menina sente raiva da mãe por não lhe ter proporcionado um pênis. Atualizando para os dias de hoje, pode-se pensar que a menina culpa a mãe porque esta seria responsável por sua situação subjugada ao homem (dimensão ontogenética).

A travessia edípica deixa marcas na criança. Nossa primeira desilusão amorosa é sofrida e constituinte. Freud destaca os afetos da frustração, raiva e amor como os preponderantes nessa experiência, que se sobressaem nas situações específicas. A depender de qual for o mais intenso, o resultado será delineado como uma posição subjetiva perante o mundo. Aqui retomo o apresentado na abertura do presente texto. Freud apresenta que haveria três saídas para a feminilidade: Inibição, Complexo de Masculinidade e Feminilidade Normal. Nesse momento, começo a breve exposição da minha releitura, onde proponho que tais saídas são válidas para ambos os gêneros, e poderiam ser nomeadas como: Inibição, Negação da Diferença e Amor.

No caso de uma frustração muito intensa, a tendência seria a abdicação da sexualidade, a Inibição. Já quando a raiva é o afeto mais enfático, nota-se o que Freud chama de Complexo de Masculinidade, o que, para o psicanalista original, seria a reivindicação por igualdade ou a anulação da diferença — que o autor considera a mesma coisa. Penso ser necessário problematizar esse aspecto, já bastante questionado. Vale diferenciar um movimento do outro. O autor praticamente considera que todo movimento feminista seria efeito do Complexo de Masculinidade. Aqui merece críticas e enfrentamentos. É necessário afirmar com clareza: Freud está errado ao considerar feminismo como inveja do pênis. Ainda assim, feitas essas ponderações, talvez valha escutar sua proposta de que um dos destinos para a saída da menina do Complexo de Édipo seria a tentativa de negar a diferença. Isso é valioso e contemporâneo, já que a tentativa de sermos todos fálicos acaba tendo como efeito a negação da alteridade. É uma proposta ideológica que aponta, como resposta para a diferença, que sejamos todos iguais: fortes, poderosos, ricos, homens, armados. A radicalização desse ideário é vista nos programas políticos extremistas, em geral conduzidos por lideranças masculinas. Reafirmo ser interessante estender essa possibilidade de destino para a percepção da diferença sexual não só para as meninas, como também para os meninos, como Negação da Diferença.

Por último, Freud afirma que haveria uma saída “normal”. É inevitável a colocação das aspas, já que normal é em si uma medida inconstante e, em geral, moralista. O normal é um conceito estatístico que pode ser preenchido por qualquer coisa. Na época de Freud, a saída normal para a feminilidade era o casamento e maternidade. É tão profundo o enraizamento desse desejo nas mulheres ocidentais que podemos dizer que este é, ainda hoje, o destino mais comum para este gênero. Na Modernidade, esses propósitos ganharam o verniz do amor. Acredito ser adequado ler que o Amor é uma das saídas para a feminilidade até os dias atuais.

Freud diz que seria um contorno para a reivindicação fálica, já que o casamento seria a possibilidade de viver o coito, de modo a proporcionar a posse do pênis através da penetração na relação sexual, que poderia ter como resultado a gravidez. Esta, sim, seria a posição fálica da mulher, para quem ter um bebê seria uma forma de portar o falo. Pensando falo como poder — o que Freud não faz, diga-se de passagem —, é justo verificar que, por milênios, o casamento e a maternidade foram, de fato, as únicas situações em que a mulher foi valorizada, quando poderia experimentar o brilho eterno de um instante de poder.

Um exemplo ilustrativo se encontra na Ilíada[14], de Homero. Nessa epopeia há apenas uma fala de uma personagem mulher — há discursos de deusas, mas humanas, só uma, Briseida — troiana. E quando ela fala é para aceitar um pedido de casamento. Não um pedido qualquer, mas o pedido de Aquiles — grego, assassino de seu pai e irmão, o principal guerreiro invasor de sua comunidade, que foi destruída por suas mãos. Por que ela aceita se casar com ele? Porque não haveria nenhuma outra possibilidade para a sua existência que não fosse o casamento; ela simplesmente não é reconhecida como ser existente fora de uma relação conjugal. Yvonne Knibiehler, autora do livro História da virgindade[15], acrescenta que o cristianismo teria sido uma pedra fundamental na transição para a emancipação das mulheres, pois teria sido a primeira corrente do pensamento ocidental a apresentar uma alternativa de vida para a mulher fora do matrimônio: o convento. Para além de ser esposa, a mulher passou a poder ser freira. Essa foi a primeira alternativa socialmente reconhecida que uma mulher teve para não se casar.

Vemos, portanto, que esse destino edípico seria um destino social. Isso é coerente com a travessia do Édipo, que é justamente a entrada em sociedade através da primeira frustração amorosa vivenciada pelo sujeito.

Proponho tomar distância do casamento e observar essa saída como o endereçamento ao Amor. O amor como vicissitude seria justamente a possibilidade de fazer algo novo, de encontrar um outro alguém, de ter contato com a alteridade. É a ruptura com a família de origem, o asfaltamento para alcançar o mundo. Até hoje essa vivência é marcada pelos papeis sexuais. Hierarquizar a vida pelo amor é uma orientação transmitida geracionalmente às mulheres. Aqui reencontramos a associação entre feminilidade e passividade. Etimologicamente, “paixão” vem do latim passione, que vem de passus, particípio passado de patī, que significa sofrer, suportar e ainda, passividade. Desse tronco também se ramificam as palavras “paciente” e “passivo”. Seria possível pensar que a posição subjetiva passiva, atribuída por Freud à feminilidade, se relacionaria com a saída “normal” para as mulheres ser “viver para o amor”?

Não é desprezível a afirmação do autor de que na trilha para tornar-se gente o sujeito luta contra a passividade, impõe-se sobre o mundo, como forma de reconhecer a sua própria existência. Vemos, com Freud e Beauvoir, o esmagamento feminino para enquadrar-se nesse destino. Mesmo a releitura que aponta como saída o Amor ainda sustenta marcas de um mundo pautado pelo assujeitamento de um sexo pelo outro. O Amor para além da desigualdade de gênero não se contém em um casal. Essa é ainda a cobertura moderna para o matrimônio como pilar da família, esta sendo o eixo da organização social e econômica de nossos tempos. Pensar como destino edípico o Amor para além do casal-família-romance parece ser uma forma de manter viva nossa intrínseca rebelião contra a passividade.

Os principais pontos já foram iluminados. Resta agora, algumas últimas considerações críticas.

O texto é da última década de vida de Freud. Reconheço que o autor se questionou sobre as mulheres e a feminilidade em todo período de sua produção teórica. Nesse texto, o psicanalista começa refletindo que o mundo mudou, que já não é mais o mesmo. Existem muitas mulheres sendo psicanalistas[16] e elas trazem novas visões sobre o mundo.

Tudo, no âmbito dessa primeira ligação com a mãe, pareceu-me bastante difícil de apreender analiticamente, bastante remoto, penumbroso, quase impossível de ser vivificado […]. Mas talvez esta impressão me viesse do fato de que as mulheres podiam se apegar, na análise comigo, à mesma ligação ao pai em que se haviam refugiado após a fase anterior em questão. Parece, de fato, que analistas mulheres como Jeanne Lampl-de Groot e Helene Deutsch, puderam perceber esse fato com maior facilidade e nitidez […].[17]

É notável ver que Freud aponta a possibilidade de fazer diferença qual o sexo do analista: importa se for homem ou mulher. Na atualidade esse debate é vívido e controverso, o que torna interessante vê-lo sendo tratado com naturalidade há quase cem anos. O psicanalista assume que pode haver efeitos na transferência que direcionem o material que virá a aparecer. Com isso, há formulações teóricas que podem escapar do olhar dos homens, de modo que somente mulheres conseguiriam desenvolvê-las. Freud identifica isso em relação as vivências pré-edípicas. Acredito ser coerente dizer que este é também um limite do autor, já que o bebê como enigma para os homens também é resultado de uma socialização sexista que considera a criação dos filhos trabalho exclusivo das mulheres.

Desse limite, encontro outros. No tópico II, Freud discorre sobre a sexualidade feminina a partir do fato de ter seu primeiro desejo sexual por um objeto amoroso do mesmo sexo, a mãe. Discorre sobre a bissexualidade da mulher, que atribui ser mais forte nesta do que no homem, pelo fato de ela possuir dois órgãos sexuais: o clítoris e a vagina, sendo o primeiro masculino e o outro feminino. Essa afirmação me parece muito engraçada. É semelhante à de Fliess, médico otorrinolaringologista, grande amigo e interlocutor central de Freud em sua primeira fase, quando diz que o nariz seria um órgão sexual e que pessoas com pouca capacidade de se localizar no espaço teriam uma tendência maior à bissexualidade, tal como os ambidestros. São pensamentos mágicos.

A magia é uma técnica que envolve a onipotência de pensamento, isto é, a ideia de que o pensamento é uma ação. É expressão de um modo de vida que se organiza pelo pensamento concreto, no qual as palavras são vividas como dobras materiais das coisas. Esse modo de pensar persiste em toda sociedade, com diferenças relevantes, deixando de ser predominante na Modernidade. No entanto, podemos vê-las em ideologias, ideias organizadas ao redor de desejos, que tomam como critério de verdade a vontade, e não a realidade. Concepções que partem de observações parciais generalizadas como universais.

Freud começa essa passagem dizendo: “Em primeiro lugar, é indiscutível que a bissexualidade – que afirmamos ser parte da constituição humana – aparece bem mais nitidamente na mulher do que no homem”[18]. Curiosa é sua certeza. Ele a sustenta com o argumento apresentado acima, de que a mulher teria dois órgãos sexuais, um masculino e um feminino; logo, ela seria bissexual por natureza. Continua sendo cômico, quando afirma que o clítoris é um órgão masculino, sendo exclusivo das mulheres. Admito que ele já disse em outro momento que masculino é sinônimo de atividade, mas não deixa de ter um caráter chistoso essa formulação.

Coloca como indiscutível aquilo que justamente ele logrou discutir: a sexualidade humana. Tendo sido um dos seus maiores méritos a quebra de tabus, segue tomando a sexualidade feminina e a bissexualidade masculina como tabu.

A partir desse ponto indiscutível, toda a sua discussão torna-se uma dedução lógica baseada em preconceitos, com negligências à clínica. Ele quer responder à difícil pergunta sobre como uma menina abandona a mãe como objeto de desejo para passar a desejar o pai. Ele não tem acesso a esse material e constrói um raciocínio cheio de suposições. Isso fica visível pela escolha das palavras que utiliza no texto. Na passagem de um momento a outro, utiliza conjunções lógicas que, ao mesmo tempo, são prescritivas: “O essencial do que sucede no âmbito da genitalidade, na infância da mulher, deve ocorrer no clítoris”[19].

Também para a mulher a mãe tem de ser o primeiro objeto: as condições primordiais da escolha de objeto são as mesmas para todas as crianças. Mas no final do desenvolvimento, o homem – pai – deve se tornar o novo objeto de amor, ou seja, à mudança no sexo da mulher tem de corresponder uma mudança no sexo do objeto.[20]

O indiscutível deságua no imperativo do feminino. Nas entrelinhas, nas palavras agarradas entre os dentes, flagramos limites de Freud. O feminino deve ser o que um homem quer que uma mulher seja. Para Virgínia Woolf[21], os homens querem que as mulheres sejam espelhos mágicos, nos quais eles possam se olhar e ver-se em tamanho duplicado. Como disse nosso mesmo Freud, autorizando-me a roubar suas palavras e lançá-las fora de contexto, produzindo saque e colagem, não mais uma citação: “É inegável que temos aí uma rebelião”[22]. Trata-se de um elogio à psicanálise, possível pela rebeldia.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. (1949) O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

FREUD, Sigmund (1931). “A Feminilidade” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 273-293.

FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 371-398.

HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002-2003. 2v.

IANNINI, Gilson (2018). Freud e a emancipação das mulheres. Revista Cult, São Paulo, ano 21, no. 238, pp. 23-25, setembro 2018.

KNIBIEHKER, Yvonne. História da Virgindade (2002). Trad. Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2016.

MACHADO, José Pedro. Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. 3v.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Bia Nunes de Souza. São Paulo: Editora Tordesilhas, 2014.


* Renata Conde é psicanalista e escritora, graduada em psicologia pelo IP-USP. Mestranda pela Letras/FFLCH-USP, na linha de pesquisa Laboratórios de Criação. Autora dos livros de contos Sol a Pino (Editora Caravana, 2022) e O dia em que a noite chegou mais cedo (Editora Libertinagem, 2023); e organizadora do livro de ensaios Misoginia e Psicanálise (Editora Larvatus Prodeo, 2022). E-mail: <renatadelimaconde@gmail.com>.



[1] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 371-398.

[2] Freud morre em 1939.

[3] Esse texto é fruto de anos de estudos feitos em conjunto com o Grupo de Estudos e Trabalho em Psicanálise e Feminismo. Meus agradecimentos às demais integrantes do grupo: Helena Canto Gusso, Julia Fatio Vasconcelos, Manuela Crissiuma, Mariana Angelini, Melina Rosa Cavalcante e Paula Grimberj Rojas.

[4] “Há apenas uma libido, que é posta a serviço tanto da função sexual masculina como da feminina. A ela mesma não podemos atribuir um sexo; se, seguindo a equiparação convencional de atividade e masculinidade, quisermos denominá-la “masculina”, não podemos esquecer que ela também representa impulsos com metas passivas”. FREUD, Sigmund (1931). “A Feminilidade” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 273-293.

[5] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 387 (grifos meus).

[6] Há uma inegável associação com a noção de trabalho em Marx, cuja obra era majoritariamente desconhecida do psicanalista.

[7] O que fornece mais elementos para a construção de uma ponte entre Freud e Marx. Infelizmente isso não será desenvolvido aqui.

[8] HOLLANDA, Francisco (Chico) Buarque (1993), João e Maria. In: Perfil. Polygram.

[9] Uma digressão: o tempo verbal de “agora eu era herói” é o mesmo tempo verbal dos sonhos “eu estava na minha casa, mas ela não era a minha casa.” Estava. Era. Pretérito imperfeito (o que poderia ter sido, mas não foi, o que eu queria que tivesse acontecido, o que eu desejava, sonhava): o tempo da imaginação, dos sonhos e das brincadeiras.

[10] BEAUVOIR, Simone de. (1949) O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

[11] BEAUVOIR, Simone de. (1949) O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, pp: 12.

[12] BEAUVOIR, Simone de. (1949) O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016; p. 21.

[13] BEAUVOIR, Simone de. (1949) O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, pp: 13.

[14] HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002-2003. 2v.

[15] KNIBIEHKER, Yvonne. História da Virgindade (2002). Trad. Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2016.

[16] Segundo Gilson Iannini, “ainda por volta de 1920, o movimento psicanalítico seria fortemente marcado pela presença de mulheres psicanalistas, fato bastante incomum em outras profissões liberais àquela altura. Conforme notam Lisa Appignanesi e John Forrester em As mulheres de Freud (2001), o percentual de mulheres na profissão de psicanalistas supera inequivocamente o de qualquer outra. Na década de 1940, cerca de 40% dos analistas ingleses eram mulheres; e o restante do movimento psicanalítico internacional alcançou 30% na década de 1930. Na Europa, uma média de 27% dos analistas eram mulheres, ao passo que nos Estados Unidos, onde um diploma de medicina era necessário, ainda assim, o percentual médio era de expressivos 17%. Pode parecer pouco. Mas esses dados brutos precisam ser colocados em perspectiva: comparativamente, o percentual de mulheres na medicina variava entre 4% e 7%, e no direito, entre 1% e 5%, no mesmo período.” IANNINI, Gilson (2018). Freud e a emancipação das mulheres. Revista Cult, São Paulo, ano 21, no. 238, pp. 24-25, setembro 2018.

[17] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 374.

[18] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 376, grifo meu.

[19] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 376, grifo meu.

[20] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 377, grifo meu.

[21] WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Bia Nunes de Souza. São Paulo: Editora Tordesilhas, 2014.

[22] FREUD, Sigmund (1931). “Sobre a sexualidade feminina” [Trad. Paulo César de Souza]. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp: 387 (grifos meus).




COMO CITAR ESTE ARTIGO | CONDE, Renata (2025) Uma rebelião contra a passividade. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17 p. 2, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2025/01/22/n-17-02/>.