por Hélio Pellegrino
Transcrição e Comentário | por Caroline Perrota Oliveira
Nota introdutória ao texto “Clínica Social de Psicanálise: uma experiência pioneira de Hélio Pellegrino”
Caroline Perrota Oliveira
Em um fim de tarde de domingo, Hélio Pellegrino, psicanalista, escritor e poeta, estava na casa de Katrin Kemper, sua ex-analista, que se tornou sua amiga. Eles conversavam sobre a perseguição nazista que Willem Reich sofreu, quando surgiu o tema da Policlínica de Berlim, a primeira clínica pública de Psicanálise na Europa. Ambos tinham conhecimento de que por lá os psicanalistas atendiam pacientes que não podiam pagar um tratamento psicanalítico privado. Num tom provocativo, Hélio perguntou à colega: “por que não faríamos, aqui, um atendimento às pessoas de baixa renda, como forma de ascese política, num sujo tempo de fechamento e repressão?”[1] (Pellegrino, MFN-09145, [1970], p. 1). Ao final dessa conversa, nasceu a Clínica Social de Psicanálise.
Hélio propôs que fosse organizado um banco de horas psicanalíticas em que cada analista deveria doar duas horas semanais à Clínica Social de Psicanálise. Estimulada pela ideia, Katrin Kemper imediatamente se mobilizou juntando o grupo fundador. A partir daí, cerca de 20 analistas patrocinaram essa instituição, que se instalou, em 1973, na Rua Toneleros, localizada no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Segundo Pellegrino, nas três primeiras semanas, a Clínica recebeu mais de 700 inscrições.
O manuscrito original “Clínica Social de Psicanálise: uma experiência pioneira” [2] está inserido no acervo histórico de Hélio Pellegrino, organizado por sua neta, Antonia Pellegrino, e se encontra na Fundação Casa Rui Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro. O ensaio manuscrito contém 55 folhas e um anexo, também manuscrito, em forma de fichamento. Seu código de identificação no acervo da referida Fundação é MFN-09442. Observa-se que não possui data, porém, seu conteúdo demonstra que, provavelmente, foi escrito alguns anos depois de iniciado o trabalho da Clínica Social, possivelmente à época em que Hélio apresentou a Clínica Social numa mesa redonda na PUC-Rio em 1980. Importante mencionar que foi o discurso de Pellegrino, nesta ocasião, que ocasionou a sua expulsão e a do psicanalista Eduardo Mascarenhas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), instituição da qual eram membros.
Castro (2021), ao fazer uma análise detalhada na produção literária de Pellegrino, ressaltando a produção psicanalítica, concluiu que há poucos trabalhos publicados do autor. Segundo sua pesquisa, no acervo sediado na Casa Rui Barbosa existem 899 registros documentais e, dentre esses, há cerca de 200 escritos sobre psicanálise. Supõe-se que, devido ao fato de a maior parte dos trabalhos psicanalíticos do fundador da Clínica Social não estarem publicados, ele é um autor pouco estudado no meio psicanalítico. Daí a importância da publicação deste manuscrito.
Optou-se por transcrevê-lo na forma como foi escrito originalmente. Não foram realizadas as correções gramaticais correspondentes às mudanças na gramática da língua portuguesa da época para as regras gramaticais atuais. Os parágrafos foram mantidos, assim como as divisões do texto feitas pelo autor. No entanto, as linhas foram reformuladas de acordo com a paragrafação da escrita digital.
O documento é inédito e se trata de um ensaio em que Pellegrino justifica a importância do trabalho da Clínica na cena social brasileira e a sua importância para a psicanálise, fazendo uma dura crítica ao elitismo das instituições psicanalíticas. Nele, encontram-se os cinco argumentos principais que sustentaram o projeto: a injustiça da distribuição de renda no país; o compromisso social da psicanálise frente a essa realidade a partir dos próprios princípios psicanalíticos; a crítica ao apoliticismo do establishment psicanalítico – ao qual Hélio referia ser uma forma de fazer política; a crítica à posição conservadora e antidemocrática das sociedades psicanalíticas ligadas à Internacional Psychoanalytical Association (IPA); e a importância, para a psicanálise, de uma instituição desvinculada dessas sociedades, como a Clínica Social de Psicanálise.
Hélio defendia que os psicanalistas, ao basearem a sua prática em consultórios privados, no atendimento apenas a pessoas que podiam pagar (e, em geral, pagar uma quantia significativa), eram cúmplices do privilégio que mantinha o status quo das Sociedades Psicanalíticas, visto que ao cobrar determinado preço, o analista estaria selecionando um público privilegiado, que viria a pagar pelo seu próprio privilégio. Dessa forma, dizia que existe uma relação direta entre o preço cobrado com a metapsicologia freudiana, pois estava consciente de que a psicanálise é um tratamento eficaz, fazendo frente ao sofrimento humano, e, por isso, defendia que ela precisava estar acessível a todos que precisassem e desejassem esse tratamento. Num país que enfrentava uma grande desigualdade social de longa data e muitos problemas no campo político e social – dentre eles, estar vivenciando uma ditadura –, Hélio estava consciente de que a psicanálise tinha um compromisso social a cumprir.
A Clínica Social de Psicanálise foi, então, organizada de forma a não estar ligada a nenhuma instituição psicanalítica e se tornou um ponto de resistência contra o conservadorismo e o elitismo marcante das sociedades psicanalíticas. Respondendo ao apoliticismo que tanto criticava, Hélio fez a política da psicanálise por meio de sua prática como psicanalista, incentivando outros analistas a também o fazerem, visto que compreendia que não se tratava de um compromisso individual e muito menos uma prática de caridade, mas sim de um compromisso que tinha relação com a teoria e prática da psicanálise.
E isso reverberou positivamente no trabalho dos psicanalistas que passaram a cobrar, nos atendimentos realizados pela Clínica Social de Psicanálise, um preço simbólico, bem abaixo do aplicado em consultórios particulares. Abriu-se, assim, um espaço para discussões sobre questões de cunho político e social na psicanálise. Por isso, o trabalho da clínica levantou indignação dentro do establishment psicanalítico, justamente por oferecer o serviço a um baixo preço, o que, para alguns, seria uma injúria à psicanálise. Os psicanalistas que trabalharam na clínica foram acusados de demagogia e de um mau uso do nome da psicanálise.
Pellegrino, no entanto, considerava que psicanálise, embora se tratasse de um tratamento individual, é também um acontecimento social dentro do momento histórico em que se insere. Dessa forma, ele questionava a atuação dos psicanalistas na realidade em que estão inseridos: “ao cobrar uma quantia determinada pelos meus serviços de psicanalista, ponho meu saber e minha competência a serviço de uma determinada camada da população. Nesta medida, pratico um ato político” (Pellegrino, 2004, p. 166). Mais à frente, ele continua:
Na minha prática clínica, não estou, portanto, a fazer somente ciência. Também discrimino, também excluo, também construo uma prática social, de acordo com as hierarquias, divisões, exclusões, crueldades e violências da sociedade ao qual pertenço. Se, em meu consultório de analista, não entra nenhum operário, esta ausência define um fato social da mais alta importância. Se, em virtude do preço que cobro, excluo dos benefícios da psicanálise a imensa maioria da população do país – e do mundo, de resto -, este ato implacável de exclusão é constitutivo do espaço e do tempo que estruturam o meu trabalho (Pellegrino, 2004, p. 167).
A Clínica Social de Psicanálise funcionou como uma “instituição de vanguarda”, nas palavras de Hélio. Além de ter ofertado atendimento a muitas pessoas que não conseguiriam tratamento de outro modo, tornou-se um espaço de discussão sobre a teoria e a prática da psicanálise. Crítico ferrenho da excessiva institucionalização da psicanálise, capitaneada pela IPA, Hélio trabalhou para que a Clínica se tornasse um “fórum de debates intersocietário”, onde psicanalistas e outros profissionais poderiam discutir suas experiências livremente. Após sua morte em 1988, a Clínica continuou funcionando até 1991, quando se desfez por causa de dificuldades, inclusive financeiras.
A Clínica, foi, de fato, uma iniciativa pioneira na psicanálise brasileira e pode-se afirmar que foi fruto de um ato político na esteira das Clínicas Públicas que surgiram na Europa no período entreguerras. Assim como elas proporcionaram uma difusão importante da psicanálise às classes menos privilegiadas, a Clínica Social de Psicanálise também exerceu um importante papel de resistência e transmissão do saber psicanalítico no Brasil, durante a ditadura militar e após ela, de forma que é de extrema importância transmitir essa história!
REFERÊNCIAS:
CASTRO, Larissa Leão de. A coragem de Hélio Pellegrino de romper o silêncio na psicanálise: implicações teóricas, éticas e políticas. 2021. 231f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2021.
PELLEGRINO, Hélio. Elitismo e psicanálise. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Hélio Pellegrino, Doc: MFN-09145, [1970].
PELLEGRINO, Hélio. Clínica Social de Psicanálise: uma experiência pioneira. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Hélio Pellegrino, Doc: MFN-09442, [1980].
PELLEGRINO, Hélio. Lucidez embriagada. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004.
Transcrição do ensaio manuscrito “Clínica Social de Psicanálise: uma
experiência pioneira” de Hélio Pellegrino
1) Empreendimento pioneiro. Pretende atingir o pobre: renda suficientemente baixa para que não possa, ao preço do mercado, pensar em tratamento.
Pretensão ambiciosa: A clamorosa injustiça da distribuição de renda:
- 85% ganha entre 1/2 e 2 salários mínimos.
- 8% ganha de 2 a 5 salários.
- 7% ganha mais de 5 salários.
Para a Clínica, os últimos serão os primeiros. O preço da hora analítica é o ponto de ataque da Clínica.
2) O cliente paga o que pode, para manter a Clínica.
O terapeuta não ganha: Banco de horas. Critério de restituição social. Somos privilegiados, à custa do pobre. Na divisão do bolo, cabe-nos conspícua fatia, em detrimento de muitos, que vão ter fatia pífia.
Nesta medida, é justo que devolvamos um pouco do muito que recebemos, privilegiadamente.
3) Todos esses problemas parece não terem a ver com a psicanálise. O que tem a ver a ciência psicanalítica com o preço que cobro? O que tem a ver a metapsicologia freudiana, ou a tópica freudiana, com o preço que cobro?
Tudo a ver. Duas realidades heterogêneas, a um primeiro exame, mas comunicantes e mutuamente constituintes, através de mediações dialéticas.
O preço que cobro constitui o piso da minha tópica prática, do lugar onde trabalho.
A linha de partilha: só entra quem paga o meu preço. Isto não é psicanálise. É economia política.
O que é o preço? Uma determinação do mercado. Há as leis do mercado. Oferta, procura, etc. O mercado entra em meu consultório e estrutura o meu espaço de trabalho. O leão de chácara.
Isto significa: o sistema entra – o mercado é o fulcro do sistema – em meu consultório. Eu me acumplicio com ele através do preço. O preço consagra meu time: eu e meu cliente, de produtores, passamos a ser representados pelos nossos produtos: mercadoria x mercadoria.
Há um pacto selado. Somos semelhantes, do mesmo clube. Somos cupinchas. Nos alienamos nos nossos produtos: eles se trocam, se põem de acordo, social e politicamente, sem que nós, como pessoas, sequer devamos ter consciência disto.
Nossa prática, portanto, está fundada num ato político. Não há como escapar disto. Ela se funda num ato político e implica uma definição política. Por outro lado, nossa prática implica, inevitavelmente, nossa teoria, nossa ciência, a psicanálise.
4) Este ato político, esta determinação política, não aparecem. Um cliente que paga o meu preço está de acordo comigo. Não há conflito e, portanto, não há dialética nem tomada de consciência da dimensão política nesse vínculo. A dimensão política fica em silêncio, num aparente campo apolítico. Há um pacto social, que não é dito, nem assumido como tal. (Alienação)
Por outro lado, no trabalho analítico, essa dimensão política jamais irá aparecer como tal. Esta é uma decorrência fatal da própria natureza do trabalho psicanalítico.
Em nosso consultório, criamos artificialmente uma concha acústica para a escuta do desejo inconsciente. Criamos uma cena para que nela se produzam os efeitos do inconsciente, audíveis e interpretáveis. Este projeto implica, necessariamente, que na situação analítica a realidade, em qualquer de seus aspectos, seja neutralizada enquanto realidade e convertida em significantes das linhas de força do campo do desejo.
Por isto, a prática analítica, a cura analítica, não pode ter caráter político. Não posso doutrinar ou discutir temas objetivamente políticos, enquanto terapeuta. A única política admissível, numa análise, é, metaforicamente falando, a política libidinal.
O apoliticismo radical da terapia analítica é, entretanto, um fato específico, circunscrito, decorrente de uma experiência técnica do trabalho que se realiza.
O apoliticismo da cura psicanalítica, consequente do fato de colocarmos a realidade entre parênteses, é uma exigência da técnica psicanalítica, é uma criação artificial dessa técnica, tanto quanto é o setting psicanalítico.
É preciso atentar para isto. O fato de eu interpretar, na sessão analítica, qualquer material que surja em função das linhas de força do campo do desejo, não significa que eu esteja negando, redutivamente, a especificidade desse material. Se um paciente me fala mal do general Figueiredo, ou da ditadura militar, procurarei interpretar o material em termos transferenciais, segundo a estrutura do complexo paterno. Isto não significa, entretanto, que a candidatura Figueiredo, ou a ditadura militar, inexistem como realidades políticas plenamente reais.
Se neutralizo no tempo da terapia essa realidade política, nem por isto posso desconhecê-la ou negá-la em sua plena e autonoma realidade.
A realidade política existe e dentro dela me movo, inevitavelmente. Se, fora da hora analítica, tento continuar a negá-la, como se todo tempo fosse tempo de terapia, passo aí a fazer uma manobra de neutralização política da realidade que é indevida, ideológica e, mais do que tudo, política. Um apoliticismo decorrente da ampliação do modelo terapêutico, de modo a generalizá-lo para toda e qualquer situação, corresponde a uma solene definição política, a favor do sistema e da manutenção do status quo.
Há todo interesse em não denunciar o privilégio de classe que paga o nosso privilégio. Para isto, é de máxima conveniência, para a preservação de nosso privilégio, que a psicanálise seja apolítica.
O apoliticismo da hora analítica é circunstancial, e técnico, específico. Ele decorre de uma construção artificial, que não é legítima senão dentro do consultório, durante a sessão de análise.
Se generalizo o modelo terapêutico de neutralidade, buscando fazer dela a forma de inserção da psicanálise no conjunto da cultura, deixo de servir à ciência psicanalítica para fazer política – e política reacionária, de subserviência ao sistema. Tudo é suporte. Mas nem por isto perde sua realidade.
5) É esta, infelizmente, a posição majoritária, dentro do establishment psicanalítico. A instituição psicanalítica faz política – e política reacionária – através de um apoliticismo que nega à ciência psicanalítica as dimensões libertárias, progressistas e socialistas que lhe são constitutivas. [Encolhimento = apoliticismo.][3]
O apoliticismo da hora psicanalítica não pode ser generalizado. Ao contrário, deve ser estritamente limitado, circunscrito. E, para evitar-se uma indébita generalização apoliticista do âmbito terapêutico da psicanálise, é preciso devolver, com ênfase, com entusiasmo, com espírito combativo, suas inerentes e libertárias dimensões políticas que existem no cerne da doutrina psicanalítica.
Tomemos, por exemplo[4], a teoria da libido. Ela postula um processo em várias etapas. O desejo, partindo de uma etapa auto-erótica, passa por uma etapa intermediária narcísica, homo-erótica, para chegar, na fase genital, à etapa alo-erótica. O desejo maduro tende para o Outro, deseja-o na sua essência alteritária. A essência alteritária do Outro é sua liberdade, sua autonomia de pessoa.
Pelo meu desejo, abro-me carnalmente à liberdade do Outro, amo esta liberdade que é a essência de sua alteridade. O Outro, no esplendor de sua liberdade, me funda em minha mesmidade (ou ipseidade). Daí decorre que o meu desejo do Outro me compromete com sua liberdade. Ao desejá-la, ao lutar por ela, fundo-me como ser livre.
O desejo sexual genital, maduro, me faz desejar a liberdade do Outro e me engaja na luta por ela. O desejo deseja, não uma liberdade animista, formal, abstrata, mas uma liberdade concreta e carnal.
Ao assumir a Lei do Pai e a castração simbólica que inscreve em mim uma falta, um vazio, abro-me ao rosto do Outro e torno-me capaz de amá-lo em sua libérrima existência. Quebro os espelhos de Narciso, transcendo a dialética do senhor e do escravo, e faço do Outro o meu companheiro, o meu camarada, o meu próximo.
Esse projeto é, em seu fundamento, socialista. O capitalismo, instaurando a dominação de classe e a exploração do homem pelo homem, barra e perturba o pleno florescimento da sexualidade genital.
A verdadeira e carnal igualdade só é possível através de uma autêntica democracia do trabalho, isto é, de um regime socialista libertário – não libertino.
Outro ponto em que a psicanálise revela seu caráter revolucionário: no mito que a funda, expresso em Totem e Tabu. A derrubada do pai autoritário e despótico, na horda primitiva, representa uma visão do surgimento da cultura através de um ato revolucionário. O privilégio do pai foi derrubado e, em seu lugar, surgiu uma lei que transcende a todos, inclusive o pai.
Este, antes acima da Lei, tornou-se portador e prisioneiro dela, juntamente com todos os membros da horda.
O assassinato do pai primitivo, na concepção freudiana, marca o advento da cultura e a instauração do primeiro germe do Estado de Direito, baseado na igualdade de todos.
Os aspectos libertários da ciência psicanalítica caem, disfarçadamente, em olvido. O establishment psicanalítico recalcou-os. E sobre este recalque erige-se uma postura ideológica apoliticista, por detrás da qual não é difícil detectar todo um compromisso político com o privilégio, com a dominação de classe, com o capitalismo. Para que o privilégio do psicanalista seja mantido, é preciso manter intocável o privilégio daqueles que pagam aquele privilégio. Para tanto, o modelo terapêutico, apolítico, é extremamente conveniente.
Com isto, entretanto, entretanto, perde a psicanálise, enquanto ciência, em vários de seus aspectos vitais. Particularizando o argumento anterior: onde está, para a instituição psicanalítica, o pensamento de Reich? Suas pesquisas sociológicas? Políticas? Seus achados e descobertas plenos de interesse? Foram deixados de lado, minuciosamente, pelo establishment psicanalítico. Reich foi recalcado, através de um maciço contraventamento, que torna maciça a resistência contra ele.
No entanto, a contribuição de Reich é decisiva. Ele mostrou as articulações da sexualidade e da política e, portanto, da psicanálise – ciência da sexualidade – e da política.
Não há dominação de classe que se instaura sem a criação de uma caractereologia pronta a capitular frente à autoridade. Não há dominação de classe que se implante sem a ajuda da repressão sexual.
Esta repressão – principalmente da sexualidade genital – provoca uma estagnação da energia libidinosa e, em consequência, sua corrupção e perversão.
Esta energia sexual corrompida e pervertida é que será utilizada como pena para a confecção das camisas de força caractereológicas que irão vestir as massas.
Cada um monta, a serviço do sistema, em seu mundo interno, uma operação Bandeirante, repressiva e opressiva, que tolhe a sexualidade, a liberdade e a criatividade de cada um. A pessoa, como ser social, em função dessa camisa de força ideológica, passa a agir contra os seus próprios interesses. É o caso, exaustivamente estudado por Reich, da posição das massas, na Itália e na Alemanha, com respeito ao fascismo e ao nazismo.
É o caso, entre nós, da ideologia anti-comunista, viés ideológico atrás do qual se ocultam os interesses mais espúrios e antipopulares das classes dominantes, nacionais e internacionais.
O fascismo tem horror à diferença. O racismo. O anticomunismo.
O fascismo promove o irracionalismo e a perda do pensamento dialético. Maniqueísmo. Leve e perverso. O anti-comunismo.
6) O acumpliciamento com as classes dominantes, na defesa de seus – e de nossos – privilégios, terá uma série de consequências na nossa atividade clínica e na forma pela qual viveremos nossa responsabilidade social.
- a) A clínica psicanalítica, de consultório, nos fecha nos aliena, nos isola. Através dela conseguimos, sem dúvida, uma inserção social privilegiante. Conquistamos status, pecúnia, prestígio. Isto, entretanto, à custa da nossa marginalização com respeito aos grandes problemas das grandes massas.
Em nosso consultório nos exaurimos em holocausto a nós mesmos e a um punhado de privilegiados que nos podem pagar. A neurose, para nós, é fruto e expressão de uma história individual. Perdemos, na clínica privada, o estímulo para pensar a doença mental em termos de seu poder de denúncia do sistema social iníquo em que vivemos.
Toda sociedade tem os loucos que merece. A violência do sistema capitalista na medida que promove a diáspora dos seres humanos, transformando-os em ilhas isoladas e inimigas, em permanente guerra de competição para a destituição do concorrente, constitui sem qualquer dúvida fonte de neurose.
Uma profilaxia radical desta implicaria uma mudança do sistema social. Isto, entretanto, é o que não dizemos, embora isto constitui para nós uma verdade científica.
Por outro lado, mesmo sem colocar o problema nesse grau de coerência e consequência, nossa clínica privada nos afasta das grandes tarefas profiláticas junto aos pais, aos educadores, aos líderes dos vários grupos sociais.
Nós deveríamos ser porta vozes da racionalidade, da tolerância democrática, dos direitos da criança e da juventude a uma sexualidade livre e sadia.
Isto, entretanto, não ocorre porque nos falta tempo. E esta falta de tempo, por sua vez, é consequência e expressão de nossa postura individualista e burguesa com respeito ao nosso trabalho.
Trabalhamos para nós, em nosso proveito, em proveito de uma ínfima minoria, sem levantarmos os olhos para os grandes problemas que aflige a comunidade, no terreno dos distúrbios emocionais.
Somos herdeiros de uma das mais ousadas revoluções científicas da história humana e, apesar disto, demos-lhe um tratamento doméstico, de fundo de quintal. O apoliticismo da psicanálise, sua privatização radical, sua transformação em especialidade médica, a dessexualização de sua doutrina constituem tantos aspectos de uma mesma empreitada fazer à psicanálise barba e bigode, despotencializá-la, despojá-la, de seu empuxo revolucionário, normalizá-la, recuperá-la.
O espaço da psicanálise é totalmente ocupado, para nós, por nossa atividade clínica, de consultório. É daí que advém nosso privilégio e é aí que nos concentramos para garanti-lo e ampliá-lo. Isto faz com que percamos uma visão social da doença mental, seu poder de denúncia, a partir do qual se coloca a necessidade – no plano mesmo da profilaxia da doença mental – de uma mudança do sistema social.
- b) Somos muito sensíveis aos apelos privatistas dos clientes que vão ao nosso consultório. Do ponto de vista pecuniário, a psicanálise de grupo favorece tanto ao cliente quanto ao analista.
Do ponto de vista terapêutico, pode-se defender a tese de que os casos indicados para a análise individual também o são para a análise de grupo. A psicanálise de grupo não é uma terapia para pobres. Ela é legitimamente uma terapia psicanalítica.
Acontece, entretanto, que o paciente rico, que tem status social privilegiado, não aceita, via de regra, a psicanálise de grupo, por considerá-la eivada de plebeismo e por não querer abrir mão, no plano da terapia, da sua ideologia privatista. Não nos esqueçamos que a propriedade privada é o fulcro do sistema. É a partir da supervalorização dela que o paciente exige tratamento individual, em que o cuidado do analista passa a ser propriedade privada sua.
Me pergunto se esta não seria uma das raízes estruturais pelas quais a psicanálise de grupo ainda não ganhou um estatuto teórico à altura de sua importância social.
- c) O problema do tempo de duração das análises. Elas duram muito. Duram demais. Duram um tempo irrealistíco. Poder-se-á dizer que esta ampliação da duração da análise decorre do fato de que a técnica analítica se apurou e enriqueceu muito, de modo a permitir uma escuta tão profunda e minuciosa que exige longo tempo.
Mas, por outro lado, não nos esqueçamos que o inconsciente é acrômico, e intemporal, e que uma adesão nossa a esta característica dificulta a metabolização da cura analítica em termos de processo secundário.
O processo primário, regido pelo princípio do prazer, é intemporal. Já o processo secundário, regido pelo princípio da realidade, é temporal. O tempo é o horizonte no qual o ser faz sua aparição. O protótipo de toda angústia é a angústia de morte.
Uma análise que não leva em conta a sua própria duração corre o risco de transformar-se num conluio narcísico entre terapeuta e cliente, onde todas as dérmaches são intemporais, onde ambos driblam o problema da finitude, sem levar em conta que o tempo urge – ou ruge – como costuma brincar um cliente meu.
A desconsideração pelo problema do tempo é frequentemente facilitada pelo fato de que os clientes submetidos à análise são, via de regra, bastante ricos e, nesta medida, não tem dificuldade de pagar o tratamento, por tempo indeterminado, com os juros e a correção monetária de praxe.
Na medida que desconsideramos o tempo, desconsideramos a verdade, pois esta só se desvela – ou se revela – no horizonte da temporalidade.
- d) Imobilismo ritualístico. Todo campo de ação conservadora é imobilista. Este imobilismo facilita o desenvolvimento de procedimentos rotineiros. No caso da prática analítica, o imobilismo gera a rotina e mais: na medida que serve ao privilégio, terreno sagrado, gera uma tendência ritualística. Senão vejamos: no meu tempo de formação psicanalítica, e ainda hoje, costuma-se estabelecer o seguinte dogma: uma análise só é possível num ritmo mínimo de quatro horas por semana. Sem quatro horas mínimas, haverá psicoterapia, bate-papo, ou o que quer que seja – menos análise.
Há analistas que levam tão a sério esta exigência ritual que não aceitam trabalhar menos de quatro horas. Podem trabalhar com cinco horas, não com três ou duas horas.
Este parti-fei[5], elevado à categoria de ritual, não tem contudo nenhum apoio teórico sério. É perfeitamente possível trabalhar qualquer caso de neurose com três – ou duas – horas por semana. Acontece, porém, que este ritmo, mais modesto, não só contraria as exigências de uma tradição ritualizada, como também pode não corresponder aos interesses pecuniários do analista. Um cliente que pague bem, quatro horas por semana, pode interessar mais que um outro que só possa pagar três, duas – ou mesmo uma – horas.
O ritualismo das quatro horas, ao mesmo tempo que pode ter um reflexo direto do
interesse pecuniário do analista, pode também exprimir a sacralização ou a magicização do campo de trabalho analítico. Este, sendo o lugar onde, em nossa especialidade, se processo a estabulagem do bezerro de ouro, ganha por isto mesmo uma auréola de privilégio místico – mítico.
Nessa medida, aceitamos da tradição os seus ditames, sem discuti-los, pois estes são erigidos inconscientemente à categoria de procedimentos mágicos, próprios ao trato com as coisas sagradas (O nosso espaço de trabalho sendo imobilista, tende à rotina, e sendo o lugar de estabulagem do bezerro de ouro, tende ao ritual.).
Esse enrijecimento ritualístico-rotineiro da prática clínica impede qualquer experimentalismo fecundo e legítimo que vise a levar em conta, no contexto analítico, a realidade do paciente.
Há análises que podem ser feitas com êxito à base de duas – ou mesmo uma – horas por semana. Disto tenho prática, pequena mas eloquente. Cheguei a conduzir um processo analítico até a alta, plenamente satisfatório, trabalhando uma hora por semana.
Poder-se-á arguir que este é um caso excepcional. É possível que o seja. Mas até que ponto a excepcionalidade da experiência poderá vir a tornar-se menos enfática na medida que ousarmos realizá-la?
- e) Há aspectos de nossa prática que decorrem, fundamentalmente, de nossos interesses de analistas, embora se lhes queira atribuir justificativa teórico-técnica. É o caso, por exemplo, das férias dos pacientes. Não resta dúvida que é preferível o mínimo de interrupções no tratamento analítico. Nesta medida, é desejável que as férias dos pacientes possam coincidir com nossas próprias férias. Mas o paciente deve ter direito ao seu próprio período de férias, de acordo com suas conveniências, contanto que esse dado seja previamente definido, de modo a não poder ser usado intempestivamente, com fins de resistência.
Há contudo analistas que não pensam assim, e que partem do princípio de que uma discordância quanto ao período de férias significa necessariamente resistência, sendo desta forma avaliada no contexto analítico. Nesta linha de pensamento, os clientes são obrigados a tirar férias juntamente com seu analista, caso contrário perdem suas férias.
Admito que uma tal exigência possa ser feita, no contexto analítico, mas em nome dos interesses pecuniários do analista, e não em nome de quaisquer peculiaridades técnicas inerentes ao processo analítico.
A coincidência de férias é desejável, mas se torna um ato de poder ilegítimo se é imposta ao paciente em nome da terapia. Passa a ser um ato de poder, embora não ilegítimo, se é integrado ao setting analítico, em nome, não da técnica analítica, mas do interesse do terapeuta.
Sei do caso extremo de um analista que, não contente de cobrar de seus pacientes as férias por estes pleiteadas, também lhes cobrava suas próprias férias, sob o pretexto de que o pagamento mantinha vivo o investimento libidinal, tanto mais necessário em virtude da ausência do analista.
7) A prática psicanalítica, tal como é exercida, implica uma aliança com o privilégio social, com as classes dominantes da sociedade. Esta aliança, selada no espaço de cada consultório psicanalítico, se exprimirá através de um ativo apoliticismo ideológico, por cujo intermédio fica a ciência psicanalítica despojada de quaisquer dimensões críticas ou libertárias capazes de questionar o sistema.
O apoliticismo é a nossa forma de apoiar o sistema social com o qual nos acumpliciamos, no afã de garantir os privilegiados deste sistema, que custeiam nossos próprios privilégios.
Este apoliticismo, como vimos, repercute na nossa maneira de a envisager[6] a ciência psicanalítica, em nosso trabalho prático diário, e na própria estrutura da instituição psicanalítica: mais especificamente a API (Associação Psicanalítica Internacional).
- a) A instituição psicanalítica, em termos ideais, abstratos, tem como função zelar pela preservação da integridade da ciência psicanalítica, desautorizando e desmascarando distorções de infidelidades que a desfigurariam. Além do mais, a instituição psicanalítica tem como tarefa fundamental o controle da transmissão do saber e da prática da psicanálise, de tal forma que seu exercício obedeça aos postulados mínimos que definem a ciência criada por Freud.
Não resta dúvida de que tais atribuições são, por um lado, cumpridas pela API. O desempenho dela, entretanto, vai ser condicionado, limitado e moderado pela obrigação fundamental que tem a API, enquanto instituição, de preservar rigidamente os privilégios da corporação psicanalítica, decorrentes do seu acumpliciamento com as classes dominantes.
A API vai trabalhar sobre um privilégio já definido e garantido na prática psicanalítica. Ela lida com o puro privilégio e seu objetivo infraestrutural é institucionalizá-lo, consolidá-lo, ideologizá-lo, justificá-lo.
Para tanto, a API, sagra e consagra o apoliticismo da psicanálise, transformando-o na sua forma de fazer política. Esta prática política do apoliticismo adota a voz ativa e a voz passiva. A API é ativamente apolítica desde os seus velhos tempos, quando desaprovou as posições políticas de Wilhelm Reich, acabando por expulsá-lo de seus quadros. É ativamente apolítica quando condenou o grupo, em Roma, Plataforma Internacional, em 1961, e o grupo Plataforma argentina, no início da década de 1970.
É passivamente apolítica quando esvazia a ciência psicanalítica de suas dimensões libertárias e críticas, gerando um silêncio cúmplice a serviço do status quo.
É passivamente apolítica quando adota para a inserção social e cultural da psicanálise o modelo médico, fazendo dela uma técnica de recuperação normalizadora e adaptativa, segundo os interesses do sistema.
Se retiramos da psicanálise qualquer dimensão de crítica social, delimitamos nossa visão dos distúrbios mentais a puros critérios de classificação nosológica, aos quais se chega através do quadro sintomático e da história individual de cada um, decorrerá daí que o alvo da terapêutica psicanalítica passará a ser a normalização do paciente, isto é, sua conformidade passiva às deformações que lhe impõem o sistema. O paciente deixa de padecer de uma doença pessoal e intransferível para adquirir, curando-se, uma doença social, sistêmica, isto é, do sistema.
No Congresso de Viena, em 1971, Ana Freud queixou-se, com razão, da desconfiança dos jovens com relação à psicanálise, na medida que a viam como um instrumento do establishment social e político tendente a disseminar o conformismo, a docilidade, a submissão ao status quo.
- b) A tarefa de manutenção do privilégio por parte da instituição psicanalítica pode ser detectada na mentalidade monopolista-empresarial das sociedades ligadas à API. A causa psicanalítica – teoria e prática – é gerida segundo férreos critérios excludentes, na defesa de uma exclusividade que nada tem de científica. A psicanálise, transformada em preciso rótulo comercial, fonte ótima de poder e de pecúnia, passa a ser monopólio das Sociedades ligadas à API. Estas, dentro deste espírito paroquial, se negam a qualquer tipo de intercâmbio com quaisquer grupos que não pertençam à matriz internacional.
Durante anos e anos, pude assistir ao isolamento, através de implacável cordão sanitário, de grupos competentes e capazes, feitos pelas Sociedades integrantes da API, com objetivos puramente concurrenciais – ou anticoncurrenciais. Jamais se atribuiu, a quem quer que não pertencesse aos quadros da API, a menor confiabilidade, em matéria de ciência psicanalítica, de prática clínica e de transmissão de saber. Só agora, recentissimamente, a Clínica Social de Psicanálise, por estar desvinculada de qualquer grupo institucional e, portanto, a cavaleiro de querelas políticas, de desconfianças e disputas monopolistas, pôde reunir, num mesmo curso sobre psicanálise de grupo, expoentes de várias tendências e de diferentes instituições: Carneiro Leão, filósofo, Homus Vital Brasil, do IMP, Walderedo Ismael de Oliveira, da Associação Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Fábio Lacombe, Ernesto La Porta, Wilson Chebabi, da SPRJ, Giovanni Gangemi, do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e Gregório Beremblitt, do grupo Plataforma Internacional e argentino. Este é um fato novo e promissor, que pode ser creditado ao espírito ecumênico da Clínica.
Outro aspecto eloquente do espírito monopolístico-empresarial de muitas Sociedades, no Brasil, ligadas à Internacional, pode ser detectado através do ponto de vista, ferozmente defendido, de que só os médicos podem vir a tornar-se psicanalistas. No Rio, esta posição só agora começa a ser cautelosamente revista. Ela, evidentemente, nada tem a ver com qualquer preocupação de defender ou preservar a boa ciência ou a boa prática psicanalítica. Psicanálise não é especialidade médica. É uma ciência, de direito e de fato, para a qual a medicina tradicional não traz nenhuma contribuição. Ao contrário: a formação médica entre nós é predominantemente organicista e, nesta medida, interfere de maneira limitante na possibilidade de compreensão dos fenômenos mentais ao nível das articulações psíquicas.
A exigência de que o psicanalista seja médico, nada tendo a ver com a teoria ou a prática da psicanálise, encontra sua explicação no plano dos interesses monopolista-empresariais da instituição psicanalítica.
O diploma de curso médico em nada encurta, do ponto de vista do trabalho de aprendizado, a viagem daquele que pretende tornar-se psicanalista. Ao sair da Faculdade, o médico não está mais preparado para o exercício da psicanálise do que o psicólogo ou o cientista social.
A exigência curricular de diploma médico decorre de uma tentativa, até hoje coroada de êxito, em nosso País, e no Rio em particular, de influenciar o mercado de trabalho de tal modo que, diante de uma demanda crescente, a oferta fosse rigorosamente limitada e controlada. Se cresce a demanda e se encolhe a oferta, o valor da mercadoria sobe. Eis o objetivo, último e primeiro, da exigência de que o candidato a psicanalista seja médico. Este estado de coisas se manteve até a um ponto em que a força dos fatores dinâmicos do mercado estourou a arrogante e irrealista suposição, por parte da instituição psicanalítica, de que fosse capaz de controlar este mesmo mercado.
No Brasil, formam-se, por ano, cerca de 3.000 psicólogos, com o direito legal de exercer o ofício de psicoterapeutas. Ora, a psicanálise é a forma mais radical de psicoterapia. Os psicólogos clínicos teem todo o interesse de aprender a ciência psicanalítica e a prática da psicanálise. Eles o teem demonstrado e o demonstram, copiosamente. Os psicólogos buscam todos os meios para terem acesso à psicanálise, como ciência e como prática. Entretanto, teem encontrado, por parte da instituição psicanalítica – me refiro ao Rio de Janeiro – a mais espessa e opaca resistência.
Tal atitude é burra e reacionária, e acaba por prejudicar os interesses da psicanálise. Se o psicólogo não tem como fazer uma formação psicanalítica com o necessário e desejável rigor, ele barateará sua demanda, irá torná-la superficial, incompleta, ineficaz. Entrará despreparado no terreno da concorrência, competirá com o psicanalista sem ter pago, com este, o preço de uma formação rigorosa e minuciosa.
Na tentativa realística de controlar o mercado, feita pela instituição psicanalítica, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Rechaçar das Sociedades psicanalíticas o psicólogo buscou estruturar, na melhor das hipóteses, aquilo que os psicanalistas gravibundos chamam, com uma careta de nojo, a formação paralela. Na pior delas, o psicólogo passou a enfrentar sua vida profissional com a cara e com a coragem, em prejuízo dos clientes e, obviamente, dos psicanalistas, que nele passaram a ter um concorrente muito menos onerado, em termos de competência e formação.
Só agora, as Sociedades Psicanalíticas do Rio começam a despertar para o problema, dispondo-se a admitir, cautelosa e racionadamente, a formação de psicólogos. A medida, entretanto, vem com retardo, a reboque, por via inglória.
- c) A estrutura das Sociedades Psicanalíticas revela, com clareza, as funções conservadoras desempenhadas pela instituição psicanalítica. Esta, acumpliciada com o privilégio social, vai reproduzir nas sociedades que a compõem, a mesma estrutura de poder do sistema social com que se alia. A micro-sociedade, mais uma vez, reproduzirá a macro-sociedade. O compromisso da instituição psicanalítica com o sistema vai expressar-se na própria estrutura das sociedades psicanalíticas.
O sistema é elitista, privilegiante, anti-democrático. As Sociedades Psicanalíticas que encarnam a instituição da psicanálise, também terão uma estrutura elitista, privilegiante, anti-democrática.
As Sociedades Psicanalíticas são fortemente hierarquizadas, num sentido vertical.
Se organizam segundo uma forma de pirâmide. O poder se concentra no ápice da pirâmide e é exercido por uma elite de burocratas cujo privilégio é estatutariamente sacramentado.
A massa das sociedades – os candidatos em formação – não têm voz, nem vez, nem voto. Sua condição institucional é necessariamente passiva, submissa, minorizante. O candidato pode, a qualquer momento, ser desligado da formação a critério da Diretoria e da Comissão de Ensino, sem que lhe caiba qualquer possibilidade de recurso eficaz.
Por outro lado, o acesso do candidato ao título de membro associado, fica subordinado aos critérios subjetivos do didata e da Comissão de Ensino, mesmo após ter o candidato cumprido as exigências curriculares.
Se, ao término dos seminários teóricos, não for o candidato julgado apto, do ponto de vista de seu analista didata, para pleitear o título de membro associado, ficará ele sem esta possibilidade.
Por outro lado, o critério do analista didata quanto a um candidato é, em si mesmo, inefável, e transcende às tentativas que se possam fazer para capturá-lo segundo a letra da lei. Este critério, numa sociedade conservadora, apolítica, acumpliciada com o sistema, tende a ser adaptativo, imobilizante, contrário à criatividade e à originalidade. O candidato será tanto mais virtuoso e aprovável quanto mais se identificar aos padrões e valores da Sociedade Psicanalítica à qual se acha vinculado. Tudo isto cria o risco de uma seleção às avessas, em que as complacências da instituição venham a privilegiar o conformismo, a docilidade, a submissão e outros traços afins que, a meu ver, não são os mais indicados para definir a personalidade de um bom analista.
Mas, se tudo correr bem, o candidato a analista, depois de um longo calvário de muitos anos (análise didática, seminários, supervisões, etc.), conseguirá finalmente sua aprovação para membro associado. Nesta condição terá que permanecer, com voz mas sem voto, no mínimo por dois anos, até poder aspirar ao título de membro efetivo, pela apresentação de trabalhos clínicos e teóricos à Comissão de Ensino.
A ausência do direito de voto, no elenco de direitos do membro associado, é uma medida tendente a restringir o campo de exercício de poder, concentrando-o excludentemente nas mãos do menor número. Ela é, portanto, conservantista, reacionária, elitizante e reproduz no âmbito da instituição psicanalítica a tendência do sistema de concentrar o poder e o privilégio nas mãos de uma minoria.
O que se pode perceber, nas Sociedades Psicanalíticas, é uma estrutura de poder que faz do tempo de serviço um fator de mérito e de possibilidade de ascenção. Nas Sociedades Psicanalíticas, tanto quanto nas corporações militares, antiguidade é posto ou, pelo menos, é condição prévia para a postulação de postos.
O significado desse fato é, tanto no meio militar, quanto no psicanalítico, bastante óbvio. O tempo de serviço à instituição é uma garantia de obediência, de identidade de propósitos, de fidelidade institucional e política. Quem obedeceu, durante muito tempo, ascende aos postos de mando e, por ter obedecido, far-se-á obedecer. A estabilidade conservadora da instituição fica, assim, preservada. Só fará parte da burocracia dirigente quem tenha dado provas cabais de conformismo, de docilidade aos objetivos da instituição, dos quais o apoliticismo tem alto grau de prioridade.
-x-
O caráter vigilantentamente conservador da instituição psicanalítica pode ser detectado, plenamente, na maneira como é transmitido o saber psicanalítico, durante a formação.
No Brasil, cada Sociedade Psicanalítica tem seus didatas. São estes, representantes
autorizados da instituição, e só estes, que podem encarregar-se da análise didática do candidato. O didata tem, portanto, duplo voto ou dupla investidura. Ele é, por um lado, o analista que servirá de suporte aos fantasmas do seu candidato-paciente, através da transferência. Por outro lado, ele é o representante da instituição, aquele de cujo julgamento o analisando depende, para obter o título de membro associado.
O didata, portanto, além de seu papel de superego transferencial, acumula também o papel de superego institucional, com óbvios e inevitáveis prejuízos para a análise que empreende. A situação analítica torna-se contaminada, na medida que a neutralidade do analista é destruída pelo papel institucional que representa.
O didata, enquanto representante da instituição psicanalítica, desempenha na análise o papel de fiscal, censor, juiz, de cuja aprovação depende o futuro institucional do candidato. Este papel é um corpo estranho e prejudicial, no contexto analítico.
As sociedades, por outro lado, não abrem mão de seu corpo de didatas. Através deles o seu poder se exerce. Os candidatos são distribuídos pelos didatas segundo o interesse destes e a critério da instituição. A estrutura didática de nossas sociedades corresponde a razões políticas, de poder e de pecúnia, não a razões que digam respeito aos da ciência ou da prática psicanalítica.
O didata, tal como existe institucionalmente em nosso meio, pode ser comparado a um dono de cartório. Tem cargo vitalício. Tem clínica garantida. Em retribuição, faz o jogo das Sociedades, vigia, controla e, se necessário -, denuncia.
A análise didática, feita nesses moldes, com um didata imposto e que pertença à Sociedade na qual faz formação o candidato, é péssima escola de aprendizado. Ela será má análise, pois inclui em seu setting um dado perturbador e inassimilável, profundamente antididático: (o didata como fiscal e censor).
A análise didática, tal como estamos descrevendo, implica uma contradição (analista, fiscal) que se inscreve no processo de terapia através de um duplo movimento transferencial. Há a transferência feita para o analista, mais e mais centrada em torno do Édipo, destinada a promover a entrada do paciente candidato na ordem do simbólico, através da assunção que faz da verdade do seu desejo e do seu discurso de sujeito.
O trabalho de análise visa a expressar a identidade própria do candidato, apresentando-lhe a tarefa de pôr sobre os ombros o que o singulariza enquanto pessoa.
O Édipo é separação, discriminação diferenciadora, invenção de caminhos. O analisando, pela elaboração do Édipo, rompe as identificações imaginárias e especulares com o analista e conquista sua fisionomia própria. Ao assumir sua castração simbólica, torna-se sujeito de seu próprio desejo, capaz de estruturá-lo segundo a diferença, e toma consciência de seus limites e de sua finitude.
É esse o desdobramento da transferência psicanalítica. Ela visa à liberdade, à autonomia, à alteridade anti-narcísica.
O Édipo bem resolvido, sendo a lei do desejo, torna-se desejo de lei. Este desejo é inseparável de todos os fundamentais direitos aos quais aspira a pessoa humana, no seu processo de crescimento.
Ora, a transferência institucional, feita não para o analista, mas para o representante da instituição, contraria o legítimo e desejável modelo de transferência libertadora.
A instituição como tal, e enquanto tal, em virtude de seu caráter conservador, ideologicamente racionalizado, funciona como força de indiferenciação, e pede do candidato que este faça com ela uma relação especular, dual, narcísica, fundamentada na semelhança mais do que na diferença.
Essa transferência regressiva funciona como resistência à resolução do Édipo. Ela tende a transformar o analista num fantasma materno, cujo desejo passa a ser o desejo do paciente.
O analista, no seu papel de metáfora paterna é desqualificado, e o tratamento, nos seus aspectos terapêutico e didático sofre sempre prejuízo, ás vezes insanáveis.
8) A Clínica Social de Psicanálise ao fazer do preço da hora analítica seu ponto de ataque, e ao problematizar as questões que a esta questão se associam, constitui núcleo produtivo de tomada de consciência de contradições que, via de regra, permanece como sepultada num apoliticismo ideológico.
A Clínica, de saída, inquietou e indignou certos setores do establishment psicanalítico. Fomos acusados de injuriar a dignidade da tarefa analítica, atribuindo-lhe um degradante preço. Fomos acusados de demagogia, de agenciamento de clientes, de mau e vão uso do santo nome da psicanálise.
A Clínica, entretanto, vem resistindo. Ela abre para nós uma brecha de ar fresco, num espaço de trabalho que corre o risco do confinamento mais grave.
Estamos convencidos pelo trabalho da Clínica, que o futuro social da psicanálise reside na terapia de grupo. Caminharemos todos para lá, quando tivermos mais consciência crítica do caráter anti-social de nossa aliança com o privilégio.
A Clínica também nos ensinou a não temermos nossa criatividade. Dona Catarina Kemper, uma das fundadoras da Clínica, recentemente falecida, criou na clínica um originalíssimo Departamento Infantil, cujo trabalho só agora começa a ser avaliado em suas dimensões teóricas.
Os grupos lúdicos, compostos por crianças orientadas por dois monitores psicólogos, não são grupos terapêuticos. São grupos de criatividade, de expressividade. São grupos de permissividade, onde as intervenções interpretativas são mínimas e assistemáticas.
Os pais das crianças se reúnem com os psicanalistas do departamento Infantil de 15 em 15 dias, para discussão dos problemas dos filhos. Estes sabem que os pais veem à Clínica, e a eles é garantido que nada do que se passa nos grupos lúdicos é levado aos pais.
Verificou-se que as crianças estimulam os pais a comparecerem. Aprendem logo a utilidade, para elas, do comparecimento dos pais.
Por fim, quero dar ênfase ao espírito ecumênico que a Clínica pode encarnar. Fora das disputas de poder, sem nenhum compromisso com qualquer instituição psicanalítica, a Clínica tem ampla liberdade de movimentar e fecundar possibilidades criativas.
O curso sobre análise de grupo, patrocinado pela Clínica, representa um marco. Pela primeira vez no Rio de Janeiro, analistas de várias correntes se reúnem num mesmo curso para debater um tema comum, que diz respeito à teoria e à prática da psicanálise.
Por fim, uma citação de Freud, para que se confirme, uma vez mais, a velha verdade do Eclesiastes, de que não há nada de novo debaixo do sol.
* Hélio Pellegrino (1924–1988) foi um renomado psicanalista, médico, escritor e poeta brasileiro. Natural de Belo Horizonte, formou-se em Medicina e destacou-se tanto na Psicanálise quanto na vida política e intelectual do país. Ativista desde a juventude, lutou contra o Estado Novo e foi um dos fundadores da Esquerda Democrática e do Partido Socialista Brasileiro, além de integrar a direção do Partido dos Trabalhadores.
Ao longo de sua trajetória, publicou artigos em jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, abordando temas como Psicanálise, política, religião, arte, economia e literatura. Atuou ativamente na resistência à Ditadura Militar, denunciando a adaptação das instituições psicanalíticas ao regime. Em uma mesa de debates histórica, ficou conhecido pelo discurso “Os Barões da Psicanálise”, no qual criticou a hierarquia do poder psicanalítico.
Pellegrino viveu no Rio de Janeiro a partir da década de 1950, onde se consolidou como um dos grandes intelectuais de seu tempo. Seu legado é marcado pelo compromisso com a liberdade, a cidadania e a justiça social.
* Caroline Perrota Oliveira é psicanalista em formação contínua pela Escola Letra Freudiana. Especialista em Psicologia Jurídica pela PUC-Rio e Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida. Atua como psicanalista tanto em atendimentos privados quanto no campo de atendimentos em psicanálise fora do consultório tradicional desde o ano de 2015.
[1] O texto consta no acervo histórico de Hélio Pellegrino e não possui data, porém, pelo conteúdo, podemos considerar que foi escrito no início da década de 1970, em plena ditadura militar.
[2] A transcrição do manuscrito que se segue é fruto da pesquisa realizada por Caroline Perrota Oliveira e orientada pela Prof. Dra. Betty Bernardo Fuks no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade na Universidade Veiga de Almeida.
[3] Este trecho está escrito entre as duas últimas linhas deste parágrafo no manuscrito original.
[4] No manuscrito está escrito a forma abreviada “p. ex.”, escrita aqui por extenso para favorecer a estética do texto.
[5] Palavra escrita como está no manuscrito, sem significação detectada na língua portuguesa. Também não foram encontradas palavras correspondentes em outros idiomas.
[6] Não foram encontradas correspondências para esta palavra na língua portuguesa. Porém tal vocábulo existe na língua francesa e significa “considerar”.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | PELLEGRINO, Hélio. (2025) Clínica Social de Psicanálise: uma experiência pioneira. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17 p. 3, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2025/02/03/n-17-03/>.