por Carina Ferreira Guedes; Carolina Cardoso Tiussi; Felipe Evaristo Scatambulo; Fernanda Ghiringhello Sato; e Isabel Tatit
O tema dos sonhos surgiu de forma instigante em nossas despretensiosas primeiras conversas no cartel[1]. Por vezes, era tratado como assunto consagrado e até mesmo convencional dentro do discurso analítico (o que gerava certa resistência em estudá-lo, pois nos víamos lendo pela milésima vez A Interpretação dos Sonhos, O Sonho da Injeção de Irma, etc.). Em outras ocasiões, aparecia como um tema cheio de frescor no campo social, como desenvolveremos adiante, e também envolto em contradições nas nossas experiências clínicas. A importância dos sonhos nas análises dos integrantes do cartel é muito diversa: para alguns, fundamental; para outros, irrisória. Além disso, retomamos algumas experiências em supervisão nas quais pensar os sonhos pós Lacan era interrogá-los como via privilegiada de acesso ao inconsciente. Se o inconsciente está na ponta da língua, será que um relato de sonho é diferente de qualquer outra fala que se apresenta em análise? E, por fim, quando fomos convidados a participar desse espaço de discussão clínica, o sonho nunca havia sido proposto como assunto neste mesmo dispositivo ao longo dos mais de quatro anos de sua existência. Isso tudo vem confirmar o que já intuímos ou desejávamos: a certeza de que o tema que inaugurou a psicanálise pode ainda nos trazer questões e reflexões novas.
Temos discutido como é cada vez maior a quantidade de analisantes que se queixam da dificuldade para dormir, muitas vezes sendo esta a questão/sintoma inicial que os fazem nos procurar. Segundo pesquisa da Fiocruz[2], 72% dos brasileiros sofrem de doenças relacionadas ao sono. Há analisantes que se queixam de não conseguir dormir, abandonar-se, passar da vigília ao sono. Tem os que acordam no meio da noite e não adormecem mais; os de sono muito leve, cheio de interrupções e que já despertam cansados. Há outros que, quando dormem, seguem trabalhando em sonho, ticando listas de tarefas, como se não fizesse diferença estar dormindo ou acordado. Há, ainda, analisantes que não dormem, mas também nem chegam a formular isso como queixa ou questão, já que ter mais tempo acordado, lhes permite mais tempo produzindo.
Tudo isso nos faz pensar em quanto vivemos em tempos que não estimulam o sono, nem privilegiam o sonho. O sono visto como tempo improdutivo e perdido e, a produção onírica, como uma mensagem estranha e sem sentido, que não deve ser muito considerada e por vezes, quando lembrada, dada como algo místico, metafísico ou premonitório e repleta de significações genéricas e pré-determinadas.
Jonathan Crary[3], em seu ensaio 24/7 – Capitalismo Tardio e os fins do sono, fala sobre a disponibilidade contemporânea para consumir, trabalhar, compartilhar, responder, 24 horas por dia, 7 dias por semana. O autor faz um panorama sobre um mundo que põe à prova até mesmo a necessidade de repouso do ser humano. Critica, por exemplo, pesquisas financiadas pelo Departamento de Defesa dos EUA, para produção de drogas e outras tecnologias cujo objetivo inicial é tão somente a criação de um soldado que não durma. Segundo Crary, ao contrário das outras necessidades supostamente irredutíveis da vida humana, como a fome, a sede, o desejo sexual, que já foram transformadas em mercadoria, o sono ainda é uma necessidade humana, um intervalo de tempo que resiste à colonização e ao capitalismo.
Quem não dorme, não sonha. Há quem se medique para dormir, mas continua não sonhando.
Célia[4] adormecia e não conseguia manter o sono: sonhava e acordava angustiada de madrugada. Na análise se queixava da falta de sono e falava dos pedaços de sonho que a despertavam, da angústia e do susto que a acordava e não a deixava mais dormir. Não se lembrava bem do que sonhava, mas sabia que seus sonhos se referiam a sua irmã, hospitalizada em estado grave, e ao medo que tinha de que ela pudesse morrer, a angústia de não poder fazer nada. Após algumas semanas, Célia acabou procurando um psiquiatra. Na análise, trouxe uma outra questão: agora dormia a noite inteira, mas não sonhava mais. Estaria de fato dormindo? Ou estaria sedada, anestesiada? O que a medicação fez adormecer?
É comum os analisantes que dizem não sonhar. Mas que passam a se recordar e a contar seus sonhos depois de estimulados, por vezes com certa ênfase, como quando o analista pede: tente trazer um sonho para a próxima sessão. E acontece de o estranho “dever de casa” funcionar! Para espanto do analisante… e de nós mesmos. E há também os que, mesmo após os apelos do analista, continuam a não sonhar. Por anos e anos…
Como Roberto, que após o pedido do analista de que contasse seus sonhos, afirmou não sonhar por ter “afantasia”, uma suposta “incapacidade de formar imagens mentais” segundo sua explicação. Em mais de cinco anos de análise, relatou dois ou três sonhos feitos “apenas de sons”, algo como uma narrativa sonora, uma espécie de sonho-podcast.
Simone, nas entrevistas preliminares, dizia não ter problemas para dormir. Dormia bem e dormia muito, mas não sonhava ou, se sonhava, não se lembrava. Mas falando sobre sua vida, diz que sentia viver sonhando, sempre indiferente ao que se passava: nada parecia importar muito, nada parecia incomodar muito. Só um pouco, diz. Vive sonhando ou vive dormindo? A analista pergunta.
Advertidos das dificuldades de dormir e consequentemente de sonhar, nos perguntamos quais as implicações clínicas nas análises em que a via régia para o inconsciente está obstruída. Temos nos percebido, após o início do cartel, demandando mais relatos de sonhos dos pacientes e nos perguntamos se um sonho sob demanda teria o mesmo efeito analítico do que se aparecesse em meio à associação livre. No entanto, refletimos que a demanda de um relato de sonho, para além de uma tática do analista, participa também da política do dispositivo analítico para sustentar o lugar subversivo do sonho dentro e fora da análise, afirmando a importância do inconsciente como instância que fura lógicas hegemônicas, lógicas essas sustentadas pela economia política neoliberal, que trata pessoas como máquinas sonâmbulas, numa perspectiva individualista.
Nessa linha de raciocínio, nos últimos dez anos, surgiram algumas produções literárias que articulam crise social, sono e sonhos. Sidarta Ribeiro[5], em seu livro O Oráculo da Noite, mostra como os sonhos eram importantes em civilizações antigas e como nas culturas ameríndias as experiências oníricas são capazes de guiar povos inteiros. Diz o neurocientista que “o sonho lúcido tem potencial para ser o espaço mental que nos permitirá imaginar soluções para os problemas mais desafiadores (…) da epidemia de suicídio ao desmatamento acelerado das florestas que restam” (2019, p. 379). Crary também acredita que no século XXI, tal perturbação do sono produz uma relação problemática com o futuro, pois “talvez, a imaginação de um futuro sem capitalismo comece como um sonho”[6].
Em Sonhos no Terceiro Reich, Charlotte Beradt[7] recolhe uma série de sonhos que detectam o clima da época que antecede a guerra: as narrativas oníricas revelavam a sensação de vigilância excessiva do sistema totalitário e da perda de alegria. No Brasil, destacamos o livro Sonhos confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia (2021)[8], no qual diversos docentes de universidades públicas brasileiras reúnem narrativas oníricas relativas à nossa experiência social compartilhada, revelando a responsabilidade dos sonhos em nos ajudar a elaborar aquilo que escapa às representações, reforçando o caráter político e social dos sonhos e sua importância em tempos de crise. Temos também em curso o projeto Jacarandá: Sonhar em Rede[9], iniciado em 2023. Esse projeto estuda o impacto das mudanças extremas do clima na subjetividade, através de relatos de sonhos sobre eventos climáticos e ambientais. São pesquisas que apontam uma função social do sonho: para além de ser uma experiência íntima de cada sujeito, servem como um detector, um sismógrafo, do que abala e ameaça a ordem coletiva.
Em 2022 tivemos também o lançamento do livro O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami, de Hanna Limulja[10]. Esse livro é fruto de uma longa pesquisa antropológica de Hanna na comunidade Yanomami do Pya ú. Ela passou mais de um ano coletando sonhos relatados pelos indígenas e também observando a função do relato do sonho no dia a dia da aldeia. O sonho na cultura Yanomami, especialmente ao ser socializado, adquire funções práticas, desempenhando um papel político no dia a dia da comunidade, sendo ferramenta fundamental de resistência indígena. O interesse de Hanna não está nos significados que atribuem aos sonhos, mas no quê os Yanomami fazem com eles: do sonho deriva uma ação. Para os Yanomami, o sonho é um acontecimento.
Todos sonham, mas os xamãs são aqueles que dominam o sonhar, pois é através deste que viajam e se abrem para a alteridade, o desconhecido, o distante, e podem conhecer mundos onde nunca estiveram. Além disso, há uma concepção de que se aprende a sonhar e a contar os sonhos ao longo de uma vida. Partilhar os sonhos na comunidade é um indicador de passagem, da adolescência, para a vida adulta.
Os sonhos costumam ser relatados aos parentes logo ao acordar, de maneira espontânea. Podem ser sonhos corriqueiros ou sonhos que causam algum estranhamento. “Se o sonho representa alguma ameaça à pessoa, ela não sai de casa de jeito nenhum, para não dar chance ao infortúnio pressagiado”[11]. Entretanto, se o sonho tem relação com a comunidade (inimigos vistos ao redor da aldeia, ou outro tema relevante) ele é relatado no centro da casa coletiva e passa a ser de conhecimento de todos.
Um dos sonhos relatados por Hanna foi de um xamã que sonhou com seu sobrinho ricamente adornado. Semanas antes, esse rapaz havia sido levado em um voo para a Casai (Casa de Apoio à Saúde Indígena), em Boa Vista, tratar de uma grave infecção na perna. Quando o xamã conta esse sonho para todos, a mãe do rapaz fica muito preocupada, já que sonhar com pessoas adornadas não é bom presságio. Algo de ruim poderia estar acontecendo com ele. A mãe então vai até o posto de saúde e pede aos técnicos que entrem em contato em busca de notícias dele. Alguns dias depois, chega a informação de que o rapaz passava bem. O xamã, ao ser questionado sobre a veracidade do sonho, responde que há sonhos verdadeiros e falsos. Independentemente disso, o sonho cumpre um papel de mobilizar uma realidade que de outra forma permaneceria imutável.
Outro ponto que discutimos em nosso cartel diz respeito a quem produz o sonho, ou ao desejo dos outros, título do livro. Entre os Yanomami é comum o entendimento de que se eu sonho com uma pessoa que está distante é porque ela está com saudade de mim. A imagem da pessoa vem em sonho me encontrar, já que sente minha falta.
Olímpia acorda angustiada pois acaba de ver em sonho sua filha Marina, que mora numa comunidade há seis horas de caminhada. Quando conta seu sonho, esclarece que na verdade quem está sentindo saudade é a filha e por isso mesmo apareceu em seu sonho.
O entendimento dos sonhos entre os Yanomami produz uma inversão estranha para nós analistas. O sonho não é (uma propriedade particular) do sonhador, mas daquele ou daquilo que foi sonhado. E convoca o sonhador a tomar decisões, muitas vezes coletivas, sobre seu destino individual, bem como sobre o futuro da comunidade. Se para a psicanálise, o sonho é produzido pelo sujeito do inconsciente do sonhador, revelando sua posição desejante, a cultura Yanomami traz uma outra forma de lidar com os sonhos, pensada a partir de uma sociedade coletiva, em que cada membro é uma parte de um todo interligado, com diversas formas de comunicação, inclusive a onírica. O sonho aqui é sempre uma experiência de alteridade e, embora o coletivo e o público estejam em destaque, não exclui a posição de quem sonha.
Hanna traz a faixa de Moebius para pensar a relação de continuidade entre o dia e a noite, o sonho e a vigília: as experiências dos sonhos podem impactar a vida desperta e vice versa: tudo que ocorre de um lado da fita, ocorre do outro, revelando um único lado.
Aprender sobre a cultura Yanomami dos sonhos nos faz retomar a dimensão do Outro, campo da linguagem, da cultura, e portanto, do coletivo. Alerta-nos sobre uma certa clínica que interpreta mais pela via do sentido e da responsabilização individual, do que pelo efeito do mistério, de Outra Cena e de atuação na realidade pós sonho. Aponta-nos para a importância de não ficarmos em uma produção infinita de sentidos, mas pensarmos no que o sonho pode produzir em ato. Como me organizo levando em conta aquilo que não é meu eu? Sonhos requerem condutas e cuidados.
Essa leitura também nos ajuda a fazer um contraponto com a forma como os brancos lidam com o sonho. Muito frequentemente ignorando, tamponando ou relatando de forma confidencial para alguém próximo ou um analista. Segundo o xamã Yanomami Davi Kopenawa, os brancos não sabem sonhar, dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos.
Como bem sintetizou Ana Costa[12] em seu livro sobre os sonhos, na cultura ocidental, a intimidade ganha importância e as significações individuais dos sonhos ganham relevo em detrimento de uma ideia de destino e premonição. Crary endossa essa percepção, trazendo uma importante provocação a respeito da suposta privatização dos sonhos iniciada por Freud:
O truísmo amplamente aceito de que o sonho consiste na expressão confusa e disfarçada de um desejo reprimido é uma redução colossal da multiplicidade de experiências oníricas. A predisposição de boa parte da cultura ocidental em aceitar as linhas gerais dessa tese só evidencia o quanto a primazia do desejo e da necessidade de cada um penetrou e enformou a compreensão burguesa de si mesma no começo do século XX.[13]
A Interpretação dos Sonhos[14] é o texto que inaugura a psicanálise e que aponta o sonho como via régia para o inconsciente e o trabalho analítico como meio para desvendá-lo, chegar ao seu âmago, o “umbigo do sonho”. Embora haja perspectivas diferentes sobre como escutar o sonho, a sua importância é consenso entre as vertentes pós freudianas.
Freud produz uma revolução no entendimento sobre os sonhos, ao colocá-los como uma produção inconsciente que expressa e dá vazão aos desejos recalcados. Mas também temos nos perguntado se o sonho não é mais do que isso. Aprendemos com os Yanomami, por exemplo, outras possibilidades de olhar e tratar a produção onírica. E com isso nos questionamos se não houve uma excessiva privatização e sobredeterminação dos sonhos na cultura ocidental pelo discurso analítico. E em nossas clínicas? Estaríamos formatados demais a escutar nossos analisantes de um modo que limita e individualiza seus sonhos?
Deste percurso extraímos as questões de trabalho do cartel: A psicanálise colonizou os sonhos? Nossos manejos diante de uma elaboração secundária colonizam, ou não, o sonho, o sonhar e a própria análise? Qual psicanálise nos interessa quando escutamos um sonho nos dias de hoje?
Inicialmente, para Freud, a função do sonho é, fundamentalmente, a de ser um “guardião do sono”, sustentando assim o desejo de dormir. Lacan acha curioso, no entanto, que o próprio Freud indica que um sonho desperta justamente quando poderia revelar a verdade. Então, conclui o psicanalista francês: “de sorte que só acordamos para continuar sonhando”[15], o sonho da realidade. Lacan associa essa verdade ao que nos parece estranho, no sentido freudiano do Unheimliche, “ela está conosco, sem dúvida, mas sem que nos concirna a um ponto tal que admitamos dizê-lo”[16].
O sonho é um despertar para a verdade (inconsciente) e pode ser interrompido por diversas razões. Talvez seja importante alertar, desde já, que não defendemos uma experimentação da verdade inconsciente a qualquer custo. Nesse sentido, despertar para continuar dormindo muitas vezes pode ser desejável. É nessa linha que Lacan vai dizer que acordamos para continuar sonhando, para seguir dormindo na realidade. A vida de vigília é, na maior parte das vezes, regida pelo adormecimento da lógica do sentido, a mesma que envelopa a fantasia, ou seja, pelas ficções que construímos a partir de referências simbólicas e imaginárias para nos relacionarmos com os outros. O despertar é o breve momento em que trocamos de cortina, já que sonho e fantasia, apesar de suas diferenças, podem ter a mesma função de sustentar e satisfazer alucionatoriamente o desejo. No limite, não há despertar total, assim como uma desalienação total é contraindicada.
Poderíamos dizer que, grosso modo, espera-se que os sonhos se transformem ao longo de uma análise, no sentido de uma incidência menor do recalque? Isso tornaria os sonhos mais longos, adiando o momento de despertar? Uma paciente contou que havia dormido quatro horas a mais do que o costume, porque tivera um sonho muito importante, que precisava ser sonhado até o final. Essa foi sua sensação. Outros pacientes têm relatado os sonhos como episódios em série: “acho que o sonho dessa semana foi a continuação do sonho da semana anterior”. Como se a interpretação em análise produzisse um efeito de poder continuar ou contar de um outro jeito aquele “texto” anterior.
Carolina Koretzky[17], no livro O despertar: dormir, sonhar, acordar talvez, desenvolve essa perspectiva lacaniana em que o despertar é sempre evanescente, pontual e contingente: do despertar não se toca senão um ponto. Koretzky aborda algumas modalidades do despertar. O primeiro ligado ao lampejo, quando o sujeito se experimenta como sendo esse resto evanescente que falta ao significante. Há também o despertar articulado à demanda, ou seja, desperta-se quando a demanda é (ou está há um instante de ser) satisfeita. É quando ela cessa de se articular na cadeia significante, já que é a insatisfação da demanda que constitui e sustenta o objeto de desejo: “O despertar advém para salvaguardar o desejo ali onde ele corre o risco de ser esmagado pela satisfação da demanda” (p. 106).
Tal como no sonho de uma pré-adolescente, nas entrevistas preliminares, em que ela se vê entrando no ônibus escolar que a levaria ao tão esperado acampamento, vestindo sua roupa predileta, com todos os olhares para ela, estão conversando para saber quem sentaria do lado de quem. Ela caminha pelo corredor do ônibus e se senta, mas desperta antes de conseguir ver em qual lugar, sustentando assim – e apresentando à análise – sua questão sobre seu lugar diante do olhar do Outro.
A satisfação da demanda pode se manifestar como angústia presente nos pesadelos, quando o sujeito é colocado diante do enigma do desejo do Outro, sem a mediação de um jogo dialético. Percorrendo os desenvolvimentos de Lacan a partir da conceitualização do objeto a, a angústia presente nos pesadelos também pode ser entendida como a irrupção do objeto, em que o sujeito entrevê o objeto causa ao qual ele se reduz. A este instante do sujeito preso à cena de sua fantasia, a análise pode permitir ir mais além, ao reduzir tal montagem a uma resposta, uma versão, que sutura a cena traumática. Assim, entendemos que um dos efeitos da análise pode ser permitir que o sujeito sonhe um pouco mais, ultrapasse o ponto de angústia para poder ver mais além. No sonho anterior, mais além da demanda de amor, a pulsão foi descoberta: ser vista. Aí está o real em jogo na sua vida amorosa. Nesse sentido, a angústia de não saber quem estava ao seu lado no ônibus pouco importa, quando a questão do ver e ser vista passa a mobilizar e a articular uma nova cadeia significante em sua análise.
A partir da leitura e discussão do livro, começamos a prestar atenção e a intervir mais no ponto de interrupção ou final dos sonhos relatados: em que momento você acordou? Isso parece ter produzido alguns efeitos. Os analisantes começaram a ver um sonho interrompido como um enigma e, em alguns casos, sentiram o desejo de voltar ao sonho ou até de sonhar mais além.
Sonhei mais uma vez com os zumbis me perseguindo, aquele sonho lá, que normalmente acordo em pânico, ofegante, assustada. Mas, dessa vez, aconteceu algo curioso: quando eu acordava, queria voltar pro sonho, porque estava muito interessante, eu queria ver mais um pouco, era um cenário bonito, queria ver mais os detalhes cinematográficos daqueles zumbis. Mas, quando eu voltava a dormir, ficava perigoso de novo e aí eu acordava, mas bem menos assustada do que das outras vezes. Agora contando, fico em dúvida se cheguei a acordar mesmo, ou estava dormindo o tempo todo, oscilando em ficar assustada como sempre fiquei e também achar interessante e bonito todo aquele cenário ali.
Assim como a fantasia sutura a cena traumática, fixando o sujeito num lugar de objeto do gozo do Outro, o sonho que ultrapassa o ponto de angústia pode, muitas vezes, reficcionalizar uma outra posição, deslocando o sujeito da posição de objeto. O despertar de um pesadelo interrompe a descida ao horror, mas o sonho tem a capacidade de dar outras cores, formas, palavras para o horror. Esse é um tipo de sonho em que o litoral entre ficção e realidade, ou entre sonho e vigília, se torna explicitamente mais fluído. Nesse sentido, há uma função criativa do sonho que pode modificar algumas cadeias significantes, se considerarmos os despertares como cortes na cadeia. Pode haver efeito cômico, um alívio. No caso do sonho mencionado, o efeito do Belo transforma o horror de ser vista e perseguida, e assim, ela quer ver mais um pouco, como se tivesse percebido que pode fazer certo uso da fantasia que antes a tomava como puro objeto.
Enquanto o “umbigo do sonho” até um determinado momento do desenvolvimento teórico psicanalítico representou um muro, um limite da interpretação, o ponto inominável, indecifrável, impossível, etc, etc, as várias funções relativas ao despertar, descritas por Lacan e bem desenvolvidas por Koretzky deram um passo a mais, não em relação à verdade final de um sentido do sonho, mas em relação aos efeitos do real do sonho numa análise.
De fato, o despertar absoluto é impossível e, mais do que isso, indesejável, em muitos sentidos que o indesejável pode ter. Mais do que romantizar um despertar, uma ética de separação radical e encontro com o real, a importância da lógica do sonho do ponto de vista clínico e, portanto, ético, está na oportunidade de uma Outra cena produzir uma reficcionalização de uma sujeito a respeito de seu lugar no mundo. Trata-se de uma função inventiva. Podemos considerar os sonhos como um tipo de narrativa com grande potência de produção de algumas transformações e retificações subjetivas.
Jean Cayrol, poeta, romancista e editor, que foi detido em um campo de concentração, escreve sobre a importância dos sonhos para os prisioneiros como função de defesa contra a realidade, uma escapatória contra a desumanização[18]. Ele destaca o que chama de sonhos de redenção, sonhos nos quais as imagens prevalecem sobre as palavras e ofuscam o sonhador com belas cenas e cores vibrantes, proporcionando sensação de bem-estar ao acordar.
Esses sonhos oferecem uma verdadeira proteção ao sonhador diante da terrível realidade do campo: com a dimensão temporal e comemorativa ausente suspendendo tempo e espaço, há a possibilidade de um intervalo, de um suspiro desejante em resistência à barbárie e à falta de esperança.
Mas podemos pensar que em outros contextos, o sonho tem função de resistência contra a denegação da barbárie, funcionando como antídoto contra a inércia e o negacionismo. No cotidiano da clínica, escutamos os sinais de anestesiamento: pacientes que estão sempre cansados, exaustos, absorvidos/adormecidos pela rotina e cujas análises giram em torno do que aconteceu na semana.
Assim como Isaías, um brasileiro que vive em Israel. Ele tem sua sessão dias após a eclosão da guerra e o retorno dos bombardeios. Começa a sessão como se nada estivesse acontecendo, falando sobre os assuntos de sempre. A analista pergunta sobre a guerra, ao que ele responde que não era na sua cidade e que tudo estava funcionando normalmente. Conta em seguida, porém, um sonho, no qual estava no metrô, prestes a colidir com outro metrô, uma explosão inevitável da qual todos tentavam fugir desesperadamente, sem saber para onde correr. “Ufa!”, suspira aliviada a analista.
Um outro analisante que frequentemente usa suas sessões para repetir e repetir a expressão “tô nem aí, só quero sombra e água fresca” para descrever sua relação com o trabalho, família de origem e esposa, sonha que está em uma praia paradisíaca, apenas ele e a mulher. Ao olhar para trás, vê uma placa fincada na areia com a mensagem: “por favor, nos ajude, as crianças estão sem dinheiro para a escola, não temos dinheiro para o aluguel”. O casal tem a mesma idade que eles, mas com filhos. A analista pergunta se o sonho termina com a leitura da placa. Ele começa a rir ao perceber que o sonho termina quando ele reconhece a mulher do casal como a “Bloguerinha do fim do mundo”. Ele conclui: “a bloguerinha do fim do mundo com o marido, pedindo dinheiro e brincando com as crianças como se nada tivesse acontecido”.
A analista então pergunta: “e o que estava acontecendo?”. Ele faz uma associação com sua própria situação no trabalho: “Eu não me importo com as vendas da empresa, mas esta semana senti minha chefe ansiosa e isso me deixou aflito”. E continua: “Acho que encontrei uma maneira de não me preocupar tanto com a vida em geral quando decidi não ter filhos. Se eu for demitido, ou se a humanidade acabar, pelo menos não vou passar esses problemas para nenhum filho”.
A Blogueirinha do Fim do Mundo desmantela o cenário paradisíaco do “não tô nem aí” ou do “como se nada tivesse acontecendo”, revelando parte de sua angústia particular diante da possibilidade de repetir seu pai falido, que deixara uma dívida enorme para ele e sua irmã, mas também evidencia sua aflição com o clima “de fim do mundo” que permeia tanto sua empresa quanto a humanidade.
Em tempos de busca por autoconhecimento e melhora da auto-estima, temos percebido em nossas clínicas que o sonho pode fazer a função de álibi no começo da análise de alguns pacientes mais inibidos. Apoiam-se na ideia de que “não fui eu, foi meu inconsciente” e assim podem dar um primeiro passo no sentido de algum descentramento.
Certos tipos de sonhos podem funcionar como exercícios criativos para saídas ainda não imaginadas. Sendo narrativas geradas a partir de uma posição mais descentrada, apostamos que, se forem compartilhadas, seja em análise ou fora dela, podem também tratar o mundo e não só o sonhador.
Anelis Assumpção, cantora e compositora, tem o costume de publicar seus sonhos nas redes sociais. Em um podcast[19], conta que um dos efeitos que nota das suas publicações é que as pessoas, ao responderem aos seus relatos, iniciam conversas que dificilmente aconteceriam sem a narrativa do sonho. Relatar um sonho é compartilhar algo da intimidade, para além dos filtros instagramáveis, pois, sendo uma mensagem cifrada, nunca se sabe exatamente o que se está contando, tampouco como ressoará em quem escuta. Entendemos essa fala de hoje dentro dessa perspectiva, tal como contar um sonho, desejando que possamos abrir novas conversas com vocês.♦
REFERÊNCIAS
BERADT, Charlotte. (2022). Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Fósforo Editora.
COSTA, Ana. (2006). Sonhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
CRARY, Jonathan. (2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify.
DUNKER, Christian.; DEBIEUX. Miriam Debieux.; GURSKI, Rose.; INANNINI, Gilson.; PERRONE, Claudia. (2021). Sonhos confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia. São Paulo: Autêntica.
FREUD, Sigmund. (1900). A Interpretação dos sonhos. Obras completas. Volume IV. Trad.: Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KORETZKY, Carolina (2012).O despertar: dormir, sonhar, acordar talvez. Trad. Yolanda Vilela. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
LACAN, Jacques. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LIMULJA, Hanna. (2022). O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu Editora.
RIBEIRO, Sidarta. (2019). O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras.
SITES:
Projeto Jacarandá – sonhar em rede. Disponível em: https://www.instagram.com/jacaranda.sonharemrede/. Consultado em 14/10/2024.
FRAN, Martins. Você já teve insônia? Saiba que 72% dos brasileiros sofrem com alterações no sono. Site do Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/voce-ja-teve-insonia-saiba-que-72-dos-brasileiros-sofrem-com-alteracoes-no-sono. Consultado em: 14/10/2024.
Podcast Por que sonhamos? (com Anelis Assumpção). Disponível em: https://open.spotify.com/episode/1izskRVBCDcUnLzAvAKBHD?si=mLW03560T5qKVUy-TCp0cw&t=1003. Consultado em: 14/10/2024.
Carina Guedes é psicóloga e psicanalista, mestre em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo (USP).
carinafguedes@gmail.com
Carolina Cardoso Tiussi é psicóloga e psicanalista, doutora em psicologia escolar pela Universidade de São Paulo (USP). caroltiussi@yahoo.com.br
Felipe Scatambulo é psicólogo formado pelo IP-USP e psicanalista. Trabalhou em CAPS e gerenciou unidades de Saúde Mental do SUS. Atualmente clinica e é supervisor. fescatambulo14@yahoo.com.br
Fernanda Sato é psicóloga e psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP)
fernandagsato@gmail.com<
Isabel Tatit é psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
[1] Esse texto foi apresentado no grupo de Discussões Clínicas, coordenado por Natalie Mas e João Pedro Padula, em 13/9/2024 (cf. https://www.instagram.com/discussoes.clinicas/). Ele é fruto do primeiro semestre de encontros do cartel homônimo ao título do texto, composto por Carina Guedes, Carolina Tiussi, Fernanda Sato, Isabel Tatit e Felipe Scatambulo (mais-um).
[2] FRAN, Martins. Você já teve insônia? Saiba que 72% dos brasileiros sofrem com alterações no sono. Site do Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/voce-ja-teve-insonia-saiba-que-72-dos-brasileiros-sofrem-com-alteracoes-no-sono. Consultado em: 14/10/2024.
[3] CRARY, Jonathan. (2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify.
[4] Optamos por grafar as vinhetas clínicas em itálico.
[5] RIBEIRO, Sidarta. (2019). O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras.
[6] CRARY, Johnatan. (2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify; pp; 95.
[7] BERADT, Charlotte. (2022). Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Fósforo Editora.
[8] DUNKER, Christian (2021). Sonhos confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia. São Paulo: Autêntica.
[9] cf. https://www.instagram.com/jacaranda.sonharemrede/. Consultado em: 14/10/2014.
[10] LIMULJA, Hanna. (2022). O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu Editora.
[11] LIMULJA, Hanna. (2022). O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu Editora; pp. 73.
[12] COSTA, Ana. (2006). Sonhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[13] CRARY, Jonathan. (2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify; pp. 81.
[14] FREUD, Sigmund. (1900). A interpretação dos sonhos. Obras completas. Volume IV. Trad.: Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[15] LACAN, Jacques. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992; pp. 59.
[16] LACAN, Jacques. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992; pp. 60.
[17] KORETZKY, Carolina (2012). O despertar: dormir, sonhar, acordar talvez. Trad. Yolanda Vilela. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
[18] KORETZKY, Carolina. (2012) “Despertar e fora-do-sentido: sonhos concentracionários e pós-concentracionários” [Trad. Yolanda Vilela]. In: O despertar: dormir, sonhar, acordar talvez. Trad. Yolanda Vilela. Belo Horizonte: Autêntica, 2023; pp. 165-184.
[19] Disponível em: https://open.spotify.com/episode/1izskRVBCDcUnLzAvAKBHD?si=mLW03560T5qKVUy-TCp0cw&t=1003. Consultado em: 14/10/2024.
COMO CITAR ESSE ARTIGO | GUEDES, Carina Ferreira, et. al., Sonhos, pra que te quero? Pra dormir ou pra despertar? Lacuna: uma revista de psicanálise. São Paulo, n. -17 p. 4, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2025/02/02/n-17-04/>.