por Haroldo Saboia
As imagens encontradas também são imagens de nós mesmos[1]
Em dezembro de 2015, estive na cidade de Deserto, no interior do Ceará. O deslocamento até a cidade e a permanência nela duraram alguns dias. Minha viagem era em função do projeto que desenvolvia e ainda permanece inacabado no instituto Porto Iracema das Artes, vinculado ao MAC, Museu de Arte Contemporânea do Ceará. A pesquisa que na época intitulei de “Notas: Ensaio-Fragmento” era um dispositivo para se deslocar no mapa cearense entre as cidades de Ventura, Passagem, Miragem, Deserto, Solidão e Prazeres. Um mapa de palavras dispersas que abrange quase todo o território cearense e que havia me proposto a percorrer, a permanecer e, por fim, a relatá-lo das mais variadas formas. Narrar o encontro com a materialidade da palavra. Eu pensava naquele momento em fronteiras entre a ficção e a vida, entre linguagem e imaginação, entre as palavras e as coisas a partir destes pequenos pontos no mapa.

Por fim, uma proposição de um corpo solitário em deslocamento que registra, encontra, permanece, e atravessa essas palavras-afeto.
Deserto era um pequeno vilarejo à beira da estrada a caminho do Piauí. Em coincidência à palavra, Deserto era monocromática, descampada, com longas distâncias entre suas casas, silenciosa e composta de uma grande quantidade de pó que circulava em suas estradas e construções abandonadas. Ao longo das caminhadas, presenciei inúmeros redemoinhos e ventos fortes que perturbavam sobretudo as poucas plantas que ali cresciam e também meus olhos que se enchiam de areia fina, gerando incômodo e dispersão. Numa passagem de carro pela estrada que corta o vilarejo, acidentalmente me deparei com uma ruína.
Uma ruína, além de evidenciar visivelmente a passagem do tempo sobre as coisas, parece funcionar quase como um sinônimo dele, construindo uma relação de ambivalência, pois concentra em uma unidade, algo fluido, sem forma e que existe de modo cambiante em algo que parece estático, duro e hermético. Ao vê-la, pensei em Drummond. Pensei na sua pedra, pensei que estava diante de um contratempo: um problema. Uma Ruína como esta espécie de poema. O poema a partir do termo poiesis, um local de fabricação, de feitura, que exige manuseio: um lugar de produção de problemas. Se a ruína me surgiu como uma pedra, imediatamente penso nesse encontro como uma encontro-problema, um encontro-obstáculo.
IF YOU HOLD A STONE, HOLD IT IN YOUR HAND.
Se pensarmos em sua etimologia, o problema vem da mesma raiz de promontório: um acidente topográfico, um corte na paisagem. O que fazer com esse encontro? Com este problema? Talvez viver o problema. Fazer do problema um local de experiência. Vivenciar um problema não significa resolver um problema. Talvez fazer o problema durar, estendê-lo em sua complexidade, sua ambivalência ou incorporar o problema, transformá-lo, por sua vez, em memória no corpo. E como trazer essa memória a um público? As coisas, as experiências exigem tempo e este tempo necessariamente cria forma e memória. As passagens, os deslocamentos, a espera e os acúmulos.
Na pesquisa que se tornou uma exposição intitulada de “História dos Nossos Gestos”, no Paço das Artes, utilizei o recurso da escala para pontuar diferenças entre o gesto comum, ordinário, inscrito no tempo e na vida, e o gesto mítico, hercúleo, o gesto da história. O menor trabalho da exposição e mais antigo na cronologia são dois slides montados sobre uma superfície de metal intitulado “Gesto sobre Deserto”. Um gesto sobre e partir de uma palavra, um gesto sobre uma superfície. São duas imagens onde vemos três elementos: uma mão, um facho de luz e areia. As duas fotografias juntas sugerem um breve movimento de captura ou tentativa de. A mão tenta agarrar um punhado de areia que se derrama pelas laterais como uma espécie de ampulheta vazada, de algo que inevitavelmente cai e se espalha. Não marca o tempo, porém, dispersa num movimento vertical caindo no chão de onde a mão havia apanhado. Uma tentativa e uma vontade de ler a tateabilidade dessa matéria tempo composta de luz, areia e gesto. A mão escreve e também lê.
A mão como este lugar próprio da linguagem. Como uma palavra, como um signo: algo que é veículo e também matéria. Força e forma. A mão é índice do gesto humano, da experiência.

Embora de pé, estamos sempre em queda
Os acidentes sempre geram desvios, mudanças e, às vezes, novas partidas. Ao folhear um livro sobre Brasília despretensiosamente, esbarrei com a imagem que integra a instalação da obra “Integração Nacional” presente na exposição. Quando vi a fotografia, me senti atravessado por um sentimento dúbio, como se tivesse encontrado uma espécie de segredo, algo que me havia seduzido por um indefinido fascínio, porém, carregada de uma melancolia estranha e incômoda. A fotografia feita em Brasília em 1981 compreende uma ação pequena e transitória: um homem de pé toca com sua mão uma estátua deitada. Com o braço esticado e o corpo estirado sobre um plástico que a protege, a estátua de Juscelino Kubitschek apoia a mão do homem anônimo, sob uma luz forte do sol de Brasília, criando um certo apagamento sobre seu rosto. A incompatibilidade das mãos, os tamanhos distintos, a diferença dos corpos criava um descompasso. Em retrospecto, talvez o que me chamou atenção nesta imagem era a posição da mão, o modo como aquele trabalhador encaixa sua mão sobre a de Juscelino, simulando o mesmo gesto que eu havia realizado no vídeo e na escultura que também integram a exposição na série didática do contato, mas realizada anteriormente ao encontro com a imagem.

No vídeo, a composição é simultaneamente uma pergunta e uma assertiva. Em alguns momentos parece ganhar uma noção de sustentação, como um amparo contra a queda, mimetizando a mão aos pés. No entanto, é apenas a mão que, pousada sobre uma superfície e com uma força mínima, gera na separação uma imagem falhada. As falhas surgem desse encontro, do que é comum, do que dialoga. O que a mão aprende com a mesa, o que a mesa aprende com a mão?
Penso que um corpo só é um corpo em relação, com uma permeabilidade em jogo, como num arquivo. Assim, a afirmação dos corpos se dá no contato e na sua separação, no efeito do encontro, das reverberações e das deformações.
O efeito das coisas do que as coisas em si
Portanto, ao ver aquela imagem, senti que havia uma sensação especular e projetiva naquele encontro. Uma repetição separada por quase 38 anos de distância. Imagino que o atravessamento que senti se deve ao afeto instantâneo, uma presença que se completava a uma noção de continuidade.
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“Primeira regra: continuar. Segunda regra: começar… Onde eu estava a começar, estava a continuar. Nós só começamos depois de continuar”. Li essa frase numa entrevista da filósofa portuguesa Maria Filomena Molder. Um eixo vertical e horizontal aponta para um lugar específico no espaço, uma presença nele. Compreender as coisas em continuidade gera pertencimento e integração. O gesto como esta configuração consistente do presente, o uso presente. Com isso, as coisas tornam-se disponíveis ao uso, à montagem e à imaginação. A arte como um rearranjo das coisas que estão no mundo, incorporando-as. Um gesto que escreve o mundo, mas também reescreve a própria subjetividade de quem faz.

Já no caso da obra que é um par de mãos em gesso, acidentalmente, também tomou um outro rumo, uma outra montagem. A formulação inicial, já exposta em outro contexto, eram quatro mãos de gesso, quatro moldes de minha mão direita posicionados nos quatro cantos do lugar, desenhando um espaço. Quatro mãos em contato com uma superfície na qual aquelas sugerem, por meio de uma força e contato, a comunicação e o equilíbrio do lugar. Em vias de montar a exposição aqui no Paço, buscava alguém que pudesse me ajudar na execução dos moldes para o gesso. Uma amiga me enviou o contato por telefone. Ignorei por alguns dias até ligar para a pessoa indicada. Durante a conversa, compreendi que conversava com alguém chamado Juscelino que posteriormente me comentou que seu nome completo era Juscelino Pereira da Silva, era de Pernambuco e morava em São Paulo há mais de 30 anos. Ao notar a correspondência da situação, propus a Juscelino que fizéssemos dois pares: minha mão direita e sua esquerda, criando um exercício comparativo. Duas mãos descompassadas através de seu tamanho e de sua textura. Para minha surpresa observei situações curiosas na exposição onde algumas pessoas olhavam para sua própria mão, a reproduzir gestos, comparar a escala de suas mãos com as de gesso. Situações em que aparentemente algumas imagens devolvem ao público uma percepção do próprio corpo, uma sensação consciente de presença que me fazia às vezes borrar a divisão entre público, gestos e imagens.
Durante estas visitas, compreendi, ao conversar com uma amiga, que havia dividido a exposição espacialmente em duas partes: a primeira do lado esquerdo, obras que foram concebidas a partir de gestos meus sobre as coisas, composições que pensam a partir de um lugar singular. E mais ao lado direito obras que tensionam um lugar coletivo, composto de imagens de arquivo e que através de repetições e composições exercitam a noção impossível do que poderia ser este corpo comum. Assim, com duas proposições distintas que se contrapõem, mas se refletem de modo especular, compreendi uma união de contrários ali, como os redemoinhos de Deserto. Quando uma força age sobre outra até o ponto onde se torna indefinido qual delas é motriz e qual não é, o que resta é apenas movimento, algo que perpetua.
A instalação central compõe a obra Integração Nacional. Nela há um tecido fino no qual cinco projetores de slides em tempos alternados projetam cinco fotografias, elaborando um movimento circular e constelar com imagens que compõem as duas partes da exposição. Integrada a esta projeção está a imagem do trabalhador com a estátua localizada no centro ao redor da qual orbitam uma imagem do memorial com a estátua já no lugar que está hoje, sozinha sob o amparo do céu de Brasília; outra imagem do braço de Juscelino em sua posse, coberto de papéis que caem do céu em comemoração; uma fotografia de meu braço estirado na mesma posição que a estátua de Juscelino e, por último, o molde de minha mão em gesso. Como num pequeno céu noturno: uma pequena constelação compõe um acúmulo temporal e brilhante. Cinco pequenos astros que ocupam o mesmo espaço, a mesma superfície. A exterioridade como índice de uma interioridade. De modo que o centro da exposição se torna uma fronteira, portanto, um espaço entre, um espaço de contato, que, se por um lado, une, por outro, distancia e separa. A integração nacional como esse marcador, essa linha simbólica. O espaço central na arquitetura da exposição é o lugar do problema, do obstáculo, a transição entre os pronomes que a pesquisa tensiona: o eu e o nós. As aproximações entre o eu e nós, uma ideia de identidade nacional a partir do que seria comum, se encontram talvez no descompasso da linguagem, no encontro e nas falhas que daí surgem, na impossibilidade de equivalência.

Quando propus o projeto pela primeira vez, me perguntava de que modo um evento histórico, um discurso, fosse capaz de construir uma memória no corpo. Quais corporalidades históricas estão em meu corpo? Atos, gestos, memórias. Juscelino falava de Brasília como um “gesto ousado, uma opção heroica”. Em relação às questões que investigava na época, Brasília deveu-se, portanto, também a um encontro-problema. Logo compreendi, inevitavelmente, a importância não apenas do significativo momento político que vivemos hoje, mas também do gesto que a capital carrega desde a fundação, quando se quis imaginar um “país do futuro”. Devido à sua monumentalidade, Brasília aciona um imaginário superlativo, ufanista, conectado com um ideal civilizatório de um Brasil moderno. A capital postula as dimensões do macro, e, com isso, me ajuda a formular uma oposição, uma vez que me proponho nesta pesquisa a atentar para o menor, para a escala do corpo e do indizível.
Da euforia e da vocação construtiva moderna, Brasília rapidamente se transformou em instrumento panóptico de vigilância e opressão. Embora carregue a melancolia de um pacto de “integração nacional” que nunca se constituiu, a imagem do operário com JK pressupõe uma inversão de poder, apresentando o operário na centralidade de seu desejo e gesto. Com este imaginário na cabeça, realizei o mosaico impresso da série “Integração Nacional” (2019), composto por uma coleção de 76 imagens realizadas entre 1958 e 1981 até a construção do memorial de Juscelino. Do enquadramento original foram recortados apenas detalhes que destacam as mãos em atividade. Nos deparamos com mãos que bebem, que martelam uma madeira, que estão segurando uma placa, que protegem o rosto do sol, que dividem uma muda de planta, que seguram a cabeça em momento contemplativo, que tocam a porta do carro, mãos em riste no ar, mãos que pressionam outros braços, que acenam, que apontam, que perguntam, compondo uma pequena história social por meio do gesto. Sem nenhum rosto aparente, a edição não revela identidades, apenas um grande mosaico de ações, um vocabulário. Penso que não há a priori nessas imagens, um suposto corpo comum. Talvez ele se constitua como tal temporariamente a partir do que tento realizar na exposição, à medida que crio narrativas e vizinhanças. Um exercício de montagem e ficção através do arquivo entre esses gestos silenciosos e transitórios. Gestos históricos e gestos ficcionais. Com este trânsito me permito aqui exercitar uma ideia de presença e talvez uma consciência de nosso passado, menos do que contar ou formular uma nova história.

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REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Para uma ontologia política do gesto. Caderno de Leituras, Belo Horizonte, n. 76, p. [página inicial] – [página final], abr. 2018. Disponível em: <https://chaodafeira.com/catalogo/caderno76/>. Acesso em: [Data da consulta].
BASBAUM, Ricardo; MAIA, Ana Maria; QUEIROZ, Armando. O artista e seu âmbito de atuação. [Vídeo]. YouTube. São Paulo: Casa do Povo, [Ano de publicação]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7YkPPAP44ew&t=14s>.
MOLDER, Maria Filomena. Entrevista concedida a [Nome do entrevistador]. “Só começamos depois de continuar”. Expresso, Lisboa, 06 jun. 2016. Seção Sociedade. Disponível em: <https://expresso.pt/sociedade/2016-06-06-Maria-Filomena-Molder-So-comecamos-depois-de-continuar>.
SABOIA, Haroldo. A história dos nossos gestos. [S.l.]: o autor, [s.d.]. Disponível em: <https://haroldosaboia.com/A-historia-dos-nossos-gestos>.
SABOIA, Haroldo; MAIA, Ana Maria. A história dos nossos gestos. Entrevista. Disponível em: <https://pacodasartes.org.br/exposicao/a-historia-dos-nossos-gestos/>.
* Haroldo Saboia é cearense, trabalha como artista visual, cineasta e pesquisador. É atualmente doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-SP em orientação da professora Suely Rolnik onde pesquisa as noções de mestiçagem, a música afrobrasileira e as perspectivas clínicas na construção da subjetividade brasileira, por meio do cinema e das artes visuais, elaborando relações entre imagens históricas, ficção e música e como essas intersecções criam memória coletiva e singular nos corpos. Possui obras em acervos privados e em instituições brasileiras e internacionais. Portfólio, pesquisas e proposições artísticas: https://haroldosaboia.com/ e https://www.instagram.com/haroldosaboia/.
[1] O projeto A História dos Nossos Gestos é uma proposição artística em andamento que compreende uma pesquisa sobre linguagem, o gesto e a construção de iconografias a partir de arquivos e documentos históricos. O título do projeto é retirado do livro homônimo do historiador e antropólogo potiguar Câmara Cascudo. Nesta formulação foram selecionadas imagens históricas do período pré-construção de Brasília até a construção do memorial de Juscelino Kubistchek também em Brasília. Seria possível pensar que a construção de Brasília, assim como o golpe militar do dia 1 de abril de 1964 ou a copa do mundo de 70 como disparadores e construtores de uma memória no corpo dos brasileiros? O que encontramos ao exercitarmos o olhar sobre imagens históricas elementos indiciais sobre que tipo de memória iconográfica e gestual se construiu? É possível narrar algo que ainda permanece submerso? Qual resíduo destes eventos em nossos corpos? Ou melhor, quais tensões surgem do encontro com estas imagens e a atenção aos gestos mínimos? Portanto, como estes gestos se mantêm em nossos corpos e se reatualizam? Deste modo, tensionar novas relações na história do Brasil por meio de esculturas, performances, vídeos e fotografias históricas e assim também mapear uma história dos gestos menores que a compõem. E ao tomar este compêndio de fotografias com gestos de figuras oficiais e anônimas presentes neste período além de pequenas formulações poéticas no mundo, pensar os modos e formas que as imagens e corpos se afetam, se entrecruzam, construindo assim uma memória imagética, documental e também uma memória no corpo, gestual.
COMO CITAR | SABOIA, Haroldo (2025) As imagens encontradas também são imagens de nós mesmos. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17, p. 5, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2024/12/20/n-17-05/>.