por Leonardo Goldberg & Jean-Michel Vives
O objetivo do presente texto é examinar uma curiosa e conhecida passagem em “A terceira”, na qual Lacan se define como um palhaço:
“Basta ver minha Televisão. Eu sou um clown. Tomem isso como exemplo e não me imitem!” [1].
Há diversos desdobramentos possíveis a partir dessa afirmação. Lacan anuncia que é um clown, um palhaço, descrevendo a afirmação como um exemplo e incluindo um pedido: Não me imitem! Tal enunciação produz uma questão: se Lacan considera a si mesmo um palhaço — aquele que de certa forma produz o riso apontando o desajustamento, aquele que não é se não pelo efeito de um jogo com o semblante — por que tal posição faria com que seus seguidores desistissem de imitá-lo?
Podemos tecer algumas considerações: apesar do improviso e da dimensão do ato, da performance, do impossível de se replicar, há também mimesis[2] e imitação enquanto modo de palhaçaria, por exemplo através da figura tão expressiva na tradição francesa do mimico, bem representada pelo lendário Marcel Marceau[3].
Na ocasião de “A terceira”, a figura do palhaço aparece quando Lacan discorre sobre a relação entre a posição de semblante e o objeto a na prática analítica. A referência que Lacan usa para exemplificar que ele é um palhaço é Televisão[4], gravação em que Lacan respondeu, desde seu modo, léxico e estilo, as questões colocadas pelo cineasta Benoît Jacquot. Ainda que tenha sido uma entrevista televisionada pelo Office de Radiodiffusion-Télévision Française (ORTF), as respostas às perguntas já haviam sido escritas.
Catherina Millot, em uma obra que recolhe memórias sobre sua vida com Lacan, ressalta a teatralização da sua fala na televisão:
Qualquer um que fale na televisão se dirige aos telespectadores como se a interlocutores próximos e como se estivesse na intimidade do mesmo aposento. Bem, Lacan parecia falar para as massas. Dirigia-se aos milhares de pessoas que compunham o público da televisão. Acentuara a teatralização de sua fala, ainda mais não sendo uma improvisação, e sim um texto escrito previamente, em resposta às perguntas elaboradas por Jacques-Alain[5].[6]
Importante ressaltar essa dimensão: o psicanalista-palhaço coloca o texto em ato, ainda que redigido de antemão, como uma representação em cena. Ainda que ele tenha afirmado no início de Televisão que falava para o público geral, mas também para e dos analistas, e indagado “Por que, então, falaria eu aqui em um tom distinto do de meu seminário?”[7], tal formato era bastante diferente de seus seminários, que empreendiam um ensino de algo “que não se domina”. Essa é a prerrogativa que diferencia a posição do psicanalista diante do discurso psicanalítico e a do professor: aquele que se propõe a transmitir a psicanálise deveria fazê-la desde a posição de psicanalisante,
o que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição de psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não a ser a título de sintoma.[8]
Nesse ponto é importante elencarmos uma questão: Lacan diz que o tom e a direção de seu texto e apresentação em Televisão era a mesma adotada em seus seminários, porém, ao mesmo tempo, tal aparição se transformou em seu modelo para pensar no palhaço e pedir que os outros analistas não imitassem. Lacan se referia a figura do palhaço então na posição de ensino enquanto psicanalisante ou na posição de analista?
A posição de psicanalisante é a daquele que produz aquilo que não pode dominar, ou seja, a do sujeito que ao dizer a partir da associação livre, do “diga o que viera à sua cabeça da forma mais livre possível”, se divide entre aquilo que “não domina”, os sonhos, lapsos, chistes e propriamente o sintoma e a tentativa de se dominar a própria fala. Em Freud, isso marca a divisão entre o consciente e o inconsciente e em Lacan isso é propriamente a divisão subjetiva. Já a posição do analista é de “oferecer-se”, como objeto a, causa do desejo, ao analisante, advertido de tal posição. É isso que Lacan afirma em “A terceira”[9]: que o analista deveria receber de uma maneira mais descontraída aqueles que viessem demandá-los uma análise. O palhaço estaria então justamente nessa posição do analista, daquele cujo estatuto ontológico é desconvocado, colocado em questão e até em xeque pela via do semblante. Aliás, o palhaço talvez seja a figura que mais represente o desfazimento de uma oposição entre o ser e a essência. Ele o é justamente e radicalmente em seu ato, o que provoca e contesta qualquer atributo do ser.
Na abertura do fascinante filme/documentário de Fellini, “Os palhaços”[10], um personagem fisicamente forte, Robor, apresenta uma cena na qual supostamente suporta um canhão de 500 quilos sob suas costas, para apreensão e deslumbramento do circo lotado. Eis que um palhaço-anão brota de supetão na cena e diz que também realizaria o número. Dispõe então no chão uma versão miniatura da base que sustentava o canhão, e ao acionar o movimento para lançar o objeto, este se transforma em um charuto que cai na boca do apresentador, para riso de ambos e da plateia. Essa paródia goza da hipérbole e da demonstração da “força extraordinária” de Robor e, portanto, de seu atributo: toda a cena agora é miniatura e o canhão pesado se torna um charuto que pode ser fumado. A aparente consistência do ser é provocada pelo truque do deslocamento e pela brincadeira.
Bouissac[11] conta que o termo clown, antes de significar a figura do palhaço como um personagem no século 18, se referia a uma palavra pejorativa para designar os camponeses ignorantes na Inglaterra. A figura do palhaço moderno, tal qual conhecemos, é herdeira da Commedia dell’Arte e tem sua versão moderna encarnada por Joseph Grimaldi, mimico, ator e talvez o palhaço mais conhecido da história, retratado inclusive em um livro autobiográfico que fora “arrumado” e reescrito pelo romancista Charles Dickens[12]. Joseph Grilmaldi fez com que o termo clown passasse de personagem das pantomimas para seu uso genérico e seu codinome “Joe” ou “Joey” se transformou em sinônimo de palhaço[13]. Sua maquiagem consistia no rosto todo pintado de branco, os lábios pintados de vermelho, ambas bochechas pintadas com triângulos simétricos e a sobrancelha pintada de preto, com um corte de cabelo estilo moicano[14].
Há uma verdadeira historiografia da figura do clown, que passa das pantomimas ao circo, dos cavaleiros e acrobatas que parodiavam os personagens do picadeiro aos clowns de cena. Bolognesi[15] conta que em 1863, Napoleão III colocou fim a política de privilégios dos teatros, únicos que possuíam autorização do Estado para as cenas com diálogo. Assim, no ano seguinte, 1864, os palhaços se transformaram em palhaços-falantes. Nesse momento o par de oposição entre as figuras do clown branco (whiteface ou clown blanc), caracterizado por ser o dominante e o augusto, que seria o ingênuo e ridículo, ficou bastante sedimentada. Esse par de oposição produzia o conflito cômico e Bolognesi[16] nos conta que esse passou a ser o modelo das apresentações por todo o século XX: a partir das cenas dialogadas, o clown branco, que seria o sofisticado, bem-educado, aristocrata nos gestos e bastante elegante, contracenava com o augusto, mais excêntrico, ingênuo, informal. Bolognesi explica que no Augusto “tudo é hipérbole. A roupa larga, os calçados imensos, a maquiagem é exagerada e enfatiza sobremaneira a boca, o nariz e os olhos”[17].
Algumas hipérboles análogas marcavam o estilo de Lacan: as gravatas la Vallière, os ternos sob medida com tecidos exóticos, os sapatos encomendados em peles inusuais[18], mas somada a elegância e suntuosidade, o psicanalista talvez encarnasse um sincretismo entre o whiteface e o Augusto: ora apresentava o gestual aristocrático, elegante, excessivamente desde uma posição ativa; ora provocava o cômico desde uma posição de semblante de objeto, do Augusto que no par de oposição produz o cômico ao atuar ativamente desde uma posição de objeto e assim causar o ponto de absurdo próprio do chiste.
Mas a questão central que essas características evocam é justamente a dimensão psicanalítica do semblante que, ao invés de se caracterizar por qualquer ideia simples do parecer, é o que em uma análise o sujeito perceberá que comporta certa verdade mentirosa. O semblante é o lugar que o analista pode ocasionalmente ocupar para que o sujeito se depare com seu o desejo. Lacan inclusive define o psicanalista como aquele que “ao pôr o objeto a no lugar do semblante, está na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, a saber, interrogar como saber o que é da verdade”[19]. Isso quer dizer certa aparência de ser[20] que interpela o gozo e até o amor do sujeito que se dirige a ela. O humor e o truque aqui podem exercer um papel bastante relevante.
Aliás, Lacan em seu Seminário 1 já tratava a diversão na psicanálise como seu estatuto de verdade:
Quanto mais próximos estamos da Psicanálise divertida, mais se trata da verdadeira Psicanálise. Em seguida, isso vai girar, isso se fará por aproximação e por truques […] Regozijemo-nos pois; ainda fazemos Psicanálise.[21]
Então, retomemos a questão central, por que Lacan sugere que tomemos o exemplo do palhaço que ele é, sem imitá-lo[22]? Pelo menos três argumentos nos parecem essenciais aqui para apoiar esta surpreendente aproximação entre o palhaço e o psicanalista.
A primeira diz respeito ao tratamento da transferência. Se o palhaço é aquele que avança mascarado, escondido atrás desta minúscula máscara que constitui o seu nariz vermelho, é também ele quem denuncia através do seu exagero o semblante que apresenta. Uma aparência que se autodestruiria no exato momento em que aparecesse. Isto dá uma indicação valiosa sobre o tratamento da transferência. Não se trata de ser o parceiro solicitado pelo analisando. Mas, como o palhaço, ser e não ser o personagem que aparece na fase de transferência. O palhaço oferece um “personagem”, mas de forma alguma se funde com ele e até o denuncia no exato momento em que se apresenta. Talvez esta seja uma das orientações essenciais do manejo da transferência que Lacan nos oferece. O psicanalista-palhaço é aquele que consegue ocupar os lugares necessários aos movimentos dialéticos da transferência sem se perder no papel e no lugar para o qual é convocado pelo canevas[23] inconsciente do analisando. A dimensão clownesca do tratamento da transferência, pela sua natureza não naturalista, indica que o analista, apanhado na transferência, é ainda mais uma ficção do que uma função. Ela convoca, para além da dimensão imaginária, a dimensão real da transferência.
Tomado por sem se tomar por : essa oscilação cativante do palhaço entre ele e seu personagem seria o primeiro indício que Lacan nos oferece a partir dessa proposição.
O segundo argumento diz respeito à relação entre o palhaço e o público. Jacques Copeau, importante teatrólogo francês da primeira parte do século XX, desde cedo desenvolveu uma paixão pelo circo. Em 1916 entusiasmou-se com o espetáculo dos irmãos Fratellini[24], cuja execução admirava regularmente e que se renovava todas as noites pelas reações do público:
Uma noite, uma de suas piadas provocou risadas altas e prolongadas de uma senhora na galeria. O palhaço parou e, de perfil, olhou para a mulher risonha, sem se mover, com as sobrancelhas levantadas. E à medida que a mulher ria cada vez mais, ele continuava olhando para ela. Depois retomou o exercício e naquela noite não fez nada que não estivesse de acordo com a cumplicidade que existia na sala. O sabor do seu jogo aumentou dez vezes.[25]
Através desta anedota, Copeau ilustra uma dimensão específica do jogo do palhaço: a capacidade essencial de “estar com” o público (que permite a integração de elementos imprevistos na construção do espetáculo in vivo e, portanto, de não fazer contra, mas com o real[26]). O analista, tal como o palhaço, está plenamente presente para o outro, apesar — ou talvez graças — a sua atenção flutuante. Atenção flutuante que permite ao primeiro identificar o que há de “errado” no discurso e ao segundo apreender qualquer manifestação vinda do palco ou do fora do palco para torná-la um suporte do jogo. O psicanalista, assim como o palhaço, se encontra em uma posição onde ele deve improvisar. Não se trata de compreender a improvisação no seu sentido atual. Ou seja: organize-se imediatamente, às pressas, inesperadamente, encontre-o no último minuto, como indica a expressão “improvise uma desculpa”. O exemplo anterior enfatiza especialmente a ideia de expediente, de despreparo. Isto é ainda pior quando o verbo intransitivo é pronominalizado. Ao “improvisar-nos”, beiramos a impostura: improvisamos como ator, cozinheiro ou psicanalista!
Devemos nos concentrar na definição musical de improvisação para sair do âmbito das aproximações que o termo carrega para a linguagem cotidiana. Na verdade, nada se improvisa — no sentido comum do termo — na improvisação musical. O muito inspirado Pierre-Paul Lacas nos deixa isso perfeitamente claro na definição que oferece do verbete na Enciclopédia Universalis:
Improvisar é prever, recusar o acaso, organizar antecipadamente, enfrentar o inesperado (improvisus), descartar o inesperado; isso porque improvisar é assumir, repetir. […] O ouvinte, para quem há certamente algo imprevisto, algo novo, só o aceita se souber e sentir que não é algo novo para o artista. Em outras palavras, este imprevisto imprevisível da improvisação obedece às leis gerais da linguagem e da comunicação.[27]
Podemos perceber aqui como o autor da definição gosta de ir na contramão das definições usuais a ponto de propor a feliz descoberta: o oxímoro “imprevisto, não imprevisível”. Improvisar seria trazer à luz um imprevisto cuja dimensão de imprevisibilidade não seria nada imprevisível.
A improvisação revela-se então como um saber e um poder-fazer com o que surge como um clarão do real e no qual tanto o palhaço como o psicanalista devem imprimir — entre a contingência e a necessidade — a marca da sua subjetividade ao interpretá-la.
O terceiro elemento diz respeito à vergonha. Sabemos que o palhaço não tem vergonha: suporta sem pestanejar o riso zombeteiro que ele mesmo provocou com sua brincadeira onde a falta de jeito sempre tem um lugar importante. Esta questão da vergonha completa os três afetos que Lacan, leitor de Aristóteles no Seminário 7, havia identificado como devendo ser superados para poder conduzir o tratamento analítico: o temor e a piedade.
O acesso ao desejo necessita ultrapassar não apenas todo temor, mas toda piedade […]. Sabe-se o que custa avançar numa certa direção, e meu Deus, se não se vai, sabe-se por quê. Pode-se até mesmo pressentir que se não se está totalmente esclarecido sobre suas contas com o desejo, é porque não se pôde fazer. melhor, pois, não é uma via em que se possa avançar sem nada pagar […]. para aquele que avança ao extremo de seu desejo, nem tudo são flores.[28]
Depois acrescenta que, no entanto, o sujeito em desistência[29] não se deixa enganar “quanto ao valor da prudência que se opõe a isso (a este compromisso no difícil caminho do desejo), quanto ao valor inteiramente relativo das razões benéficas, dos vínculos, dos interesses patológicos […] que podem retê-lo nessa via arriscada”[30]. Por que seria necessário acrescentar o efeito da vergonha? A resposta de Freud a Theodor Reik, que durante sua análise expressou o fato de que o que acabara de dizer o envergonhava, seria um primeiro indício. Na verdade, a isso Freud respondeu calmamente: “Tenha vergonha, mas diga”[31]. A preciosa indicação de Freud mostra claramente que a vergonha, juntamente com o temor e a piedade, constituem a trilogia de afetos que devem ser superados durante o tratamento. Isto não implica de forma alguma que estes afetos sejam “anulados” pelo tratamento, mas que o aparecimento destes não impeça o seu desdobramento.
Nos anos setenta, Lacan abordou a questão da vergonha articulando-a com a questão do ser, inventando ocasionalmente uma amálgama a partir do termo filosófico ontologia (isto é, o que é relativo ao ser) e da palavra vergonha: vergontologia[32]. É uma vergonha porque é um afeto que diz respeito ao próprio ser[33]. A vergonha deve então ser entendida não como uma falta-a-ter o falo, mas como uma falta-a-ser, uma “falha do ser”, produzindo o que Lacan chama em O Avesso da Psicanálise de “uma vergonha de viver”, revelada pela clínica analítica. A vergonha, poderíamos dizer, o sujeito está envergonhado pelo seu ser, ou melhor, pela sua falta-a-ser[34].
A psicanálise não propõe uma ontologia. Freud desde o início de sua obra já havia decidido apresentar a noção de Unnerkant, para usar o termo alemão usado em A Interpretação dos Sonhos[35] e traduzido por Lacan como “o impossível de reconhecer”[36]: um buraco real persiste dentro do simbólico porque este último não pode assumir o controle de tudo. Por sua condição de ser falante, desligado da relação direta com o objeto, a existência do sujeito não encontra resposta na ordem simbólica. Estruturalmente, podemos, portanto, definir o sujeito como mortificado pelo simbólico porque é puro efeito do significante. Só o desejo lhe permitirá inventar um sentido e libertar-se da dor de existir, dessa “falta-a-ser” revelada no momento da vergonha.
Se um tratamento analítico pode ter o efeito de livrar o sujeito da vergonha como “falta-a-ter”, ao permitir-lhe ser um pouco mais claro com as coordenadas do seu desejo[37], a leitura vergontológica proposta por Lacan também nos leva a considerar que a vergonha é específica da nossa condição de ser falante, vergonha portanto estrutural e, a partir daí, intransponível. Se o palhaço joga, em seu ato, com a vergonha da “falta-a-ter” ao “errar” as brincadeiras, ele também aponta, ao passar por todas as sutilezas, para a dimensão vergontológica: o sujeito pode atravessar a vergonha e mais ainda a reconhecê-la em sua estrutura.
É este último ensinamento, poder-se-ia dizer, que o palhaço transmite ao psicanalista: a vergonha da “falta-a-ter”, vergonha que poderíamos qualificar de imaginária e que é apenas o véu lançado sobre a “vergonha da falta-a-ser”, vergonha real. A partir daí, o palhaço indicaria como brincar com a vergonha imaginária poderia ser uma forma de tratar essa vergonha estrutural e intransponível que é a vergonha real.
As intervenções do psicanalista-palhaço teriam assim em comum este objetivo de um “toque do real”[38]:
– Real da transferência (ser e não ser);
– Real do inconsciente (improvisação a partir de fragmentos do real);
– Real vergontológico (convocando para além da vergonha imaginária da falta-a-ter, a vergonha real articulada com a insuperável “falta-a-ser”).
Há uma dimensão lógica que coloca o psicanalista em uma função bastante particular: ocupar a posição de semblante de objeto causa do desejo para o sujeito que lhe endereça um enigma e que supõe que o analista possa resolvê-lo. O analista é aquele que não só não tentará resolver tal demanda, mas que provocará o analisando, “encarnando” esse ponto de falta para seu enigma. Assim, o analisando atualiza seu fantasma colocando o analista na posição de objeto a, $ ◊ a, operação que reduz o analista a um ponto (a) de relação dissimétrica com o sujeito: menor <, maior >, de conjunção lógica ∧ e de disjunção lógica ∨. Desde tais propriedades lógicas, o sujeito, em seu fantasma, se sente menor, maior, incluído, excluído, e derivados, pelo objeto encarnado pelo Outro que lhe causa angústia e desejo. O losango figura no ponto entre o sujeito barrado e, portanto, dividido pela linguagem e o objeto que lhe causa, esse ponto de falta radical.
Ao convocar o sujeito a falar “o mais livremente aquilo que lhe vier à cabeça”, o pontapé inicial de uma análise já o coloca diante de sua vergonha. A diferença de uma análise e do cotidiano é que, assim como na dimensão da palhaçaria, o psicanalista não tratará o tropeço, a falta de jeito e o equívoco desde o estarrecimento. Pelo contrário, tanto o psicanalista quanto o palhaço, ou o psicanalista-palhaço, admitem que a verdade está justamente no lugar privilegiado do equívoco e que ela só pode irromper de uma maneira que interesse ao tratamento a partir da improvisação. É essa a aposta de Lacan em seu ensino:
Justamente na análise é o equívoco que domina. Quero dizer, é a partir do momento em que há confusão entre este Real — que somos levados a chamar de Coisa — há um equívoco entre este Real e a linguagem, visto que a linguagem, claro, é imperfeita, isto é o que certamente fica demonstrado por tudo o que foi dito.
Essa passagem nos dá um substrato sólido quanto ao estatuto do toque do real. As três dimensões que propusemos: o real da transferência, o real do inconsciente e o real da vergontologia; aparecem, em uma psicanálise, justamente no ponto de equívoco entre o real e a linguagem.
O psicanalista, assim como o palhaço, não comungará com a vergonha imaginária, essa vergonha cotidiana baseada no “bom senso” que normatiza a vida cotidiana. O apelo de Freud à Reik, “Tenha vergonha, mas diga!” é um chamado à travessia: o afeto da vergonha diz respeito a angústia, mas também ao desejo e sua persistência. Aquele que topou uma análise talvez passe a rir e gracejar um pouco mais de sua “falta de jeito” ao inventar um saber-fazer próprio ao seu modo mais singular de sofrer e de desejar. ♦
REFERÊNCIAS
BENARD, David. (2011) Lacan et la honte. De la honte à l’hontologie. Paris: Editions nouvelles du Champ Freudien, 2019.
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
BOUISSAC, Paul. The semiotics of clowns and clowning: rituals of transgression and the Theory of Laughter. London: Bloomsbury Academic, 2015.
COPEAU, Jacques. Registre III – Les Registres du vieux colombier, tome 1. Paris: Gallimard, 1979.
ENCICLOPÉDIA Universalis, Improvisar. 1992, volume 11
FELLINI, Frederico. Os palhaços (Título original: I Clowns). Direção de Frederico Fellini, Produção RAI Radiotelevisione Italiana / Office de Radiodiffusion Télévision Française (ORTF) / Bavaria Film / Compagnia Leone Cinematografica; Itália, França, Alemanha, 1970, 92min.
FREUD, Sigmund (1900) A interpretação dos sonhos (Obras Completas Volume 4). Trad. P. C. de Souza. Companhia das Letras: São Paulo, 2019.
LACAN, Jacques (1974) A terceira/Teoria de lalíngua. Trad. T. M. do Prado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2023.
_____. (1974) Televisão. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
_____. (1970) Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
_____. (1960/1964) Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval. IN Lacan, Jacques. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____. (1963-1964) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Trad. B. Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
_____. (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017.
_____. (1969-1970) Le séminaire, livre XVII: l’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991.
_____. (1964) O Seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de MD Magon. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
_____. (1972-1973) O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M.D. Magno. – 2′ ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
_____. (1977-1978) Le moment de conclure. Versão Staferla.
_____. (1978-1979) Le séminaire, livre XXVI: la topologie et le temps. Versão Staferla.
_____. (1975) “L’ombilic du rêve est un trou” Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter. La cause du désir, 2019 (102), pp. 327-350.
_____. Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
MILLOT, Catherine. A vida com Lacan. Trad. A. Telles: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017.
REIK, Theodor (1956) Trente ans avec Freud. Paris: Éditions Complexe, 1975.
ROUDINESCO, Elisabeth. Lacan a despeito de tudo e de todos. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
VIVES, Jean-Michel (2020) Pavor e compaixão: da catarse trágica ao trágico do ato analítico [Trad. P. S. Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -9, p. 6, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/07/01/n-9-06/>.
* Leonardo Goldberg é doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e realizou seu pós-doutorado na USP e na Universidade Côte d’Azur (Nice-França). É psicanalista em São Paulo.
** Jean-Michel Vives é professor de psicopatologia clínica na Universidade Côte d’Azur (Nice-França) e psicanalista em Toulon. Co-fundador, com Alain Didier-Weill, do movimento Insistance.
[1] LACAN, Jacques (1974) A terceira/Teoria de lalíngua. Trad. T. M. do Prado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2023, p. 22
[2] Aqui, diferenciamos a mimesis aristotélica da noção de imitação. Como Jean-Michel VIvès aponta, de forma diferente da tradição, tradutores como Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot pensam a mimesis como representação e não como imitação (imitation). Cf. em Vives, Jean-Michel (2020) Pavor e compaixão: da catarse trágica ao trágico do ato analítico [Trad. P. S. Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -9, p. 6, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/07/01/n-9-06/>.
[3] Nome artístico de Marcel Mangel. Inspirado por Chaplin, foi um dos mais importantes mímicos do século XX.
[4] LACAN, Jacques. Televisão. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
[5] Referência a Jacques-Alain Miller, seu genro e organizador/estabelecedor dos seminários.
[6] MILLOT, Catherine. A vida com Lacan. Trad. A. Telles: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017, p. 35
[7] LACAN, Jacques (1974) Televisão. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 12
[8] LACAN, Jacques (1970) Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[9] LACAN, Jacques (1974) A terceira/Teoria de lalíngua. Trad. T. M. do Prado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2023, p. 20
[10] FELLINI, Frederico. Os palhaços (Título original: I Clowns). Direção de Frederico Fellini, Produção RAI Radiotelevisione Italiana / Office de Radiodiffusion Télévision Française (ORTF) / Bavaria Film / Compagnia Leone Cinematografica; Itália, França, Alemanha, 1970, 92min
[11] BOUISSAC, Paul. The semiotics of clowns and clowning: rituals of transgression and the Theory of Laughter. London: Bloomsbury Academic, 2015.
[12] Cf. DICKENS, Charles (1838) Memoirs of Joseph Grimaldi. London: Puschkin Press, 2008.
[13] BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
[14] BOUISSAC, Paul. The semiotics of clowns and clowning: rituals of transgression and the Theory of Laughter. London: Bloomsbury Academic, 2015, p. 41.
[15] BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
[16] BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
[17] BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 78.
[18] Cf. ROUDINESCO, Elisabeth. Lacan a despeito de tudo e de todos. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
[19] LACAN, Jacques (1972-1973) O Seminário: Livro 20: mais, ainda, 2ª ed. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 129.
[20] LACAN, Jacques (1972-1973) O Seminário: Livro 20: mais, ainda, 2ª ed. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 125.
[21] LACAN, Jacques (1963-1964) O Seminário: livro 1:os escritos técnicos de Freud. Trad. B. Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 94.
[22] Para esta segunda proposição não é certo que Lacan tenha sido observado por seus pares. Quantos analistas o imitaram até a caricatura e ao fazê-lo não tomaram como exemplo aquele que trouxe para o primeiro plano da cena analítica a questão da singularidade estilística inimitável do analista? Sobre este assunto podemos ler: DIDIER-WEILL, Alain. Quartier Lacan. Paris, Denoël, 2001; IZCOVICH, Luis (2020) La pratique de Lacan. Paris: Stilus.
[23] No século XVI, o canevas no teatro (e particularmente no contexto da Commedia dell’Arte) era uma sinopse geral que esquematizava as linhas principais do cenário. Geralmente memorizado, às vezes escrito, o esboço especifica cada uma das fases narrativas do andamento do espetáculo sem entrar nos detalhes da atuação, dos movimentos dos atores ou do conteúdo das falas. Ao seguirem as etapas do quadro, os atores são, portanto, responsáveis por preencher as lacunas com um texto improvisado. O jogo, portanto, flutua com cada representação enquanto o canevas permanece estável. Nossa hipótese é que o canevas ocupa o lugar da fantasia inconsciente na psicanálise no teatro. Porque, como afirmou Lacan em 1967: “O valor da psicanálise está em operar sobre a fantasia. O grau de seu sucesso demonstrou que aí se julga a forma que assujeita como neurose, perversão ou psicose. Donde se afirma, atentando unicamente para isso, que a fantasia constitui o enquadra da realidade: isso aí é evidente! E também seria impossível de deslocar, não fosse a margem deixada pela possibilidade de exteriorização do objeto a”. LACAN, Jacques (1967) “Alocução sobre psicoses infantis”. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 364.
[24] Célebres palhaços na França da primeira parte do século XX.
[25] COPEAU, Jacques, Registre III – Les Registres du vieux colombier, tome 1. Paris: Gallimard, 1979, p. 319.
[26] Parafraseando uma frase famosa de Sacha Guitry, o lema do analista palhaço poderia ser: “Sou contra o real, tudo contra…”
[27] Note-se que a parte inicial das instruções dedicadas à improvisação musical foi confiada a um… psicanalista! Pierre-Paul Lacas é um dos psicanalistas franceses que defendeu a obra de Gisela Pankow e se interessou muito por música. Escreveu assim os artigos para a famosa enciclopédia: Ab-reação, Acting out, Associação Livre, Negação, Mecanismo de defesa, Impulsão parcial, Retorno do reprimido, Sobredeterminação… mas também Barcarolle, Barroco, Bécarre, Boléro, Haute-Contre, Soprano… Cf. em Enciclopédia Universalis, 1992, volume 11, p. 1031
[28] LACAN, Jacques (1959-1960) O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017, p. 387
[29] A ideia de desistência como oposição a insistência do sujeito compromissado com o seu desejo é trabalhada por Didier-Weill em uma das últimas sessões públicas do Seminário de Jacques Lacan (A Topologia e o Tempo). Na intervenção apresentada, Didier-Weill sustenta que o enigma de S(Ⱥ) engaja o sujeito a “não desistir mais de uma promessa relativa ao seu desejo, uma promessa que é enigmática — não é um juramento de conteúdo explícito — é uma promessa de não se sabe o quê, simplesmente sustentar esse desejo, mesmo sem saber o que é”. Isso implica o sujeito a não desistir de sua insistência no desejo. Cf. LACAN, Jacques (1978-1979) Le séminaire, livre XXVI: la topologie et le temps. Versão Staferla, p. 24.
[30] LACAN, Jacques (1978-1979) Le séminaire, livre XXVI: la topologie et le temps. Versão Staferla, p. 387.
[31] REIK, Theodor (1956) Trente ans avec Freud. Paris: Éditions Complexe, 1975.
[32] Lacan cria um neologismo que aglutina a palavra ontologia (ontologie) com a palavra vergonha (honte): hontologie. Quando a traduzimos para o português para conservar seu sentido, a palavra Vergontologia não conserva o efeito homofônico que na aglutinação entre hontologie e ontologie.
[33] LACAN, Jacques. (1969-1970) Le séminaire, livre XVII: l’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991, p. 209.
[34] BERNARD, David. (2011) Lacan et la honte. De la honte à l’hontologie. Paris: Editions nouvelles du Champ Freudien, 2019.
[35] “Cada sonho tem pelo menos um ponto em que ele é insondável, um umbigo, por assim dizer, com o qual ele se vincula ao desconhecido”. FREUD, Sigmund (1900) A interpretação dos sonhos (Obras Completas Volume 4). Trad. P. C. de Souza. Companhia das Letras: São Paulo, 2019, p. 183.
[36] LACAN, Jacques (1975) “L’ombilic du rêve est un trou” Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter. La cause du désir, 2019 (102), pp. 327-350.
[37] Este é o significado da intervenção de Freud com Reik.
[38] LACAN, Jacques. (1974) Televisão. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. Contrariamente ao que alguns colegas podem escrever, não é um “toque de real”, mas sim um “toque do real” (como segue a tradução brasileira). Identificar a diferença entre as duas formulações é essencial aqui. Um “toque de real” pode ser entendido como um pouco do real misturado com realidade (como na expressão: “Para conseguir essa cor tem que adicionar um toque de azul”). Por outro lado, um “toque do real” deve ser entendido no duplo sentido de ser tocado pelo real e de tocá-lo.
COMO CITAR | GOLDBERG, Leonardo & VIVES, Jean-Michel (2024) Retrato do psicanalista como palhaço. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17, p. 9, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2025/02/18/n-17-09/>.