A sexualidade infantil e o autoerotismo da transferência

[La sexualité infantile et l’auto-érotisme du transfert]

por Pierre Fédida

Tradução | Bruno Kinoshita

In: WIDLÖCHER, Daniel (org.) (2001) Sexualité infantile et attachement. Paris: PUF, pp. 169-184.

Karl Abraham criticou Freud por ter abandonado precipitadamente – ou de forma muito prematura – a noção de autoerotismo, em favor do suposto benefício do conceito de narcisismo, considerado menos descritivo e, portanto, mais metapsicológico, sendo capaz de permitir que a relação dinâmica entre o Eu e a relação de objeto fosse pensada de forma mais integrativa. À primeira vista, não designaria o autoerotismo, por sua definição geral, um estado primário da erogenidade do corpo e do prazer encontrado não apenas nas zonas erógenas, mas no funcionamento vital dos órgãos, sem uma aparente consideração por um outro exterior? Havelock Ellis, em 1898, não havia imaginado na histeria a capacidade de experimentar, durante o sono, uma excitação nos sonhos sem que houvesse a menor incidência de uma fonte pertencente a um objeto externo. Se não há dúvida de que o sonho pode proporcionar um prazer genuíno ao sonhador, poderíamos então argumentar que o sonho seria o protótipo do autoerotismo e que este não implicaria de forma alguma na existência de um outro? Como Freud observou em 1920 (em uma nota adicionada aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade), “para a psicanálise, o essencial não é a gênese, mas a relação com um objeto”[1]. Sugere-se, dessa forma, que a noção de autoerotismo não pode recair, sem se “perverter”, no modelo da masturbação e servir como modo de se pensar um estado anobjetal, equivalente ao prazer do órgão.

É verdade que Karl Abraham – com base na teoria sexual de Freud – procurava, em 1908, a especificidade do fenômeno regressivo do retraimento e da “destruição da capacidade de transferência sexual e de amor objetal” na demência precoce [dementia praecox]. No entanto, não deveriam suas hipóteses clínico-teóricas participar de uma abordagem mais geral do desenvolvimento da libido, bem como de seus avatares psicopatológicos? Deste ponto de vista, K. Abraham concorda com a ideia de Freud segundo a qual é o investimento excessivo da libido no objeto que caracteriza o aloerotismo (e não o autoerotismo) da histeria. Por outro lado, a anamnese dos sujeitos com demência precoce revelaria que desde tenra idade eles não conseguem se ligar a ninguém, nem “transferir sua libido”. É assim que o autoerotismo se tornaria, sob tais condições, um refúgio para a regressão. O onanismo seria, nesse sentido, uma das principais características dessa fixação no autoerotismo. Em uma época semelhante, Bleuler sugeria que, na esquizofrenia, o autoerotismo se empobreceria a ponto de se privar de Eros, transformando-se, dessa forma, em um autismo. O autismo seria, literalmente, um autoerotismo sem Eros!

Entretanto, estaríamos nos afastando da concepção freudiana de autoerotismo ao favorecer o modelo de um estado regressivo de uma fixação a um comportamento que atestaria a “destruição da capacidade de transferência sexual”. As fantasias sexuais infantis – observa Freud – são entregues com ainda menos resistência, de forma que é “como se tivessem agora perdido seu valor”. É apropriado dizer, portanto, que no tratamento psicanalítico a transferência regenera de certa forma o autoerotismo danificado ou destruído, e que essa regeneração cria uma disposição favorável para a livre expressão fantasística da vida sexual infantil, especialmente devido à retirada da libido do objeto sexual. Num certo sentido, pode-se argumentar que a genitalização relativamente precoce do objeto sexual e a vida sexual do adulto correspondem, de maneira geral, a verdadeiras provas do autoerotismo e de sua criatividade na fantasia sexual infantil. O investimento sexual excessivo no objeto poderia até mesmo parecer uma espécie de destituição do autoerotismo. Como escreve Freud a Abraham, em uma carta de 5 de julho de 1907, uma vez que o histérico “se distancia consideravelmente do autoerotismo infantil, ele exagera o investimento no objeto”. Não se passaria então como se, com o aloerotismo da histeria, os sintomas corporais de conversão mantivessem de modo crítico o investimento do objeto sexual e preservassem, sem o autoerotismo, a sexualidade infantil de uma destruição? A demência precoce – de um modo comparável ao que se observa na neurose obsessiva e na paranoia – seria então testemunha de uma tentativa inversa de reconstituição autocrática de um autoerotismo que fracassaria pela invasão interna ou externa das excitações sexuais. Essas hipóteses psicopatológicas, que evocam certos destinos do autoerotismo, lançariam ainda mais luz sobre as condições em que o tratamento psicanalítico é possível e sobre as condições em que a transferência é capaz de favorecer a expressão fantasística da sexualidade infantil – pelo fato, diríamos, da retirada da libido do objeto sexual.

No diálogo com Karl Abraham, Freud mal se preocupa em discutir sobre o terreno psiquiátrico do campo das demências. Evidentemente, o que o interessa não é o uso explicativo de uma oposição entre autoerotismo e aloerotismo. É na análise, lembrará ele, que o autoerotismo pode ser mais bem observado, na medida em que ele favorece a aparição das fantasias que portam os sintomas. Não podemos, portanto, fazer do autoerotismo um fato comportamental que se relaciona regressivamente a um estádio do desenvolvimento psicossexual. É procedendo dessa maneira que se alcança, por abstração, à concepção de um estado originário e miticamente anobjetal, no qual o “objeto” emergiria ex nihilo. Qualquer debate estaria distorcido desde o início caso se prevalecesse, em nome da teoria sexual infantil, uma ideia de gênese (Freud). É este espírito de abstração – familiar a certas psicopatologias filosóficas, como a de Bleuler e mesmo a de Jung, mas estranho à psicanálise – que faz crer que um conceito ou uma noção possa ser observado diretamente como um fato sintomático. Daí resultam essas discussões muitas vezes vãs e infrutíferas sobre a primazia ou a secundariedade do objeto no desenvolvimento da sexualidade. A questão, no fim, é a seguinte: até que ponto os dados obtidos da observação direta de crianças pequenas são apropriados para sustentar as proposições formadas na escuta de pacientes durante a cura em uma análise?

Desde 1970, em seu trabalho sobre Vida e Morte em Psicanálise, Jean Laplanche[2] criticava fortemente “essa grande fábula do autoerotismo, considerado como um estado de ausência primária e total do objeto – estado a partir do qual um objeto deve ser encontrado; pelo contrário, o autoerotismo é um segundo tempo, um tempo de perda do objeto”. O texto de Freud ao qual Laplanche se refere é precisamente os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no qual podemos ler que “o protótipo de qualquer relação amorosa” se encontra na sucção do seio materno pelo bebê. A imagem da satisfação sexual conhecida posteriormente não pode ser aquela da “criança saciada” que, abandonando o seio, cai nos braços de sua mãe para adormecer com um sorriso feliz. Uma tal imagem daria amplo crédito à ideia de que a relação amorosa e sexual tendem precisamente a essa completude que comporta o objeto primordial e que se trataria de redescobrir. Daí a ambiguidade da fórmula freudiana – “Encontrar o objeto sexual é, na realidade, reencontrá-lo” –, que poderia levar a crer que o amor busca reencontrar o objeto primário. No entanto, a vida sexual não significa este engodo que consistiria em procurar um objeto que não pode ser reencontrado “já que – escreve Laplanche – o objeto que foi perdido não é o mesmo que aquele que se deseja reencontrar”. A perda do objeto intervém, diz Freud, “justamente na época em que se torna possível, para a criança, formar uma ideia total da pessoa a quem pertence o órgão que lhe traz satisfação”[3]. A pessoa da mãe (o objeto total) em sua própria presença real, de alguma forma faz cair o objeto parcial da pulsão. Até o momento, talvez não tenhamos enfatizado o suficiente o que significa a pessoa e, mais ainda, a pessoa em sua presença real. É com essas palavras que Freud introduz a noção de alucinação negativa na hipnose, no sonho e na transferência. A realidade do outro – como “presença em pessoa” – não pode se tornar o objeto de uma relação: a perda do objeto de autoconservação não pode ser substituída pela realidade da pessoa representada na sua totalidade. Devemos então admitir que essa perda – que, em certos aspectos, poderia ser da ordem de um luto – não leva para a sexualidade à descoberta de seu objeto real. Laplanche (1985) tem razão ao notar que “por um lado, desde o início há um objeto, mas por outro lado a sexualidade não tem, desde o início, um objeto real”. E ele acrescenta: “É este objeto real [o leite] que foi perdido, mas o objeto ligado à reversão autoerótica, o seio – que se tornou seio fantasístico –, é ele, de fato, o objeto da pulsão sexual”. Talvez seja exagerado dizer que o seio se tornou um “seio fantasístico”. Não sabemos se devemos chamar de “seio” esse suporte fantasístico do autoerotismo. Podemos apenas levantar a hipótese de que a alucinação negativa da fantasia irá engendrar objetos que estarão à procura de sua constituição sexual. A fragilidade da sexualidade humana não se deve a este deslocamento – i.e., descompasso – que é característico do segundo tempo do autoerotismo. Que a sexualidade não tenha, de início, um objeto, significa claramente que a qualificação sexual do objeto é polimórfica e, acrescentaríamos, plástica, assim como é toda sexualidade infantil. Nesse sentido, o autoerotismo é concebido – na relação com um outro – como uma capacidade de criação e de transformação de objetos, desde que a presença real da pessoa do outro não lhe atribua um conteúdo sexualizado, relacionado exclusivamente a ela. A sedução sexual precoce da criança pelo adulto pode, com efeito, levar a essa destituição do autoerotismo.

O argumento de Daniel Widlöcher em torno do debate “amor primário e sexualidade infantil” tem, em primeiro lugar, o mérito notável de ser muito firmemente articulado em torno das oposições históricas a que deu origem. Em outras palavras, este “debate entre Londres e Viena”, iniciado por Balint sobre o amor do objeto primário, continuaria a girar em torno de uma aporia nominalista se não fosse reintroduzida (como fizeram Melanie Klein e seus seguidores) uma atividade fantasística primária que implica um objeto (bom ou mau) pertencente ao conteúdo da própria fantasia. Assim, não seria possível conceber uma condição solipsista do autoerotismo, afinal, como indica Melanie Klein, “os estados de retração narcísica são estados nos quais a retração opera em direção à constituição de objetos internos”. Segundo Daniel Widlöcher, “os conceitos de bom e mau objeto devem ser entendidos como objetos de pensamento”. “Certamente” – ele acrescenta – “falaremos de relação narcísica de objeto, na medida em que se trata de objetos internos, mas esses objetos pertencem à própria estrutura da pulsão, uma vez que constituem o predicado da fantasia e este está presente desde a origem de toda vida psíquica”. Tendo em conta as contribuições de Fairbairn através de sua concepção psico-etológica da relação de objeto, Widlöcher parece não se afastar muito desta ideia central presente no Grupo Independente (especialmente em Winnicott), segundo a qual é a transferência que melhor esclarece, na análise e na cura de adultos, a inscrição da relação de objeto na realidade psíquica e na repetição da relação com o outro. O que chamamos de relação de objeto encontra, na transferência, suas modalidades originais de expressão encenadas que permitem inferir o que deve ser compreendido sob o nome de o infantil da sexualidade. Devemos então admitir que somente a fantasia que é enunciada na cura – pela sua natureza e sua função autoerótica – pode revelar como a relação de objeto se constituiu desde a sua origem e a quais vicissitudes pessoais ela esteve sujeita. Portanto, é inegável que uma melhor apreciação técnico-teórica da dinâmica da cura no tratamento deverá conduzir a hipóteses metapsicológicas sobre as condições da criatividade da sexualidade infantil na vida do sujeito. Assim, uma concepção muito restrita do autoerotismo deve ser evitada. Ao mesmo tempo, é necessário dispensar uma visão desenvolvimentista sobre a secundarização da procura do objeto. Por fim, a vantagem de se basear estritamente nas construções elaboradas a partir da escuta do paciente é a de evitar o raciocínio filosófico que Husserl apresentava para justificar uma intersubjetividade anterior à constituição da subjetividade: o material produzido na análise é suficiente por si só para designar o lugar e a função do outro no autoerotismo da fantasia. A observação empírica das primeiras interações entre a mãe e o bebê fornece numerosos elementos de informação que oferecem a vantagem de imaginar melhor a especulação teórica: mas é o seu valor de evocação metafórica que, aqui como em outros contextos na psicanálise, deve prevalecer.

De qual debate se trata?”, pergunta Daniel Widlöcher após lembrar quem eram os protagonistas e as circunstâncias do debate. Certamente, o debate pode ser travado entre uma teoria freudiana do “proto-objeto” oral (o seio) que se prepara para a posterior descoberta do objeto-outro e, por outro lado, uma teoria da primariedade do amor de objeto (apego à mãe real) que estaria na fonte das fantasias sexuais. A libido é essencialmente narcísica, mas esse narcisismo não seria, de certo modo, suficiente para conceber o que se chama de “sexualidade”. E, se podemos legitimamente afirmar que o autoerotismo decorre disso, é necessário ainda se perguntar como intervém a necessidade do objeto-outro. “Amor de objeto e autoerotismo coexistem ao longo de toda a infância“, escreve Daniel Widlöcher, que continua: “As condições de satisfação não são as mesmas. O amor de objeto dirige-se a uma pessoa real, um outro próximo ao entorno (…). Ao contrário do amor de objeto, a sexualidade infantil se constrói a partir de uma exigência interna e obtém sua satisfação em uma atividade autoerótica psíquica e/ou física.” A intercambialidade do objeto depende amplamente dos cenários imaginários. Em sua argumentação, o projeto de Widlöcher é claramente “reconsiderar o princípio dessa fusão entre amor e sexualidade que caracteriza a sexualidade adulta e sua clivagem na infância“. As numerosas referências citadas (Spitz, Anna Freud, Hoffer, Lab, Renaud, etc.) estão todas preocupadas em resolver essa aporia da satisfação autoerótica da pulsão e da origem narcísica do amor, na medida em que se opera progressivamente um desprendimento da pulsão de sua satisfação autoerótica, à procura de novos objetos externos.

As proposições apresentadas por Daniel Widlöcher podem ser, portanto, resumidas da seguinte forma:

  1. A sexualidade infantil não é uma sexualidade prematura”: ela persiste no adulto “como uma fonte de desejos e atividades criativas permanentes“.
  2. “A pulsão sexual infantil não é um instinto“. O que equivale a dizer que a sexualidade infantil não se mantém no adulto como “um resíduo mal assimilado”, mas encontra seus modos de expressão no sonho e na transferência. A “atividade criativa autoerótica” da sexualidade infantil encontrará, sem dúvida, um obstáculo corporal na sexualidade genital do adulto, o que torna esta última ainda mais difícil de ser pensada nas evocações e nos relatos pessoais da cura.
  3. A assimilação da sexualidade infantil à sexualidade genital do adulto estaria propensa a confundir um ponto de vista “desenvolvimentista” com uma “compreensão de seu papel no inconsciente”.
  4. A sexualidade infantil não é uma questão de padrões comportamentais (de natureza etológica), mas “da pura subjetividade própria à atividade fantasística”. “A fantasia não é o produto da sexualidade infantil, ela a constrói. O que geralmente se chama relação de objeto descreve a estrutura dessa fantasia; ela cria mais do que expressa a sexualidade infantil.”. Widlöcher defende a ideia de “uma tendência própria ao autoerotismo”.
  5. “O autoerotismo na cura”: esse autoerotismo designa claramente a experiência de prazer do co-pensamento associativo, segundo o paradigma sonho-estado hipnoide.
  6. A “participação em uma coassociatividade” abre o caminho transferencial para o autoerotismo do analisando e para uma atividade sublimatória do analista.
  7. O lugar atribuído à função do apego à pessoa do outro só pode ser pensado em relação ao autoerotismo.

Concordo amplamente com as ideias aqui resumidas e desenvolvidas por Daniel Widlöcher em sua notável contribuição. Embora vários pontos mereçam uma discussão mais aprofundada, gostaria agora de apresentar algumas observações e reflexões, no espírito de uma interlocução crítica com seu trabalho.

A) O “outro” do autoerotismo

O autoerotismus não é um “Selbsterotismus”: o prefixo “selbst”, no entanto, é o mesmo que encontramos no termo alemão para autoconservação (Selbsterhaltung). A escolha freudiana de conservar a expressão de Havelock Ellis é dupla, também pelo interesse em ver nela a coexistência de “autos” e “eros” – como se os dois termos juntos introduzissem o sentido de uma interação dinâmica: Eros é móvel e vivo e cabe a ele impedir que uma forma se fixe (autos tem seu centro em todo lugar e sua circunferência em lugar nenhum!) em uma função ou órgão; autos faz com que eros disponha de toda sua capacidade de agir sobre as formas, transformando-as. Sabemos que, para Freud – como nos lembra Laplanche –, o autoerotismo recebe essa expansão paradigmática proveniente das zonas erógenas, a ponto de designar a transformação que uma “atividade” sofre em função do prazer que a move. O autoerotismo é, de certa forma, um Gestaltkreis (V. von Weizsäcker) – círculo gestáltico – onde motricidade e sensorialidade se engendram reciprocamente. O prazer que a criança descobre no desenvolvimento de seus movimentos produz novos movimentos que, por sua vez, são novas fontes de sensação, como também de representação e linguagem. Isso significa que a plasticidade autoerótica é produtora da criatividade da fantasia. Nesse sentido, podemos de fato aproximar esse círculo à forma da circularidade do prazer no Witz, já que o prazer do chiste faz com que o sentido jogue com a língua, graças à função móvel adquirida por um terceiro imaginário (Monique Schneider). Este é, portanto, o autoerotismo nesta condição em que o outro esteja presente em pessoa com sua capacidade de se ausentar: em outras palavras, o autoerotismo é atividade fantasística, na medida em que esta possui o poder de fazer o outro desaparecer/reaparecer na presença.

É, portanto, à atividade fantasística – atividade alucinatória da fantasia – que se deve o regime de produção do outro em suas modalidades de aparência e de aparição/desaparecimento. Podemos, a este respeito, lembrar que o “autos” aristotélico é da ordem do mesmo – esse “mesmo” sendo, de forma pré-especular, o mesmo-outro. É isso que Freud quer dizer ao abordar o tema das inferências anímicas (ver os Ensaios de Metapsicologia, especificamente o texto sobre “O Inconsciente”) e é também o que está claramente sendo descrito na função desempenhada pelas aparições fantasmáticas, em seu comentário sobre a Gradiva. Freud relaciona essa “particularidade” ao poder do psíquico, que acaba por produzir assim a infamiliar estranheza[4] do duplo. A produção do duplo – de natureza animista – pertence, de fato, à fantasia autoerótica na capacidade que ela possui (especialmente a partir da erogenidade da visão) de se apresentar alucinatoriamente como o mesmo de si.

A problemática do outro na estrutura da fantasia não pode, portanto, ignorar a função de repetição do mesmo enquanto inerente ao surgimento da sexualidade infantil.

B) A sexualidade infantil

Sabemos que a questão da sexualidade infantil tem toda a importância reconhecida por Daniel Widlöcher devido aos desafios que ela representa para a psicanálise. Dito de outra maneira, poderia a psicanálise prescindir da referência à sexualidade infantil? A questão corre o risco de dogmatizar a resposta. De fato, a referência à sexualidade infantil não pode se valer de um uso sistemático do infantil na interpretação. Além disso, não seria melhor falar do infantil do sexual que permanece presente tanto na curiosidade, como sob essa forma de criatividade da fantasia que Daniel Widlöcher tanto se preocupa em destacar na presente contribuição?

A criatividade da sexualidade infantil se deve, sem dúvida, ao polimorfismo perverso que Freud descrevera. No entanto, uma vez que a sexualidade infantil pode ser produtora e transformadora de objetos, é necessário, antes, questionar-se sobre seus avatares e fracassos imputáveis à sexualidade genital do adulto. De fato, é notável como esta última geralmente acolhe com dificuldade a criatividade fantasística, na medida em que essa criatividade está ligada à linguagem e a toda produção de pensamento. A psicopatologia da sexualidade genital, tal como aparece no tratamento psicanalítico, revela claramente como os comportamentos da vida amorosa tendem a reproduzir em relação ao outro essa experiência traumática da criança, conforme descrito por Ferenczi (“a confusão de línguas”). Poderíamos até levantar a hipótese de que é a fantasia sexual infantil e o autoerotismo que são prejudicados no adulto, devido aos comportamentos em sua expressão genital. É exatamente disso que se trata nas seduções sexuais do adulto em relação à criança (Laplanche): o traumático diz respeito a um ataque à criatividade da fantasia.

Certamente não se trata de atribuir um pseudo-rousseauismo à sexualidade infantil. Uma tal mitologia iria contra o paradigma freudiano e retiraria todo o sentido tanto da sexualidade, quanto do infantil. Ferenczi não escapou completamente dessa mitologia, como fica evidente na sua esperança de uma mãe terna vindo a encarnar – no analista – um desejo de reparação e cura. E o analista – como lembra Freud a Ferenczi, em sua famosa carta de dezembro de 1931 (“Carta sobre a técnica do beijo”) – deve se ater a essa posição estrita de não agir, de modo algum, como se pudesse produzir, com um gesto, esta ternura exigida pelo paciente, visto que ele tornaria apenas a reproduzir o gesto da excitação sexual pelo adulto. O infantil do sexual não pode levar a uma infantilização da sexualidade.

C) O autoerotismo da transferência

O que foi designado como o outro do autoerotismo precisa agora ser reconsiderado do ponto de vista da cura analítica e da transferência.

Eu já havia levantado em outro momento a hipótese da natureza autoerótica da transferência. Poderíamos até mesmo acrescentar que o autoerotismo recebe da teoria da transferência seu pleno esclarecimento, tanto em relação a essa ideia de um prazer que se engendra por si mesmo, quanto do ponto de vista da presença/ausência do outro. A vida psíquica (e psico-corporal) tem a particularidade de se dispor de uma depressividade necessária para se proteger de excitações excessivamente intensas, tanto internas, quanto externas. Essa depressividade[5] garante a atividade autoerótica da fantasia, permitindo-lhe permanecer viva e criativa. Em grande parte, a depressividade do psíquico resulta de interações precoces, cujo ritmo é destinado a produzir trocas e, portanto, transformações recíprocas (modelo do prazer mãe-bebê).

Na análise – como lembra Daniel Widlöcher –, a associação livre da fala, os sonhos, as fantasias expressas etc. induzem um prazer psíquico relacionado ao prazer preliminar (Vorlust). “A tendência é alcançada em sua realização imaginária porque uma economia, uma forma de curto-circuito, descarrega a tensão de outra maneira que não pela realização na realidade (…). Mas, aqui novamente, o modelo do orgasmo se revela enquanto um obstáculo para nossa compreensão. Já se encontrou, afinal, alguma prova de um equivalente orgásmico para explicar o fim da atividade física autoerótica? Podemos nos perguntar se, ao contrário do prazer sexual genital, o prazer não estaria localizado na própria origem do ato, seja ele o ato psíquico ou o ato masturbatório. Logo, o prazer no autoerotismo da sexualidade infantil seria inicial e não terminal. Em outras palavras, o surgimento do desejo coincidiria com o prazer.” Estou de acordo com aquilo que Widlöcher escreve em relação a um Vorlust (desejo-prazer) que qualifica a economia específica da fantasia sexual autoerótica. São sob os mesmos termos que o prazer psíquico é designado, deixando em segundo plano a presença do objeto (uma espécie de desligamento do circuito do investimento sexual da pessoa e, parcialmente, do corpo excitável). A capacidade metafórica dessa retirada do circuito “econômico” reforça a mobilidade fantasística e a criatividade dos objetos imaginários. O que caracteriza, aqui, a transferência é ser uma transferência intrapsíquica sobre objetos constantemente móveis e transformáveis. O psíquico só é animado sob esta condição: que a depressividade lhe poupe da provação de ser sexualmente “muito vivo” ou ainda de “parecer muito vivo” (Freud). Não surgiria a estranheza do infamiliar por excesso de representação viva animada? Isso é, por assim dizer, esse regime de degressividade da transferência que concede aos processos analíticos uma função de troca entre o paciente e o analista. O “espaço intermediário da sessão”, segundo Winnicott, é literalmente uma metáfora de trocas produzidas de forma verbal, mas comportando, sobretudo, uma gestualidade implícita das palavras e de suas vozes.

Falar do autoerotismo da transferência exige, por sua vez, uma compreensão tão exata quanto possível da função alucinatória da fantasia. Essa função conjuga, na mesma atividade produtiva da fantasia, a alucinação negativa (poder psíquico de agir sobre a aparência da presença e de fazê-la desaparecer/reaparecer) e uma alucinação do objeto que desempenha o papel de realização do desejo. Em outras palavras, convém não dissociar (inclusive na formação da interpretação pelo analista) tal criação pela fantasia das novas formas-objetos que respondem ao Vorlust e ao “tratamento” do outro em sua presença de aparência. “Ser transparente como o ar“, diz Freud ao designar com a palavra “pessoa”[6] uma presença que pode se ausentar, a fim de permitir o desenvolvimento da emergência das fantasias nesse prazer autoerótico de interiorizar a presença sem reencontrar seu obstáculo. Enquanto essa presença vier a se manifestar ativamente, ela não reproduzirá uma ameaça de interrupção do autoerotismo.

Seria necessário recorrer extensivamente à clínica de certas formações psicopatológicas que ocorrem no tratamento (reforço do funcionamento obsessivo, vícios e dependências, anorexias, certos estados somáticos etc.) para compreender plenamente as dificuldades da produção da transferência enquanto correlacionadas com expressões pervertidas do autoerotismo. É geralmente à luz dessas sintomatologias que se vê com mais clareza o impossível desligamento dos outros, transferencialmente investidos sob um modo de amor primário encravado na psique. O que eu expresso aqui como expressões pervertidas do autoerotismo designa, então, essas configurações em que o corpo do outro é investido de tal maneira que sufoca ou esmaga toda a vida fantasística.

É em nome da psicoterapia dos transtornos da vida sexual do adulto que geralmente se defende hoje o abandono mais ou menos disfarçado do paradigma freudiano da sexualidade infantil. O erro recorrente é tratar a sexualidade infantil como parte dos comportamentos sexuais da criança e, depois, considerá-la como um vestígio da sexualidade do adulto. Isso não apenas reduz o alcance do paradigma, como também desnatura completamente o significado inerente à teoria e à prática da psicanálise. Daí resultam também essas operações de abstração que visam reconstituir o mito do primitivo anobjetal e o papel do objeto externo no desenvolvimento da relação. Ao nos debruçarmos sobre os processos envolvidos na transferência e na situação analítica como um todo, obtemos certamente uma visão bem mais direta das modalidades segundo as quais o outro-real pode ter favorecido ou não a criatividade da sexualidade infantil. Percebe-se, sobretudo, que essa criatividade não é independente da linguagem. Por fim, apreendemos aqui e em toda sua extensão a difícil adequação entre essa criatividade e a sexualidade genital do adulto.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [Trad. Paulo César de Souza]. In: Obras completas, vol. 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016; pp. 13-172.

LAPLANCHE, Jean. (1970). Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion.


[i] Pierre Fédida foi um filósofo e psicanalista, considerado um dos mais importantes nomes da psicanálise francesa e com notável influência na psicanálise praticada no Brasil. Defendeu sua tese de doutorado em letras e ciências humanas, orientando-se depois para a psicopatologia. Foi membro da Association Psychanalytique de France (da qual foi presidente em 1988), professor da Universidade Paris VII e co-diretor da coleção “Forum Diderot”, das Presses Universitaires de France (PUF). Fédida é autor de vasta obra escrita, em que mescla estudos sobre literatura, arte, psicanálise, filosofia e outros temas. Seu trabalho é internacionalmente reconhecido. Uma das questões clínicas que ganharam maior destaque na obra do psicanalista é a contratransferência, a respeito da qual escreveu vários trabalhos.

[ii] Bruno Kinoshita possui bacharel em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Atualmente é especializando do Curso Multiprofissional em Atenção Psicossocial, através do “Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luís da Rocha Cerqueira – CAPS Itapeva”. Atua em clínica particular e no contexto da saúde mental e coletiva. Email: brunokinoshita25@gmail.com



[1] FREUD, Sigmund. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [Trad. Paulo César de Souza]. In: Obras completas, vol. 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 85.

[2] LAPLANCHE, Jean (1970). Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion.

[3] Op.cit., p. 143.

[4] Trata-se de uma referência ao termo em alemão presente no título do célebre ensaio de Freud “Das Unheimliche” (1919), que poderia ser traduzido por: “O infamiliar”, “O incômodo” ou, até mesmo, “O inquietante” (N.T.).

[5] Optamos por conservar o termo em consonância à tradução presente em: FÉDIDA, Pierre (2001) Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. Trad. Elisa Maria de Cintra Ulhôa. São Paulo: Escuta, 2009. A depressividade ou capacidade depressiva ou, até mesmo, disposição depressiva (que aludiria à tradição fenomenológica que inspirava Fédida) deve ser entendida, aqui, enquanto forma de manutenção da vida psíquica do sujeito. De uma perspectiva da psicopatologia fundamental, Fédida acentua que: “A depressividade não é de forma alguma o estado deprimido. É, antes, essa reapropriação do psíquico com suas próprias temporalidades” (p. 37) (N.T.).

[6] Na língua francesa, o termo permite um interessante jogo de palavras para o sentido que Fédida recupera da frase de Freud, uma vez que a palavra “personne” pode designar tanto o substantivo “pessoa”, quanto o pronome “ninguém” (N.T.).




COMO CITAR | Fedida, Pierre (2001) A sexualidade infantil e o autoerotismo da transferência [Trad. Bruno Kinoshita]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -17, p. 10, 2025. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2025/02/18/n-17-10/>.