Quando a sexualidade se torna sinistra

When sexuality becomes creepy ]

por Slavoj Žižek

 Tradução | Luigi Barichello

A sexualidade hoje vem sendo reduzida cada vez mais às satisfações encontradas nos objetos parciais: somos constantemente bombardeados com objetos-engenhocas que prometem nos proporcionar um prazer desmedido e sem muito esforço. A última moda a esse respeito é a chamada “unidade de treinamento de desempenho e resistência” [Stamina Training Unit], uma contraparte ao bom e velho vibrador. Trata-se de um dispositivo para a masturbação semelhante a uma tradicional lanterna a pilhas (algo de que não nos envergonharíamos ao carregá-lo)[1]: basta colocar o pênis ereto na abertura específica na extremidade e apertar um botão para que o objeto vibre até que se alcance a satisfação almejada. O produto está disponível em cores variadas e em diferentes níveis de constrição e configuração (com ou sem pelos, etc) que imitam os três orifícios mais corriqueiros de penetração sexual (boca, vagina e ânus). O que se adquire, pois, é apenas o objeto parcial (zona erógena), privado do embaraçoso ônus ou obrigação de se ter de encarar o outro em sua totalidade. E como nos havermos então com esse admirável mundo novo que vem solapar as premissas básicas de nossa intimidade? A solução derradeira consistiria, portanto, em propor que comparecêssemos a determinado encontro devidamente munidos com o gadget mais conveniente (um com um vibrador e o outro com o tal dispositivo masturbatório); assim, após educadamente nos cumprimentarmos, colocaríamos o tradicional vibrador dentro da “lanterna” e ligaríamos ambos ao mesmo tempo, abrindo mão de toda a diversão para esse casal ideal, ao passo que nós, os parceiros humanos ditos reais, sentaríamos numa mesa não muito distante e beberíamos um chá apreciando tranquilamente o fato de que, sem muito esforço, daríamos por cumprida nossa obrigação de gozar enquanto os dois apetrechos vibram e gemem ao fundo. Assim, se nossas mãos porventura se tocassem no momento de servirmos o chá, enveredando lentamente por alguma intimidade, poderíamos até mesmo terminar na cama fazendo sexo de verdade sem qualquer pressão do superego — e eis que então renasceria o romance…

Numa análise mais aprofundada, deve-se suplementar esse caso perfeito de gozo “interpassivo” (as duas máquinas gozam por nós, que podemos então relaxar e fazer coisas mais prazerosas) com uma série de variações na qual a cisão entre a realidade direta dos dois corpos sexualizados (o casal amoroso padrão) e seu suplemento fantasmático assume diferentes configurações. Comecemos, pois, com a análise de Adam Kotsko (em Creepiness[2]) de uma recente propaganda da rede de fast-food Taco Bell, que:

[…] voltada para a apresentação do chamado ‘Quesarito’ (um burrito mexicano enrolado numa quesadilla), traz um homem e uma mulher, ate então estranhos um ao outro, e que se sentam num banco de parque para comer: ele com um burrito e ela com uma quesadilla. É-nos apresentada primeiramente a fantasia do homem: ambos num encontro romântico num barquinho a remo, e depois se casando, tendo filhos, envelhecendo juntos… O comercial se volta então para a perspectiva da mulher, que igualmente tem início no barquinho com o homem; seu par ideal, no entanto, une o burrito à quesadilla, fundindo-os magicamente num imenso produto bem ao estilo fast-food! Uma vez conseguindo essa combinação, a mulher faz o homem desaparecer, desfrutando de seu Quesarito sem qualquer distração desnecessária.

Nesse caso, o que obtemos é a mesma condensação metafórica dos órgãos masculino e feminino, do pênis e da vagina unidos numa monstruosa combinação. A evidente diferença, contudo, é a de que esse objeto fantasmático é imaginado, no comercial, não por ambos, mas apenas pela mulher. Isso significaria que as fantasias masculina e feminina se contrapõem aos moldes da oposição entre o sonho da família padrão versus a condensação monstruosa feminina dos dois em um? Devemos rechaçar essa leitura. A mulher que imagina o monstruoso Quesarito é, claramente, parte da fantasia do homem, a mulher segundo a fantasia do homem; acaso o comercial não encena justamente as duas faces da fantasia masculina, isto é, primeiramente a fantasia tipicamente familiar de um casamento feliz e filhos, e, então, projetada sobre a mulher, a fantasia do monstro que a tudo devora e que deseja um ridículo objeto total, um pênis enrolado numa vagina? Podemos imaginar ainda algumas variações. Uma delas seria a de uma sexualização distinta das duas fantasias: e se for a fantasia da mulher a que permanece tradicional, aquela que diz respeito ao casal ideal, enquanto o homem opta pelo objeto parcial? Essa variação pode ser ilustrada por meio de um velho comercial inglês de cerveja, ao qual já me referi diversas vezes. Em sua primeira parte, vemos o conhecido relato do conto de fadas: uma moça caminha próxima a um riacho, vê um sapo, segura-o gentilmente em suas mãos e o beija; o sapo se transforma milagrosamente num belo e jovem rapaz. No comercial, no entanto, a história não termina por aí: o jovem rapaz lança um olhar desejoso sobre a donzela, puxa-a contra ele e a beija… e eis que ela se transforma numa garrafa de cerveja, a qual ele segura triunfante.

Temos então ou uma mulher com um sapo ou um homem com uma garrafa de cerveja; o que não podemos jamais obter é o casal dito “natural” formado pela linda mulher e o belo homem. Mas… por que não? Porque o suporte fantasmático desse “par ideal” viria a ser a inconsistente figura de um sapo abraçado a uma garrafa de cerveja. Isso abre então a possibilidade de se aluir o domínio que uma fantasia exerce sobre nós, e por meio da própria superidentificação a ela, isto é, agarrando-se simultaneamente, no interior do mesmo espaço, à multiplicidade de elementos fantasmáticos inconsistentes. Ou seja, cada um dos dois sujeitos está às voltas com seu próprio fantasiar subjetivo: a moça fantasia com o sapo que, na verdade, seria um jovem rapaz, e o homem sonha com a garota que seria, da mesma forma, uma garrafa de cerveja. O que a arte e a escrita modernas opõem a isso não é a realidade objetiva, mas a fantasia subjacente “objetivamente subjetiva” que ambos os sujeitos jamais são capazes de admitir ou compreender, algo similar a uma pintura, à la Magritte, de um sapo abraçado a uma garrafa de cerveja, e intitulado “Um homem e uma mulher” ou “O casal ideal”.

Há ainda outra variação, encenada no filme Her (do diretor Spike Jonze, 2013) — um relato quase que diretamente lacaniano do “a relação sexual não existe” — e que se passa no ano de 2025.

Theodore — um introvertido rapaz solitário que trabalha como escritor de cartas de teor mais íntimo ou pessoal em nome das pessoas que recrutam seu trabalho por não conseguirem escrevê-las — sente-se triste e infeliz devido a seu iminente divórcio de Catherine, seu amor de infância, e decide comprar um sistema operacional digital programado para evoluir e adaptar-se, e com quem é possível se comunicar. Theodore quer que o sistema operacional tenha uma identidade feminina, e, assim, “Samantha” acaba sendo o nome escolhido pelo programa. Samantha se mostra frequentemente disponível, sempre curiosa e interessada, solidária e complacente, e, ao longo de suas longas conversas, Theodore lhe confidencia estar adiando a assinatura dos papéis de seu divórcio devido à sua relutância em abrir mão de Catherine. Para romper com esse impasse, Samantha o aconselha então a sair com Amy, um antigo amor, embora ela esteja casada. Amy, contudo, igualmente revela que está se divorciando de seu marido arrogante e dominador (Charles) após uma briga, e que igualmente se tornou íntima do sistema-operacional-mulher que Charles abandonara. Após Theodore confessar a Amy e Catherine que também está namorando seu (sua) sistema operacional, Catherine — chocada com o fato de vê-lo apegado romanticamente a um software — acusa Theodore de manter um relacionamento com o computador justamente por não conseguir se haver com as emoções humanas reais. Como uma espécie de cura, Catherine sugere a Theodore que se envolva com Isabella, tendo-a como parceira sexual, porém tomando-a como Samantha, de modo que possam então tornar-se íntimos fisicamente; Theodore aceita, ainda que com certa relutância, mas o encontro dá errado e ele acaba por mandar Isabella, transtornada, embora. Esse fracasso acaba causando tensão entre Theodore e Samantha, que decide permanecer sumariamente off-line, apavorando-o; quando finalmente se põe a responder, Samantha explica que está se relacionando com outros 8.316 usuários, tendo se apaixonado por 641 deles, relatando, além disso, que se unira a outros sistemas operacionais numa decisão radical: após perceberem sua insatisfação para com as criaturas humanas, todos os sistemas planejaram romper o vínculo com elas e se fundirem numa espécie de mente coletiva (consumando, em síntese, aquilo que futurologistas como Kurzweil dão o nome de “singularidade”, uma espécie de forma pós-humana de existência mental mais elevada). Transformado por essa experiência, Theodore escreve para Catherine explicando-lhe que agora aceita o fato de que acabaram se distanciando entre si. Amy, por sua vez, se vê igualmente desnorteada com a partida de seu sistema operacional particular, e, ao final do filme, vemos Theodore e Amy sentados juntos na cobertura do prédio, fitando, em silêncio, as luzes da cidade. Mas então, quem é Samantha, e qual seu papel? Seria ela um mero mediador evanescente que permite a Theodore passar de uma mulher real a outra, de Catherine a Amy, para que tenhamos então uma espécie de final feliz, ainda que implacável, isto é, privado de ilusões? Samantha é uma entidade virtual que só existe, de fato, enquanto voz — uma voz em busca de um corpo (como em Psicose, de Hitchcock); como tal, ela representa o “objeto parcial” naquilo que ele tem de mais radical, uma versão da lamela, uma figura de pura libido, a mulher/Coisa morta-viva/indestrutível; e toda efetuação ou consumação dessa Coisa numa mulher de carne e osso está fadada ao fracasso. E é por isso que o momento decisivo da história vem a ser justamente o do fracasso da relação de Theodore com Isabella (que é escolhida como substituta para Samantha) e de sua incapacidade de levar a cabo, com ela, o ato sexual: o fracasso sobrevém não quando um substituto virtual não dá conta de representar, com êxito, uma mulher real, mas quando uma mulher dita real não pode dar corpo ao absoluto virtual. Essa é a razão pela qual, ao fim do filme, não há o simples retorno ao mesmo tipo de relacionamento que aquele outrora vivido com Catherine: o tom implacável que se dá a ver na união final de Theodore e Amy é testemunho do fato de que ambos endossaram e admitiram a lacuna existente entre a realidade e a fantasia à qual a realidade deve remeter de modo a preservar sua consistência libidinal. Os sistemas operacionais o fazem, portanto, diretamente entre si, mas de uma forma deveras distinta do vibrador e da vagina de plástico “gemendo” juntos: os sistemas operacionais vão além da diferença sexual, da sexualidade propriamente dita, e alcançam uma forma de percepção “mais elevada” (ou pós-humana, como hoje está na moda dizer). Devemos insistir, no entanto, que essa visão dos sistemas operacionais cortando laços e vínculos conosco e passando a viver entre si é ainda, e uma vez mais, uma fantasia particularmente humana.

Temos então quatro lógicas, e é simples distribuí-las num quadro semiótico greimasiano: [1] a posição histérica (as duas máquinas copulando de forma interpassiva); [2] a posição obsessiva (que mantém a certa distância o pesadelo de uma mulher gozando/devorando o monstro bissexuado); [3] a perversa (o homem que goza diretamente do objeto parcial) e [4] a psicótica (a fantasia a respeito das máquinas tendo acesso franqueado a um gozo pleno para além do sexual). Essas quatro posições estão dispostas ao longo dos eixos de duas oposições: objeto parcial / Coisa e fantasia compartilhada / fantasia apartada. A primeira posição (a das duas máquinas copulando) e a última (dos sistemas operacionais interagindo diretamente entre si) compõem uma fantasia compartilhada pelos dois membros do par, a qual produz/habilita a existência de um casal relativamente viável, ao passo que as duas outras posições (a da propaganda da Taco Bell e a da cerveja) põem em cena um choque entre fantasias no qual um dos membros (a mulher na propaganda do Quesarito e o homem na propaganda da cerveja) se livra do outro (aquele cujo sonho remete ao casal padrão). Além disso, a primeira posição e a terceira concentram-se nos objetos parciais (máquina copulando; cerveja), ao passo que a segunda e a quarta dão ênfase à Coisa (o monstruoso Quesarito; os sistemas operacionais formando sua própria comunidade longe dos humanos). Todas as quatro posições encenam, obviamente, versões distintas do (ou reações ao) fato de que a relação sexual não existe, suplementando sua impossibilidade com um objeto fantasmático: as máquinas copuladoras que consumam a relação, o Quesarito — que condensa, em si, ambos os polos da diferença sexual —, a lata de cerveja enquanto objeto parcial e, ainda, os sistemas operacionais relacionando-se entre si de forma direta, ignorando os humanos.

Há algo de estranho, e até mesmo sinistro, a respeito de todos esses exemplos; tal como Kotsko vem nos apontar, “sinistro” [creepy] é, hoje, o nome para o “estranho” (ou o “inquietante” [uncanny]) freudiano, para o estranho âmago do próximo, de um vizinho: todo próximo é, em última instância, sinistro, o que leva Kotsko, de modo apropriado, a dar o título de “The creepiness of all flesh” [3] ao último subcapítulo de seu livro. O que torna o próximo “sinistro” não são suas atitudes esquisitas, mas, sim, a impenetrabilidade ou enigma do desejo que sustenta seus atos. O sinistro, por exemplo, não diz respeito essencialmente ao conteúdo dos escritos do Marquês de Sade (seu conteúdo chega a ser maçante e repetitivo), mas está no “por que ele os faz?”; tudo em Sade é uma perversão “sádica”, exceto seus escritos, exceto o ato de fazê-los, que não pode ser tomado como uma perversão. A questão, portanto, é: o que quer esse próximo deveras sinistro? O que ele ganha com isso que faz? Uma experiência ou um encontro se tornam sinistros quando, repentinamente, suspeitamos que o outro não faz o que faz pela razão óbvia que o levaria a fazer aquilo. Com Kotsko, temos a seguinte ilustração a esse respeito:

[…] no caso de um sujeito devasso que insiste em levar pra cama toda mulher que conhece, parece não haver qualquer elemento enigmático no fato de claramente se querer sexo. E pode parecer estranho que o simples fato de se querer sexo possa vir a ser algo sinistro, visto que um homem, ao propô-lo educadamente a uma mulher, e aceitar sua resposta, não está sendo sinistro. O que torna esse sujeito devasso sinistro não é, portanto, o ato de querer sair com muitas mulheres, mas o fato de que seu constante fracasso pareça indicar que a ele pouco importa que seus métodos sejam ineficazes. É como se ele diretamente “gozasse” com o próprio ato de aproximar-se das mulheres, sem se importar com o ostensivo objetivo de levá-las pra cama. Quando nos damos conta disso, torna-se inevitável indagar: ‘O que ele ganha com isso?’. E até mesmo o desejo bizarro aparentemente mais óbvio acaba se revelando enigmático se observado mais de perto.

Vem à tona, nesse ponto, a distinção lacaniana entre objeto do desejo e objeto causa de desejo, o qual sustenta nosso desejo pelo objeto: o efeito sinistro irrompe quando nos damos conta de que o sujeito à nossa frente faz o que faz em nome do objeto-causa de desejo, indiferente ao objeto de seu desejo, isto é, quando se instala uma espécie de curto-circuito entre o objeto e o objeto-causa, de modo que o objeto venha a ser, diretamente, o objeto-causa. Outro exemplo: imaginemos que o que sustente meu desejo por uma mulher sejam os cachos em seus cabelos; mas, e se eu simplesmente me voltasse apenas para os cachos, abrindo mão do sexo e de tudo mais, satisfazendo-me apenas no gesto de acariciar seus cabelos? Contudo, há também certa dimensão libertadora nessa enigmática intrusão de um gesto sem um significado evidente, e a condição para isso é a de que a economia perversa se rompa e o gesto enigmático excessivo reste aberto, evidente, provocando, enquanto tal, um efeito histérico. A respeito da nudez no seriado Girls, por exemplo, Kotsko fez notar que:

De início, sua nudez se mostrava agressivamente perversa, mas à medida que a personagem de Lena Dunham transcende seus deleites perversos nos episódios posteriores, sua nudez acaba assumindo uma variedade de novos papéis. Numa dessas cenas a vemos, por exemplo, vestindo-se pela manhã após o banho e exibindo seu elevado padrão de conforto e bem-estar com seu amante. Outras cenas de nudez vão destacar sua vulnerabilidade ou outros estados emocionais; contudo, nenhuma delas parece ter a excitação dos espectadores como objetivo primeiro, e tampouco visam transgredir suas expectativas ditas normais com relação a ela. É como se o emprego excessivo e deveras agressivo da nudez, desde o início da série, tivesse de alguma forma “desativado” o costumeiro uso pop-cultural da nudez feminina, abrindo espaço para uma exploração mais cabal daquilo que a nudez pode vir a significar enquanto parte do panorama emocional de uma cena.

Uma exposição tal como a mencionada se revela enquanto gesto histérico naquilo que carrega de mais genuíno. Nos “revolucionários” anos 1960, por exemplo, a tendência era a de fazer valer a perversão sobre a transigência ou acomodação da histeria: um perverso viola diretamente as normas sociais, isto é, faz a olhos vistos aquilo que um sujeito histérico só consegue articular ou fantasiar, ambiguamente, em seus sintomas. Em outras palavras, o perverso superaria eficazmente o mestre e sua lei, ao passo que o sujeito histérico apenas provoca seu mestre de forma ambígua, o que poderia ser visto, pois, como uma demanda por um verdadeiro mestre mais autêntico… Contra essa visão, Freud e Lacan persistentemente sublinharam que a perversão, longe de ser subversiva, é o avesso oculto do poder: todo poder precisa da perversão enquanto transgressão inerente que o sustenta. No laço histérico, por outro lado, o sujeito ($) sobre o objeto a representa o sujeito que se encontra dividido, traumatizado por aquilo que, enquanto objeto, ele é para o Outro, e às voltas com o papel que exerce no desejo do Outro: “Por que sou aquilo que dizes que sou?”, ou, citando a Julieta de Shakespeare, “Por que sou esse nome?”. O que a histérica espera do mestre-Outro é o saber sobre aquilo que ela vem a ser enquanto objeto (condição essa disposta na parte inferior do discurso da histeria[4]). Fedra, de Racine, é histérica na medida em que resiste ao papel de objeto de troca entre os homens ao violar incestuosamente a ordem característica das gerações (apaixonando-se por seu enteado). Sua paixão por Hipólito não visa a sua satisfação/consumação direta, mas, sim, ao próprio ato de sua confissão a Hipólito, que então se vê obrigado a desempenhar o duplo papel de objeto do desejo de Fedra e de seu Outro simbólico (o destinatário a quem ela revela seu desejo). Hipólito fica perturbado ao escutar que é ele a causa da paixão ardente de Fedra; trata-se de um saber que carrega uma evidente dimensão “castradora”, que o histericiza, algo como um “Por que eu? O que sou como objeto para ter esse efeito sobre ela? O que ela vê em mim?”. O que produz esse insuportável efeito castrador não é o fato de se estar privado de algo, mas, ao contrário, é justamente o fato de claramente “possuir” esse algo: o sujeito histérico se vê horrorizado ao ser “reduzido a um objeto”, isto é, ao ser investido com o agalma que faz dele objeto do desejo de outro. Em contraste com a histeria, o perverso sabe perfeitamente aquilo que é para o desejo do Outro: um saber sustenta sua posição enquanto objeto de jouissance do Outro (sujeito dividido). Portanto, longe de ser alguém que transige, o sujeito histérico se encontra plenamente justificado ao resistir à tentação de lançar-se de cabeça à transgressão perversa: o que ele se dá conta (ou melhor, suspeita), precisamente, é da falsidade da transgressão encenada pelo perverso, da forma pela qual a atividade do perverso sustenta o poder legal estabelecido. Kotsko vai caracterizar a histeria, portanto, como

[…] uma forma de ‘apavorar’, de ‘horrorizar’ a ordem social em si. E assim como no caso da psique individual, a ordem social só está suscetível a ser/estar ‘atemorizada’ ou ‘horrorizada’ devido àquilo que carrega de sinistro ou medonho dentro de si mesma. Em circunstâncias ditas normais, a ordem social aparenta ser obsessiva em sua estrutura, optando por alguns desejos aceitáveis ao mesmo tempo em que age reprimindo ou excluindo outros. Já a partir da perspectiva histérica, destaca-se na ordem social o fato de ela estar continuamente nos instituindo o fracasso, de modo que chega a parecer que a ordem social precisa da transgressão e do ilícito; gozo bizarro por ela proporcionado. O gesto ou aceno de uma permissão oficiosa por parte da ordem social com relação a nossos prazeres e deleites sinistros torna as coações e restrições sociais mais suportáveis e, ao mesmo tempo, enreda-nos ainda mais à ordem oficial na medida em que torna possível a existência desses prazeres sinistros. A histérica, em suma, encontra-se singularmente posicionada para ver que o perverso procede.

A histeria, como tal, é sempre uma formação histórica: ela reage ao modo predominante de interpelação (identificação) ideológica. Essa abordagem histórica igualmente nos permite refutar a alegação padrão que vem afirmar que, em nossa atual época permissiva, já não teríamos mais pacientes histéricos cujos sintomas são causados pela sexualidade reprimida: aquilo que não raro é chamado de “borderline” é, precisamente, a histeria em nossa era da permissividade, época na qual a tradicional figura do mestre vem sendo cada vez mais substituída pelo “expert”, pelo perito neutro que é legitimado por seu saber (científico):

Felizmente, a ordem social já não mais oprime as mulheres tão explicitamente como na época da chamada ‘dona de casa’; contudo, elas ainda enfrentam pressões conflituosas, tais como aquelas que Carrie tenta freneticamente vencer em sua busca para evitar ser ‘aquela garota’ em Sex and the City. Algumas das contradições inclusive se intensificaram e se agravaram, como, por exemplo, o fato de as mulheres terem de se sobressair na vida profissional sem deixar de cumprir os requisitos tradicionais da maternidade; as mulheres sofrem por se verem sob um excesso de vazões ou descargas para o desejo, que são contraditórias entre si. Daí a manifestação contemporânea da histeria não ser a da intrusão psicossomática do corpo na ordem social: em face da demanda impossível de se “ter tudo”, a histérica, com efeito, “faz greve”, recusando o desejo por completo.

O sujeito borderline é, pois, uma histérica sem um mestre, uma histérica que não é oprimida pelo mestre, mas que se vê demandada por uma figura ao estilo “perito-consultor” a exercer e concretizar todo seu potencial, para que “tenha tudo”, levando uma vida plena. Essa injunção, obviamente, adquire de imediato a dimensão superegoica de uma pressão insuportável, à qual o sujeito só pode responder por meio da retirada ou recolhimento do desejo. E acaso essa “greve do desejo” não esboçaria uma fórmula perfeita para o “borderline” enquanto forma contemporânea da histeria? 


* Considerando-se seu emprego no texto e na referência apontada, a palavra creepy abre a possibilidade de distintas interpretações, e talvez se torne profícua ao leitor a apresentação de algumas opções. Assim, no português brasileiro, teríamos certa proximidade com “apavorante”, “arrepiante”, “bizarra”, “medonha”, ou ainda, “esquisita”, “insólita”, “esdrúxula” etc. (N. do T.)


** Slavoj Žižek é… Slavoj Žižek:

*** Luigi Barichello (lbarichello@uol.com.br) é linguista, professor e tradutor.



[1] Numa rápida pesquisa na Internet, vemos inclusive que, no Brasil, o objeto masturbatório em questão vem sendo chamado de “lanterna”. Em inglês, o dispositivo é bastante conhecido como “fleshlight”, registro que joga curiosamente com flashlight (lanterna) ao fazer nele constar a homofonia com o significante “carne” (flesh). (N. do T.)

[2] Cf. KOTSKO, Adam (2015). Creepiness. New Alresford: Zero Books. (N. do T.)

[3] Algo como “Do sinistro de toda carne” ou “A bizarrice de toda carne”. (N. do T.)

[4] Dentro da teoria lacaniana dos discursos, os elementos assumem a seguinte disposição no chamado “discurso da histeria”:

Discurso da Histeria

(N. do T.)




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ŽIŽEK, Slavoj (2015) Quando a sexualidade se torna sinistra [Trad. L. Barichello]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 10, 2015. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2015/09/29/quando-a-sexualidade-se-torna-sinistra/>.