Folclore lacaniano

por Ultimíssimo Lacan

Caro seminarista, o que segue é um pequeno manual de psicanalhice da clínica cotidiana. Acenda seu charuto torto, recline-se em sua confortável poltrona; prometo não ser pedante, nem usar-me do lacanês, ainda que — em várias situações — sugiro com ênfase sê-lo e usá-lo. Sei que devo me afastar de minha própria prática se quiser transmitir alguma coisa, mesmo que essa coisa seja uma patifaria sem tamanho.

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Já que nosso lance é o semblante, espero de você nada menos do que um parecer sobre a ética do parecer. Gostaria de dar a ver aqui um catálogo de intervenções, interpretações, trejeitos, cultos etc. cuja origem, em geral, provém de alguma historieta de Lacan ou de agregados. Como uma espécie de antiantropofagia, causos saltaram de ouvindo em ouvido, atravessaram o Atlântico e se popularizam, impressionando os analistas brasileiros; e então passaram, de repente, a ser repetidos à exaustão, criando assim o que chamamos de folclore lacaniano.

É incrível, uma legítima peripécia aristotélica, que a técnica lacaniana — que tanto se esforçou para denunciar a repetição das interpretações standartizadas (ah, o declínio da Imago!) da época — tenha, ela também, caído em uma repetição, podendo apenas se vangloriar de ser uma repetição aparentemente menos monótona e mais exuberante. Os mais criteriosos o podem ler como um pequeno catálogo de performances estereotipadas que se passam por atos analíticos. E desde já permito-me orgulhar de ter escrito o primeiro texto que se propõe deliberadamente a contribuir com essa transformação da ética da psicanálise em uma etiqueta psicanalítica. Considere-me como uma espécie de porta voz, um roubartilhador liberto do Facebook, aquela famosa mosquinha nas salas de atendimento. Um Gregor Samsa tropical.

Com relação ao tom da escrita, duas foram as minhas fontes de inspiração. Por um lado, inspirei-me nas Ratschläge freudianas de 1912. Na verdade, autorizei-me a pervertê-las, no sentido etimológico de ‘perverter’, virar completamente, pôr às avessas: se Freud se preocupava em enfatizar os modos de ação a serem evitados para que o analista se mantenha em sua posição, aqui listamos os modos de ação a serem criteriosamente repetidos para que o analista não se mantenha em sua posição — sem, no entanto, que ninguém perceba que ele saiu dela. O paradoxo aqui é que a melhor maneira de não ser um analista é parecer-se com um.

Por outro lado, também me inspirei na forma dos 38 estratagemas listados e descritos por Schopenhauer em Como vencer um debate sem precisar ter razão. “Golpe baixo!”, objetarão alguns. “Pragmático!”, dirão outros. Farei ouvidos moucos. E se me exigissem explicações, eu diria que é um manual de um escroque; mas que, em suma, destina-se às suas vítimas — para que estas possam nomear e reconhecer tais práticas. Por isso me esforcei em dar um nome conciso e adequado a cada uma dessas formas de psicanalhice, por meio das quais se poderia reconhecer e rejeitar qualquer tentativa do tipo, assim que elas ocorressem. Rejeitar talvez não seja um bom termo; desinvesti-los caberia melhor: deserotizar esse folclore, retirando-o do lugar de metalinguagem, do lugar a partir do qual o pseudoanalista autoriza sua intervenção.

Haveria ainda outras versões dessa estereotipia da técnica analítica: uma kleiniana, outra winnicottiana, outra bioniana — para citar apenas as mais próximas de nós. Deixo aos colegas essas outras cartografias; me atenho hoje à estereotipia que atinge a técnica lacaniana. No futuro, quem sabe não construiremos uma espécie da A. B. C. das catástrofes psicanalíticas? Aníbal Machado já nos presenteou de antemão com uma epígrafe: “Qualquer que seja a arquitetura dum edifício, seus escombros obedecerão ao estilo barroco”. Mas antes que a sedutora verve destruidora se apodere de nós, façamos uma visita guiada por esse fabuloso edifício moderno que é o lacanismo. Pouco a pouco constataremos que a arte de fazer simulacro de analista é tão complexa quanto a arte de se tornar um — e tu verás que em alguns pontos elas são a mesma e única arte.

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Tutte, ilustrando nosso folclore
O paciente lacaniano após um corte pirotécnico.

Comecemos pelo mais fácil. Ele, que caminha pelas matas significantes fazendo questão de deixar seu rastro, é o personagem mais conhecido de nosso folclore. O paciente lacaniano é o paciente ideal de qualquer analazy: ele faz tudo sozinho, se corta, aceita as intervenções mais escabrosas de bom grado, paga valores estratosféricos (ou melhor, aletosféricos, segundo o Seminário XVII); e, sobretudo, sofre de psicose lacaniana, diagnóstico interessantemente dado pelo próprio Lacan. Eis uma vinheta clínica.

Incerta vez um jovem analisante deitou-se no divã e relatou a seguinte cena. Acometido por uma súbita necessidade de ir ao banheiro, ele saiu como uma flecha de sua aula da pós-graduação da faculdade de Letras onde se comenta O retrato do artista quando jovem de James Joyce — disciplina que ele cursava em meio à escrita de uma tese sobre o Seminário 23 —, atrapalhando os amigos e o professor, mas sem um pingo de vergonha. “Algo me queimava por dentro”, disse. Afoito, apressou-se para o banheiro, sentou-se na privada e descascou-se, descreveu — tal como Joyce depois da surra, tal como uma casca madura e macia deixa o fruto: “saí da j-aula e descasquei-me”, brincou.

Até aí nada de novo nesse jovem paciente que teima em repetir os passos do Joyce lacanizado, na esperança de que essa repetição preencha as páginas em branco e em brasa de sua tese — essas, sim, o queimam por dentro. Mas eis que ele vê um desafio escrito na porta do banheiro: “Descreva a sua cagada com o nome de um filme”. Se me permitem uma breve apreciação aqui, eu diria que esses desafios são magníficos, são verdadeiros enigmas, restos de uma esfinge em ruínas. Ele se recorda, então, de quatro respostas ali já contidas. (i) “Dois filmes podem ser juntados: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban junto com Alien, o oitavo passageiro”, disse ele; e completou: “são respostas que põem ênfase na faceta imaginária do desafio, por se apoiarem em uma confortável analogia — a prisão de ventre saiu como o prisioneiro; o corpo estranho dentro de mim é como um alien; assim por diante —, sendo que a série-analógica poderia ser infinita”. (ii) Outro tipo de ênfase ele encontra em Os intocáveis. “Bela resposta”, comentou. “Aponta para a faceta real: o dejeto não pode ser tocado; por sinal, deve ser suprimido do socius para que este funcione como tal. Se nossa merda estivesse aqui neste momento não haveria sessão”. (iii) No entanto, a mais fantástica de todas as respostas era Chi-cago: “é o simbólico por excelência — a linguagem voltada para a sua materialidade devolvendo assim a polissemia ao significante. O primeiro tipo de resposta produz um sentido (imaginário), o segundo tipo aponta para o não-sentido (real) e o terceiro nos deixa no duplo sentido (simbólico)” — anotou o jovem lacaniano eufórico em seu caderno, para depois ter a tristeza de reconhecer que aquela conclusão, que a princípio parecia brilhante e original, era apenas uma repetição translúcida e maquinal: era eco apenas de uma leitura não tão antiga — “memória, velha cidade de traições” (Machado de Assis). “Como você responderia àquele desafio?”, perguntei, ao que ele hesitou; e eu encerrei a sessão — e o jovem saiu do consultório pensando na resposta que afinal revelaria a verdade da amarração de seu nó. Permitam-me um chiste vulgar: esse nó borrou-meu anûs. Sendo que sua resposta ao desafio poderia ser uma modificação no título do filme O paciente inglês para O paciente lacanês. Sua resposta seria, então, a sua condição: adicto de um lacanês que só sabe dizer seu nome torna-se especialista em transformar a impossibilidade de um para além na impotência de um para ler.

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Aqui uma precisão antropológica deve ser feita, pois não devemos confundir esse tipo com outro, o curupira escrivão: o homem feito às pressas — tipo do qual fala o nosso presidente Schreber. Este homem se utiliza da máxima “a pressa é amiga da conclusão” para produzir ainda mais poubellication. Escreveu e não leu: publica! Ou pior: publica sem escrever, sem encostar o dedo na caneta, no stylos. Tudo que ele fala e pensa deve ser transformado em livro, coluna ou até comentário no Facebook: afinal, toda reportagem banal se engrandece com um comentário psicanalha. Às vezes me pego pensando naqueles que adoram dizer que Lacan é simples. Se dependesse deles, cada seminário de Lacan seria um link do Buzzfeed. Seminário 3: “Esse magistrado foi promovido a presidente da corte, mas não imaginava o que iria acontecer em seguida!” Ou, então, no Seminário 23: “Você vai se emocionar ao descobrir como a escrita ajudou esse irlandês a escapar da psicose”. Enfim, como na Bíblia, nenhum semên(ário) deve ser desperdiçado. E se por ventura criticam a qualidade literária de seu texto, o homem feito às pressas pode culpabilizar a própria pressa — e ainda se justificar dizendo que sua obra é coletiva. Ao final de sua vida sua obra será duas ou três vezes maior do que a de Freud; e essa é provavelmente a melhor maneira de esconder a potência demoníaca do texto freudiano.

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Sherlock Holmes perguntava e respondia: “qual é o melhor lugar para esconder uma árvore? Na floresta, é claro. E se você quisesse esconder um livro? Deixá-lo-ia em uma biblioteca, é óbvio. É a velha história da carta roubada: o melhor lugar para se esconder um objeto não é subtraindo-o do campo visual — enterrando-o, por exemplo —, mas, sim, diluindo suas singularidades em meio a outros objetos semelhantes. O microscópio só atrapalha quando o que se está buscando só se vê com lupa, a forte luneta não serve para se apreciar uma corrida de cavalos; ou pior: há verdades que só se mostram quando se reduz ou distorce os recursos da visão. Qual é a melhor maneira de esconder o δαίμων (daímon) do texto freudiano? Diluí-lo na imensidão — em um verdadeiro tsunami — dispersante de textos ditos psicanalíticos. O trabalho do homem feito às pressas é esconder a psicanálise no interior do psicanalítico.

Portador de um colete à prova de críticas, ele sabe — como ninguém — transmutar a análise discordante do outro em uma queixa; e em seguida o coloca contra a parede: as queixas são como as “ameixas / ame-as / ou deixe-as” (Leminski). Sendo que o desprezo que esses homens feitos às pressas possuem em relação à sua própria escola de formação (tendo rompido ou mesmo ainda estando nela) lembra a famosa frase de Groucho Marx: “Eu jamais entraria para um clube que me aceitasse como sócio”.

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Mas continuemos nossa expedição cultural, nos distanciando dos tipos ideais e mergulhando agora nas crendices, superstições e mandingas que animam nossa prática. Como não poderia deixar de ser: as sessões curtas, tempo (i)lógico. Ainda que alguns se defendam criticando as sessões de cinco minutos, mas apostando todas as suas fichas no tempo variável, o fato é que, independentemente da variação regionalista, é quase uma trademark lacaniana. Que, naturalmente, encontra no seu avesso sua atestação: “Fulano faz sessões de 50 minutos? Ora, claramente não é um lacaniano!”, criticam alguns. Outros se defendem da atestação folclórica dizendo: “Ah, mas uma vez fiz uma sessão de 2 horas”, buscando algum tipo de remissão. Que tolice!

Lacanianos contra não lacanianos — time dos “com-camisa” contra os “sem-camisa” —: essa divisão tosca traz em si a sua própria possibilidade de superação. Lembremos que a principal referência freudiana para a sublimação é o trabalho do artista, mas bem que poderia ser o trabalho do esportista. O esporte, como bem sabiam os gregos, substitui o ímpeto de exterminar o outro pelo desejo de vencê-lo. Se os analistas jogassem mais peladas (se expusessem algo de sua nudez) ou se houvesse olimpíadas entre as diferentes escolas, confabulo eu, o Ultimíssimo deixaria de produzir sua convocação ao gozo e assumiria sua vocação última: tornar-se-ia um objeto-fetiche-mascote, correndo silencioso para lá e para cá no meio do campo. Se bem que, entre Society, Campo e a quadra da Escola, eu prefiro mesmo é a várzea. Mas para além desse fla-flu, a pergunta aqui é: o que é ser lacaniano? Há de fato esse elemento que diferencia lacanianos de não lacanianos?

“Façam como eu, não me imitem”, dizia Lacan. Façam semblant de objeto a, não façam semblant de Lacan — aquele que o imita não faz como ele e aquele que faz como ele não o imita.

Com precisão, Sancho Panza disse ao seu amo: “Senhor, a tristeza foi criada, não para os animais, mas para os homens; mas se os homens se entregam muito a ela acabam sendo transformados em animais”. Em poucas linhas toda uma teoria sobre a alteridade: o que diferencia os homens dos animais não é a tristeza, meu senhor, mas a distância em relação a tristeza. Ou, ainda, mais abstratamente: o que diferencia não é o elemento diferenciador, mas a distância em relação ao elemento diferenciador. Assim poderia ser hoje a relação entre o autor Lacan e os lacanianos: o lacaniano que se entrega muito ao que diferenciava Lacan dos demais analistas de sua época (figura totalmente caricaturada pelo olhar lacaniano) se torna, hoje, justamente mais um analista-tosco suposto de outrora. Mas lembremos, dizem por aí, que com a sala de espera vazia na volta das férias, as sessões de Lacan eram curiosamente mais longas. Uma questão de tempo, lógico.

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Outra crendice própria do folclore lacaniano é o culto a Antígona. Seu nome se divide em ἀντί- (anti-: ‘contra’, ‘de encontro a’) e –γονή (-gone: ‘prole’, ‘filho’, ‘descendente’, mas também ‘ação de gerar’); nascida à contracorrente, Antinata, Antigerada — como propõe Trajano Vieira. Segundo a lei do significante, o nome não se traduz, sabemos disso; o nome é o intraduzível, ao passo que o mito é o que é mais passível de tradução (Lévi-Strauss) ou, até mesmo, o próprio ato de se traduzir (Viveiros de Castro) ainda que o mito seja composto, sobretudo, de nomes : assim se dá o paradoxo de que, no interior do traduzível, o que mais se encontra é o intraduzível. Mas se, ao modo de Antígona, cometêssemos esse delito, a heroína tebana bem que poderia se chamar Renata (onde o re- assume o sentido não de repetição, mas de oposição como em regredir, realce ou reagir). Mas não: muito pouco pomposo!

Em certo sentido, Édipo e Antígona são opostos: se a busca cega por saber de Édipo acarreta a revelação de múltiplos e antitéticos atos (assassinato de Laio, cegar-se), o ato cego de Antígona acarreta a revelação de múltiplos e antitéticos saberes (Antígona mafiosa e familiarista, incestuosa; ou Antígona que barra a desmedida de Creonte, fala em nome das leis não escritas, exogâmica — grosso modo, Antígona que não abre mão do seu desejo ou Antígona que não abre mão do seu gozo). O culto a Antígona é o culto a essa ambiguidade de leitura, onde os atos de Lacan podem — e, de fato, são — lidos como a mais pura ética (uma decisão que não é pautada por bem algum) ou como uma postura antiética possível (a conservação de um bem que suprime a decisão). O ato de Lacan é ambíguo, a ambiguidade dos lacanianos vira ato. A escolha, a elevação e o realce de Antígona como heroína da psicanálise deve ser entendida no sentido narc-ótico (e, portanto, narc-ísico) de heroína: os analistas lacanianos de tempos em tempos se utilizam da decisão cega de Antígona para justificar uma intransigência qualquer sua, euóica e momentânea, que nada tem a ver com sua ἄτη (atè), sua Ruína. Ruína que, ruminada, torna-se rumor, sendo nosso dever fazer dela humor: primeiro como tragédia, depois como farsa; e, no fim, como comédia. 


* Ultimíssimo Lacan é formado pelo espírito coletivo do desassossego de uma psicanálise que se leva muito a sério. Possui mestrado e doutorado em zueira sem limites, outorgado pelas redes sociais. Preocupado com a transmissão da peste chistosa, dissolveu e refundou sua École. Sozinho como sempre esteve na causa da zueira, atravessou a fantasia ao ser expulso do Facebook e este texto na Lacuna é seu relato de passe.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | LACAN, Ultimíssimo (2015) Folclore lacaniano. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 6, 2015. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2015/09/29/folclore-lacaniano/>.