podcast com Marcelo Mansfield & Rafinha Bastos
seguido de comentário de Christian Dunker
LACUNA | Du Moreira (entrevistador)
Marcelo Mansfield e Rafinha Bastos só não são uma dupla sertaneja porque seus nomes não combinam. Não. Não é verdade. Também não cantam em segunda voz. Aliás, nem são músicos. Não andam a cavalo (pelo menos não durante o dia). E não usam coletes ridículos, calças jeans apertadas com berinjelas na cueca ou botas bicudas. Enfim, não são uma dupla sertaneja. Mas — olha só que bom… — são comediantes. E amigos. Representam duas gerações importantes do humor paulistano. Mansfield foi um dos fundadores do “Terça Insana”, ao lado de Grace Gianoukas e Angela Dip. Encarnava, entre outros personagens, o “Seu Lili” — um fenômeno disfórico do YouTube com mais de 10 milhões de visualizações. Rafinha Bastos começou nos palcos de stand-up de São Paulo, integrou por vários anos a bancada do CQC na Band e ficou à frente do talk-show diário “Agora É Tarde”. Conquistou um enorme público na internet ao ponto de ser anunciado pelo New York Times, em 2011, como a pessoa mais influente do Twitter mundial.
Sobre psicanálise e humor, podemos dizer que caminham juntos. De Freud ao Analista de Bagé, o sarcasmo, a ironia e as verdades incômodas parecem ganhar seu lugar mais bem acabado nas boas piadas. O neurofilósofo Daniel Dennett diz que o humor revela o mecanismo do debugging cerebral. Rimos porque nosso aparelho caçador de contradições coça. Indo da neurociência em direção à psicanálise, podemos pensar que o tempo é fundamental tanto para uma boa piada, quanto para a clínica da fala. Lacan pensou o tempo em várias formas, incluindo a polêmica das sessões de tempo variável. Entre tempo e polêmica, aliás, vive o humorista.
E sobre o tempo, diz-se que se faz do simbólico. Uma fala ouvida em análise implica um tempo que pode soar tão bem resolvido que às vezes parece planejado. A retroação inerente a qualquer dito significativo, ou seja, o valor atribuído às palavaras após o ponto final, é sempre surpreendente. É aí que o antes e o depois se confundem: o tempo da fala acontece para além do falante. E a fala fala mais que quem fala. Ouvir o passado nesse planejamento futuro é a própria função da escuta analítica. A garantia da interpretação – que pode ser nada além de um ponto final intruso – é o efeito no falante. Aqui há o tempo também: o tempo desse ponto, o tempo que permite a escuta e seus efeitos, o tempo que produz a surpresa da interpretação no analista. E o efeito, bem, esse é inegociável. Não se explica um ato analítico da mesma forma que não se explica uma piada. Interpretações e piadas não podem ser vendidas, não se prestam a artimanhas publicitárias ou campanhas de conscientização. Ou funcionam, ou não existem. A própria expressão “vendido”, no contexto dos palcos, significa justamente o contrário de estar no (bom) tempo. Se estou vendido no palco, deveria descer dele. O tempo no palco é tão soberano quanto na clínica.
Tempo, efeito e… outro. O mesmo passo se dá, aqui, de Saussurre à psicanálise: o fim do enunciado, supostamente contido em si mesmo, é substituído pela escuta que retorna de um outro. Não há ponto sem outro, não há significado a não ser o que retorna do outro. E não há risos sem o tempo do público. Nesse sentido, nenhuma piada é pronta. O humorista aprende seu tempo com seu público. Mas há também um público que aprende, que se constrói espectador do tempo desse humorista. E há o meio — por que não? — o setting desse humor: teatro, televisão, internet. E há o semblante — de novo, por que não? — desse humorista: a comédia física, a ironia, os personagens ou a cara limpa.
Tudo isso parece acontecer para além, ou de maneira mais determinante, do que o significado do falado. Talvez o humor e a fala em análise sejam sons percussivos e não melódicos/harmônicos. Talvez dependam exclusivamente de seu lugar no tempo e não de seu valor intrínseco. Certamente ganham um valor por sua posição, mas será que isso quer dizer que qualquer fala pode ser engraçada desde que entregue no tempo certo? Ou que qualquer dito do analista pode funcionar como interpretação? Há algo aqui que parece chamar o significante analítico em seu protagonismo: nem fazer a hora, nem esperar acontecer. Apenas dançar bem… com o outro.
Sobre tempo, a Lacuna conversou com Marcelo Mansfield e Rafinha Bastos em 19 de Junho de 2015.
(O entrevistador)
Notas sobre psicanálise e o humorismo profissional
Christian Ingo Lenz Dunker
Dos três livros que compõe a semiologia psicanalítica fundamental, ou seja, Interpretação dos sonhos (1900), Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Chistes e sua relação com o inconsciente (1905), este terceiro é o que mais merece uma reedição modificada e atualizada. Digo isso pensando nas próprias qualidades que Freud estabeleceu para o chiste como um processo social, que depende eminentemente da sua “paróquia” para obter os resultados pragmáticos que o definem enquanto tal, ou seja, o efeito de prazer, satisfação ou gozo que ele causa na plateia. Ao contrário de sonhos e lapsos, piadas envelhecem. E uma piada velha é o signo de que você não pertence mais ao seu próprio tempo. Muitas das interpretações propostas por Freud a seus pacientes seriam como que piadas involuntárias aos pacientes de hoje. Outras tantas micaretas lacanianas tornaram-se gastas e inatuais, como a gola roullê.
Essa eficácia temporal do humor tem que ver com a própria natureza epocal do chiste. Há piadas que entram na moda, outras que saem da moda, outras que voltam à moda, geralmente com pequenas adaptações. O chiste é um processo social que passa de boca em boca sem origem, posse ou propriedade. Nós, os leigos, temos cada qual um repertório maior ou menor de piadas, e repassamos alguma nova quando ela nos chega, dando um pouco a mais de vida para quem nos cerca. Geralmente isso acontece em um sistema de trocas espontâneo que se forma quando alguém conta uma piada que funciona, criando um laço de afinidade entre os envolvidos. O humorista profissional é como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Uma espécie de vampiro que, incapaz de gozar duas vezes com a mesma piada, simplesmente repetindo-a mentalmente para si, passa a piada adiante e obtém um “fragmento de gozo” (Genusstück) ao se identificar com o riso de seu interlocutor, até a escala de massa.
Toda a arte da interpretação em psicanálise assemelha-se à arte do chiste, e ainda que este se diferencie do cômico e do humor, guarda com estes uma relação íntima. O chiste é um processo muito mais temporal do que o sonho ou o lapso e o ato falho, tanto que ele exige um tempo peculiar de realização que se situa entre a decisão soberana de contar um sonho e o caráter radicalmente não antecipável de um ato falho. Ou seja, posso escolher contar um sonho no início ou no fim da sessão; posso modalizar o momento em que o conto esclarecendo os personagens e detalhes que nele tomarão figura e presença; posso, inclusive, escolher não contar o sonho que tive. Algo exatamente contrário ocorre com o lapso. Ele nos flagra e nos revela sem aviso, nele não há decisão senão do inconsciente, ele cria seu próprio tempo e sua própria acontecência. Entre o sonho e o lapso está o chiste. Nele eu posso escolher o momento de contar a piada, posso ainda adaptar sua enunciação, bem como modular as pausas intermediárias, os adiamentos, a preparação do desenlace e a criação da tensão. Contudo eu não posso escolher tão livremente como no sonho, ao custo de perder o “momento feliz”: o momento em que a piada cai como se fosse a melhor palavra possível para aquela situação. Se o sonho traz o tempo como logos e o lapso impõe o tempo como violação de mithos, o chiste exige a temporalidade que estrutura o que chamamos de “ocasião”, que em gregos se chama kayrós.
Assim como na análise falamos em entrevistas preliminares, os nossos entrevistados falaram em testes, ensaios com plateias particulares, e na formação de um público — que, uma vez conquistado, torna tudo mais fácil. Há uma predisposição, uma tendência da plateia — “qualquer coisa que você [Rafinha] coloca na internet terá milhões de likes” —, mas isso varia de comediante para comediante. Eu acrescentaria que nesse ponto o psicanalista deve estar preparado para perder o humor e gastar todo o seu crédito inicial de confiança, autoridade e empatia, no momento em que se tornará um comediante infernal, tal como o Coringa do Batman, como diz meu amigo Ricardo Goldenberg. Ou seja, devemos nos preparar para o momento no qual: “depois de 4 minutos, pode até ser o Jack Nicholson, se ele não me faz rir, “ele está me constrangendo” coloca outro”.
Estabeleci para mim, já há algum tempo, duas condições para tomar alguém em análise e assentir que aquele paciente tornou-se um analisante, dando por iniciada a análise. A primeira delas é que possamos ficar em silêncio. Um silêncio que não seja vazio nem ocupado; que não seja falta de assunto nem corrosão de angústia. Um silêncio que jamais me fará pensar “o que eu digo agora? “ — premido pelo sentimento de que preciso dizer alguma coisa. A segunda condição é que aquele candidato a análise resista ao meu tipo peculiar de humor e ironia. Ele não precisa inclinar-se ao gracejo, mas apenas sinalizar que não ficará ofendido se eu não o levo demasiadamente a sério e se não me levo demasiadamente a sério naquele espaço. Se podemos brincar, podemos analisar.
Comediantes são o protótipo do que pode ser a arte para o psicanalista. Por isso só posso concordar com a ideia de que o humor é “uma performance artística”. Nem sempre isso vem de uma aptidão e treinamento especializado, mas, se de fato podemos notar um traço comum entre os grandes comediantes, é essa capacidade de se aproximar vivamente das coisas grandes e pequenas da vida, com uma mistura de intensa afetação e largo distanciamento. Às vezes isso vem da observação crítica sobre o mundo, da melancolia produtiva, de um ceticismo espontâneo, que pude encontrar nos poucos casos de humoristas profissionais que pude atender.
É assim que entendo a declaração de que a “A felicidade atrapalha o seu humor”, ou a consideração sobre o caso da mulher que, depois que ficou bem resolvida, não conseguia mais criar. Concordo amplamente que o comediante é alguém mal resolvido ou, de certa forma, des-resolvido. Só posso agregar que isso se aplica também ao psicanalista, mas de uma maneira muito específica de des-resolução. Não pude deixar de concordar que Bill Murray, em O dia da marmota, tornou-se uma pessoa amorfa e desinteressante quando conseguiu escapar de seu trágico encarceramento em um mesmo dia que se repetia indefinidamente. Ficou alguém mais alegre, feliz e capaz de amar, e com isso separou-se da fonte do que parecia ser seu sarcasmo e humor cáustico, que era um destino possível e visível de sua miséria neurótica. Aqui tenho que concordar com meu querido Contardo Calligaris e sua tese de que a análise tem mais que ver com tornar vidas mais interessantes do que tornar pessoas mais felizes. A felicidade permite voltarmos à distinção entre o chiste, o cômico e o humor. O chiste é um processo verbal, organizado por três lugares (ou três pessoas, como dizia Freud), no qual se joga com pensamentos e palavras de modo a suspender e deformar o sentido; sendo assim, ele se organiza a partir do simbólico, permitindo suplantar o que em uma dada situação ou época está interditado, ou seja, que não pode ser dito. Por isso ele é um tratamento simbólico do imaginário. O cômico, isso que tem a estrutura de “escapadela do falo”, como dizia Lacan, ou seja, de aparição e desaparição, de encobrimento e revelação de um sentido, dependendo de um manejo específico do imaginário. Não é só a casca de banana ou o personagem engraçado que contam aqui, mas tudo o que diz respeito à voz, ao tempo de decepção e surpresa causado no interlocutor, que faz um tratamento imaginário do simbólico. Finalmente, o humor, como foi tematizado mais ao final da obra de Freud, é o melhor antídoto contra o supereu. Por meio dele o eu engana as regras e faz-se de objeto fantasma para o impiedoso e cruel sentimento de adequação, por isso ele é um tratamento do real pelo simbólico.
Quero crer que um bom comediante, ou que pelo menos um comediante versátil, assim como um psicanalista, deve ter recursos para o chiste, para o cômico e para o humor. Diria que o entrelaçamento dos três é o que se quer designar por esta noção vaga de “timing”. Sim, o tempo no humor e na psicanálise requer uma técnica, um “timing” da relação com o público, que, por sua vez, depende das expectativas que o outro tem em relação ao ator específico. “A piada de mesa de bar não funciona no teatro porque é uma questão de timing”, assim como uma piada perfeita para um analisante pode levar a efeitos trágicos em outro. Não posso mais que repetir aqui a tese lacaniana de que o manejo da transferência em análise é o manejo do tempo, incluindo-se, mas não se reduzindo, ao corte de interrupção da sessão.
Isso apareceu muito fortemente na declaração de nossos dois colegas comediantes entrevistados pela Revista Lacuna. A importância relativa da situação: stand-up, teatro, internet, snapchat, cinema ou televisão. Cada qual com suas limitações. Em meu livro sobre diagnóstico, Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015), argumentei que deveríamos ampliar nossa concepção de diagnóstico, relativa à inclusão nas categorias como psicose e neurose, de forma a pensar o diagnóstico como a reconstrução de uma forma de vida. Também defendi que a cada sessão há uma pequena diagnóstica da “situação”. Ora, é em algo análogo que nossos colegas insistem quando ressaltam a importância do púbico, da tendência de recepção, das circunstâncias imediatas, para além do previsto e roteirizado. É preciso, a cada vez, perceber qual é a moeda neurótica em circulação naquela sessão. E “tentar descobrir o que é o meu humor naquela linguagem”.
Chegamos assim àquilo que parece ser a condição essencial da criação borromeana do chiste, do cômico e do humor, ou seja, a regra fundamental da análise: a associação livre. “Você só faz coisas legais se não há freios que te impedem de exercer tal liberdade. ”Eu não penso muito no que os outros vão pensar.” “Eu estou arriscando, se eu parar para pensar eu não vou arriscar, eu vou fazer o que você está esperando.” São declarações que nos chamam a atenção e atualizam o livro dos chistes com um fator que Freud talvez não deu muita importância: o risco. Contar uma piada é um atentado contra o seu narcisismo. Isso pode terminar mal. Em geral os piores e mais inaptos comediantes são os que não conseguem arriscar com atos, palavras e pensamentos. O risco é nosso grande companheiro inseparável da boa clínica. Quando nos sentimos seguros demais, geralmente é porque deixamos nossa enunciação se fechar, como nesta ótima crítica feita ao comediante: ele colocou um ponto final e julgou, isso resolveu sua indignação. O comediante não pode julgar, ele trabalha com a indignação e deve deixá-la em aberto. Assim também o analista trabalha com sua indignação, como mistura de curiosidade e espanto, para escutar seus analisantes.
Quando ele berra, murmura ou sopra sua interpretação, delicada ou brutalmente, na orelha dos outros, ele devia saber que nós não “falamos alto no teatro [analítico] por causa da velhinha da última fila”, mas porque, assim como os comediantes, não devemos deixar ninguém dormir.♦
*** Christian Dunker é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Colunista de várias revistas, pós-doutor pela Universidade Metropolitana de Manchester, analista membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Recebeu o Prêmio Jabuti em 2012 por Estrutura e constituição da clinica psicanalítica (Annablume, 2011).
**** Du Moreira é músico formado pelo Musicians Institute de Hollywood, Califórnia, e já atuou com artistas como Ney Matogrosso, Ná Ozzetti, Tetê Espíndola e Pitty. Ganhou o Prêmio da Música Brasileira como produtor do CD Zulusa, de Patrícia Bastos, em 2014 e foi integrante da banda de apoio do talk-show “Agora É Tarde” de Rafinha Bastos. Graduado em Psicologia pela PUC São Paulo, atende como psicanalista em consultório particular
COMO CITAR ESTE PODCAST | MOREIRA, Eduardo (2015) Timing: uma entrevista com Marcelo Mansfield e Rafinha Bastos (podcast). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 7, 2015. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2015/09/29/timing/>.