Diário de uma tensão

por Ricardo Lísias

2 de maio

Começo hoje uma semana difícil. No próximo sábado, lanço o meu livro-objeto Inquérito policial – Família Tobias. Ficou pronto hoje. Não o vi, mas pela foto que o editor passou no Facebook, ficou mesmo muito bom. Parece ainda mais elegante que o último boneco. Enfim, um inquérito pode ter classe. Depois, na sexta-feira, dia 13, estréia no SESC-Ipiranga a minha performance (era uma peça, mas mudamos o nome). Quanto ao lançamento, tudo certo. Sempre é uma correria, mas eu controlo. Já não sei se posso dizer o mesmo do espetáculo. Parece que sempre estou inventando uma dor de cabeça. Aliás, daqui a poucos meses completam-se 3 anos da publicação do Divórcio.

Não me sinto mais estigmatizado. A história toda me incomoda muito pouco: o fato de até hoje algumas pessoas se espantarem com o meu livro. Para planejar esse diário tentei recuperar na memória o que eu sentia naquela época. Deu errado. Acho muito difícil inventar esse tipo de passado. Para mim as lembranças estão todas relacionadas a cidades ou, o que deve ser a mesma coisa, acontecimentos históricos. Talvez eu tenha a doença da história.

3 de maio

Ou escrevi aquilo ontem porque sei que esse texto vai ser lido sobretudo por psicanalistas. Na revisão, inclusive, preciso decidir se a frase anterior vai ou não ter ponto de interrogação. Vai? Ainda não sei. Frequentei sessões de psicanálise por alguns anos. Eu gostava muito. Divórcio foi escrito durante um desses períodos. Fico feliz de saber que até hoje ele é indicado em sessões de terapia. Da minha parte, de fato nem me lembro direito do rosto da minha ex-mulher. Se ela aparecer aqui na minha frente, talvez não a cumprimente. Não vou reconhecê-la. Ao menos, acho que não. De qualquer forma, apesar do estigma no meio literário (que não é exatamente acostumado à minha proposta), tenho muito orgulho do livro.

Do estigma, já não sei bem. Fico reclamando, mas estou na semana que antecede ao lançamento do meu livro-objeto Inquérito Policial – Família Tobias e a divulgação me parece boa. Há aqui e ali algum ruído, mas preciso compreender que mais ninguém além de mim provoca esse tipo de reação. Então, eu deveria estar preparado. Eu deveria estar preparado?

4 de maio

De um jeito ou de outro, quanto ao estigma, acho que posso dizer que ele ainda me incomoda um pouco. No geral, leitores comuns, psicanalistas e psicólogos, advogados e profissionais de educação física gostam muito de Divórcio. Professores universitários também produziram textos impressionantes. Ontem mesmo saiu um de um excelente crítico da UFRJ. O meio literário, porém (que no Brasil é resistente à minha proposta), ainda se incomoda um pouco com o livro. Ontem à noite fui procurar indicações de HQ’s em um perfil que fala muito sobre isso no twitter e encontrei uma discussão em que do nada um cara me agredia. O texto é literalmente o seguinte: “a questão é que Lísias é um babaca. Literatura não é vingança”. Parece que foi combinado com esse diário.

A justificativa para eu ser babaca é o Divórcio. A agressão vem de um pau mandado de um certo X, um professor universitário que fica na internet fingindo-se de bulldog da esquerda e protegendo o impagável XY. Tudo menos escrever algo relevante. Esse X faz fofoca sobre meu livro o tempo inteiro. Meu chapa, vem aqui na minha frente.

5 de maio

A entrada de ontem mostra o quanto estou nervoso. No geral, esse tipo de agressão não me incomoda, o que, aliás, indica que já devo ter superado o estigma. Estamos a oito dias da estréia da performance. Nunca fiz nada parecido. Até agora não decorei as falas. Sequer estou seguro quanto ao andamento do espetáculo. Há uma boa divulgação, o que aumenta o público e a minha responsabilidade. Por isso, agi de um jeito tão infantil diante de uma agressão boba. Em outra circunstância, não daria bola: superei o estigma. Vou retirar o nome do professor universitário e do impagável colega que ele defende. Com isso, universalizo meu texto e minha crítica fica voltada a todos os bulldogs de rede social, e não apenas ao X.

Minha intenção é política: aliás, a do Divórcio. Aqui, porém, estou me justificando, o que reduz um pouco o alcance da minha denúncia. Vou então ser mais claro: bulldogs de rede social que protegem amigos assediadores de mulheres e fazem fofoca o tempo inteiro são outro lixo da nossa sociedade. A militância contemporânea os chama de esquerdomachos.

6 de maio

Um pouco depois do lançamento do Divórcio, esse esquerdomacho procurou alguns coletivos feministas para dizer que o romance não tem nada de ficção. É simplesmente o relato de uma situação que o autor viveu e foi redigido exclusivamente para prejudicar sua ex-mulher. Ninguém deu muita atenção, o que deixou o bulldog com mais raiva ainda. Esse tipo de coisa me incomodava muito nos meses seguintes ao lançamento. Hoje, superei. Agora há pouco eu estava em uma “entrevista coletiva” realizada por estudantes de 14 anos da rede municipal de São Paulo. Eles tinham lido o Inquérito (que lanço amanhã) e o Divórcio. Um deles, um menino de 14 anos, perguntou sorrateiro por que me divorciei na vida real.

Respondi com outra pergunta: mas quem disse que eu me separei? Ué, você escreveu um livro chamado Divórcio. Respondi que me separei porque o casamento não deu certo. Todo mundo riu. Aí, expliquei que foi a mesma confusão que fez o Ministério Público investigar a personagem de um livro de ficção meu e me acusar de falsificação de documento. Todo mundo riu de novo. O humor mostra que já superei o estigma que parte do meio literário criou sobre o romance Divórcio.

7 de maio

Tudo isso, inclusive o jogo de repetições que estou fazendo para criar algum desconforto (já que sei que esse texto vai ser lido sobretudo por psicanalistas) serve apenas para mostrar como as pessoas têm dificuldades para lidar com separações. Mais ainda: o problema maior está em falar sobre elas. É como se houvesse uma ética maior que outras exigindo que o assunto fique restrito a uma dor muito particular e impronunciável. Como pretendo fazer uma arte de reação, foi esse outro impulso que me ajudou a escrever o romance. Além disso, o meio literário no Brasil contemporâneo é sobretudo de aceitação. Nada de ser contra nada!

Basta somar tudo isso para chegar às razões por que tanta gente tentou estigmatizar meu livro: pois além de tudo separações são elas próprias um estigma. Enfim, acordei um pouco mais feliz: é hoje a festa de lançamento do meu trabalho novo, o Inquérito Policial – Família Tobias. Eu gostaria de convidar os psicanalistas que estão me lendo: começa pontualmente às 16h e 20 minutos na Banca Tatuí, alameda Barão de Tatuí, 275. Evitem os carros: a rua vai estar fechada. Agora, imagina se eu não fosse estigmatizado…

8 de maio

O lançamento ontem foi muito bom, mas algumas surpresas me marcaram mais que outras. Três delegadas da Polícia Federal apareceram. Estavam animadas, rindo bastante e foram muito simpáticas. Compraram o livro. Só estou com receio de que apareçam na peça, já que a polícia não se sai muito bem. Mas deve ser coisa da minha cabeça. Duas pessoas diferentes não compraram o Inquérito, mas trouxeram o Divórcio para que eu o autografasse. Acho que nunca vou me livrar desse livro, que sempre fica um pouco mais em destaque que os outros. Penso agora se isso não é mais ou menos como o próprio ato de se divorciar. É um negócio que nunca mais larga a pessoa. Eu sempre serei divorciado, por melhor que seja o segundo casamento, por mais que goste da minha esposa e nem me lembre da cara de quem me acompanhava há 5 anos.

Talvez as pessoas consigam esconder que são divorciadas. Enfim, não eu: não no meu caso. Por mais que eu repita que se trata de um romance, não adianta. Se eu estivesse escrevendo para um público especializado em literatura, diria que não gosto muito do conceito de ficção. Para psicanalistas, digo o mesmo da realidade.

9 de maio

Ontem fizemos um ensaio até de noite. Ficou bom, embora eu ainda esteja inseguro com a minha possibilidade de atuação. Teatro não é literatura: aqui estou construindo uma imagem que, já sei previamente, é destinada a psicanalistas, público principal da revista que deve publicar esse texto. É curioso: será que quando minha ex-mulher escrevia aquele diário, depois que eu caía no sono, ela queria que na verdade eu o lesse? Durante as sessões de análise logo após o divórcio concluímos que sim, mas sem muita certeza. Depois, o assunto começou a me parecer irrelevante. Pensei nisso agora fazendo esse diário. Enfim, todo texto tem um auditório.

Não sei se é possível concluir que todo autor é um potencial leitor. Acho que não. Literatura não é teatro, mas de qualquer forma há algum tipo de jogo com o outro: texto não é corpo, ainda que muitas vezes possa ser uma extensão dele. Mas não é bem isso: o corpo de um jeito ou de outro a gente controla. A menos que estejamos doentes. O que os outros vão ler, não. Então o ato de ler envolve certa enfermidade.

[O segundo parágrafo está confuso. Decidir se deixo assim.]

10 de maio

É curioso estar justamente agora lidando com um texto voltado para psicanalistas. Sinto-me vulnerável e triste. Parece que nesses momentos mais delicados tudo começa a acontecer. O Tales está fora. Só posso correr para cá, então. Na madrugada passada, tive uma forte dor de dente. Duas horas da manhã. Estou em uma clínica dentária fazendo raio-x da boca. Três e meia, volto para casa com um curativo e o medo de que algo atrapalhe a minha performance. Vou dormir e acordo agora às oito da manhã com uma enorme dor de cabeça. Joana, a gata que está comigo há quinze anos, parece passar muito mal atrás da geladeira. Coloco-a dentro de uma caixa de transporte e vou para um hospital veterinário.

São nove e meia da manhã e ela vai ser internada. Às treze horas o veterinário me liga e diz que os exames estão prontos. Joana tem quando muito alguns dias de vida. Todos serão bem sofridos. Compreendo a insinuação e peço que a agonia seja abreviada. Sinto um peso enorme. Queria ter alguém para conversar sobre a minha decisão. Não pode ser com a minha mulher, pois ela está muito perto de mim. Sinto necessidade do vocabulário psicanalítico.

11 de maio

Estou escrevendo tarde da noite. Hoje um repórter da Folha de S. Paulo esteve no ensaio. Tentei fazer o melhor possível e estou com a sensação de que fomos razoavelmente bem. Mandaram uma fotógrafa especializada em teatro. A matéria sai amanhã, um outro jornalista me avisou agora há pouco: na verdade, não estou escrevendo tarde da noite, mas sim às 16 horas de 12 de maio. Atrasei o diário e agora preciso acertar a convenção. Pretendo fazer essa entrada agora e a próxima, hoje de fato, mais tarde lá no SESC, para onde estou indo fazer os ensaios finais. Estreio amanhã às 21h e 30 minutos. Quem puder vir, está convidado. Minha garganta ficou ruim o dia inteiro. Agora à noite estou com a sensação de febre.

O Pedro está tossindo muito e devo ter pegado uma virose dele. Provavelmente meu estado piorou ainda mais por causa da tensão. Esse negócio de teatro dá um frio na barriga diferente. A minha inexperiência aumenta ainda mais o nervosismo. Quando deitei, eu me sentia quase pelado. Mas não é como na época do Divórcio, quando tinham tirado minha pele. Aqui, estou fazendo strip-tease.

12 de maio

Estou agora no meio do ensaio final. Está muito confuso, não por causa da performance dos atores. Estamos bem, afinados e entrosados. O problema é a luz e os vídeos. Deu tudo errado. A infraestrutura ainda está muito confusa e sem definição. Estou apreensivo. Por outro lado, vim para cá (estou no café do SESC, no intervalo do ensaio) com uma boa alegria, pois o Pedro foi ao banheiro sozinho e fez cocô no penico quase sem a minha ajuda. É engraçado: será que ele vai se ofender lendo esse texto daqui a 15 anos? Vou pensar nisso até a revisão. Enfim, como estou em dias ansiosos, talvez esteja sendo arrogante aqui. Quem disse que daqui a 15 anos alguém vai se interessar por alguma coisa que escrevi?

A propósito, às vezes sinto que escrevo demais. Mas aí olho os livros do Beckett na minha prateleira e, na mesma hora, o sentimento oposto me assusta. Enfim, de um jeito ou de outro, não tem gente que só não vai à terapia no fim de semana?

13 – 14 de maio (1 hora da manhã)

Por aqui, a Andressa e o Pedrinho já dormiram. Eu estou sem sono, um pouco impressionado e bastante aliviado. Deu tudo certo hoje, o espetáculo foi muito elogiado. Fiquei apenas um pouco nervoso no começo, mas nada que me impedisse de fazer todo o necessário. As pessoas riam e olhavam espantadas e interessadas. Durante a tarde, o ambiente ficou um pouco tenso, porque as falas não estavam muito bem decoradas e os vídeos não rodavam direito. No final deu tudo certo, todo mundo saiu para jantar, o Clima tomou o seu vinho e a gente retornou confiante. Enfim, eles, que se apresentam o tempo inteiro, estavam confiantes.

Eu não sabia o que tinha pela frente. Fui aos poucos me acalmando, mas acho que apenas pela necessidade. Cinco minutos antes de começar, olhei para a fila e senti uma paz estranha. Pior se não tivesse vindo ninguém. Cumprimentei as pessoas na porta, lembrei para mim mesmo que não tinha a menor experiência naquilo e a luz se apagou, abrindo o foco apenas no meu rosto. Deu tudo certo e agora estou sem sono.

15 de maio

Na minha opinião, a apresentação de ontem foi muito inferior à estréia. Quem viu as duas, porém, não achou. Esqueci o trecho mais político da minha fala inicial e passei um bom tempo (5 minutos, ou seja, 20% do espetáculo) tentando lembrar em que lugar ela teria que ter entrado. A Janaína disse que no teatro isso se chama “carregar o caixão”. Para os outros, como eu disse, ontem foi até melhor que na sexta. Talvez eu tenha ficado intimidado com a presença do Nuno Ramos e tentado fazer o melhor possível. Saí decepcionado. Nesse tipo de teatro que estou constituindo, em primeiro lugar para mim mesmo e depois para os leitores (aqui, psicanalistas), não existe “o melhor possível”.

Para mim existe simplesmente fazer. Eu quero basicamente realizar, o que por fim inclui a inevitável possibilidade do erro. E, mais ainda, da tensão. Talvez eu devesse ter chamado esse texto de “Diário de uma ousadia”. Mas achei que seria pretensioso demais. Não vou me entregar muito. 


* Ricardo Lísias publicou os romances Cobertor de estrelas, Duas praças, O livro dos mandarins, O céu dos suicidas e Divórcio. Ganhou os prêmios Portugal Telecom de Literatura Brasileira e o de Melhor Romancista da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É autor do folhetim publicado por meio de uma série de ebooks chamado Delegado Tobias. Publicou também o livro-objeto Inquérito Policial – Família Tobias. É autor da peça-performance “Vou, com meu advogado, depor sobre o delegado Tobias”, em que atuou também como um dos atores. Foi selecionado como um dos Melhores jovens escritores brasileiros pela revista inglesa Granta. Esteve como escritor e professor visitante na Universidade de Viena e na University College London, entre outras universidades. É mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e doutor em Literatura Brasileira pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Unifesp.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | LÍSIAS, Ricardo (2016) Diário de uma tensão. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -1, p. 5, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/05/22/diario-de-uma-tensao/>.