A psicanálise e os mandarins

por Paulo Sérgio de Souza Jr.

不出戶知天下;

不闚牖見天道。

其出彌遠,其知彌少。

 

 

Sem quitar uma porta, o que há sob os céus conhecer;

 

Sem espiar a janela, o Caminho do Céu avistar.

 

Mais para longe se ir, menos se há de atinar. ]

 

— Lao-Tsé, Tao Te Ching [道德經 Dàodéjīng], cap. XLVII

Os psicanalistas, desde Sigmund Freud, tematizam as línguas com certa frequência. No entanto, é a partir da psicanálise francesa que o chinês ganha um lugar de destaque na cena teórica em torno do inconsciente; mais precisamente a partir dos trabalhos de Jacques Lacan — que sabemos ter estado interessado tanto pelo pensamento chinês quanto por essa língua em especial.

Lacan estudou chinês durante a guerra, quando frequentou o curso de Paul Demiéville, único sobrevivente da geração de alunos do célebre sinólogo francês Édouard Chavannes. Depois, em 1970, é a François Cheng que tomou como professor. Sabe-se bem que essa empreitada terá muitos efeitos sobre a sua teoria; de fato, ele chegaria até mesmo a dizer que se deu conta de algo: que talvez só fosse lacaniano porque outrora havia estudado chinês.

Chinês”, diz ele. Mas que chinês é esse? Afinal — isso para não falar das centenas de dialetos/línguas (conforme os critérios utilizados para classificação), com suas diversas sonoridades —, há sete línguas maiores na China, todas agrupadas sob o mesmo nome de chinês: 粤语 (yuèyǔ, ou ‘cantonês’), 客家话 (kèjiāhuà), 赣语 (gànyǔ), 闽语 (mǐnyǔ), 湘语 (xiāngyǔ), 吴语 (wúyǔ) e, por fim, o sétimo da nossa lista: o chinês estudado por Lacan, o mandarim, que se chama 官话 (guānhuà, “o burocratês”) — ou melhor, o mandarim standard, dito 汉语 (hànyǔ); ou ainda, como também se diz, 普通话 (pǔtōnghuà, “o falar ordinário”, traduzindo ao pé da letra).

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Dito isso, é do mandarim que falaremos aqui[1], para desdobrá-lo e marcar a seguinte passagem: do mandarim enquanto língua oficial, de Estado, a um certo “mandarim” oficialmente cultivado no rastro do ensino de Jacques Lacan.

Esta observação — “talvez eu só seja lacaniano por ter estudado chinês no passado”[2] — pode ter sido o gatilho de uma série de declarações sobre a língua chinesa facilmente encontradas nos domínios da psicanálise, dentre as quais: “As palavras em chinês são sempre monossilábicas”; “O chinês não conhece o verbo ser”, e por aí vai. Declarações que não são necessariamente oriundas, digamos, de um estudo mais aprofundado dos meandros dessas línguas em questão — estudo que esperaríamos ter sido e/ou ser realizado por aqueles que (levianamente) as proferem em colóquios; que publicam seus (pretensos) corolários em artigos; que consagram suas já famigeradas influências na psicanálise em livros (supostamente) especializados e, muito curiosamente, reconhecidos pela comunidade editorial e analítica —, mas que parecem cumprir tão somente um papel de chancelar uma filiação através do eco preciso de afirmações que, por sua vez, estão longe de o serem.

É frequente, portanto, encontrar raciocínios que se baseiam num conhecimento bastante superficial dos aspectos morfológicos, fonológicos, sintáticos, nem que seja apenas do mandarim standard. Dito de outro modo, poucas análises linguísticas e, assim, muitas análises selvagens. Então, cumpre refletir: quando os psicanalistas ecoam a empreitada lacaniana e discutem a partir do chinês, do que é que eles estão falando? Qual o papel, na psicanálise, dessa língua que permanece desconhecida, por assim dizer, justamente porque pouco dela se procura conhecer, de fato? Qual é o mandarim da psicanálise; ou, justamente: na psicanálise, onde estão os mandarins?

Ora, essas chinoiseries psicanalíticas constituem aquilo que acabei de chamar de “mandarim” cultivado na esteira do ensino de Lacan: uma espécie de esperanto analítico praticado por pessoas que se poderiam, então, nomear “os mandarins” da psicanálise. Aliás, sabe-se que “mandarim” designa um funcionário civil ou militar dos antigos impérios da China, do Aname ou da Coreia, pertencente à classe dos letrados e recrutado através de concurso. Logo, por analogia, o mandarim é uma personagem culta; a língua que ele fala, por sua vez, é a língua literária, culta — não por acaso, a língua oficial da China moderna, oriunda dos falares do norte do país: o centro do poder político.

Bem se compreende o papel que a estrangeiridade da língua do outro pode ter: caso não se chegue a perceber com facilidade alguns traços na língua que falamos, é na língua desse outro que se pode encontrar a diferença que nos falta. Pode-se — enquanto psicanalistas muito apaixonados pela homofonia e pelos jogos de palavras, por exemplo — recorrer ao francês, que, para os brasileiros, parece uma língua bem mais permeada pela homofonia; ao passo que os franceses podem, de sua parte, recorrer ao chinês para poderem supor que a língua deles, francesa, não é mais homófona do que eles gostariam de admitir. Porque estranha, antes de mais nada, é a língua do outro, é claro ( ! ) Não porque se trata de uma outra língua, mas porque estamos por demais habituados a pensar que a língua enquanto tal quer dizer, precisamente, aquela que chamamos de nossa — esquecendo que uma língua é sempre e intrinsecamente algo que vem do outro. Um esquecimento que pode convir, decerto, para situar silenciosamente os litorais que parecem conceder os contornos, ainda que ilusórios, ao Ocidente e ao Oriente linguísticos, e até mesmo psicanalíticos, através das línguas e das suas singularidades — como em “Lituraterra”, por exemplo, onde Lacan diz o que afirmará uma vez mais em seu “Aviso ao leitor japonês”: que os japoneses, por causa de sua língua, não precisam ser analisados.[3]

Dito isso, cumpre lembrar que o termo “mandarim” tem também um sentido pejorativo, que serve justamente para definir os efeitos desse esquecimento que faz não com que se utilize a língua do outro para reconhecer a estranheza da nossa, mas sim para fazer valer uma exclusão desse outro; exclusão essa que seja capaz de nos oferecer os limites que, por vezes, claramente nos faltam: “mandarim” também denota o intelectual, o artista cultivando um refinamento excessivo que o destaque da massa. Eis, portanto, a personagem que, em razão dos seus títulos ou funções, faz as vezes de soberano em seu domínio.

Assim vemos certos psicanalistas, os quais certamente não se arriscam ao menor exercício de fonética, afirmarem que, na língua chinesa, cada palavra tem a sua entonação — para dizer que o chinês é uma língua tonal, mas sem se atentar para o fato de que tom e entonação não são a mesma coisa —; ou outros que, sem se lançarem às provações de uma análise certamente muito radical (a análise sintática), afirmam que o chinês é puramente visual, como se as pessoas na China falassem através de imagens justapostas e como se as suas palavras — “monossilábicas”, como dizem — constituíssem uma constelação bizarra de unidades capsulares e magicamente pouco articuladas. Isso para não dizer das afirmações fazendo confusões grosseiras, nos domínios da fonologia, entre o que é da ordem do fonema (a menor unidade distintiva que se pode isolar na cadeia falada, mas que não é exatamente um som) e o que é da ordem dos fones (as diferentes realizações de um fonema, suas realizações sonoras).

Talvez possamos dizer que esses mandarins — estou falando ainda dos analistas — fazem como fizeram o padre Antonio Ruiz de Montoya, em seu Tesoro de la lengva gvarani ou o padre José de Anchieta (em sua Arte de grammatica da lingva mais vsada na costa do Brasil), ambos inscritos numa tradição acostumada a descrever as línguas indígenas a partir do latim clássico, tal como o hábito jesuítico de julgar as almas dos estrangeiros a partir do pecado que assombrava o branco europeu.

Dizê-lo, no entanto, já seria um descomunal elogio. Afinal, por mais que se possa com isso dar alguns passos — e, nesse sentido, os jesuítas parecem ter conseguido ir extremamente mais longe que os analistas que se furtam ao estudo dos idiomas (a partir) dos quais falam —, sem terem atravessado verdadeiramente a soleira do Império Romano, julgavam-se capazes de conhecer o universo das línguas ditas bárbaras; sem terem entreolhado pela janela do Colégio, entreviram o Caminho de um céu que não era o seu; quanto mais longe se metessem, pensavam eles, menos conheceriam, tal como o sábio descrito por Lao-Tsé: “Por isso o sábio / Conhece sem caminhar / Reconhece sem ver / Realiza sem agir”[4]. Resta saber se, ao também fazê-lo, os mandarins (esses psicanalistas) não acabam dando cabo justamente do mandarim (essa língua de um outro que se desconhece).

Tudo bem que tuer le mandarin [matar o mandarim], como dizem os franceses, acontece uma vez por outra. Aliás, frequentemente apresentada — depois do romance O pai Goriot — como tendo vindo de Rousseau, essa expressão surge em muito boa hora. Retomo aqui as palavras do seu autor, Balzac; as quais se trata, na verdade, das que ele faz com que sejam ditas pela personagem Eugène de Rastignac, que pergunta o seguinte ao seu amigo Bianchon:

 — Leste Rousseau?

— Li. [diz Bianchon]

— Lembras-te daquela passagem em que ele pergunta ao leitor o que faria se pudesse enriquecer matando, apenas pela vontade, um velho mandarim da China, sem sair de Paris?

— Lembro-me.

— E então? [interroga o Sr. de Rastignac]

— Pois já estou no meu trigésimo terceiro mandarim.

— Não gracejes. Diz-me uma coisa: se te provassem que isso é possível e que bastaria fazeres um gesto com a cabeça, tu o farias?

— É muito velho, o mandarim? Mas não, jovem ou velho, paralítico ou sadio, de modo algum… eu não faria esse gesto!

— És um rapaz digno, Bianchon! Mas se amasses uma mulher a ponto de por ela virar a alma pelo avesso e se precisasses de dinheiro, muito dinheiro, para seus vestidos, sua carruagem, para todos os seus caprichos, enfim?

— Mas tu me privas de todo raciocínio e queres que eu raciocine![5]

Em suas “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, Freud retoma, também ele, esse excerto do romance:

Em O pai Goriot, Balzac alude a uma passagem das obras de J. J. Rousseau, na qual esse autor pergunta ao leitor o que este faria se — sem deixar Paris, e naturalmente sem ser descoberto — pudesse matar, por um simples ato de vontade, um velho mandarim em Pequim, cujo passamento lhe traria enorme vantagem. Ele dá a entender que a vida desse dignatário não lhe parece muito garantida. “Tuer son mandarin” [matar seu mandarim] tornou-se uma expressão proverbial para essa disposição oculta, que é também dos homens de hoje.[6]

No ano seguinte, em contrapartida, é no próprio Freud que se pode ler aquilo que se segue a propósito de uma língua chinesa e sua escrita:

Não creiam os senhores que entendo alguma coisa dela; instruí-me a seu respeito apenas porque esperava encontrar analogias com as indeterminações do sonho. E não me equivoquei em minha expectativa. A língua chinesa está repleta de indeterminações que poderiam até nos inspirar medo. […] mais interessante ainda é o fato de a língua chinesa praticamente não possuir uma gramática. Não é possível dizer se as palavras monossilábicas são substantivos, verbos ou adjetivos, e ausentes estão também as modificações pelas quais se poderia reconhecer gênero, número, caso, tempo ou modo. Trata-se, pois, de uma língua composta apenas de material bruto, por assim dizer, assim como a linguagem do nosso pensamento é decomposta em seu material bruto pelo trabalho do sonho, que se abstém de expressar as relações entre componentes. A língua chinesa deixa a cargo do interlocutor a decisão acerca de como compreender cada caso de indeterminação, decisão na qual ele é guiado pelo contexto.[7]

Pediria aos leitores, aqui — especialmente aqueles que estudaram ou estão estudando para prestar as provas do HSK[8] —, a bondade de guardar um minuto de silêncio por esse mandarim, abatido descaradamente e sem qualquer piedade. Mas, com relação aos indícios que se podem encontrar em muitas das reflexões psicanalíticas a respeito das línguas chinesas e dos seus efeitos de validação teórica, de um lado, e a ausência de críticas, do outro, pergunto mais exatamente: se, para se tornar o rico herdeiro teórico de uma língua que nunca se estudou propriamente, da qual nunca se ouviu falar a não ser pelos livros ou seminários e que habitasse os cafundós da China, bastasse apertar um botão para fazer com que ela morresse de tristeza, quem de nós não apertaria esse botão que causaria a morte do mandarim? Se amássemos a psicanálise a ponto de por ela virar a alma pelo avesso; e se fosse preciso argumento, bastante argumento para o seu arcabouço, para a sua escrita, para todos os seus caprichos, enfim?… Poderíamos hesitar cometer, em detrimento de um desconhecido, essa ação desonesta que deve ser proveitosa e tem todas as chances de permanecer ignorada e impune?

E se há sempre um Bianchon para dizer seu ponto — “Mas tu me privas de todo raciocínio e queres que eu raciocine!” —, não custa responder: pois bem, mas o inconsciente não é esse raciocínio que sobrevém quando a razão nos é privada, precisamente?

Ora, se os não tolos erram,[9] pode ser que a sabedoria (não mover, não agir) talvez não seja muito conveniente aos analistas; e então, mais do que errar especulando para tirar indevido proveito das autoridades de uma língua, melhor seria passar algumas horas sentado ao lado do mandarim para adquirir, trabalhando com ele, o tesouro da sua língua — como o de qualquer outra —; e se deixar acometer por esse saber, a fim de merecer, mínima e legitimamente, as benesses da sua herança e as filigranas da sua doutrina. 

REFERÊNCIAS

BALZAC, Honoré de (1835) “O pai Goriot”. In: A comédia humana, vol. 4. Trad. V. de Oliveira. Porto Alegre: Globo, 1958.

FREUD, Sigmund (1915) “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”. In: Obras completas, v. 12. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp. 209-246.

_____. (1916) “Conferências introdutórias à psicanálise” [Segunda parte: Os sonhos. § 15. Incertezas e críticas]. In: Obras completas, v. 13. Trad. S. Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014; pp. 308-323.

LACAN, Jacques (1971) O seminário, livro 18: De um discurso que não seria do semblante. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

_____. (1972) “Aviso ao leitor japonês”. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.

_____. (1973-74) Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent [inédito].

老子 [LAOZI], 道德經 [Daodejing]. Disponível em: <www.daodejing.org>.


* Paulo Sérgio de Souza Jr. é psicanalista (São Paulo, SP), linguista e tradutor. Pós-doutorando em teoria literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; doutor e bacharel em linguística pela Universidade Estadual de Campinas – IEL/UNICAMP. Foi professor-associado da Universitatea “Alexandru Ioan Cuza” din Iași e tradutor residente do Institutul Cultural Român – ICR/Bucareste. É aluno de mandarim no Instituto Confúcio (UNESP/São Paulo, SP); e em Wǔhàn [武汉], na Universidade de Hubei [湖北大学], aprendeu que a comunicação é mesmo um milagre, mas… que ela existe, existe.



[1] Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada sob o título C’est à quel chinois? La psychanalyse et les mandarins, no VIII Encontro Internacional da Sociedade de Psicanálise e Filosofia – SIPP [“Política e as formas do político”]. São Paulo / Belo Horizonte, 23 a 27 de novembro de 2015.

[2] LACAN, Jacques (1971) O seminário, livro 18: De um discurso que não seria do semblante. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; p. 35.

[3] “[…] o chiste é, no Japão, a própria dimensão do discurso mais comum, e é por isso que ninguém que habite essa língua precisa ser psicanalisado, a não ser para regularizar suas relações com as máquinas de moedas — ou com clientes mais simplesmente mecânicos” (LACAN, Jacques [1972] “Aviso ao leitor japonês”. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 498).

[4] Lao-Tsé, Tao Te Ching [道德經 Dàodéjīng], cap. XLVII. No original: «是以聖人不行而知,不見而名,不為而成。».

[5] BALZAC, Honoré de (1835) “O pai Goriot”. In: A comédia humana, vol. 4. Trad. V. de Oliveira. Porto Alegre: Globo, 1958, pp. 116-7. Original disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6305332g.r=.langFR>.

[6] FREUD, Sigmund (1915) “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”. In: Obras completas, v. 12. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; pp. 243-244.

[7] FREUD, Sigmund (1916) “Conferências introdutórias à psicanálise” [Segunda parte: Os sonhos. § 15. Incertezas e críticas]. In: Obras completas, v. 13. Trad. S. Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014; pp. 311-312.

[8] O Hànyǔ Shuǐpíng Kǎoshì [汉语水平考试] é o teste oficial, promovido pelo governo chinês, de proficiência em mandarim.

[9] LACAN, Jacques (1973-74) Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent [inédito].




COMO CITAR ESTE ARTIGO | SOUZA JR., Paulo Sérgio (2016) A psicanálise e os mandarins. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 5, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-05/>.