por Cláudia Cristina Antonelli
Pretendo a partir de um olhar retroativo e reflexivo apresentar de forma breve aspectos específicos de um processo que se deu numa dupla analítica ‘de primeira viagem’. Demonstro este percurso em três momentos ilustrados.
No foco do primeiro destes, apresentarei elementos de meu encontro no consultório com a vida mental de alguém que alguns autores chamariam ‘de difícil representabilidade’[1]; ou ainda, de uma subjetividade que se localizaria, para outros, no vasto campo epistemológico das ‘não-neuroses’[2]. Ou seja, alguém com uma vida psíquica/mental bastante prejudicada — refiro-me às capacidades de simbolização, elaboração e construção de significado; assim como com uma fala, à minha escuta de então, caótica e sem nexo. O que, contratransferencialmente, mobilizava em mim, ansiedade[3].
No cerne do segundo momento, tentarei mostrar a aquisição (não repentina) de alguma sensibilização por parte de Rosa à imagem simbólica, revelando assim possivelmente algo de um trabalho mental de sua parte, culminando num terceiro momento, alguns anos mais tarde, na ‘produção’ de três sonhos levados à análise.
O que pretendo contar com o delineamento deste processo é a característica dificuldade da mente dita ‘concreta’ em simbolizar — e seus respectivos desdobramentos, tais quais o eco desta concretude na mente da analista iniciante —, assim como meu desafio em lidar com este persistente não-sonhar no campo da análise, situação bastante distinta e distante daquilo que eu vivia em minha própria análise e das leituras mais clássicas da Psicanálise às quais eu estava habituada. A partir disto, tento ilustrar o ‘com-passo’ construído, neste campo/tempo entre a paciente e eu, assim como por cada uma, separadamente. Seu, em direção — acredito — a um vislumbre de simbolização. Meu, conjecturo, em direção a uma ‘melhor escuta’: refiro-me a uma escuta ‘mais afinada ao passo de uma nova dança’, a dança de Rosa.
Finalmente, da dupla analítica, em sua possibilidade de sonhar, ainda que, de início, sonhos rudimentares e quase concretos. Pari passu, como há de ser, neste caso. Vamos a ele.
Atendo Rosa há nove ou dez anos aproximadamente. Ela procurou-me primeiramente por telefone: falou-me de forma agitada, marcou um horário. Dias mais tarde, telefonou-me novamente, desmarcou e remarcou. Fez isto algumas vezes, antes de vir para a primeira entrevista.
“Sim, só poderia ser você a pessoa para me atender… Você não desiste de mim! Te ligo e remarco… você me atende, sua voz calma me responde”, disse ela, em um destes telefonemas. Entendo que um processo pré-transferencial havia se iniciado.
Salto no tempo: após alguns meses atendendo-a, soube que Rosa havia sido adotada com um pouco mais de um ano. Podemos ‘sonhar’ que, sua mãe biológica, de certa forma, ‘não a havia esperado’.
No encontro com Rosa, estive também em contato pela primeira vez em meu consultório particular com a mente predominantemente concreta, dita de difícil acesso, com possibilidades simbólicas bastante reduzidas, conforme dito na Introdução. Tanto na primeira entrevista quanto nas sessões seguintes, Rosa tinha a fala difícil de ser acompanhada: falava rapidamente, pulava de tema em tema de forma desordenada, fazendo suas próprias conexões que me pareciam sem nexo; além de não permitir nenhuma ‘brecha’ para que algo fosse dito de minha parte — o que me gerava alguma ansiedade. Seu funcionamento mental, neste momento, era muito confuso.
Além da ansiedade e da angústia que Rosa despertava em mim em alguns momentos, sentia-me também frustrada pela impossibilidade ou ao menos imensa dificuldade que eu tinha em ‘trabalhar’ seus conteúdos da forma psicanalítica dita mais clássica: da forma que eu trabalhava em minha própria análise; da forma que eu lia na maioria dos textos que eu lia — ou seja: de forma associativa, simbólica, metafórica, e em diálogo. Com Rosa, não era assim. Seu diálogo não era cadenciado nem articulado, não era nem um diálogo. Ela, somente, falava.
Contudo, apesar da frustração, Rosa também despertava em mim empatia e curiosidade. Sua interlocução comigo era de outra ordem. Que subjetividade era aquela? Que pessoa era aquela? “De que substância foste modelado?”, dizia Shakespeare[4] . E o interesse e a curiosidade, ali, eram — me pareciam — em mão dupla.
O que eu era — ela me perguntava. Médica? Mãe de santo? Mentora? Ela tentava encontrar um lugar para mim, em sua mente. Ela não sabia. Nem o que era ‘Psicoterapia’ — mas ela agradecia e voltava para a próxima sessão, apesar das imensas dificuldades.
Um dupla analítica começava a se formar.
Rosa tinha às vezes um jeito um pouco ‘infantilizado’ de ser: tentava-me fazer rir, com coisas que dizia. Espontaneamente eu não ria, na maior parte das vezes. Outras sim. Mas a escutava e acompanhava — da maneira ou, com o método e a escuta que eu podia. Logo Rosa deixou de precisar fazer-me rir. Sabia que eu a escutaria. O meu desejo, afinal, era escutá-la. Mas ela, como eu disse, tinha curiosidades sobre mim também. Quem era eu que, também, lhe atendia por tão pouco? Por alguns anos, tivemos um valor ‘simbólico’ combinado para o preço da sessão – talvez aí, por bastante tempo, um dos poucos simbolismos em nossa relação, cercada e invadida por concretudes.
UM POUCO MAIS SOBRE ROSA | Ou, seu sonho de vigília.
O fato de ter sido adotada logo após seu primeiro ano de vida, ou sua relação com suas mães — biológica e adotiva — eram pontos sobre os quais pouco falava. Contava, de forma um pouco desordenada, que seus irmãos — que ela acreditava lhe invejavam — haviam lhe ‘tirado tudo’, tudo o que ela havia herdado: casa e apartamento em sua cidade. E que, impulsionada por estas confusões familiares, havia “saído de lá”. De que lugar psíquico haveria ela saído, eu me perguntava. O que foi se revelando ao longo das sessões, foi sua própria impossibilidade em manter o que tinha — o que era seu. O que havia herdado, adquirido e construído — tanto os conteúdos externos, quanto necessariamente, internos. Ou seja, os vínculos.
Assim, além de sua casa, havia também perdido seu trabalho, seu casamento e, em alguns aspectos, sua filha adolescente — com quem Rosa tinha muita dificuldade em conviver. Como se tudo, de tão confuso, tivesse então, que ser expelido. Mais tarde se deprimiu: foi quando me procurou.
Na ocasião, havia em realidade ‘procurado ajuda para sua filha’ (possivelmente em grande medida projetada e indiferenciada de sua filha). Rosa procurou o serviço de Psicologia na clínica-escola onde eu havia me graduado havia pouco. A instituição não dispunha mais de vagas, Rosa me foi encaminhada, ao meu consultório particular.
Ao longo destes anos comigo, Rosa passou por diversos empregos, nunca permanecendo muito em nenhum deles — com exceção dos dois últimos, que coincidem com um momento mais avançado em sua análise. Suas falas de que havia sempre sido ‘enganada e iludida’, que alguém sempre lhe queria mal ou “puxar-lhe o tapete” (aspectos persecutórios que eram ‘ativados’ em momentos de maior tensão), diminuíram significativamente. Ressalto a título de informação que este processo se deu sem a necessidade de medicação, somente com o processo analítico.
Rosa queria agora recuperar o trabalho que tinha antes e havia perdido — para isto precisaria estudar. Mas se defrontava com sua dificuldade em fazê-lo: ‘com o barulho de onde morava’ (o barulho dentro de si?). Queria muito ainda ‘construir sua casinha’ e sair deste lugar onde morava, que, tal qual descrevia, “era um inferno”. Entendo hoje que sua mente, em grande parte, era um inferno. Mas outra parte, relativamente preservada, buscava expansão e cuidados.
NÃO SONHAR
Rosa falava bastante do que lhe afligia e das dificuldades do dia-a-dia, de forma bastante simples e concreta — parecendo-me muitas vezes algo da ordem da ‘descarga’. Muitos pacientes fazem isto em alguma medida. Mas a dificuldade que se impunha, era a predominância, invariável, do não-sonho.
Defino-o, com as palavras de Cassorla[5]: “Propõe-se chamar não sonhos a sonhos em potencial que não puderam ser sonhados e que se apresentam como não-cenas ou cenas estanques, estereotipadas, sem acesso à trama simbólica”.
O trabalho onírico — em sonho ou em vigília — desta paciente parecia-me próximo ao inexistente. Talvez em alguma medida ela sonhasse, mas Rosa não estabelecia contato com seu sonhar: quer fosse o sonhar da noite ou, metaforicamente, do dia: associar ideias. A ‘ligação’ não se fazia: não se lembrava de seus sonhos, assim como também me parecia não acontecer, em grande medida, com sua dor: não havia ligações. Dificuldade esta que — até então -, eu atribuía somente à paciente. Sim, era sua condição psíquica própria, daquele momento — assim eu entendia. Mas, recorro a Cassorla (ibid) nova e brevemente para a ideia à qual me refiro, de sonho e não sonho, a dois, segundo o autor:
Propõe-se que o analista deve sonhar, também acordado, os sonhos e não-sonhos que o paciente propõe no teatro da análise. (…) Os sonhos se manifestam como cenas, enredos, estórias, com forte pregnância visual e indicam que percepções brutas adquiriram qualidade psíquica. (…) O analista sonha os sonhos do paciente em outras vertentes, ampliando seu significado e sonha seus não-sonhos dando-lhes significado. (grifos meus).
Seus conteúdos brutos, eu escutava. Mas nem sempre podia sonhá-los, suficientemente. Certamente — supervisão e análise prosseguiam.
Rosa, de seu lado, sempre fez sua parte para estar presente às sessões, apesar dos desempregos e residindo distante de meu consultório. Muitas vezes, ao estar ali, dizia ‘sentir-se na civilização’. Apesar de referir-se objetivamente à possibilidade de sentar-se tranquilamente na sala de espera e ler revistas, penso que falava também sobre a possibilidade de civilizar sua mente ainda predominada por estados muitas vezes bárbaros (de perseguição, traição, ataques e roubos).
Aos poucos, as poucas intervenções de minha parte até então aparentemente inócuas, pareciam começar tocar-lhe em algum ponto na trama de sua mente. As próprias funções do setting e as separações de sessão em sessão indicavam conferir-lhe a possibilidade de esperar, situar-se, pensar (funções estas psíquicas e algumas delas egóicas visivelmente muito fragilizadas). Talvez capacidades que ela já tivera em alguma medida, em outro momento — mas, “perdido”, como tantas outras coisas.
Enquanto que, ao mesmo tempo, seguia estabelecendo ‘contornos’ para sua fala: pausas, pontos, assim como sua própria possibilidade em escutar-se e escutar-me. Em colocar-se em diálogo — ou seja, tomar lugar em um duo, em uma dupla. Parecendo assim ter tomado alguma distância subjetiva: não mais a fala grudada, sem tempo, descarregada sobre mim e sobre o espaço/tempo entre nós. Eu também passara a escutá-la de outra maneira.
No último trabalho em que esteve, ainda que com dificuldades, manteve-se mais tempo. Eram muitas as histórias, contadas agora – ao menos a maior parte do tempo — sob esta nova dinâmica. Ou seja, na forma de um diálogo.
AOS POUCOS, SONHAR | A PRIMEIRA IMAGEM
A primeira imagem simbólica que trouxe fora da concretude de seu cotidiano, teve lugar em seu quinto ano de análise. Momento que considero um importante patamar no andaime desta construção.
Ela havia visto a foto de um quadro, “de um pintor conhecido”, ela disse.
— Como se chama?, perguntou-me. Aquele com um bigodinho fininho…
— Dali… Salvador Dali?, inquiri.
— Isso! A foto do quadro de uma mulher… que na verdade, tinha umas gavetas, no corpo dela…
— Sei. Permaneci em silêncio e ela também. Era a primeira vez que ela falava de uma imagem, de uma arte. Isto trazia uma qualidade bastante diferente para nossa situação analisante (tal qual descreve Figueiredo[6]).
— O que você pensou, deste quadro?
— Não era o quadro… era uma foto – ela me corrigiu. Mas eu achei legal… queria que fosse assim também, comigo. Por exemplo, a Lara numa gaveta, eu em outra…
Lara é o nome que escolho agora à sua filha.
— Cada uma em seu lugar?
— É….
Intuí que ela falava em parte da organização interna que vinha acontecendo, em sua mente — algo de uma diferenciação. A tentativa de não mistura, ou, não fusão. Juntas no mesmo gaveteiro, mas com limites, com fronteiras – com bordas. Antes havia sido tudo tão confuso… Foi o que eu lhe disse. Ela escutou em silêncio.
Mais alguns meses e Rosa traz então, um primeiro sonho.
O PRIMEIRO SONHO
“Eu estava do lado de fora de uma casa. Talvez uma casa branca. Estava tudo fechado, as janelas, as portas. E havia um portão, como uma grade, em torno da casa. Era noite. Eu estava do lado de fora com um cachorro em meus braços. Queria entrar na casa. Minha mãe estava lá dentro — ou talvez, eu tinha que colocar minha mãe lá dentro, não sei… mas de qualquer forma, eu podia fazer isto”.
Uma cena que poderia ser considerada impregnada de símbolos, signos psíquicos, metafóricos: a casa; a mãe; portas; janelas; portão; grade; noite. Querer entrar na casa, colocar a mãe dentro. E “Eu podia fazer isto”, ela completou.
Pedi-lhe que me falasse mais. Rosa pareceu pega de surpresa pela pergunta,
respondendo algo como que ‘não reconhecia a casa’. Permaneceu em silêncio.
— Sua mãe… eu disse.
— É… mas também não tenho certeza, não me lembro direito o rosto…
— Sua mãe dentro de sua casa.
— É, mas não sei se é minha casa… (seu pensamento concreto).
Em seguida Rosa mudou de assunto. Tentei escutar na mudança alguma possível relação com seu sonho, mas não consegui. Senti-me um pouco frustrada. No entanto, ela acabara de falar de um sonho, pela primeira vez em muitos anos. Havia possivelmente feito uma conexão com algo de sua vida mental mais profunda — ou ao menos dela um pouco mais se aproximado. E hoje, voltando por um instante meu pensamento novamente a seu sonho, escuto Rosa dizendo: “Eu podia fazer isto”. O que podia fazer? Colocar sua mãe dentro da casa? Segurar alguém em seus braços? (talvez ela própria). Ideias que se manteriam ainda no campo do concreto… Ou ainda, ‘olhar-se a si, pelo lado de fora’ — como um efeito do trabalho da análise. Haveria muitas possibilidades de construção de uma compreensão com ela.
Mas penso agora, a posteriori, que este ‘poder’ poderia ser também, simplesmente, sonhar. Por um instante, sonhar.
O SEGUNDO SONHO
Mais alguns meses e um segundo sonho. A temática casa retorna.
Rosa está em um novo local de trabalho. É uma casa, ‘um lugar muito chique’. Trabalha para os parentes do Chitãozinho e do Xororó. Há coisas de ouro, coisas muito caras. Carrega uma menininha em seu colo que, ao mesmo tempo, ela protege: segura sua cabecinha, para não bater. Pois alguém havia passado antes, carregando-a ‘de qualquer jeito’. Pelo que descreve, há somente mulheres no local.
Com fé no método, pergunto-lhe no que a faz pensar, este sonho. Ela acha que é ‘um sinal’, que vai ‘subir na vida’, vai trabalhar em lugares melhores… (fala agora com seu jeito de ‘tentar fazer rir’).
Não diz mais nada. A ocasião é novamente inusitada em nosso campo analítico. Ela permanece em silêncio. Apesar da corriqueira concretude de sua resposta – que, no entanto sempre me vinha com algum impacto – sinto-me movida a não desistir de ‘aproximar-me de seu sonho’, com ela. Ela parece querer passar para outro assunto.
“Uma menininha…”, digo-lhe.
— É, não sei… talvez seja a filha da minha chefe.
— Você disse que a protege…
— É.
Fez-me pensar num recém-nascido. É de praxe segurarem-lhe a cabeça, que ainda não se sustenta por si só — como ela fazia no sonho. Talvez, um bebê/mente nascendo? Pensei em silêncio. Um bebê fruto de nosso trabalho juntas — ‘um local só de mulheres’. Disse-lhe:
— Podemos pensar que talvez seja você, em seu próprio colo. Você se cuidando… Nosso trabalho aqui, seu “novo trabalho”. Você cuidando de você — para que não bata a cabeça’.
— É… ela responde, sorrindo.
— Antes cuidaram de qualquer jeito…
— Sim… E as coisas caras? ela me pergunta subitamente.
Permaneço em silêncio. Ela parecia por um instante querer uma resposta. Ela mesma prossegue:
— Acho que é porque vou melhorar de vida.
— Me fez pensar — em meu sonho te escutando — em seu trabalho, que você vem mantendo… junto com seu trabalho aqui. Sua ‘casa nova’, a que você quer tanto construir, me parece que vem construindo dentro de você. Uma casa nova, para você habitar.
— É. É sim… dizem que a gente é como se fosse nossa casa… (fez um gesto em torno de seu corpo).
Sua casa-mente, me parece, estaria em alguma transição naquele momento: entre uma casa-mente bastante concreta e uma casa-mente ainda bastante concreta, mas capaz de — ainda que bastante rudimentarmente — arranhar algo do simbólico, simbolizar. Era ainda difícil.
O TERCEIRO SONHO
Num terceiro e último fragmento de sonho (de um período agora de quase dez anos), Rosa sonha a imagem que houvera visto antes — aquela primeira imagem, da foto do quadro.
Conta que neste sonho, ‘via o mesmo gaveteiro’. Mas desta vez, trancava a gaveta e colocava a chave dentro. Acrescentou que gostaria que com sua filha, fosse assim também — ‘trancar a gaveta e colocar a chave dentro’.
— Como é isto?
Ela disse algo em referência a sentir-se cansada. No trabalho, estava cansada; com sua filha, estava cansada; e em outras situações também estava cansada. Eu lhe disse, após um momento:
— Será que você gostaria de trancar esta gaveta com a chave dentro… e assim encerrar-se? Deixar de ser mãe… de trabalhar… deixar de pensar, de sentir. Imagino que a análise, aqui, também te dê bastante trabalho.
— É… mas não dá né, para trancar a gaveta e colocar a chave dentro…
Penso que ela havia feito então, talvez uma primeira associação no curso de sua análise entre o conteúdo de seu sonho, a algo seu.
FRONTEIRA PSÍQUICA
Em realidade, acredito que ela falava agora no limiar entre a concretude da imagem[7] — num gaveteiro real, o qual não poderia trancar e deixar a chave dentro ou seja, realisticamente inviável — e, talvez, tocando na possibilidade simbólica desta imagem. Por exemplo, de que jamais deixaria de ser mãe, ou de ter que pensar — ou seja, de viver, enquanto estivesse viva.
Naquele dia, lhe disse algo como: assim como as mães que ela também havia tido, sempre seriam suas mães (fala minha que brotava do contexto daquela sessão, mas também do processo todo). A mãe que a gerou e a que a adotou e lhe cuidou – provavelmente, “segurando-lhe a cabeça”. Eu também, talvez, lhe cuidasse para que ‘não batesse tanto a cabeça’. Ela sorriu, desta vez, em silêncio.
REFLEXÃO
Opto por não me deter sobre a articulação teórica e/ou psicopatológica de Rosa. Um recorte de nosso percurso juntas é o que quis, por ora, ilustrar.
Proponho hoje, que este sonho nosso — meu e dela — se constitui à medida do tempo — tempo psíquico — e da função de andaime que a análise de Rosa acredito tenha tido. Certamente, em muitos momentos, mais por via di porre —haveria dito o mestre Freud (1904/1989) —, que de levare, tal qual seria numa análise do tipo mais ‘clássica’.
Fazê-lo demasiadamente — (re)construir com/por ela — seria precipitar-me a ela (o que acredito não tenha ocorrido). Pois geralmente Rosa me ‘ajudava’ a resolver esta questão, mostrando-me a linha tênue que separa o ‘sonhar com o paciente’ com o ‘sonhar pelo paciente’ —, sinalizando seu acompanhamento ou não das construções feitas ali.
Assim, ao cabo deste tempo de construção que chamo de andaime, tanto Rosa quanto eu parecemos nos beneficiar agora, em maior medida, do que frui de nosso campo. “Afirmamos que tratar é, primordialmente, defrontar-se com o ‘desconexo’ para dar-lhe uma forma, um sentido, uma coerência”, disse-nos Laplanche[8].
O primeiro encontro com Rosa havia me posto em contato com o desconexo de sua mente; com a desconexão da dupla analítica e, também, em alguma medida, com a minha própria enquanto jovem analista. Agora, me parecia, havia em nosso campo, conexões.
E, como num campo, atravessamos estações e também a possibilidade de colheitas. Estes três sonhos, sugiro, delas são frutos. ♦
REFERÊNCIAS
CASSORLA, Roosevelt M. S. (2006) Considerações sobre o sonho a dois e o não sonho a dois no teatro da análise. Revista de Psicanálise, SPPA, p. 1.
FIGUEIREDO, Luís Claudio (2011) A situação analisante e a variedade da clínica contemporânea. Revista Brasileira de Psicanálise, n. 45, pp-pp. 99-111.
FREUD, S. (1904) “Sobre a Psicoterapia”. In: Obras Completas de Sigmund Freud, 2ª ed., vol. VII. Rio de Janeiro: Imago,1989.
_______. (1911) “O manejo da interpretação de sonhos na Psicanálise”. In: Obras Completas de Sigmund Freud, 2ª. Edição, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
LAPLANCHE, Jean (2001) “Contracorrente”. In: GREEN, André. Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, pp. 357-370.
LEVINE, Howard B. et al. (2013) Estados não representados e a construção de significado: contribuições clínica e teóricas Trad. para estudo P. F. Lago. Londres: Karnac Books.
SEGAL, Hanna (1983) “Notas a respeito da formação dos símbolos”. In: SEGAL, Hanna (Org.) A obra de Hanna Segal: uma abordagem kleiniana à prática clínica. Trad. E. Nick. Rio de Janeiro: Imago, pp.77-98.
SHAKESPEARE, William (1914) “Sonnet 53”. In: The complete works of William Shakespeare. United Kingdom: Oxford University Press.
* Cláudia Cristina Antonelli nasceu em São Paulo, é psicóloga, mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP), psicanalista em formação (Gep-Campinas). É também formada em línguas estrangeiras pela ONU (durante uma década fora do Brasil, morando na França e em Nova Iorque). Além de dar aulas e atender em seu consultório particular, Cláudia gosta de escrever. Publicou em 2015 o livro O Estrangeiro – eu e você. Um olhar psicanalítico contemporâneo, como também escreve regularmente na revista digital cultural OBVIOUS.
[1] LEVINE, Howard B. et al. (2013) Estados não representados e a construção de significado: contribuições clínica e teóricas Trad. para estudo P. F. Lago. Londres: Karnac Books.
[2] Termo de André Green, em Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine (Paris: PUF, 2002), retomado por Marion Minerbo em Neurose e Não-Neurose (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2ª. Ed. 2013).
[3] Em contato com estas subjetividades, com este mundo mental/psíquico de certa forma novo para mim enquanto trabalho clínico, compus o texto, posteriormente publicado, que chamei de “O idioma de cada um” (o qual foi equivocadamente publicado sob o título ‘A fala de cada um’ [Pensamento Plural: Revista Científica UNIFAE, São João da Boa Vista, vol. 5, n. 1, 2011). Não tinha ainda conhecimento do conceito análogo tratado por C. Bollas, que o autor chamou de ‘Idioma humano’, em Sendo um personagem [Being a character, 1992].
[4] “What is your substance, whereof are you made” (Trecho inicial de W. Shakespeare, soneto 53, 1914; trad. nossa).
[5] CASSORLA, Roosevelt M. S. (2006) Considerações sobre o sonho a dois e o não sonho a dois no teatro da análise. Revista de Psicanálise, SPPA, p. 1.
[6] FIGUEIREDO, Luís Claudio (2011) A situação analisante e a variedade da clínica contemporânea. Revista Brasileira de Psicanálise, n. 45, pp-pp. 99-111.
[7] “A equação simbólica entre o objeto original e o símbolo no mundo interno e externo é, segundo penso, a base do pensamento concreto do esquizofrênico; substitutos para os objetos originais, ou partes do eu (self), podem ser utilizados bem livremente, mas (…) praticamente não são diferentes do objeto original. Estes substitutos são sentidos e tratados como se fossem idênticos a ele. Esta não-diferenciação entre a coisa simbolizada e o símbolo é parte da perturbação da relação entre o ego e o objeto. Partes do ego e dos objetos internos são projetados no objeto e identificados com ele (…).” (SEGAL, Hanna (1983) “Notas a respeito da formação dos símbolos”. In: SEGAL, Hanna [Org.] A obra de Hanna Segal: uma abordagem kleiniana à prática clínica. Trad. E. Nick. Rio de Janeiro: Imago, p. 83).
[8] LAPLANCHE, Jean (2001) “Contracorrente”. In: GREEN, André. Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, pp. 357-370.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | ANTONELLI, Cláudia Cristina (2016) Andaime de um sonho a dois. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 10, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-10/>.