Editorial

Dada uma harmonia ou linha melódica, uma dissonância é a presença daquilo que a perturba: notas que não pertencem àquele conjunto. Quando ouvimos um encadeamento de acordes, percebemos quais são as notas estáveis e quais são as que precisam ser resolvidas em consonâncias.

Mas essa percepção só faz sentido num contexto específico, dentro do qual decidimos o que será considerado como harmônico e o que será visto (ou ouvido) como dissonante. A harmonia vigente na Idade Média não é a harmonia da Bossa Nova, por exemplo. A definição de quais acordes serão tensos ou repousantes, incompletos ou resolutivos, é uma construção humana; e, portanto, variável, passível de transformação.

Além disso, e talvez mais importante ainda, podemos pensar que a própria tentativa de estabelecer uma distinção entre dissonância e consonância soe como anacrônica, já que está baseada num projeto musical orientado pela adaptação das notas a certas funções harmônicas. Se, ao contrário, pensarmos o exercício de composição como uma reflexão sobre as sonoridades que não se preocupa em encaixar notas em funções prévias, mas sim em orientar a decisão do que se quer fazer com os sons que se escolhe, quaisquer que sejam eles, a questão da dissonância não faz mais sentido. A harmonia resultante emerge dessas decisões, com novas tensões e novos repousos.

Que este número da Lacuna sirva como um convite a pensar sobre os diferentes sons destes ruidosos tempos.