Esta aqui é a Terra de Ninguém, o delegado disse, abrindo os braços sob o olhar vigilante e onisciente do Buda, pintado num arremedo de estupa sobre o arco que dizia “Welcome to Nepal”.
Era o último dia da minha primeira visita ao único prisioneiro brasileiro na jurisdição consular de Nova Délhi. Tinha decidido visitar a fronteira porque ali havia sido o local da prisão. Queria entrevistar as pessoas que viram a ocorrência, mesmo sem saber muito bem paira quê. Não tinha recebido instruções além do que o idioma do governo etiqueta como “de praxe”. O que, sim, eu tinha: carro, motorista, intérprete improvisado entre os funcionários da Embaixada e autorização para passar quatro dias conhecendo o caso. Planejei: vejo o rapaz umas duas vezes, converso com advogados, juízes, promotores e carcereiros. E vou à fronteira.
Mandei o programa para Brasília esperando que a última parte não fosse cortada. Fronteiras são o contrário de escrivaninhas em escritórios do governo, cheios de móveis que aparentam ter mais idade do que realmente têm, móveis cobertos por papeis inventados pelos homens em momentos de falta absoluta de imaginação ou de fé nos seus iguais. Claro que, talvez por pudor mais que por compromisso cívico, preparei cartões com o número de telefone de plantão, que deixei com os guardas da entrada da Índia, depois de uma curta palestra sobre o que um consulado faz ou não. No planejamento da missão, a relevância de conhecer todos os envolvidos na ocorrência estava bem explicada. Dentro, eu queria mesmo era cruzar a fronteira, pisar no Nepal pela primeira vez e ver mais uma vez a sociedade que se forma nesse lugar em que dois outros se encontram e se barram.
Não era a primeira vez em que atravessava a pé uma fronteira. Precisei, inclusive, afetar fascínio ante o corredor de terra batida que se dissolvia em campos sob nossos narizes, misturando Índia e Nepal outra vez, como sempre foram antes dos mapas e dos governos. Afinal, quem quer frustrar um delegado sorridente que convida para um passeio no Nepal, e que, do lado de lá, será sua garantia contra o desmascaramento de sua condição de migrante ilegal? Ele convidou. Aceitei dizendo que foi para isso que eu vim, com esse tipo de sinceridade em que ninguém jamais acredita.
Belahiya é um lugar que não está na lista do Tripadvisor, mas meus guias queriam mostrar o que havia para ser visto. O delegado e dois policiais lideraram o caminho passando o arco das boas vindas, o posto de migração, o de alfândega, e um pequeno templo hindu, todos nos primeiros cem metros de avenida pequena e esburacada, a primeira do Nepal. Viramos à direita no templo, para entrar num mercado com diversas mercearias, algumas barracas de comida de rua e pequenos duty-frees vendendo bebidas e cosméticos, mais que tudo. E atravessando toda a massa de lojinhas, o mercado terminava num pequeno terraço onde ficava um chaiwala, o vendedor do chá masala indiano, e que tinha vista para um charco repleto de aguapés. Era o ponto turístico da cidade, segundo o delegado. Tirei fotos, em respeito ao marco. Não era um lugar feio. Era bem parecido com outros tantos lugares onde já havia estado fora da Ásia. Menos um templo hindu, mais uma igreja evangélica: qualquer lugar no Brasil. Era um lugar muito parecido, sobretudo, com o outro lado da fronteira.
Voltamos para o posto policial indiano. Antes de partir, os patrulheiros e o delegado queriam que eu comesse comida do Nepal com eles, então me fizeram sentar para esperar, enquanto iam buscar momos. Momo é o nome dos raviólis cozidos no vapor desse pedaço do mundo. O fato de que a visita foi motivada por uma prisão parecia distante. A própria antipatia da Terra de Ninguém parecia estar muito longe da sala onde esperei pela comida. Os policiais que falavam inglês contavam que tinham vindo de outras partes da Índia. Os que não falavam, faziam-se interpretar pelos primeiros. Sunauli, a vila indiana, não pareceu ser um posto desejado: todos manifestavam saudades — e a gente acha que isso não se traduz de nossa língua, que arrogância — de suas terras natais. Esposas e filhos estavam a centenas de quilômetros daquele que para eles, talvez até literalmente, era um acampamento.
As outras fronteiras terrestres que cruzei a pé eram bastante parecidas. Mais ou menos caminhada entre postos. Cercas dos dois lados que não têm muita aparência de contornar completamente as linhas desenhadas nos tratados: alguns quilômetros para lá e tudo volta a ser a mesma coisa, e ninguém mais saberá por onde passa o risco. Quase sempre uma solenidade miserável ou inóspita no buraco entre países. Quase nunca se nota muito a diferença entre um lado e outro: mesmo tipo de casas, ou o mesmo deserto, quando não há nada; mesmo idioma ou línguas misturadas. Um ou outro traço apenas servem para fazer a distinção. Na minha Belahiya/Sunauli, a impressão que tive foi a de que quem cumpria esse papel eram os momos. Só tinha no Nepal. Sunauli era um vilarejo triste e desmomado. E os momos são tão bons, que o posto indiano todo se alimentava deles.
O guarda que teve de executar a ordem de prisão, com quem eu já tinha conversado antes, esperava seus momos junto comigo. Pedia desculpas por haver detido o brasileiro. A impressão que me dava era de que os momentos agradáveis que passamos na fronteira causavam esse arrependimento. Não era só isso, na verdade. Quando o oficial encontrou o rapaz, quis liberá-lo, mas as ordens superiores contrárias vieram logo em seguida. A versão coincidia com a que eu tinha ouvido na cadeia, do próprio detido. No entanto, não tenho muita dúvida de que a frustração por não ter conseguido evitar o incidente se agravou depois de estabelecida uma relação tão amigável. Não era culpa. Era a percepção da traição que era prender pessoas que “pertencem” a um amigo com quem se senta para comer momos na fronteira.
A prisão fica em Maharajganj, a uma hora e meia da fronteira. A estrada é ladeada por pequenas vilas e arrozais. Na parte mais próxima de Sunauli há casas construídas na arquitetura tradicional nepalesa. Mesmo muito rural e muito afastada, há muita gente morando na região. Uttar Pradesh é um Estado pouco menor que São Paulo, com uma população igual à do Brasil: não parece haver vazios em lugar algum, nem perto da fronteira. As pequenas vilas são sempre muito movimentadas o dia todo.
No começo da missão, já voltando da primeira viagem ao presídio, havia numa das vilas um festival hindu, que nem o motorista nem o funcionário da Embaixada souberam precisar qual era. No centro da festa havia uma menina que não deveria ter seus seis anos, vestida como alguma deusa, equilibrando-se numa corda bamba que sacudia de lado a lado, quase cento e oitenta graus, com força, segurando uma vara gigantesca, pelo menos três vezes mais comprida que ela. Uma banda de percussão marcava a apresentação que pude ver em parte por causa do pequeno, mas quase absolutamente imóvel, engarrafamento que o evento provocou.
A viagem foi toda feita de carro, saindo de Nova Délhi: 850 quilômetros. Fizemos parada depois de sete horas de viagem em Lucknow, para dormir e no dia seguinte comprar alimentos e objetos simples do cotidiano, e depois continuamos por mais quatro horas até Maharajganj, para começar as visitas. Manteiga de amendoim, queijo enlatado, cuecas e algumas roupas simples foi tudo o que ele pediu. A irmã do rapaz estava comigo e incluiu na compra mais pedaços de um afeto desesperado. O caminho corta o Estado de ponta a ponta, e depois de Agra, não parece mais feito para turistas. Nunca havia estado na Índia antes, e não fazia nem um mês que havia chegado. Tinha vindo disposto a me apaixonar pelo que fosse. A paixão teria de florescer ali naquela realidade tão densa.
Nunca havia estado em um presídio, tampouco. Ficamos perdidos muitas vezes, depois de sair da estrada principal, já perto de Maharajganj — o que certamente não tranquiliza uma cabeça que não sabe o que esperar. O motorista parava muito para pedir informações. As instruções em hindi pareciam enormes, muito mais complicadas do que acabavam sendo. Não só as instruções, mas a conversa parecia mais longa. Quando juntava mais de um informante, era um simpósio sobre a rosa-dos-ventos. A ansiedade crescia, e o medo de estar rumando para uma cena de horror absoluto era cada vez maior e mais criativo. Mas, chegando a Maharajganj, a visita ao presídio foi adiada por mais algumas horas, porque o Magistrado do Distrito me esperava para uma reunião que ele mesmo convocara.
Corte de Justiça de Maharajganj
O conjunto de edifícios do judiciário dali era grande e um tanto enfiado na natureza. Ou era a natureza que não permitia o domínio da lei. O pavilhão dos advogados, por exemplo, parecia devorado pelo capim alto. O prédio da Corte era o mais amplo e bem conservado. Mesmo assim, em seu pátio, no caminho da sala de reuniões, havia uma enorme pilha de urnas eleitorais de lata bastante velhas e enferrujadas, expostas a mais intempérie — do tempo, mesmo, não estava pensando na vida política agitada do Estado.
O funcionário da Embaixada disse que ainda eram usadas. Não acreditei muito porque entre Délhi e Lucknow ele espontaneamente traçou, por quase uma hora, um perfil astrológico meu que parecia o de outra pessoa. Ficou sem muita credibilidade. Ainda por cima, tinha uma teoria política de destino astrológico também que envolvia o posicionamento estelar de certas figuras da política nacional que, infelizmente, eu ainda conhecia mal. As explicações eram interessantes e eu bem queria que a vida pública pudesse ser regida por esses princípios. E, no fim das contas, tanto fazia se as urnas eram ou não utilizadas ainda. Era uma pergunta de novidade. Teria ficado mais feliz com alguma consideração sobre a posição cósmica das caixas, talvez, que com uma resposta rápida como a que veio: sim, ainda são usadas.
Havia quatro pessoas me esperando na sala, que era, na verdade, uma das salas de audiência. Meu assento: a cadeira do interrogado. O Magistrado não havia chegado, o normal no protocolo. Então, enquanto esperávamos, todos os presentes me observavam e faziam comentários em hindi. Decidi não pensar no significado da alteridade, naquele momento. Nem na simbologia da poltrona de tecido gasto por muitos culpados, inocentes e, quem sabe, outros alienígenas como eu. Preferi assistir ao aquário. Eu, aquário também. Todos ali peixes muito raros.
Já o processo legal é algo que une as culturas. Feito para determinar impossibilidades e estragar narrativas. Como o policial na fronteira, o juiz compreendia a desnecessidade daquela prisão. Parecia compreender, ao menos; mas acho que sim, ele compreendia. Acontece que compreensão não é parte da mobília burocrática. E para completar, naquela situação específica eu estava sentado na cadeira da testemunha. Eu não deveria perguntar, mas responder. Quanto mais eu perguntava, mais as respostas se organizavam em círculo que levavam às mesmas perguntas. Três ou quatro voltas serviram para preencher a hora antes de ir ao presídio.
A Corte enviou dois carros de seguranças comigo. Azul-vermelho, azul-vermelho. Era chamado de excelência. Eu queria que respeitassem meu pavor de tudo, e que os carros resolvessem dar meia volta. Mas, embora Excelência, eu não era tão excelente que o pudesse ver minha covardia levada em conta.
A prisão não era o que eu imaginava, até porque eu devia estar imaginando algo muito pior que uma prisão. Era uma fortaleza amarelada. Quando desci do carro, uma senhora de sári laranja deixava seu celular na guarita e registrava seu nome no livro de visitas. Minha escolta a ultrapassou para me anunciar aos carcereiros. Esperei, tirei uma foto daquela beleza tristíssima.
Estava cansado, e compreendia mal as instruções simples que me davam, como entregar minha identidade diplomática na portaria. Um corredor espontâneo e desorganizado de policiais e burocratas me cedeu a passagem. Atravessei o portão de metal para a recepção do edifício. O horror devia estar do lado de lá do segundo portão. Minha mão foi carimbada com um selo redondo da prisão. Mais uma fronteira: o carimbo era a manifestação material da liberdade. Se eu suasse demais, e a marca borrasse, teria de ficar?
O segundo portão abria para um pátio surpreendentemente bem cuidado, com veredas e flores que levavam a uma grande varanda onde aconteciam os encontros entre detentos e visitantes. Fomos sentados em cadeiras de plástico para esperar. Os mosquitos estavam com fome.
Suas escoltas marchavam dos dois lados do rapaz nas veredas floridas. Não consegui ver de onde ele havia saído, nenhuma porta dos pavilhões dava para o largo dos reencontros. Ele apenas entrou na varanda, a irmã correu para abracá-lo. O guarda quis impedir, e eu disse, como quem ordena que se instaure um mínimo de humanidade: please. Esperei que o desespero se acalmasse. A conversa foi curta, um relato, pedido de paciência, escuta dos problemas imediatos. A missão era de alívio, não de resolução, e embora isso esteja no manual, a impotência raivosa e quieta é inevitável.
O carimbo estava lá, visível, mesmo no lusco-fusco. As portas se abriram sem que ninguém o checasse. A cama em Gorakhpur, uma cidade enorme chamada de vila pelos indianos, onde as pessoas se reúnem para buzinar em engarrafamentos horríveis, esperava. Depois, haveria mais advogados, juízes e promotores. A fronteira, e a partida para o grande país ao sul daqueles limites.
Gorakhpur (Uttar Pradesh)
O rapaz brasileiro foi preso no mesmo dia em que cheguei à Índia. Recebeu uma sentença de cinco anos, portanto ainda está preso. Foi transferido para Varanasi, muito mais acessível para quem está em Délhi. Vem contestando a decisão em instâncias mais elevadas. Ouvi, mais de uma vez, que o ciclo dele e o meu na Índia estão entrelaçados, e ele partirá quando eu partir. Quero acreditar nisso, porque estou quase de partida, dois anos e meio após a chegada. Na verdade, eu acredito nisso, sim; acredito porque preciso estar do lado de lá da linha que me separa da fé.
Voltando da fronteira, retornamos à prisão, onde me despedi do rapaz que veria novamente apenas dois meses mais tarde.
Na saída de Gorakhpur, o motorista se perdeu mais uma vez. E pela primeira vez, a explicação do caminho veio em inglês. Um senhor muçulmano, para explicar como se pegava a estrada para Lucknow, profetizou em espírito sufi: “who knows who goes where?”. Pois é. Quem sabe? E quem sabe se ao chegar do lado de lá, não seguiremos sempre, todos iguais e diferentes, detidos num eterno aqui? ♦
* Hugo Lorenzetti Neto virou diplomata pelas viagens, mas acabou abraçando alguns aspectos do seu trabalho, porque gosta muito de gente. Tanto gosta, que trocou de faculdade quatro vezes até se formar em Letras na Unicamp – só pra fazer turma. Foi professor, volta a ser professor quando pode. Antes do atual emprego, sua experiência com o exterior era a fronteira tríplice entre Brasil, Argentina e Paraguai. Depois isso aumentou consideravelmente. Serviu na Nicarágua, na Bélgica e está agora na Índia, aguardando o anúncio de seu próximo Posto. Amou muito os três, e acha que não valerá muito a pena ir para o próximo se não for para amar também.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | LORENZETTI NETO, Hugo (2016) O Lado de Lá. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 13, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-13/>.