A lógica do sublime

The logic of the sublime ]

por Alenka Zupančič

Tradução | Rodrigo Gonsalves

Vamos iniciar esta análise da noção kantiana do sublime com uma frase bastante “sonora”; com um pensamento que, em sua própria estrutura, se inscreve, ele mesmo, na dimensão do sublime:

Duas coisas preenchem a mente com admiração e espanto sempre novos e crescentes, quanto mais frequentemente e mais constantemente refletimos sobre elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim[1].

Essas são as palavras com as quais Kant inicia sua conclusão da Crítica da razão pura e que, como se bem sabe, foram submetidas à um destino bastante particular e distinto: foram também escolhidas como o epitáfio do túmulo de Kant. Não é nem preciso enfatizar que palavras muito mais triviais que essas, nesse lugar, ganhariam um tom de gravidade e de um excesso de sentido que — e, dizendo isto nas palavras de Kant — preenchem a mente com admiração e espanto. A tumba, a sepultura, o túmulo: todos incorporam um tipo de “pedra fronteiriça” entre o Aqui e o Além — e possuem, dessa maneira, um importante papel na dimensão do sublime. Entretanto, a gravidade de tais palavras não surge apenas da Pedra da qual foram esculpidas, surge também de algo completamente diferente: de algo errático, esquivo e impossível de se consertar; da posição que essas palavras impõem sobre o sujeito — o fato de que ele/ela deva encontrar seu caminho na intersecção de algo inacessivelmente externo (os céus estrelados sobre mim), de um lado, e algo inacessivelmente interno (a lei moral dentro de mim), de outro.

Mas eu inicio com a citação acima também porque ela delineia perfeitamente o campo com o qual iremos conduzir a nossa análise: o campo que é marcado pela Crítica da razão prática, de um lado, e pela Crítica do juízo, do outro; ou, para colocar da maneira mais simples possível, enquanto ética e estética. O sublime — e isso pode também ser lido como uma “tese de abertura” — é um tipo de colisão de ambos, a intrusão de uma dimensão na outra. Valho-me da seguinte expressão, “intrusão de uma dimensão na outra”, porque o que está em jogo aqui difere consideravelmente de qualquer tipo “harmonia” ou “síntese” entre ética e estética. O ponto é precisamente que (de repente) emerge no território um do outro e que o faz em um momento muito específico.

I.

Vamos nos concentrar, agora, em duas significativas e interessantes passagens em que Kant discute o sentimento do sublime. A primeira é encontrada logo após a passagem que tomamos como nosso ponto de partida e refere-se aos céus estrelados:

A primeira vista de uma multitude incontável de mundos aniquila, por assim dizer, minha importância enquanto uma criatura animal, que deve dar de volta ao planeta (esse mero pontinho no universo) a matéria da qual este saiu, a matéria que é por pouco tempo provida de força vital, e nós não sabemos como[2].

A segunda passagem é da Crítica do juízo:

Portanto, se ao julgar a natureza esteticamente a chamamos de sublime, nós o fazemos não porque a natureza provoca medo, mas porque ela evoca nossa força (que não pertence à natureza [dentro de nós]), a considerar enquanto pequenos os [objetos] de nossas preocupações [naturais]: propriedade, saúde e vida […] [3].

Essas duas passagem nos fazem lembrar de um esquete do filme O sentido da vida, do Monty Python, no qual o contraste entre os céus estrelados e o sentimento de insignificância de nossa vida ordinária também desempenha um papel capital. Claro que estamos lidando aqui com uma caricatura, mas vamos, mesmo assim, examinar a esquete em questão porque isso nos auxiliará a especificar com maior nitidez a lógica do sublime.

A cena ocorre no apartamento de um casal. Alguém toca a campainha. O marido abre a porta e dois homens adentram. Eles fazem parte do nicho de mercado de “transplantes de órgãos vivos” e lhe exigem o seu fígado. O pobre homem se defende dizendo que eles têm o direito de lhe tirar o fígado apenas caso ele morra, porém os dois homens lhe asseguram que ele não sobreviverá ao removerem-no. Ao que se segue, testemunhamos um massacre: sangue voando para todos os lados, um dos dois “açougueiros” arrasta órgãos sangrando das vísceras do paciente e os balança diante da câmera… Mas o que realmente nos interessa aqui é a segunda parte da história, que pode ser considerada uma verdadeira “analítica do sublime”. Enquanto um dos homens segue retalhando o indefeso marido, o outro faz companhia à esposa na cozinha. Ele pede a ela que também lhe dê o fígado. Claramente ela não quer e está com medo. Entretanto, ela muda de ideia quando é levada ao limite do sublime, isto é, quando ela “se dá conta” do quão insignificante o seu problema parece ser quando visto de um ponto de vista mais “elevado”. Um cavalheiro sai da geladeira e a acompanha desde a cozinha de sua vida cotidiana para um passeio pelo universo. Enquanto estão caminhando pelos céus estrelados, ele cantarola sobre os “milhões de bilhões” de estrelas e planetas e também sobre seu “inteligente” acordo etc., etc.. Graças àquela cósmica (e, para ela, sem sombra de dúvidas, sublime) experiência, a mulher chega, obviamente, à esperada conclusão: quão pequena e insignificante sou neste incrível e impensável espaço! E agora, quando perguntada novamente sobre o seu fígado, ela não mais hesita.

Como disse acima, isso é uma caricatura. Ainda assim, a lógica dessa história é precisamente a mesma apontada por Kant. Existem momentos quando algo nos adentra tanto que nos vemos prontos para esquecer (e para renunciar a) tudo: nosso próprio bem-estar e tudo o que a ele está associado — momentos em que estamos convencidos de que a nossa existência vale algo apenas à medida que somos capazes de sacrificá-la. E é desnecessário dizer que a coisa toda parece ser ridícula apenas para o “observador despreocupado”, que não se vê embasbacado e desafiado pelo mesmo sentimento do sublime. Esse modo específico de desafio é, como veremos, muito importante para a lógica do sublime que estamos aqui tentando determinar.

Os dois pontos essenciais nas passagens citadas descrevendo a experiência do sublime são, portanto, os seguintes: I) o sentimento de nossa insignificância no que tange a “todo o universo” (onde somos apenas um pontinho na imensidão do universo); e II) aquilo que, em nossa vida cotidiana, funciona como o centro de gravidade da nossa existência e que, de repente, nos atinge como algo trivial e pouco importante.

Pode-se dizer que Kant distingue dois momentos do sentimento do sublime. O primeiro é o momento de angústia e desconcertante fascínio frente a algo incomparavelmente maior e mais poderoso — angústia da qual o sujeito escapa apenas ao transformá-la no outro momento, no sentimento do sublime, isto é, de sua superioridade “suprassensível” (retornaremos à esta “díade do sublime” em breve). É por isso que o prazer no sublime é sempre um prazer negativo, é esse prazer que se dá diante de certa experiência intensamente negativa e desconfortante[4].

No momento em que “resolvemos” o sentimento de angústia no sentimento do sublime (isto é, do elevado, das Erhabene), estamos lidando, em primeiro lugar, com a sublimidade (elevação) relacionada a nós mesmos, e não apenas ao mundo externo. Em outras palavras, o sentimento do sublime, o lado oposto daquilo que é sempre um tipo de angústia, requer que o sujeito encare uma parte dele mesmo como um corpo estranho, isto é, como algo que não pertence a ele, mas ao “mundo externo”. Nós nos tornamos cientes de nossa “pequenez” e insignificância, mas, ao mesmo tempo, nossa consciência já está “evacuada” — já está situada no lugar da segurança, de onde podemos enunciar esse tipo de julgamento elevado e de onde podemos até mesmo renunciar a partes de nós mesmos que consideramos pequenas e insignificantes. E aqui nós gozamos da satisfação narcísica resultante de estarmos conscientes de ser capazes de nos “elevarmos” para além de nossas necessidades cotidianas. Nomeadamente, o sentimento do sublime está vinculado, como afirma Kant, com a autoestimação, Selbstschätzung[5] [6].

A questão que emerge de tudo o que foi dito até então é a seguinte: qual é a lógica que opera nesta mudança, na qual os sujeitos convertem o sentimento de angústia e de algum considerável desconforto em certo ganho de prazer? Essa lógica deve nos lembrar daquela que opera no mecanismo do humor onde, segundo Freud, nós estamos sempre lidando com o prazer que toma o lugar do sofrimento. O humor, distinto das piadas e do cômico, segue exatamente a mesma lógica. Vamos examinar um exemplo, sugerido pelo próprio Freud, que pode ser classificado também como um exemplo de sublimidade. Um criminoso condenado à forca numa segunda-feira diz: “Bem, esta semana está começando bem”. Piadas, cômico e humor possuem certos traços em comum. Ainda assim, o humor também possui uma característica faltante nos outros dois modos de obtenção de prazer pela atividade intelectual. Possui “algo de grandioso e elevado [etwas Großartiges und Erhebendes]”[7]. E essa característica, prossegue Freud, “claramente recai sobre o triunfo do narcisismo, a asserção vitoriosa da invulnerabilidade do eu[8]. É difícil não ver aqui o enquadre fundamental do sublime; porém, o mecanismo operante ainda permanece enquanto uma questão. O sujeito confrontado com alguma proximidade traumática à Coisa responde introduzindo uma nova distância, um tipo de despreocupação em face de algo que dramaticamente lhe concerne. O que temos aqui é exatamente aquilo ao que Kant se refere como sendo o pathos da apatia. Mas no que essa distância se apoia? A resposta de Freud é que ela se apoia no supereu. A atitude em questão consiste no sujeito tendo de “afastar o acento físico do eu e transpô-lo para o super-eu. Para o supereu, então inflado, o eu pode parecer pequenino e faz todos os seus interesses parecerem triviais”[9]. O sujeito assume um tipo de ponto de vista distante ou “elevado” acerca do mundo e de si próprio, enquanto parte desse mundo.

Logo, chegamos ao ponto mencionado acima: o ponto onde, no campo da estética, emerge uma agência moral ou ética — o supereu. Em termos de uma metáfora espacial pode ser dito que o supereu é o local de nascimento do sentimento do sublime — uma declaração que não deveria nos surpreender. A dominação que o sujeito sente sobre si mesmo e sua “existência natural” é precisamente a capacidade do supereu de forçar o sujeito, apesar de todas as demandas da realidade, a agir contrariamente ao seu próprio bem-estar e a renunciar aos seus interesses, necessidades e prazeres, e a tudo aquilo que o ata ao “mundo sensível”.

Entretanto, o sentimento de sublime consiste não apenas na indicação de proximidade com a Coisa (como ameaçadora ao sujeito); ele é também, ao mesmo tempo, um modo de evitar o encontro com ela. E é justamente esse “inflar” do supereu que assume aqui o papel estratégico para evitar a Coisa [das Ding], a pulsão de morte em seu ‘estado puro’ — mesmo que essa “inflação” conduza, ela própria, finalmente à morte (como vimos, Kant diz que o sujeito está pronto para abrir mão da propriedade, da saúde, e até mesmo da vida). Porém, o fato de, no sentimento do sublime, o sujeito se apoiar, em certo ponto, num agente moral, não é nem de perto uma indicação de que essa ação é um ato moral ou ético. Os sacrifícios que o sujeito está pronto para fazer no campo do sublime não são da mesma ordem daqueles requeridos em um puro ato moral. Colocando da maneira mais simples possível: a condição do ato ético puro que se dá é a prontidão do sujeito em “consentir” com sua própria rasura simbólica, com a rasura no simbólico, isto é, a rasura que não concerne apenas à sua existência empírica. Contrário a tal atitude, o que estamos prontos para sacrificar no campo do sublime serve exatamente para evitar a “morte simbólica” — mesmo se o preço a se pagar por isso seja nossa vida empírica (sacrificamos nosso “ser empírico” que consideramos pequeno e insignificante para nos inscrevermos no Simbólico, na História… queremos fazer algo “grandioso” e “importante” com nossas vidas, e não nos perdermos no ritmo rotineiro dos hábitos diários). Quando o supereu responde a esse desafio — e o desafio é, penso eu, essencial ao sentimento do sublime —, submete o sujeito à dialética governada pela lógica inexorável da lei superegoica.

Em seus próprios termos, o próprio Kant também alcança esse mesmo ponto onde a agência moral emerge no sublime. Ele chega até esse ponto ao lidar com o problema da universalidade. Ao julgar um fenômeno estético, não estou postulando o acordo de todos: eu exijo esse acordo de todos[10]. Entretanto, ao exigir isso, devo me apoiar em algo; e esse “algo” é, no caso do sublime, precisamente, a agência moral:

[Um julgamento acerca do sublime] tem sua fundamentação na natureza humana: é algo que, junto com o senso comum, nós podemos exigir e demandar de todos; nominalmente, a predisposição ao sentimento para ideias (práticas), isto é, o sentimento moral[11].

É assim que na teoria de Kant o momento ético surge no campo da estética. Mas o “supereu” também possui, como podemos ver, outro papel no sentimento do sublime.

Agora podemos nos indagar o que é a Coisa cuja proximidade inspira no sujeito angústia e, por vezes, horror? O que é a coisa que provoca, na imaginação do sujeito, certa aparição de fascínio e horror ao mesmo tempo? Nossa tese é a de que, na perspectiva kantiana, o confronto com algo que é “em si” simplesmente assustador — por exemplo, e para nos valermos do exemplo de Kant, os “furacões com toda a sua devastação que deixam para trás” — acomete o sujeito como um tipo de incorporação diante do cruel, selvagem e ameaçador supereu como o “lado real ou perverso” da lei moral (em nós), do supereu enquanto lugar da jouissance. Esse poder destrutivo é de algum modo familiar ao sujeito. E é precisamente nesse ponto que recai o fascínio com esse tipo de “espetáculo”. Nas palavras de Kant:

É de fato difícil pensar num sentimento para o sublime na natureza sem conectar com a expiação mental similar à do sentimento moral[12].

Previamente nós nos valemos do exemplo do sublime dinâmico — furações com toda a devastação que deixam para trás. Porém, a relação que estamos tentando estabelecer aqui é válida também para outro gênero de sublime: o sublime matemático. Se o sublime dinâmico incorpora o aspecto cruelmente inexorável e letal da agência moral kantiana, podemos dizer, para o sublime matemático — que busca a eternidade e a infinidade —, que ele coloca à frente a dimensão da “tarefa infinita” imposta sobre o sujeito da lei moral (o fato de que tudo o que podemos fazer é nos aproximar in infinitum do ato puro moral). Ou então, que se colocarmos essa lógica sob a perspectiva sadiana, ela sustenta a fantasia do sofrimento infinito, a fantasia nesse enquadre onde todo corpo funciona como corpo sublime.

O sentimento do sublime é possível apenas na base do que é reprimido e rasurado do aspecto moral da constituição do sujeito, o que pode ser designado de maldade radical — maldade que não consiste na transgressão da lei, mas que é a maldade da própria lei moral. O sublime “sendo assim, revela a si mesmo como algo inquietantemente próximo à maldade: a dimensão que anuncia a si mesma no caos sublime […] é a mesma dimensão radical da maldade; em outras palavras, de um mal cuja natureza é puramente ‘espiritual’, suprassensível, não “patológica”[13].

Retornemos agora à citação que iniciou este artigo: os “céus estrelados sobre mim” são exatamente a “imagem espelhada” da “lei moral sobre mim”. Não é a metáfora de uma lei moral, do supereu enquanto uma agência ética; ela acomete o sujeito como sua incorporação e sua real presença — tão real quanto pode ser ao nível da imagem. E nós podemos concluir essa linha de pensamento seguindo a seguinte afirmação: quanto mais forte for o supereu do sujeito (sua agência moral), mais esse sujeito será sensível ao sentimento do sublime, e mais drasticamente este irá reconhecer o aspecto inquietante desse encontro; e, assim, mais fortemente este irá notar o quão interno lhe é esse exterior[14].

Até aqui, discutimos sobre a situação em que, no campo da estética, emergiria uma agência ética. Olhemos agora para o lado oposto, em que no campo da ética emerge certa categoria estética.

Se nos voltarmos para o seminário da Ética da psicanálise de Jacques Lacan (1959-60/1992), o seguinte fenômeno nos surpreende: no meio de sua fala sobre ética, quando está discorrendo sobre Antígona e como seu ato inscreve-se no registro da ética, Lacan subitamente começa a falar sobre a imagem de Antígona e continua a utilizar essa expressão por todo o resto de sua análise. Ele descreve Antígona com palavras que sem dúvida alguma pertencem ao campo da estética: fala sobre sua sublime beleza, sobre seu insuportável esplendor [éclat] que cega irradiado em sua imagem, o esplendor que atrai e assusta ao mesmo tempo. Ele comenta sobre a imagem que nos purifica (no sentido catártico) e a imagem central relativa a todas as outras que, de repente, parecem recair sobre esta e desaparecer. Ele define Antígona como a imagem fascinante que é absolutamente privilegiada em relação ao resto do espetáculo:

Para ser honesto, não tenho certeza se o espectador alguma vez treme tanto assim. Mas eu, entretanto, tenho certeza que ele é fascinado pela imagem de Antígona. Nisto ele é um espectador […]. Não confundamos essa relação com a imagem privilegiada e o espetáculo como um todo. O termo ‘espectador’, que é normalmente utilizado para discutir o efeito da tragédia, parece-me altamente problemático se não delimitarmos o campo ao qual se refere. No nível do que ocorre em realidade, é um auditor que está envolvido ao invés de um espectador[15].

Ademais, diz Lacan, toda a tragédia “é aquilo que se espalha para fora, para que a imagem possa ser produzida”[16]. Nessa equivalência entre Antígona e a imagem, na declaração de que “Antígona é a imagem”, o acento está naquilo que escapa à equação: Antígona é a imagem, ao passo que ela é a única imagem, enquanto todo o resto não é a imagem (mas, sim, algo “sonoro”). E aqui nos vemos diante do momento incomparável, tão importante para a teoria do sublime de Kant: “o sublime é aquilo em comparação ao qual todo o resto é menor” — uma das definições do sublime para Kant. Mas esse não é o único ponto em que Lacan deve algo a Kant. O próprio Kant já havia sugerido uma resposta à questão do quão possível é o surgimento de uma categoria estética no campo da ética:

O objeto de gosto da intelectualidade pura e incondicionada é a lei moral em sua potência, a força que exerce sobre cada um de nós e sobre todos aqueles incentivos da mente que a precedem. Na realidade, tal força revela-se esteticamente apenas por meio do sacrifício (que é uma privação — embora seja uma que sirva nossa liberdade interior — em troca daquilo que revela, em nós, uma insondável profundidade desse poder suprassensível, cujas consequências vão para além daquilo que conseguimos prever)[17].

O sacrifício é a coisa que introduz o momento estético na ética, e esta também é a explicação de Lacan para esse fenômeno. Lacan atribui o fascinante caráter da imagem de Antígona ao fato de que ela será enterrada viva, situada no campo “entre duas mortes” — e, assim sendo, por ela ser essa “terrível, obstinada vítima”:

Sabemos muito bem que, acima e para além do diálogo, acima e para além das questões de família e do Estado, acima e para além dos argumentos morais, é a própria Antígona que nos fascina, Antígona em seu insuportável esplendor. Ela possui a qualidade que nos atrai tanto quanto nos incomoda, no sentido em que nos intimada; essa terrível, obstinada vítima nos perturba[18].

E podemos nos perguntar: o que é esse aspecto do sacrifício (ou da “vítima obstinada”) que, por meio de certa necessidade interior, produz tal imagem, a sublime imagem?[19]

Para especificar a relação entre o sacrifício e a imagem, temos de demarcar aqui a principal diferença entre o belo e o sublime. Kant associa o belo com o que chamamos de a “propositividade sem propósito”. Isso quer dizer que coisas belas não têm propósito para além delas mesmas; ainda assim, estão estruturadas como se tivessem. A mais simples definição de belo pode ser a de que seja uma forma plena de sentido[20] que retira o seu fascínio do fato de que sabemos que essa forma é inteiramente fortuita, contingente e sem intenção. Se, como propõe Kant, tomarmos um exemplo da natureza, como a beleza de um cristal, nós podemos dizer que a beleza nos afeta como um tipo de prova de que a natureza sabe (o que está fazendo). Por outro lado, o sublime é explicitamente uma forma sem sentido, algo como a encarnação do caos (a erupção de um vulcão, a turbulência oceânica, uma tempestade noturna…). Aparece como puro excesso, como a erupção da “jouissance”, ou então enquanto puro resto. Em outras palavras, se dissermos que o belo é o lugar onde a Natureza sabe, podemos dizer que o sublime é o lugar onde a Natureza goza; e é precisamente essa jouissance do Outro, a jouissance que não serve a nada, que nos fascina. Se dermos as costas ao sublime que emerge do nosso testemunho do ato sacrificial (o de Antígona, por exemplo), podemos defini-lo como uma resposta ao que aparece como “puramente sem sentido[21]” (nos termos do princípio da realidade). Estamos falando aqui sobre o ato em que falta uma causa “real”, assim como um propósito “útil”; ou, mais precisamente, um ato que, em sua realização de ato sacrificial, encena uma falta enquanto tal (Kant usa aqui o termo “privação”). E é por isso que esse ato se apresenta apenas em termos limítrofes da imagem, ou seja, como um brilho, um cintilar, uma aura.

Um dos mais sofisticados exemplos da relação da imagem sublime com o “abismo da jouissance”, no cenário do qual emerge, que anuncia e ao mesmo tempo em que proíbe seu acesso, é provavelmente o conto “Os fatos no caso do Sr. Valdemar”, de Poe. Essa relação é precisamente entre a massa repulsiva e disforme, a dissolução nojenta, a substância da jouissance em que o corpo de Valdemar é transformado no momento em que acorda do transe mesmérico, e, por outro lado, o corpo sublime de Valdemar mantido por sete meses no estado de transe mesmérico, sob o disfarce daquilo que irrepreensivelmente transforma-se na Coisa (no sentido utilizado tanto por Freud quanto por John Carpenter). “jazia uma quase líquida massa de nojenta e detestável putrescência[22].

O inquietante na imagem sublime do corpo de Valdemar em seu sono é a sua voz, sua voz paradoxal, que supostamente testemunharia que o seu portador ainda está vivo, mas é apenas capaz de pronunciar, repetidamente, três palavras: “Eu estou morto!”. O que nos atinge aqui como inquietante é a inscrição, o traço de íntima ligação, a insuportável identidade do esplendor da imagem sublime e de um puro nojo inominável. O que é inquietante não é apenas essa massa repulsiva, mas a conexão paradoxal entre o asco e o sublime. Essa é também a razão pela qual o fenômeno do sublime, assim como o do inquietante, estão relacionados com o fenômeno da anamorfose, onde estão contidas duas imagens em uma só. É importante ressaltar que a sublimidade, mesmo na literatura (como vimos no caso de Antígona), isto é, no texto escrito, produz sempre uma imagem. É precisamente o imaginável do texto que produz a imagem, e a produz na forma do das Schein, brilho ou esplendor. A imagem e sua impossibilidade ou sua interdição trabalham juntas aqui. Essa pode ser uma das razões pelas quais Kant afirma: “Talvez a mais sublime passagem na Lei Judaica seja o mandamento: Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há nos céus ou na terra, nem debaixo da terra”[23].

Pode-se dizer que o sublime é sempre algo que é situado entre a realidade e a “careta do Real” (no sentido lacaniano). Em outra de suas histórias,“A queda da Casa de Usher”, Poe inclui um poema que se encerra nos seguintes versos:

Pela porta pálida,

Uma multidão medonha sai correndo eternamente,

E ri — sem jamais sorrir.

Se acrescentarmos as palavras de Jean Epstein, que fez um excelente filme baseado nessa história, palavras que seguem da seguinte maneira — “Os rostos dos mortos possuem um olhar, e não mais possuem olhos”[24] —, conseguimos assim compreender melhor o que “a careta do Real” poderia ser. O sublime é precisamente o lugar onde a realidade faz fronteira com o campo em que as faces dos mortos riem sem jamais sorrir, possuem um olhar sem terem olhos.

II.

No vigésimo sexto parágrafo da Crítica do juízo Kant formula algo que pode ser aqui referido enquanto “o primeiro teorema do sublime”. Ele oferece uma espécie de esquema, um esboço mínimo de como o sublime opera. Dado o fato de essa passagem estar localizada na seção onde se discute o “matematicamente sublime”, o ponto central em torno do qual gira toda a conceituação é o da magnitude. Somos lembrados disso logo no título do parágrafo em questão: “Sobre estimar a magnitude das coisas da natureza, como devemos fazê-lo para a Ideia de Sublime”. A estimação da magnitude é a chave para a Ideia de Sublime. Essa formulação não é, nem de perto, óbvia; mas, sim, surpreendente. Entretanto, antes de focarmos nesse ponto e em suas implicações, examinemos o que chamamos de primeiro teorema do sublime e a maneira como Kant alcança essa formulação. Primeiramente, ele contrapõe estimações de magnitudes matemáticas e estéticas para, posteriormente, formular a última enquanto base da anterior. Brevemente: a estimação matemática de magnitude opera sobre conceitos numéricos, enquanto a estimação estética de magnitude implica a compreensão da magnitude exclusiva e simplesmente em intuição (Anschauung) — e é, como afirma Kant, “Nach dem Augenmasse”, “cortado à medida do olho”. Nós podemos tomar um determinado conceito do quão grande algo é apenas por estimar sua magnitude matemática, isto é, nos utilizando de números que podem progredir ao infinito. Entretanto, para a estimação de magnitude matemática precisamos de uma medida inicial ou primeira, uma unidade que sirva como meios para todas as medidas. E essa medida inicial somente pode ser compreendida na intuição. Todos esses cálculos matemáticos científicos são baseados, em última análise, na estimação estética de magnitude que representa a irredutibilidade pré-científica ou o momento “transcendental” da matemática da ciência. A unidade de medida, o Um (I) no qual todos os cálculos subsequentes são baseados, é sempre algo que pode ser capturado apenas por intuição. Não é o “um” da série numérica (1, 2, 3…), é o “um” que precede qualquer contagem e que a torna possível. Assim, trata-se de uma magnitude absoluta: não podemos dizer que é dessa ou daquela magnitude, é simplesmente magnitude — encarna, por assim dizer, o ser da própria magnitude. A compreensão estética da magnitude é o gesto que baliza a medida básica com a ajuda da qual opera a imaginação quando apresentam-se conceitos numéricos. Entretanto — e aqui estamos já próximos do nosso “teorema” —, se não há máximo para a estimação matemática de magnitude (números podem progredir infinitamente), há um máximo para a estimação estética de magnitude[25]. O que se segue agora é uma figura de linguagem bastante particular que nos surpreende, especialmente se estamos habituados com a maneira com a qual Kant escreve, com uma dicção completamente diferente. “Und von diesen sage ich”, diz Kant: “e a respeito disso, digo”. Eu, Immanuel Kant, convoco toda a minha autoridade filosófica para o seguinte axioma:

Quando /este máximo/ é julgado enquanto a medida absoluta para além da qual nada maior pode ser subjetivamente possível (isto é, possível ao sujeito que julga[26]), traz consigo a ideia do sublime e dá origem à emoção que nenhuma estimação matemática de magnitude expressa por meio de números pode produzir[27].

O raciocínio de Kant, como pudemos acompanhar até o momento, pode ser resumido no “julgamento especulativo”: a magnitude absoluta = 1. O “Um”, o um único, a unidade de medida que precede qualquer medida é precisamente o meio pelo qual a infinitude é “incluída” no finito, e através da coisa mais finita e limitada que podemos nos deparar no paradigma da magnitude absoluta (no caso da intuição, afinal, estamos lidando com a mais trivial “limitação física” — o limite do nosso campo de visão, por exemplo). A intuição que corresponde à medida do olho e cujo limite, nesse caso, é o limite de “reconhecimento” da magnitude absoluta do nosso próprio campo de visão, mas uma magnitude absoluta que o é (isto é, absoluta) apenas para o sujeito que julga. Essa magnitude absoluta (subjetivamente) incita a ideia do sublime em nós porque a ideia do sublime em si é definida enquanto aquela de magnitude absoluta. A definição nominal do sublime (matemático) proposto por Kant é esta: “Nós podemos chamar de sublime o que é absolutamente grande”. Levaremos em consideração um dos exemplos de sublime em Kant. Entretanto, antes de fazê-lo, iremos considerar algumas características fundamentais do matematicamente sublime.

O problema com o qual nos confrontamos aqui é o da Zusammenfassung (comprehensio aesthetica), isto é, o problema da compreensão simultânea da sucessividade. A imaginação, diz Kant, progride ao infinito quando realiza a combinação [Zusammensetzung] necessária para apresentar a magnitude e não encontra nenhum obstáculo. Isso se dá porque a compreensão se guia por meio de conceitos numéricos. Aqui estamos lidando com a apresentação da magnitude no tempo da sucessiva Zusammensetzung. Um problema ocorre quando tentamos estimar a magnitude esteticamente porque essa estimação é limitada enquanto intuição e não possui suporte em conceitos. De fato, como afirma Kant, a apreensão é limitada a alcançar um ponto onde as apresentações parciais de intuições sensíveis que foram primeiramente apreendidas passam a desvanecer da imaginação, enquanto procede para apreender as próximas, a ponto de a imaginação perder tanto de um lado quanto ganha do outro. Um problema entretanto ocorre quando, como expressa Kant, “a mente ouve a voz da razão dentro de si” — a voz demandando Zusammenfassung, “totalidade para todas as magnitudes dadas”, “demanda compreensão em uma intuição e exibição de todos os membros de uma série numérica progressiva crescente”[28]. O problema para a imaginação ocorre onde não pode mais tomar a infinidade enquanto uma infinitamente longa sucessão de unidades individuais, mas enquanto uma unidade em si. E é disso que se trata no sublime. A estética transcendental da primeira Crítica demonstrou que o tempo não possui realidade em si, mas é a condição formal da intuição em geral. A forma própria dessa condição é a sucessividade. “Tempo apenas possui uma dimensão; tempos diferentes não são coexistentes, mas sucessivos”[29]. E o que a razão demanda da imaginação no juízo acerca do sublime é precisamente que compreenda e torne aparente, de uma só vez, aquilo que não pode ser dado senão sucessivamente. Dessa forma, faz-se “violenta” não apenas a imaginação, mas também a forma a priori da sensibilidade em si, o terreno que vimos ser a sucessividade. Ademais, considerando que tempo é também a forma do sentido interno, isto é, o modo de nós nos conceituarmos, o que está em jogo aqui é, como apontou Lyotard, a constituição do sujeito (kantiano) enquanto tal[30].

O sublime pode ser decomposto em dois momentos básicos. A noção e o “mecanismo” do sublime implicam uma certa díade. O que seria essa “díade do sublime?” O que temos aqui trata-se da articulação específica daquilo que Lacan (1988), em seu famoso escrito, se refere enquanto o tempo lógico. Isso que é, recordamos aqui, composto por três componentes: 1) o instante do olhar, l’instant du regard, 2) o tempo de compreender[31], le temps pour comprendre e 3) o momento de concluir, le moment de conclure. A especificidade daquilo que podemos chamar de “tempo lógico do sublime” consiste, brevemente, na suspensão do segundo componente, o tempo de compreender. No sublime, como aponta Kant, não há tempo de compreender, não há duração de tempo onde o sujeito possa medir com seus olhos e compreender, ou entender, aquilo que está observando. Sobram apenas o instante do olhar e o momento de concluir. Kant descreve o instante do olhar como “uma momentânea inibição das forças vitais”[32]. Ele também descreve como uma agitação “que pode ser comparada com uma vibração, isto é, com uma rápida alternância de repulsão e atração por um só e mesmo objeto”[33]. O segundo é o momento quando me dou conta da inadequação do apresentado, Vorstellung, abraçando o absoluto e, assim, chegando a uma conclusão sobre o suprassensível em mim mesmo. Esse momento está ligado ao humor[34] do sujeito que Kant descreve como “auto-estimação” e “a emoção do gostar”. É um momento de “prazer mediado”, prazer na dor, onde o sujeito goza da superioridade de sua base suprassensível diante de tudo aquilo que é sensível.

Vejamos agora, em um dos exemplos de Kant do sublime, um exemplo cuja pregnância recai no fato de que não é tão “inocente” ou neutro quanto poderia aparentar à primeira vista, e, assim, nos diz mais sobre o sublime do que muitos outros exemplos.

O exemplo é mediado pelo enquadramento de uma narrativa, a lenda que Kant usurpa de Savary.[35] Em suas Cartas sobre o Egito [Lettres sur l’Egypte], segundo Kant, Savary comenta que, para ter o efeito emocional completo da magnitude das pirâmides, não se deve nem chegar tão perto nem tão longe. Pois se se fica longe demais, as partes (as pedras que as constroem) mostram-se apenas obscuramente, e assim sua apresentação não causa efeito no juízo estético do sujeito; e se se chega perto demais, o olho precisa de um certo tempo para completar a apreensão da base ao topo, mas, ao longo desse tempo, algumas das partes primeiras invariavelmente dissolvem da imaginação antes que se apreenda as próximas — e, assim, a compreensão nunca é completa. O espectador, prossegue Kant, possui a sensação de que sua imaginação é inadequada para exibir a ideia de um todo, uma sensação na qual a imaginação alcança o seu máximo, afunda em si mesma; mas consequentemente, passa a sentir um gosto que equivale a uma emoção.[36]

Essa é a narrativa de Savary, somada a algumas consequências apontadas por Kant. Já nesse enquadramento básico encontramos um ar de mistério, de inquietude, que é bastante importante no sentimento do sublime. Cartas sobre o Egito — a narrativa, a história — não consiste justamente em transmitir um mistério, nesse caso o mistério das pirâmides? As pirâmides, pertencentes a outro tempo e outro lugar, são também catacumbas e labirintos, elas sempre nos confrontam com algum enigma.

As pirâmides sempre foram tema de histórias e lendas. No livro L’interférence  [A interferência] (1972), Michel Serres interroga, entre outras coisas, uma dessas “lendas” que estão de perto conectadas aos problemas com que estamos lidando aqui: as questões de estimação da magnitude, do tempo, espaço e do misterioso. Mais uma vez tudo começa com a multiplicidade de instâncias da enunciação. Diógenes de Laércio diz: “Jerônimo disse que Tales mediu as pirâmides medindo suas sombras depois que descobriu a que horas nossa própria sombra é igual à nossa própria altura”.

A forma única mostra-se para a nossa observação em um, e somente um, momento do dia: quando a coisa coincide com a sua própria sombra (a sombra que Tales demarca); quando o inacessível coincide com o acessível. O principal problema aqui é precisamente esse jogo entre acessível e inacessível, variável e invariável.

O invariável é a pirâmide que está há séculos sob o sol egípcio. As variáveis são os movimentos (aparentes) do sol, a duração e a posição da sombra. Daí a ideia do relógio e de medir o tempo. Uma pirâmide é o gnômon e seu traço mostra o tempo. A medição do espaço é, aqui, a medição de tempo. E nesse contexto Tales representa uma radical subversão, sua ideia-base é revolucionária, traz à luz um tipo de “inversão sublime”. Como aponta Serres[37], ao invés de deixar a pirâmide falar do sol e do curso do tempo (onde o conhecimento invariável ditaria a medida do variável), ele demanda que o sol fale da pirâmide: ele demanda, da variável, que esta fale continuamente daquilo que permanece imutável. O invariável não é mais o que nos permite distinguir os desvios e divergências do variável. Ao contrário disso, Tales distingue, em meio ao variável, a desconhecida constante do invariável. Em um dado momento ele demarca a sombra, o contorno de passagem. Em outras palavras, ele pausa o tempo para medir o espaço. Em um momento único ele para o movimento do sol, ele congela o tempo no instante em que a sombra na areia transforma-se na coisa em si, quando o variável em si acerta a constante do invariável e muda, assim, os papéis da variável e da invariável.

Essa segunda história, a história sobre Tales medindo as pirâmides pelas suas sombras, depois de descobrir quando suas própria sombra é igual à sua altura, ajuda-nos a compreender a primeira história que Kant utiliza para desenvolver a sua teoria do sublime.

Estamos diante da pirâmide e nós somos os espectadores, isso quer dizer que a estamos vendo enquanto esta “manifesta-se para o olho”. E esta se manifesta como sendo muito grande, inacessível e impossível de ser capturada em apenas um olhar. O que mais haveria de fazer para a imaginação (considerando que é restrita à intuição e não pode contar com conceitos), mas repetindo o “truque” de Tales: ela pausa o tempo para que consiga medir o espaço. Uma vez que o olho requer um certo tempo para compreender o todo, assim perdendo tanto de um lado quando ganhando do outro, a imaginação percebe, por assim dizer, que isso não irá funcionar. A imaginação “percebe” que não é feita da medida (invariável) da ideia, mas pela medida (variável) dos sentidos. Em seu esforço de expandir esse quadro da sensibilidade, afunda de volta em si mesmo e produz, assim, a ideia de sublimidade. O momento decisivo é precisamente o momento do esforço, Bestrebung. Aqui a imaginação “segura sua respiração”, para o tempo, pausa o movimento do sol. No próprio sensível (ao longo do tempo) demarca o momento sem tempo no qual mensura o espaço.

Tempo e espaço são “fenômenos” únicos que não possuem seu correlato “em si”; ou, mais precisamente, cada um deles o possui no outro: tempo em si  é espaço e espaço em si é tempo. É por isso que, segundo Kant, não são fenômenos, mas formas a priori do sensível, são intuições que apenas criam fenômenos como objetos possíveis para a experiência. E o que acontece com o sublime? Aqui, a intuição — enquanto suspende o curso do tempo; enquanto também suspende sua própria condição e base, sua própria forma, para que consiga realizar uma compreensão simultânea — afunda sobre si mesma, afunda no próprio tempo, no não tempo, no espaço. Resvala para o tempo onde é necessário começar novamente, do nada. Resvala para o tempo de creatio ex nihilo. Resvala para o ponto que é, se podemos dizer, até “mais transcendental” que a síntese transcendental da apreensão na intuição — seus resultados são os objetos possíveis da experiência. Resvala para o ponto que representa algum tipo de correlato estético de noção sadiana de crime radical — crime que liberaria a natureza de suas amarras e de suas leis. Na experiência do sublime o sujeito se aproxima da beirada da segunda morte[38], uma morte que não é a morte da pessoa, mas a do sujeito (kantiano) enquanto tal.

No seminário A ética da psicanálise, na sessão dedicada à questão da sublimação, Lacan introduz a Coisa, das Ding, usando o exemplo heideggeriano do vaso, que é precisamente “um buraco com algo em volta”. O que constitui o vaso é apenas o vazio em seu núcleo. É nesse ponto que Lacan introduz a noção de creatio ex nihilo, que diz ser o motivo essencial ou a figura da sublimação. Não é possível dizer que, na sombra da pirâmide, o que o sujeito experimenta é o mistério da criação; ele aprende que a coisa em si (fora do espaço e tempo) não é nada senão o nihil, o nada no centro dos fenômenos, o nada com que os fenômenos são criados na síntese espaço-temporal. Ele aprende que a sombra não é apenas o contorno da “coisa em si” sob a luz do sol, mas algo que barra a própria “coisa em si”. Assim, na intuição, a relação é medida entre o segredo que “fica” na pirâmide — o enigma da sua criação e da altura inacessível — e o segredo encontrado no próprio espectador, o segredo nomeado por Kant como “campo suprassensível” do sujeito, que se revela no sublime.

Referências

EPSTEIN, Jean (1974) Écrits sur le cinema. Paris: Ed. Seghers.

FREUD, Sigmund (1927) “Humor”. In: Art and literature. Londres: The Pelican Freud Library, 1988.

KANT, ImmanuelKANT, Immanuel (1788) Critique of practical reason. Trad. L. White Beck. Nova York: Macmillan, 1956.

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LACAN, Jacques (1945) Logical time and the assertion of anticipated certainty. Newsletter of the Freudian Field 11:2. Columbia: University of Missouri Press, 1988.

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* Alenka Zupančič é uma filosofa lacaniana e teórica social. Professora de Psicanálise e Filosofia pela European Graduate School/EGS e professora da Universidade de Nova Gorica. Zupančič também é orientadora de pesquisa e professora pelo Centro de Pesquisa da Academia Eslovena de Ciências e Arte. Junto à Slavoj Žižek e Mladen Dolar, Zupančič é um dos membros proeminentes da “Escola de Psicanálise de Ljubljana”. Temas centrais de sua pesquisa incluem: relações entre sexualidade, ontologia e o inconsciente; crítica à teoria de sujeito e a exploração teórica do conceito lacaniano de Real. Zupančič é co-editora de coleções de obras e editora chefe do periódico bimestral sobre teoria psicanalítica, filosofia e estudos culturais. Ela é orientadora do conselho de Filosofia e Sociedade e também, membro do Centro de Estudos Avançados do Sudeste Europeu (Center for Advanced Studies of Southeastern Europe) na Universidade de Rijeka, na Croácia. Desde os anos noventa, Zupančič publica continuamente textos sobre psicanálise e filosofia para diversos periódicos como: Filozofski vestnik, New Formations, The American Journal of Semiology, Problemi, Razpol, Umbr(a), Lacanian Ink, Identiteti, Parallax, e outros.


** Rodrigo Gonsalves é psicanalista, graduado em Filosofia e Psicologia. Cursando seu Mestrado em Filosofia, Teoria Crítica e Arte pela European Graduate School (EGS – Suíça) sob supervisão de Mladen Dolar e Alenka Zupančič. Membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII). Participante do grupo de estudos História Política da Psicanálise que integra o Laboratório de Psicanálise Política e Sociedade (USP e PUC). Tradutor para revista Crises and Critique, membro editorial da revista virtual de psicanálise Lacuna e também, do website de filosofia política Lavra Palavra.



[1] KANT, Immanuel (1788) Critique of practical reason. Trad. L. White Beck. Nova York: Macmillan, 1956, p. 166.

[2] Idem.

[3] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 121.

[4] Cf. KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 117.

[5]  Esse “tesouro” de si mesmo posto em movimento, que pode remeter ao mais íntimo e, também, a certo sentimento de solidão. (N. do T.)

[6] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 121.

[7] FREUD, Sigmund (1927) “Humor”. In: Art and literature. Londres: The Pelican Freud Library, 1988, p. 428.

[8] Ibid., pp.  428-429.

[9] Ibid., pp. 430-431.

[10] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 60.

[11] Ibid., p. 125.

[12] Ibid., p. 128.

[13] ŽIŽEK, Slavoj (1992) Enjoy your symptom! Nova York/Londres: Routledge, p. 164.

[14] Retornaremos, de novo, a essa relação entre a agência moral e o sublime enquanto campo de fascínio do sujeito.

[15] LACAN, Jacques (1959-60) The ethics of psychoanalysis. Trad. D. Porter. Londres: Routedge, 1992, p. 252.

[16] Ibid., p. 273.

[17] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 131.

[18] LACAN, Jacques (1959-60) The ethics of psychoanalysis. Trad. D. Porter. Londres: Routedge, 1992, p. 247.

[19] Para evitar confusões, devemos marcar aqui a diferença entre o sacrifício que discutimos previamente e o sacrifício que discutiremos agora. A diferença em jogo aqui está entre o “estado subjetivo” (do sublime) e o “objeto” na presença do qual o sujeito é passível de ser embasbacado pelo sentimento do sublime. Até então discutimos a resposta do sujeito a algo incomparavelmente grande ou poderoso. Agora iremos mostrar como um sacrifício que vemos nos marca precisamente enquanto a manifestação desse poder que achamos tão fascinante.

[20]sense-full” no original. (N. do T.)

[21] “nonsense” no original. (N. do T.)

[22] POE, Edgar Allan (1982) The complete tales and poems. Nova York: Penguin, p. 164.

[23] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 135.

[24] EPSTEIN, Jean (1974) Écrits sur le cinema. Paris: Ed. Seghers, p. 199.

[25] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 117.

[26]judging subject” no original, o Sujeito da Razão. (N. do T.)

[27] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, pp. 107-108.

[28] Ibid., p. 111.

[29] KANT, Immanuel (1981) Critique of pure reason. Trad. J. M. D. Meiklejohn. Londres: The Guernsey Press, 1991.p. 48.

[30] LYOTARD, Jean-François (1991) Leçons sur l’analytique du sublime. Paris: Galilee, pp. 176-177.

[31] Aqui tomo liberdade de modificar a tradução estabelecida do inglês, onde esse momento é traduzido enquanto “o tempo para entender”. (N. do T.)

[32] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 98.

[33] Ibid., p. 115.

[34]mood” no original. (N. do T.)

[35] General francês, diplomata e finalmente, ministro de políticas de Napoleão Bonaparte. Savary participou das expedições de Bonaparte ao Egito.

[36] KANT, Immanuel (1790) Critique of judgment. Trad. W. S. Pluhar. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, p. 108-109.

[37] SERRES, Michel (1972) L’interférence. Paris: Minuit, p. 167.

[38] Lacan, referindo-se a Sade, define a “segunda morte” enquanto “O ponto em que os próprios ciclos de transformação da natureza estão aniquilados” (J. Lacan [1959-60] The ethics of psychoanalysis. Trad. D. Porter. Londres: Routedge, 1992, p. 248).




COMO CITAR ESTE ARTIGO ZUPANČIČ, Alenka (2016) A lógica do sublime [Trad. R. Gonsalves]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 12, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-12/>.