por Manoel Madeira & Jonas O. Boni Jr.
Senhoras e senhores,
que atire a primeira pedra quem nunca se perguntou será borderline? Os últimos anos trouxeram a questão dos chamados estados-limite à ordem do dia na clínica – seja ela psiquiátrica, psicológica ou psicanalítica. Alguns analistas parecem conceber uma possibilidade de fluidez diagnóstica que abarca formações intermediárias, ao passo que outros fiam-se numa demarcação mais clara entre três estruturas bastante distintas: neurose, psicose e perversão. A Lacuna convidou para o Telecatch dessa edição dois psicanalistas para debater o tema. Seus rounds se desenrolaram ao longo do carnaval de 2016, portanto não esperem dentes quebrados ou nocautes, mas antes empurra-empurra entre foliões.
No bloco “Tecendo polêmica“, do lado esquerdo do ringue, ele, Manoel Madeira, que é psicanalista, chercheur associé na Université Paris-Diderot, Paris VII, doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela mesma instituição e professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No bloco “A estrutura desce às ruas“, do lado direito do ringue, ele, Jonas O. Boni Jr, que é psicanalista, doutorando em Psicologia pela FFCLRP-USP e professor associado aos Cursos de Pós-graduação em Psicopedagogia (UNICSUL) e Psicanálise: Teoria e Técnica (UNIVAP).
PROPOSIÇÃO | Manoel Madeira
Prezado Jonas,
Sou um estrangeiro que se aproxima de um grupo de amigos. Palavras triviais, alguma diplomacia, uma indisfarçável vontade de se enturmar. Depois de longos anos de calmaria, saí de uma Paris assustada, cheguei em Porto Alegre numa tempestade devastadora. Pareço ter motivos pra baixar a guarda. Além disso, Brasília está em férias. O espírito circense dos últimos tempos se arrefeceu momentaneamente e esquenta as ruas — é carnaval! Recesso com cara de ressaca. Pra que brigar agora? Prefiro descansar.
Nos incitam, porém. Misturando circo e arena, subimos no ringue no Telecatch. Se os melhores combates de catch, segundo Roland Barthes, “são coroados de um pandemônio final, sorte de fantasia desenfreada, onde regulamentos, leis de gênero, censura arbitrária e limites do ringue são abolidos, acarretando uma desordem triunfante que transborda à sala e confunde lutadores, equipes médicas, árbitros e espectadores”[1], não parece fora de propósito que surja aqui um embate carnavalesco. É hora, pois, de se envelopar de alguma fantasia — de rei, de pirata ou de jardineira — e molhar a palavra dessa refrega.
O tema: estados-limite. Eu não brinco nesse bloco. Talvez você também não. “Estados-limite” não é uma noção ou denominação frequente entre os lacanianos. Mas estamos em semana de saltar cercas, escancarar armários — podemos propor uma estrofe nesse samba-enredo. Assim, escolhendo nossos tecidos — entre capas e saias, coturnos e espartilhos —, eu te proponho pensar a metáfora que norteou minha tese de doutorado: a da tessitura. A ideia é representar a estrutura como um tecido — sempre se tendo em mente que lanço essa metáfora como ferramenta de transmissão clínica.
A forma mais banal de introduzir a tessitura é a partir da estrutura da metáfora e da metonímia, ou seja, de “superposição de significantes” e de “transporte da significação”[2]. Sendo a estrutura sincrônica do ponto de capiton[3] (prefiro essa expressão a “ponto de basta”), a metáfora desvendaria sobremaneira sua função de tessitura, realçando uma costura em que o entrelaçamento dos três registros se revela facilmente. Tomemos o exemplo das madeleines de Proust, mas poderia ser uma fala corriqueira de um neurótico em análise: imagens, gostos, cheiros, vozes, memórias, em suma, os traços que sulcam o corpo estão intrinsicamente intrincados. Se assim não fosse, flutuariam perdidos, apartados, como aquela bailarina que desatina na rua deserta e muda da quarta-feira de cinzas[4]. É esse o rasgo explícito da alucinação: a destessitura do simbólico que implica uma emergência no Real — vozes, imagens, cheiros, gostos.
Aproveitando o ensejo: a alucinação me parece relativamente frequente em pacientes neuróticos. Alucinações pontuais que vêm interrogar, logo que evocadas, a trama simbólica da qual despencaram. É uma diferença clínica fundamental da alucinação nas psicoses em que o paciente se mostra, amiúde, absolutamente desarmado face à ruptura que lhe assalta — a voz, a imagem, o odor emergidos não lhe permitem opor respostas. Talvez essa seja uma discussão precipitada, mas já introduzo aqui a ideia de que haja rasgos neuróticos — dimensão sem a qual estaríamos fadados a apontar psicoses por todos os lados. A atribuição sistemática (e esquemática) de tais fenômenos às psicoses me parece uma limitação clínica cabal — puramente fenomenológica e sem referência à dimensão estrutural.
Voltemos à guarda. Alguns passos pra trás. Parece-me necessário pensar neste termo “estados-limite”. Admito que ele não me agrada. “Estado” me passa a concepção de “passageiro” — um estado entre um e outro. A palavra “limite” me apraz. Limite entre o quê? Entre neurose e psicose. Simplesmente. Preferia me referir, assim, a “estruturas-limite”. Acredito que seja mais claro — mas pode ser simples preciosismo.
Voltemos, agora, ao tecido. A partir dessa metáfora, proponho diferenciar malhas e operações. Penso um tecido fundamental, composto por malhas primordiais. Podemos supor tais malhas aproximativamente: a morte, a alteridade, o sexo, o corpo, a procriação — malhas que estariam, evidentemente, tecidas intrinsicamente dentre elas. Cada uma só adquire consistência se costurada às outras. Na metáfora da tessitura, esse tecido fundamental seria o equivalente estrutural do nome-do-pai. É esse tecido que faria operar no seio da estrutura a falta, o furo, o Real. De maneira simplificada, seria um cerne articulador característico das neuroses.
Já falei um pouco das operações — metáfora e metonímia —, e você pode supor que esse tecido se estrutura como uma linguagem. É claro. Seria interessante também que você tivesse em mente que se estrutura como um tecido. Grosseira proposta, talvez, mas que carrega o interesse de metaforizar a clínica, e, com ele, a aposta nessa transmissão. Pensemos as três operações fundamentais que Freud, ou melhor, as leituras de Freud estabeleceram como definidoras da estrutura: Verdrängung, Verleugnung e Verwerfung, esta última com a intervenção inventiva de Lacan, mas deixemos esses pormenores já muito repisados de lado. Agora vem cá. Somos jovens, mas já um pouco crescidos. O que os queridos mais velhos querem — teimo nesse fantasma — é que pensemos por nós mesmos, mesmo (e principalmente) quando eles parecem fazer tudo contra isso! A ideia de que há uma operação que se aplica a uma representação como definidora da estrutura não te parece esquemática demais? Sendo direto, te pergunto: a concepção das operações fundamentais como mutuamente excludentes te são clinicamente suficientes? Ela não te parece simplista?
Essa discussão está diretamente atrelada à noção de nome-do-pai como um significante. Isso podemos (nós, amantes da psicanálise) relativizar, claro, mas por que insistimos tanto em escrevê-lo? Descobrimos que a psicose é devida à sua forclusão. Nocaute! Nosso adversário foi à lona! Nada pode fazer contra essa verdade — voadora rotatória que lhe castiga (e entope) os ouvidos. Não se trata de escarrar no prato que com nosso apetite limpamos, de renegar uma noção tão cara à clínica. Mas de estarmos insatisfeitos com esse bordão e de querer bordar um pequeno remendo novo à fantasia psicanalítica com nossas próprias agulhas. Engodo de autonomia? Talvez. Só assim podemos tomar a palavra.
Lacan insiste que o significante, por excelência, tem como função a diferença e o laço. Aqui eu faço um breve parêntese: a tradução das edições brasileiras para lien (laço) é “liame” — notadamente, a do seminário Mais ainda. O tradutor deve ter, certamente, suas razões para justificar tal escolha. Prefiro, porém, falar de “laço”, sob o risco de estarmos falando na réplica e na tréplica de “liame social” (como no dito seminário), o que me parece deveras estranho. Pois bem, Lacan reitera, principalmente nos primeiros seminários, que é inerente ao significante formar malhas, redes, campos de significação. Logo, não parece ser muito ousado que o nome-do-pai, pensado como determinante estrutural, seja concebido como um tecido significante primordial.
Nesse sentido, indico leituras que devas conhecer. Roland Chemama, Clivage et modernité, uma leitura muito leve em que introduz a ideia de “forclusão parcial” e do nome-do-pai como uma “montagem” significante (questão retomada anos mais tarde em Dépression, la grande névrose contemporaine). Erik Porge, Les noms du père chez Lacan, onde o autor propõe que a forclusão implica uma rede, e não um solteiro significante. Marcel Czermak, em Patronymies, fala de “extensão da forclusão”. Nota-se que, se Chemama busca pensar a forclusão em relação à diversidade diagnóstica, enquanto Czermak parece acentuar a questão radicalidade das psicoses, a polêmica entre os dois desvenda, de qualquer modo, uma forclusão diferente de um talho simples que separa estruturas diametralmente opostas. Essa é a questão que ponho em relevo. Por fim, não posso me furtar em propor uma leitura de viés de As psicoses, em que a dimensão do laço, da rede, da trama, aparece em cada lição.
Bref ! O que quero aqui com a metáfora da tessitura é justamente relativizar a dimensão desse determinante estrutural, descolando-o de uma lógica binária, ou seja, da pergunta “houve ou não forclusão?” Deste modo, há de se complexificar o que foi anteriormente proposto sobre a malha estrutural do nome-do-pai, diversificando a pergunta sobre suas funções de borda e articulação. Ou seja, proponho que numa mesma estrutura possam existir concomitantemente diferentes operações de tessitura significante, o que implica pensar diferentes formas de tessitura da borda, variedades que tomam consistência em nossas experiências clínicas. Isso implica que a noção de estrutura faça sentido apenas para pensar a diversidade clínica, e não a repetição de padrões pré-estabelecidos.
Concordo contigo se disseres que os casos-limite são, amiúde, um diagnóstico fácil do que poderíamos chamar de “psicoses ordinárias”. Porém, para além de divergências pontuais, ou até de circunscrições de repetições clínicas que, sinceramente, não encontro (ou não encontramos), acredito que a noção de casos-limite pode, sim, trazer contribuições a essa diversidade de tessituras.
No meu primeiro artigo, pensei numa analogia entre uma condição psicótica e uma conhecida passagem de O processo. Josef K. encontra um sacerdote, capelão do presídio, e este lhe conta a enigmática história do camponês que consome seus anos a flertar com o porteiro, guardião do campo da lei, para poder entrar em seus domínios. Mesmo sendo aquela porta destinada a ele, naquele momento não lhe é autorizada a passagem: “É possível, mas não agora”[5]. Ou seja, a dimensão temporal me remetia à forclusão, para pensar, como Solal Rabinovitch, em um sujeito “preso do lado de fora”[6]. Fora, sim, mas preso nesse fora.
Se essa analogia pode ser ilustrativa em determinados casos de psicose, noto, hoje, como é limitado em muitos outros casos pensar a forclusão como uma porta estrutural em que, no caminho do sujeito, ele ficou dentro ou fora. Se aceitas em metaforizar a estrutura como um tecido vivo, incessantemente em movimento, com fibras significantes que se cruzam, atravessam, sobrepõem, não podemos pensar em tessituras híbridas em que não haja a homogeneidade de uma única forma de inscrição do significante? Desta forma, pensaríamos determinadas singularidades clínicas nem como neurose, nem como psicose, mas como casos-limite.
RÉPLICA | Jonas O. Boni Jr.
Caro Manoel,
Apesar dos acasos, não acredito que este convite tenha sido feito às cegas por essa revista ousada, Lacuna; que, diante da lacuna implícita ao carnaval, ela nos tenha colocado diante de um tema tão espinhoso para a psicanálise e nos feito refletir sobre as nossas posições diante dos Estados-limite e o seu contraponto mais direto: a Noção estrutural. Você, explicitamente amigo das palavras, ocupou uma posição preciosíssima na proposição da discussão — levemente metafórico, como sua tese, e disposto a pensar este campo da diagnóstica psicanalítica e, agora também, da transmissão da clínica, pela via da “tessitura”. Mesmo não brincando no bloco dos “estados-limite”, o disfarce argumentativo não foi só muito precioso, como muito bem articulado. Porém, eu acabo por ocupar uma posição mais minimalista com relação à noção estrutural, a ponto de propor em meu doutorado[7] uma análise desta na obra do Lacan, o que muitas vezes me faz ocupar a enfadonha posição de “antes de propor algo novo, retomemos melhor velhas proposições”.
Perdoe-me, então, o desajeito com as metáforas; e se meu “duplo mortal carpado” for confuso ou seco demais, é porque minha alegoria carnavalesca foi afetada diretamente pela quantidade de deslizamentos teóricos e conceituais que sua proposição me causou, a ponto de querer usar cada linha pra te incitar a uma tréplica que me cause ainda mais reflexão, para além deste “Telecath”.
Como disse brevemente, meu tema de doutorado se propõe a analisar a noção de estrutura em psicanálise, na intenção de compor um salto lógico para “estruturas clínicas”, a partir dos três registros propostos por Lacan: Real, Simbólico e Imaginário (RSI). As estruturas clínicas, em sua divisão clássica — neurose, perversão e psicose —, estariam pautadas em diferentes amarrações do RSI, e com operações e operadores distintos entre si, com os quais poderíamos formar arranjos enquanto conjuntos singulares. A proposta, portanto, se pautaria não mais exclusivamente pela teoria do Édipo, mas pela articulação do Nó-borromeu que incluiria as últimas inflexões teóricas do autor, desde o objeto a ao ultimíssimo ensino sobre o Real.
A rigor, Freud não fez uso da noção de estrutura, tampouco da noção estrutural no diagnóstico clínico, talvez por uma questão epistêmico-temporal; e Lacan, mesmo influenciado diretamente pela corrente estruturalista, não utilizou o termo estruturas clínicas para se referir ao conjunto das práticas diagnósticas ou do exercício diagnóstico diferencial. Mas sabemos o quanto a divisão clássica aparece em seus textos — e, eu diria, do início ao fim das obras desses dois autores tão estudados —, de modo que somos convocados a retomá-las à medida que eles procuravam explicar os diferentes fenômenos da experiência clínica. Ainda mais, Lacan recorria ao termo estrutura, e na acepção orientada pela definição geral de “configuração sistêmica que orienta um conjunto de elementos com funcionamento determinado por relações possíveis entre eles” (Altoé & Martinho, 2012), correlacionando-a a termos caros e fundamentais da teórica psicanalítica — como estrutura do sintoma, da fantasia, do desejo, da demanda, e mesmo da neurose, da perversão e da psicose. Quer dizer, essas nomenclaturas são utilizadas não apenas no exercício do diagnóstico de um conjunto semiológico — portanto, um referencial teórico para o psicanalista se situar e transformar em um caso clínico a experiência de fala de um sujeito em transferência —, mas também apontam para uma certa terminologia compartilhada quando se trata de transmitir a clínica — em instituições, na Academia ou mesmo nas experiências de supervisão.
Quase diria que “chovo no molhado”, pois consigo inferir seu rigor metodológico; porém, como não retomar isso se, muitas vezes, no sentido mais amplo que a experiência psicanalítica pode conter, o exercício do diagnóstico é atravessado pelos preceitos morais e do senso-comum que a busca de sentido e da verdade acarretam, daquilo que o sujeito fala em análise, e não pelas bases conceituais que lhe sejam de fato condizentes com as propostas de Lacan, eu diria, essencialmente? Por exemplo, o analista defender a hibridez do diagnóstico em certas balizas de discurso e de extração de gozo, pois o avanço da teoria de Lacan pretensamente implicaria isso; mas, que diante de um caso grave (como se fossem sinônimos), ele recuperasse os termos clássicos da diagnóstica de modo a afirmar “é uma psicose”; “não é uma psicose, trata-se de uma atuação na transferência”; ainda mais: “não é uma psicose, ele fala do pai. Ou seja, o significante nome-do-pai não está foracluído”. Ou seja, uma malha tecida por confusões, na qual o exercício diagnóstico estrutural fica relegado a um plano teórico antiquado e desatualizado da teoria psicanalítica, mas usado correntemente sob bases pouco conceituais e fenomenologicamente determinadas, principalmente sobre as psicoses, relegadas ao surto, aos casos graves, pontuando a neurose como quadro típico da clínica.
Defendo que a noção de estrutura permanece na obra de Lacan, e para tanto torna-se necessário retomar três conceitos-base para tal premissa sobre o inconsciente, tendo em vista que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”: linguagem, significante e sujeito — e duas operações primordiais[8]: Behajung e Verwerfung. A articulação entre tais conceitos psicanalíticos deve ser pautada pelo princípio básico da estrutura, qual seja: que as duas operações permitam a matematização de conjuntos distintos entre si, inclusive em seus elementos e em suas leis recíprocas. A “existência de tais leis relativas ao conjunto implica que a alteração de um dos elementos provoque a alteração de todos os outros, dado que o valor de cada elemento não depende apenas do que ele é por si mesmo, mas depende também, e sobretudo, da posição que ele ocupa em relação a todos os outros do conjunto”[9].
A concepção de estados-limite não seria apenas necessária por não se compreender rigorosamente os efeitos dessa operação primordial e a conjugação de seus operadores e elementos operacionais em cada conjunto, ainda que a operação permita dois conjuntos radicalmente distintos entre si? Ou tais configurações tratar-se-iam da dificuldade em apreender a função significante na estrutura (quando já efeito das operações), pois permitem arranjos fenomenológicos variados, ainda que com as causas diferentes a depender do estatuto relacional entre significantes? Ou seja, os estados-limite não estariam reduzidos a uma caracteriologia dos fenômenos?
Se tais perguntas forem respondidas pelo SIM, os estados-limite seriam delimitações fenomenológicas, enquanto que a noção estrutural se pautaria pelo modelo de articulação entre linguagem, significante e sujeito — e, principalmente, do modo como essa tríade funcionaria de acordo com leis e operações específicas. Logo, adentramos no campo da teoria da constituição do sujeito, em Lacan, como vinculada diretamente à inscrição do sujeito no campo da linguagem, ou ao modo como ele faz uso dos signos e significantes dispostos no código linguístico a que está inserido, e, portanto, definindo um conjunto de relações entre os elementos da subjetividade. A constituição do sujeito enquanto operação de inscrição no campo é o principal referente para a formalização do funcionamento dos elementos; logo, da estrutura subjetiva, que derivaria estruturas clínicas de arranjos subjetivos. Acredito que a tese da tessitura, inclusive pela articulação entre metáfora e metonímia, se enquadraria neste ponto, mas como um efeito das possibilidades de arranjos significantes advindos dos efeitos da inscrição estrutural.
No texto incluído na obra Escritos (1966), “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinnug’ de Freud” (1956/1966), Lacan discute a questão e afirma a importância deste tema no esclarecimento do funcionamento subjetivo correlativo às suas diferenças estruturais e suas formações psicopatológicas, na precisão da teoria sobre o sujeito em psicanálise, mas também sobre a teoria da técnica na experiência clínica:
Para tanto, extrairei de dois campos diferentes dois exemplos como premissas; o primeiro, do que essas fórmulas podem esclarecer sobre as estruturas psicopatológicas e, ao mesmo tempo, fazer compreender na nosografia; o segundo, do que elas fazem compreender da clínica psicoterápica e, ao mesmo tempo, esclarecem quanto à teoria da técnica.[10]
Da passagem freudiana do mito de Édipo e do complexo de castração, Lacan realiza uma separação importante das dimensões propostas por Freud, relacionadas aos três registros — Real, Simbólico e Imaginário —, mas também teoriza os efeitos da incidência significante e da possibilidade da metáfora paterna em alguns elementos operacionais na estrutura; por exemplo, a unidade do eu (referência subjetiva essencialmente Imaginária), ideal do eu (referência subjetiva essencialmente Simbólica), Outro (categoria relacionada ao tesouro dos significantes, nesse momento), desejo (estrutura essencialmente simbólica, que conjuga tanto o falo imaginário quanto o falo simbólico, com os quais se postula uma gramática para interpretar a falta ou a castração). Enfim, uma série de elementos que podem ser vislumbrados no famoso grafo do desejo[11]. Todos estes elementos estariam em operação, na teoria da constituição do sujeito, e são efeitos da organização diante da simbolização primordial, ou de uma modalidade específica de inscrição no campo da linguagem, conhecida por neurose.
Pode-se, desta maneira, colocar outra questão sobre tal inscrição em relação ao modo como o significante opera na estrutura, principalmente diante da possibilidade do deslizamento que se enquadraria na definição de metáfora, dada a metonímia como a condição sine qua non para a cadeia significante, que é a seguinte: a incidência dos significantes primordiais e a inscrição da metáfora paterna são os determinantes para a definição da estrutura? Mas de qual? Ou diante de uma causa outra, quais seriam elementos disponíveis específicos da estrutura?
Na citação anterior, Lacan se refere à famosa simbolização primordial; e, para tanto, não seria esta uma possibilidade diante do Real como causa que possibilite diferentes formas de arranjos estruturais, inclusive o descrito pela via da incidência do significante enquanto efeito da simbolização, que nos traria luz sobre o tema das estruturas e da possibilidade de metáfora no arranjo subjetivo?
É a própria operação primordial de Behajung e Verwerfung que orienta o modelo de funcionamento do significante, e, portanto, de dois grandes grupos estruturais: um referido pela articulação simbólica possível entre significantes, e outro no qual a articulação opera pela organização do significante com outro significante pelo estreitamento imaginário — ou de signo. E é a partir dessas afirmações que se torna possível argumentar a hipótese de que há diferentes mecanismos e elementos operacionais específicos em cada uma das estruturas, quando diante da simbolização primordial ou da relação sujeito com o campo da linguagem. É desse modo que Lacan retoma Freud, em sua teoria do Édipo, relacionando em Freud a constatação da castração com as diferentes possibilidades de significação do símbolo — comumente citado por Nome-do-pai, enquanto índice genérico que sustenta que “o significante representa o sujeito para outro significante”. Trata-se de um sujeito em articulação com o significante em seu ato de fala, e não com o fenômeno que se endereça deste conjunto pela significação (não do sentido, mas do próprio nonsense fundante do referente ao significante), ou mesmo do fenômeno que explode pela impossibilidade radical da articulação entre S1 e S2, característico da holófrase[12] — causas estruturais distintas entre si. Temos, então, a neurose articulada à função derivada do símbolo dos arranjos significantes na estrutura, e a psicose com a particularidade de um deslizamento metonímico essencialmente na função de signos, cujo símbolo foracluído invade a cadeia enquanto indistinto do Real (os fenômenos de alucinação, por exemplo).
A citação a seguir lança luz sobre tais afirmações, inclusive para possíveis interpretações sobre o conceito de símbolo em Lacan:
O homem literalmente dedica seu tempo a desdobrar a alternativa estrutural em que a presença e a ausência retiram uma da outra sua convocação. É no momento de sua conjunção essencial e, por assim dizer, no ponto zero do desejo, que o objeto humano sucumbe à captura que, anulando sua propriedade natural, passa então a sujeitá-lo às condições do símbolo.[13]
No entanto, surge outro problema, caro interlocutor; da quantidade dos conjuntos estruturais possíveis, temos dois, orientados pela qualidade da articulação significante, o que, portanto, nos coloca a questão: a perversão seria uma terceira estrutura ou apenas um modelo de negativização diante do Real, cujo retorno incidiria no imaginário — e, portanto, seria passível de aparecer nos dois grupos: tanto aquele dialetizado pela Beahjung quanto aquele radicalmente negado pela Verwerfung, como uma forma alternativa ao sintoma e ao delírio em caráter episódico e singular a cada arranjo estrutural, respectivamente. Questão que surge e insiste no detalhe: não seria reduzir ainda mais os possíveis arranjos da noção de estrutura?
Há quem diga que essa proposta geral da noção estrutural morreu no texto lacaniano, principalmente a partir da inserção do objeto a e formulações sobre o Real. Obviamente, assunto espinhoso. A hipótese de morte de tal conjunto teórico sustenta-se no equívoco fundante de correlacionar a noção estrutural com a teoria do Édipo, cuja insistência da significação fálica diante da castração, que implicaria retornos infindáveis do sentido, decantado exclusivamente no mito familiar, nada mais seria que uma ilusão imaginária sustentada pelo simbólico diante do Real (e eu diria que, tais elementos operadores da Estrutura, oriundos da teoria do Édipo são uma interpretação parcial da teoria sobre a clínica, e que no máximo podem ser atrelados a certas funções na construção da fantasia). Se a leitura estrutural fosse pautada pela primazia do sentido na clínica — e, portanto da significação fálica diante da castração —, ou ainda da amarração Simbólico–Imaginária diante do Real — obviamente, uma queda conceitual do significante “nome-do-pai” —, ter-se-ia um grande grupo de psicóticos, distribuídos pela variabilidade de nuances nos recursos ou suportes diante do Real.
Veja que curioso, o termo que se formula é “psicose ordinária”, por um importante grupo de orientação lacaniana, cujo adjetivo ordinário seria uma aposta de “não desencadeada”. Essa proposta não se trataria apenas de confundir ainda mais psicose com surto: psicose igual a surto, psicose ordinária não surto? Seriam os estados-limite uma forma de negar a confusão abissal entre psicose e surto na comunidade psicanalítica? Se for isto, que base se tem para tal exercício se não um preceito moral; como aquele que Roudinesco (2008) apontou diante da perversão em A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos?
Mas, como sabemos, Lacan não facilita; e, na década de 1974, afirma:
A gramática decerto serve aí de entrave para a escrita e, para tanto, atesta um real, mas um real, como se sabe, que permanece como enigma, enquanto não se salienta na análise sua mola pseudossexual: ou seja, o real que, por só poder mentir ao parceiro, inscreve-se como neurose, perversão ou psicose.[14]
Podemos considerar que o Real inscreve-se por um índice em alguma coisa; pois não é sem razão que Lacan insistiu em toda sua obra que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, trazendo para a discussão o termo ‘estruturado’ como correlato da noção estrutural quando subjetivado através da linguagem; ou do sujeito em relação ao campo do Outro — tesouro dos significantes.
Portanto, a inscrição do Real no campo do Outro revela três modelos possíveis de conjuntos distintos de arranjos da linguagem do Real inscrito. Em outras palavras, podemos dizer que o Real na subjetividade se inscreve enquanto três categorias, denominadas sob o conjunto clássico da diagnóstica diferencial: neurose, perversão ou psicose. Aqui, o problema com a perversão aparentemente se resolve; porém, insisto em mantê-lo como questão.
Se Lacan afirma essas três diferenças possíveis de inscrição do Real, é necessário, então, concluir que cada estrutura possua características, funcionamentos e operadores distintos, e a tal ponto que seria possível conjecturar elementos diferenciais entre elas. Sem dúvida isso repercute na clínica, na perspectiva da direção do tratamento, orientado por uma política e ética não sustentadas em bases morais (A neurose funciona e representa a boa forma; a perversão, o avesso da forma da boa forma; e a psicose, a ausência da forma). Portanto, parte-se da necessidade de que nem todos estão orientados pelas mesmas leis de funcionamentos, dada a particularidade de três formas de inscrição de modo de uma alteridade que não implique valorações.
Insisto, não seria a nomenclatura de “estados-limite” uma forma de renomear os fenômenos que podem surgir das estruturas clássicas neurose, perversão e psicose, sem carregar o aspecto moral que os termos carregam e tamponar o hiato das causas da subjetividade humana em sua relação com a linguagem, o significante e o Real?
Para concluir, você me endereçou uma pergunta que continua a ressoar: (1) a concepção das operações fundamentais como mutuamente excludentes te são clinicamente suficientes? Ela não te parece simplista?
Acredito que a argumentação das “operações excludentes” ser simplista, ou mesmo reducionista das infinitas nuances da subjetividade humana, centra-se na dificuldade em esclarecer a radicalidade do que Lacan procurou teorizar sobre o registro Simbólico e do modo como tal índice se escreve da inscrição na subjetividade, pela via do significante, e permanece em suspensão por confundi-lo com sentido, falo, “nome-do-pai” e Teoria do Édipo. Tratar pela via dos “estados-limite”, “borderline”, “casos graves” ou “inclassificáveis” não resolve a incompreensão diante dos efeitos produzidos quando o símbolo é e não é recurso significante na subjetividade e uma das materialidades de fenômenos clínicos.
Um velho enunciado de um outro jeito.
TRÉPLICA | Manoel Madeira
Prezado Jonas,
Intrincados fios. Costuro, pois, alguns pontos eletivos.
Ressalto que a “definição geral” de estrutura, extraída do consistente artigo de Sônia Altoé e Maria Helena Martinho, faz menção apenas à dimensão da sistematização, segundo a qual a estrutura constituiria suas leis próprias. Tomando o estruturalismo de uma maneira mais geral, não perderíamos em citar outras três dimensões básicas: totalidade, transformação e, sobretudo, formalização. Puxando a sardinha para nossa discussão, indico que Lacan critica claramente a noção de totalidade ao longo do seu ensino. A transformação, no entanto, na esteira de Lévi-Strauss – este último na esteira de Dumézil – pode ter lugar destacado em sua obra. Articulando, en passant, a questão da transformação com o nó borromeo ressalto a passagem do RSI em que Lacan afirma que a amarração borromeana por excelência tem como característica certa rigidez, “ela não se transforma por uma deformação continua na figura trivial do anel”[15]. Esse desatar pode ser facilmente pensado, no seminário Le sinthome, ao desencadeamento psicótico – ou seja tratar-se-ia de uma estruturação singular cuja distinção nos evitaria algumas afirmações por demais generalizadas sobre as psicoses.
Vou encadear a prosa pela formalização, dimensão fundamental a realçar para que não percamos a tensão entre clínica e teoria. Ao meu ver, a noção de estrutura, a qual muito prezo, só faz sentido se articulada à clínica. Na ausência de tal estreita relação, a referência à estrutura me parece flutuar no ar de uma infértil exegese. É dessa infertilidade que padecem boa parte dos textos que trabalham sobre a dicotomia entre Bejahung e Verwerfung[16]. Por exemplo, se generalizarmos a indicação de Lacan, segundo a qual, “a Verwerfung […] corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto é, da Bejahung”[17], como se a Verwerfung fosse a única operação tecedora das fundações da estrutura, teremos, ao meu ver, uma concepção da estruturação psicótica bastante apartada da clínica. E isso, não por categorias fenomenológicas distintas das quais falas, ou seja, justamente, pela maneira como o sujeito se deixa morar e, até por isso, reivindica sua apropriação da linguagem.
A Bejahung – Freud a utiliza em articulação-oposição à Ausstossung – é uma operação de afirmação-negação, pois nada pode existir a condição de que não exista, como diz Lacan, “nada existe senão sobre um suposto fundo de ausência”[18]. Privo-nos da discussão sobre primazias entre afirmação e negação, indico apenas que o recalcamento vem inscrever na estrutura do significante essa báscula entre ser e não ser, entre o que é e não é. Se a “Bejahung é um precedente necessário a toda aplicação da Verneinung”[19], é justamente porque a estrutura da Verneinung retoma a operação de afirmação-negação.
O ponto: a Bejahung não parece fazer qualquer sentido clínico senão articulada à uma malha significante específica. Só, assim, creio, podemos entender que determinados viventes sejam, logo do desencadeamento psicótico, “incapazes de fazer valer a Verneinung em relação ao evento”[20]. Em muitos casos, um evento, específico, pontual, que vem solapar os nós que organizam e fazem a estrutura funcionar de determinada forma. Assim, podemos pensar porque os desencadeamentos psicóticos podem ser singulares – e porque alguns pacientes transitam sem maiores percalços por malhas absolutamente interditadas a outros. Nos permite pensar, outrossim, a imensa variedade de recursos simbólicos, as diferentes radicalidades dos desencadeamentos, enfim, a diversidade clínica.
Penso a Bejahung, ademais, menos como um momento mítico e mais como uma repetição de uma forma de relação estabelecida em tempos primordiais. Creio que você entende bem o que proponho quando fala que a tessitura é um efeito. Sim, pode ser. Esse efeito, porém, é a própria constituição da estrutura nas suas trocas com o Outro. Os operadores Bejahung e Verwerfung seriam as agulhas que tramam (ou não) os fios. Ou seja, ela é efeito de uma estruturação que implica sua costura, não de uma etapa anterior que lhe seja dissociada. Há um exemplo topológico simples que propõe Lacan que é o da constituição do nó, ou seja, a trança – que só aceito empregar, na contracorrente de Lacan, como ilustração. Para retomar essas formas, indico o seminário Les non-dupes errent[21] e L’insu que sait de l’une-bévue…[22] (Imagem). Primeiro, se a trança precede o nó, podemos pensar que cada cruzamento de registros se reporta a experiências repetidas do recém-nascido, e não um momento mítico de nodagem (nouage)[23]. Segundo, o nó aqui é efeito da trança, mas a trança é condição do nó – suas naturezas não se diferenciam.
A pluralização das causalidades estruturais me afasta da ideia de que a Bejahung e a Verwerfung “orientam modelos de funcionamento do significante” que me parecem no seu texto peremptoriamente distintos e, assim, redutores das singularidades clínicas. O mais importante é que, se proponho pensar a diversidade das formas de estruturação é justamente porque, em alguns casos, não observo a distinção entre neurose e psicose cindida de maneira tão categórica.
Ademais, a generalização das psicoses como “deslizamento metonímico essencialmente na função de signos”, não me parece condizer com a diversidade clínica. É uma armadilha: a literatura psicanalítica produz amiúde afirmações taxativas sobre as psicoses que só valem para os períodos de desencadeamento manifesto ou para esquizofrenias assaz comprometidas. Mesmo Lacan, lido apressadamente e dissociado do contexto em que desenvolvia seu ensino, pode nos levar a tais conclusões clinicamente bastante duvidosas.
Aproveitando o ensejo do desencadeamento, fiquei grogue com o golpe da “psicose ordinária”, não entendi bem. Historicamente, em Pinel e Esquirol, a psicose era sinônimo de surto. É curioso que, mais tarde, Kraepelin (e alguns autores organicistas) produzirá duas formas de textos bastante clivados: um teórico, em que a concepção evolutiva da “doença” obscurece o desencadeamento; outro, clínico, em que o desencadeamento, única base de análise que dispunha o psiquiatra até então, ofuscava a teoria evolutiva. O passo genial de Freud é justamente articular intrinsicamente e, no mesmo movimento, distinguir causa, desencadeamento e cura, se privando da tradição organicista. Freud, estabelecendo essa tríade, costura a fenomenologia do desencadeamento à sua dimensão e condição estrutural. Sistematização, transformação, formalização – Freud dispunha de todas as armas. O desencadeamento, porém, permanecerá, no mínimo, como uma esperada verdade estrutural que os fenômenos mais categóricos tornariam tangível. E assim será até o seminário Le sinthome.
É, a partir de então, e muito pelas leituras desse seminário, que o desencadeamento se descola, não sendo mais condição sine qua non das psicoses. Isso porque, mesmo não sendo “milleriano”, ou algo do gênero que defina minha religião psicanalítica, ressalto que Jacques Alain-Miller não defende a psicose ordinária como um novo diagnóstico, mas apenas como ampliação da alçada da clínica das psicoses[24]. Mesmo porque, o plural, as psicoses, surge justamente como quebra da tradição frente ao arbitrário das distinções diagnósticas; distinções, aliás, que a própria psiquiatria clássica relativiza por suas infindáveis flutuações. A noção de psicose ordinária vem justamente possibilitar ao clínico de prescindir do desencadeamento para pensar a estruturação de uma psicose.
Para fechar esse ponto, reafirmo que não me convence a noção de “estados-limite” quando ela surge como uma forma fácil e arbitrária de diagnosticar, escamoteando, justamente o que foi nomeado como psicose ordinária. De fato, a ausência de discussão entre o que evocaria uma psicose – a partir da relação estrutural do sujeito com o significante –, e o que distinguiria um “estado-limite” ainda pode produzir certos embaraços.
Você insiste na “moral”, fenomenológica, e a distingue de certa consistência teórica, dando exemplos das confusões que a tosca articulação entre teoria e clínica produz – forclusão e falas sobre o pai, psicose como ausência de forma… Eu acho que entendo o que você diz – e posso lembrar igualmente de algumas posições em que psicanalistas tomam fenômenos isolados e estabelecem diagnósticos à sua maneira. Porém, vejo aqui apenas a imperícia dos terapeutas e não uma crítica a teorias que proporiam que a estrutura possa se tecer de forma híbrida. Acusando o moralismo, você golpeia, certo, alguns autores que trabalham sobre “casos-limite”, mas não o conteúdo dessa proposta. De maneira geral, compartilho dessa crítica, mas te apresento alguns senões para concluir.
Você parece supervalorizar a referência a Lacan e à estrutura. Não sei se o que você chama de “moralismo” não acusa, simplesmente, referenciais teóricos distintos, que não carregam a estrutura como paradigma. Aqui, se trataria apenas de diálogo: a luta pela verdade é sempre um ringue prenhe de teatralidade, como o do catch. E que seja. Ademais, nenhuma teoria psicanalítica está protegida de ser ela mesma moralizadora, não podendo, pois, ser usada como escudo. A ética pode ser dialetizada com a moral, e, nessa seara, ela implica, ao meu ver, um exercício de problematização, não a submissão a uma teoria ou corrente. Deste modo, também é pertinente não confundir rigor com submissão às sagradas escrituras psicanalíticas. Como diria o poeta, ao decoro, ao coro, ao status quo[25]. Se queremos ser lacanianos, que sejamos, à nossa maneira, um pouco subversivos. ♦
REFERÊNCIAS
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[1] BARTHES, Roland (1957) Mythologies. Paris: Seuil, 1970; p. 21.
[2] LACAN, Jacques (1957) “L’instance de la lettre ou la raison depuis Freud”. In: Écrits. Paris: Seuil, 1999, p. 511.
[3] LACAN, Jacques (1960) “Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien”. In: Écrits. Paris: Seuil, 1999; p. 805.
[4] Referência à música de Chico Buarque, Ela desatinou.
[5] KAFKA, Franz (1925) O processo. Trad. M. Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 261.
[6] RABINOVITCH, Solal (2000) A foraclusão: presos do lado de fora. Trad. L. Magalhães. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
[7] O doutorado ocorre sob orientação da Profª Drª Leda Verdiani Tfouni, que além dos apontamentos precisos em psicanálise, tem me esclarecido as complexidades da linguística e suas derivações em psicanálise.
[8]Opto por manter as palavras utilizadas por Freud, no texto “A negativa”, de 1925, por um certo preciosismo com o conceito. Como você mencionou, recorrer a essa operação binária pode ser uma certa repetição, no entanto ela contempla uma sorte de consequências dificílimas de serem traduzidas, principalmente para o português. Por exemplo, a tradução do termo Behajung deveria contemplar em uma única palavra a coexistência de duas ideias antagônicas, uma espécie de articulação radical de uma afirmação e uma negação simultaneamente. Nesta esteira conceitual, a o registro Simbólico estaria atrelado ao efeito da operação da Behajung e implica ao significante a diferença e o furo de sentido que demanda outro significante para os efeitos de significação. Ainda mais, que tipo de negação radical pode exprimir aquilo que Freud delimitou pela expulsão do índice da negativa, a tal ponto de não haver qualquer traço de existência da dualidade quando a Verwerfung se põe a operar?
[9] PRADO COELHO, Eduardo (1967) “Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e estruturalismos”. In: PRADO COELHO, Eduardo (Org.) Estruturalismo antologia de textos teóricos. São Paulo: Martins Fontes, 1967; p.21.
[10] LACAN, Jaques (1956) “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; p. 385.
[11] Cf. LACAN, Jacques (1958) “O desejo do Outro”. In: O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; p. 404. Cf. também: LACAN, Jacques (1960) “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: Escritos, op. cit., p. 833.
[12] Concepção desenvolvida no livro 11, “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964). Lacan ressalta que se trata de um efeito entre dois significantes, cuja função fica radicalmente desprovida daquilo que lhe é sua própria definição “ser o que os outros não são” (LACAN, J. (1961) “Lição de 22 de novembro de 1961”. In: O seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de estudos freudianos, 2011; p. 26).
[13] LACAN, Jacques (1957) “Seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos, op. cit., p. 51.
[14] LACAN, Jacques (1974) “Televisão”. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; p. 515.
[15] LACAN, Jacques (1974-75) Le séminaire, livre XXII : R.S.I. Paris : Association Freudienne Internationale, 2002, p. 56.
[16] Importante exceção feita à MOSCHEN, Simone; GLEICH, Paulo. Entre sujeição e domínio vibra a posição sujeito: reverberações éticas de uma concepção do sujeito como lugar enunciativo. Psicologia & sociedade, n. 19/2, pp. 15-24, 2007-2008.
[17] LACAN, Jacques (1954) “Réponse au commentaire de Jean Hippolyte sur la Verneinung de Freud”. In: Écrits. Paris: Seuil, 1999, p.388.
[18] Ibid., p. 392.
[19] LACAN, Jacques (1959) “D’une question préliminaire à tout le traitement possible de la psychose”. In: Écrits, op. cit., p. 558.
[20] LACAN, Jacques (1955-56) Le séminaire, livre III: Les psychoses. Paris: Seuil, 1981, p. 100.
[21] LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Paris: Association Freudienne Internationale, 2010, p.75.
[22] LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Paris: Association Lacanienne Internationale, 2014, p. 56.
[23] A ideia de pensar a trança como as experiências do recém-nascido me foi transmitida por Marie-Christine Laznik em comunicação privada. Laznik faz essa proposição a partir do consistente trabalho de Ângela Vorcaro sobre a trança lacaniana.
[24] Ver BATTISTA Maria do Carmo & LAIA Sérgio, 2012. A psicose ordinária. Belo Horizonte, Scriptum.
[25] Referência à música de Rodrigo Amarante, Cometa.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | MADEIRA, Manoel; BONI JR., Jonas O. (2016) Estados-limite Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -1, p. 7, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/05/22/telecatch-estados-limite/>.