por Julian Alexander Brzozowski
A paranoia deve ser administrada a conta-gotas.
É necessário, em tempos turbulentos, fundamentar com mãos trêmulas uma vontade de crítica da paranoia para assim traçarmos uma distinção entre o medo instintivo de uma organização social ferina, por um lado, e uma moção psíquica de orientação narrativa onto-eroto-mitológica[1] autoimune, por outro.
Ou seja, disputando a libido paranoide, encontramos as feridas e cicatrizes do pai real, de um lado, e as do pai simbólico, do outro; de um lado, materialidade histórica e, do outro, mito. A questão é que sempre existe uma lacuna — quer dizer, um espaçamento — entre os dois, um duto supostamente sistêmico (como um cano de esgoto) que, por sua qualidade imagética (porosa), surpreendentemente acaba por construir o assistemático por excelência: uma via por onde tramita um constante empréstimo de trejeitos estéticos, de modalidades de olhar, numa triangulação libidinal arranjadora que só podemos chamar de humana.
A “animalidade de um deus”[2], qualidade que inspira a interrogação humana, parece operar na possibilidade de ser e de experimentar dos afetos instintual e pulsional em um mesmo jorro, em um mesmo gozo. O que está na balança paterna da triangulação edípica é a vontade-demanda de tornar-se sabiá, japiim ou formiga, uma baleia cantora ou uma colônia de bactérias: é a experiência do ágathon harmônico, marmóreo e jurássico. Na balança materna está o objeto, que só quer dizer a carne (o seio, o cíbalo, a voz, o olhar, peças destacáveis, mas infinitamente religadas ao corpo[3]), a vontade de ser carne e de ver carne, a inegociável demanda por tornar-se fera noturna, lobo, jaguar, onça pintada de sangue: um saber-corpo (um sabor-saber), um saber material que assurdina qualquer canto de qualquer ave tropical rasgando-lhe a garganta, às vezes de maneira tão sutil quanto simplesmente lembrando-a de que há uma garganta a ser rasgada. Essa categoria da carne age sobre a urgência de cagar, de se enfiar numa caverna e deixar um pedido de socorro na forma de um cavalo ou do negativo de uma mão em urucum[4].
Quando se fala sobre o medo instintivo que se sente de uma cobra, quando vemos filmagens de macacos fazendo uso do mesmo arranjo de músculos faciais que os seres humanos para berrar ao grupo que uma cobra foi avistada, falamos de um bom medo, um medo útil, pois nos distancia da peçonha, da toxina mortal fabricada em laboratórios naturais. Essa é a fatia da libido paranoide que concerne à mãe, ou à vontade de carne, e falamos em mãe simplesmente por não ser dado a nenhum outro ente que não à mãe a possibilidade de regurgitar interorganicamente o alimento essencial para sobrevivência do corpo infante (isso é alheio e inofensivo à discussão de gênero e suas fabulosas possibilitações técnicas). Quer dizer, ninguém mais que mãe fixa o ponto mítico do afeto relativo ao consumo de carne, ao canibalismo primordial infante que é inabalável fonte de gozo. Quando falamos desse saber de medo da carne, da memória inscrita no osso sobre os devastadores efeitos da peçonha ferina, falamos de uma utilidade vital, um guarda-costas mecânico mais sábio que nosso próprio medíocre saber de vigília.
Pois bem, digo isso: o medo da tortura política está localizado nesse lado da economia libidinal paranoide.
Uma marca inscreveu-se no corpo. Quando meu pai me pega no colo pela primeira vez lhe é impossível não me fitar com os olhos de um exilado, e imediatamente — quero dizer, sem mediação — seu exílio marca meu olhar, lançando-me à exaustiva tarefa de revesti-lo com palavras e cantos e cavalos até o fim da minha existência (que certamente tamborila após a queda de minha carne). É o saber do seu corpo que transmite uma sabedoria vital ao meu: ao avistar uma cobra utilize (diz: utilizei) esse e esse músculo para emitir um sinal de perigo aos seus aliados, aqueles que sofrem como você. A imediação do terceiro tempo do trauma, o de sua transmissão linguística, só é medida pela certeza de que aquela modalidade de brilho, aquela modalidade de olhar, foi conquistada ao ser picado. É o sabor/saber-feito-carne da última gota de toxina, algo controlada, que permaneceu no sangue do exilado daquele instante em que o útero entrou pra sempre do lado de lá do horizonte.
Do lado simbólico de nossa triangulação paranoide — quer dizer, na fatia que concerne à sua organização onto-eroto-mitológica —, a questão entra precisamente nos personagens sociais que assumem semblante reptiliano. É um desperdício artístico usar dos músculos emergenciais, do urro emergencial, para apontar cobras em todos os lados. As cobras e demais animais peçonhentos agradecem o gesto, pois há um desgaste material da musculatura necessária para resistir ao veneno. E a infinita poesia que é o ser humano consegue arranjar máscaras de semelhanças reptilianas infinitesimais, ainda assim deixando restar o que se chama de uma brecha real.
Quando, enlouquecido, paranoide, um ser humano afasta-se de um parceiro sexual íntimo por esse ter assumido, em sua onto-eroto-mitologia mal acabada, o personagem viboresco, um desperdício libidinal acaba por resultar em um despreparo mecânico para se lidar com a peçonha quando ela chega de fato matando, enfiando as finas presas na carne e instituindo verdades verde-acinzentadas nos furos. A retração mecânica movida pelo insistente sentimento de ameaça (primordialmente carnívoro, atualmente simbólico) deixa a musculatura do paranoide rígida, desprovida da elasticidade necessária para um bom grito de socorro disposto a afetar o mais distante sabiá, ou o mais futuro pintor numa caverna de cavalos milenares.
Esse é, por sua vez, o medo inútil, artístico, pois ele não salva a carne de nada, tampouco o símbolo: ele apenas retroalimenta libidinalmente (e sabemos que essa retroalimentação tende a capturar boa parte da sujeira do aquário que se tornou o pensamento) uma complexa narrativa onto-eroto-mitológica individual, de cobras e peçonhas simbólicas que gozam da afirmação de um personagem violento, policialesco, obsessivo, mas no dado instante um personagem fantasmal antes que material.
Qualquer questão, sabemos, entra na cruel tarefa de distinção entre fantasma e matéria: lembremos de nosso duto de esgoto poroso, que lambuza de trejeitos todo o assistema arranjado entre o símbolo e a carne. Mas que essa tarefa não emudeça toda a saudável paranoia que faz eriçar garras e presas quando Brilhante é convocado ao palanque da democracia. ♦
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. (1954) La experiencia interior. Trad.: Fernando Savater. Madrid: Taurus Ediciones, 1973.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
LACAN, Jacques. (1966-67) O Seminário: Livro 14: A Lógica do Fantasma. Trad.: Amélia Lyra, Conceição Beltrão Fleig, Dulcinéa de Andrade Lima Araújo, Irma Chaves, Ivan Corrêa, Letícia P. Fonsêca, Luiz Alberto Tavares, Mª Lúcia de Queiroz Santos, Mario Fleig. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2008.
NANCY, Jean-Luc. El Sentido Del Mundo. Trad.: Jorge Manuel Casas, Buenos Aires: la marca editora,1993.
* Julian Alexander Brzozowski é Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, atualmente pesquisa o vínculo possível entre psicanálise, teoria da imagem e o xamanismo yanomami através da obra de Dani Kopenawa A queda do céu. Compositor, coordenador, regente e multi-instrumentista do grupo Orquestra Manancial da Alvorada, ainda gosta de acreditar que o horizonte humano é tornar-se imensa poesia (não é isso que nos diz sinthome?).
[1] Qual o mínimo grau de orientação para o ser dentro de uma disciplina que se propõe uma antifilosofia? Um pensador contemporâneo como Jean-Luc Nancy, em sua tentativa de imaginar um ser sem pressuposto, oferece a narrativa do desejo como inscrita em uma “onto-teo-erotología acabada” (El sentido del mundo. Trad. J. M. Casas. Buenos Aires: la marca editora, 1993, p. 85). Podemos sugerir a troca de teologia por uma mitologia, simplesmente: ainda que de maneira ateológica (ou ateleológica), há alguém que narra, e há algo a falar sobre a Coisa. Quando referido no texto, o termo tenta dar conta de uma tríade que só pode advir unida no que tange o sujeito: não se fala de ser sem corpo, e não se fala de corpo sem narrativa, mitológica por excelência.
[2] BATAILLE, Georges. (1954) La experiencia interior. Trad. F. Savater. Madrid: Taurus Ediciones, 1973, p. 80. Citação completa em espanhol: “El hombre ideal que encarna la razón le es extraño: la animalidad de un dios es esencial a su naturaleza; juntamente sucia (maloliente) y sagrada”.
[3] LACAN, Jacques. (1966-67) O Seminário: Livro 14: A lógica do fantasma. Trad. A. Lyra; C. B. Fleig; D. A. L. Araújo; I. Chaves; I. Corrêa; L. P. Fonsêca; L. A. Tavares; M. L. Q. Santos; M. Fleig. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2008, 15.
[4] Essa é uma leitura, armada sob uma fantasia de paisagem xamânica, da triangulação subjetiva de uma forma de vida, trabalhada por Christian Dunker (2015, p. 282) em Mal-estar, sofrimento e sintoma: “Diagnosticar é reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda de experiência e com a experiência da perda”. Dunker nos lembra que “[…] Lacan tentou condensar as variedades da experiência de perda na noção de objeto a e as variedades da perda de experiência com a noção de sujeito dividido”. Na verdade, ao remontar em nossa fábula, nos dois lados da operação, os personagens paterno (que descerá do trono para ser entendido como a barra da linguagem e uma consequente urgência de organização simbólica) e materno (que será compreendido no fugidio do pequeno outro e sua decorrente fome perpétua), estamos atravessando a história da psicanálise, unindo sua primeira rigidez teatral com uma posterior fluidez das suas respectivas funções, situada historicamente após a crítica de Deleuze e Guattari.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | BRZOZOWSKI, Julian Alexander (2016) Da musculatura paranoide. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 7, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-07/>.