Caso Clínico | Entre o anjo e o diabo, estou Eu

 

 por Ana Galletti Martins de Oliveira

Deve ele submeter-se ou não ao imperativo do supereu, paradoxal e mórbido, semi-inconsciente e que, além do mais, revela-se cada vez mais em sua instância na medida em que a descoberta analítica progride, e que o paciente vê que se enveredou em sua via? Seu verdadeiro dever, se assim posso expressar-me, não é ir contra esse imperativo?

*

Jacques Lacan, 1960[1]

Aqui se busca demonstrar a falsa oposição entre o impulso à embriaguez e a procura pela abstinência no estudo de um caso clínico no qual se evidencia que não apenas a segunda não cura a primeira, como se equipara a ela na defesa do sujeito contra o desejo.

Mariano tem 20 anos. Chegou ao consultório queixando-se de dificuldade para controlar o consumo de álcool, o uso de outros entorpecentes e o gasto de dinheiro. Nas baladas que frequenta, tais excessos só existem juntos. Dependem uns dos outros e do olhar das mulheres ao redor. A possibilidade de consumo sem limites (e apenas isso) o tornaria imaginariamente desejável para uma mulher (ele crê que tal onipotência seja o desejo do Outro). A combinação desses elementos tem poder inebriante sobre Mariano e a ela estou chamando embriaguez.

O problema é anunciado junto com a antecipada solução. Sem que haja o tempo para pensar, Mariano declara já saber o que precisa ser feito. A abstinência é a resposta à pergunta que não pôde ser feita, e não se aplicaria apenas ao consumo em excesso. Uma vida totalmente regrada seria o ideal apaziguador para aquilo que o inebria. Ele intenta se afastar das baladas, não beber, não se apaixonar, ser mais responsável no trabalho, escolher uma profissão segura (do ponto de vista financeiro) e corresponder às supostas expectativas de sua mãe. Espera minha ajuda para isso. Ou seja, a miragem que o prende, tanto ao estar em regra como em êxtase, traz traços de uma onipotência que, podemos supor, fixa Mariano no que seria capaz de causar o desejo do Outro.

Em 1915, ao tratar sobre a transferência erótica, Freud defende a importância de que o analista recuse a solução moralista, não por defender um posicionamento ideologicamente de oposição às regras de conduta, mas por constatar a incompetência do moralismo no tratamento analítico. “Como sabemos, as paixões pouco são afetadas por discursos sublimes”[2]. Se Freud abandona a teoria da sedução em prol da formulação sobre a fantasia, é justamente por reconhecer nesta a participação do sujeito na construção de seu mito individual. As considerações de Freud sobre a participação inconsciente do sujeito naquilo que se torna traumático evidenciam a noção de que a culpa moral do Eu pouco pode diante dos compromissos que se dão de forma inconsciente.

A cilada que Mariano arma para si, sem saber, está no fato de que a saída da embriaguez em nome da moral não se mostra eficaz. “Para onde vai o gozo renunciado em nome de um Ideal?”[3], pergunta Goldenberg. Mariano crê estar de fato renunciando a algum tipo de volição em nome de um ideal. O que se passa de fato é que não há renúncia, mas deslocamento de um fascínio por outro. Rejeitar a solução apressada de Mariano pela abstinência como cura fez-se necessário para que se abrisse para ele a possibilidade de pensar e desejar.

Pensar e desejar caminham juntos, conforme Voltolini destaca na obra freudiana: O pensamento é sempre afetado pelo drama particular do sujeito, e tal afetação seria inerente a qualquer criação, marcando “um ‘estilo’ singular, próprio, irrepetível do trabalho de conhecer e suas vicissitudes”[4]. Na outra face dessa mesma moeda, a ausência de reflexão também se articula nessa relação:

A psicanálise abre a possibilidade de pensarmos a ignorância como algo que pode ter eventualmente uma “função”. Normalmente entendida como “disfunção”, como sinal de que alguma coisa não vai bem, ou ainda, como sinal de uma imaturidade que poderá ser superada, ela aparece aqui como podendo cumprir um papel para os interesses do próprio sujeito e que, como tal, tende a preservar-se para além de qualquer esclarecimento[5].

Portanto, do que se trata a resposta antecipada de Mariano? Não poder se perguntar sobre os problemas que o trazem à análise o protegeria de se deparar com o desejo no mesmo movimento que o impele para onde não se cogita: um código de conduta que pensa por ele ou o transe entorpecente das baladas onde não se pensa.

Tanto na embriaguez como na abstinência estão em jogo idealizações, se seguirmos a lógica freudiana sobre como o ego se liga a ideais, dentro de sua reflexão sobre o narcisismo. A suposição de plenitude está ligada a criações imaginárias dotadas de “toda perfeição e valor”, bem como da satisfação que teria, um dia, sido desfrutada, e da qual “o homem se mostra incapaz de abrir mão”. Tais criações, por sua vez, passam a ditar as regras para a realização egóica. “A formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão”, diz Freud ao tratar sobre o narcisismo.[6] À semelhança desse modelo, Mariano vive embriaguez e abstinência como dois imperativos aos quais presta obediência. Obediência esta que, ainda usando os termos freudianos, se submete a um ideal em nome do qual a consciência atua como vigia. Mas a renúncia às pulsões não se revela verdadeiramente uma virtude, como veremos no episódio trazido por Mariano sobre ser demitido do emprego, e a antimoral também é arbitrária: Mariano não é livre na embriaguez.

O impulso de Mariano à embriaguez pode ser comparado ao que Goldenberg representa como “o chamado do abismo”: “a injunção irresistível do Isso que incita o Eu a violar fronteiras para ir dissolver-se num êxtase que ultrapassa qualquer prazer na medida em que comporta sua perdição”[7]. Ou seja, ir tão longe na busca pelo êxtase envolve transpor o prazer, que fica para trás e se perde. O neurótico obedece ao irresistível do imperativo do fascínio. Em nome do quê?

Mariano se enleva pelo poder pacificador da abstinência e pelo imperativo inebriante da embriaguez. Tanto em um polo quanto no outro, há o engodo de eliminação da distância entre sujeito e o objeto adjetivado com os atributos imaginários de satisfação. É nessa perspectiva que a reflexão de Imbert (2001) conflui com a discussão deste texto: a noção de que tanto quanto a embriaguez, o convite à moralidade fascina, vicia e aprisiona. Topar se deparar com o que não está nem em um extremo, nem no outro, faz-se necessário para que, de fato, outra lógica se instaure (uma tal que possa ser marcada pelo desejo num esquema que, até então, vai da censura ao êxtase, e vice-versa,  sem escalas). Seria aquilo que esse autor nomeia como a “aceitação da perda de uma realeza imaginária”[8], que inclui, necessariamente, a possibilidade de abertura para o desconhecido.

Goldenberg também discorre a respeito do efeito de fascínio exercido pela moral, sob o comando do supereu. “Ao mesmo tempo sede do ideal de eu e agente de vigilância para controlar que o Eu esteja, de fato, à altura de seu ideal, o Super-eu é tido como idêntico à chamada consciência moral”[9]. Compara a reação de fascínio com a consequência de deparar-se com Medusa: o que ocorre então é um resultado de paralisia, um exercício de poder do monstro feminino sobre o fascinado. E completa a analogia assemelhando esse domínio do encantamento com um passarinho prestes a ser devorado. O que está em jogo é a atração inconsciente por uma posição de passividade, sempre acompanhada de uma condenação mortífera, como é possível notar tanto no relato de Mariano sobre estar em regra com as normas sociais (obediência petrificante), quanto nos momentos de entrega à embriaguez (anulação da capacidade de escolha individual e risco de morte).

Ainda convencido da importância de perseguir sua meta, por um tempo Mariano abandona as baladas e dedica-se totalmente ao trabalho e à família. Pouco depois é demitido e não encontra explicação para isso. A abstinência não trouxe reconhecimento e, assim, a tentativa de cura pela moral mostra-se ineficaz, como Freud já teria anunciado.

O acontecimento da demissão abre brechas que viriam a se mostrar importantes no trabalho analítico. Uma delas é a pergunta sobre o que quer fazer da vida profissional; pergunta que só passa a existir na falta do emprego (pois do que se abstém forçosamente aqui é da moral, não do desejo).

Sobre o futuro, Mariano diz de um desejo: nomeia como um sonho o plano de ter mulher e filho. Entre imperativos, abre-se, enfim, a possibilidade para o devaneio; sonhando acordado Mariano cria uma fábula para si. No texto Escritores Criativos e Devaneio, Freud equipara a atividade do escritor criativo à brincadeira, e acrescenta: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real”[10]. De fato, poder sonhar, poder brincar com o futuro, no processo de análise de Mariano, criou a possibilidade de diminuir o compromisso relativo às metas normativas, reais (de acordo com a noção freudiana de “real”).

No mesmo texto, Freud assemelha os conceitos de “devaneio” e de “sonho” quanto à função de realização do desejo presente em ambos, embora de formas diferentes. Historicamente, na psicanálise, o sonho marca duplamente o rompimento com a censura. Ao sonhar, produz-se um furo na repressão egóica. Mas, para além disso, a teorização freudiana sobre os sonhos teve também o importante papel de instaurar uma nova possibilidade de dizer de si que rompe com a lógica da censura. Trata-se de uma decisão de Freud pela ética, porque funda a implicação do sonhador como algo necessário à interpretação do sonho. “Ao analisar seus sonhos, Freud propõe-se a deter o deslocamento e, ao dar a conhecer esta análise, propõe-nos uma nova ética que não seja a da censura”[11]. Dizer de um sonho é poder se colocar como autor numa trama até então evitada como própria.

Os sintomas mesmos não são outra coisa que a expressão censurada de um desejo não reconhecido (o desconhecido inconsciente e recalcado de que Freud fala). A responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos, que Freud nos anima a assumir, nada mais é que a responsabilidade pelo desejo inconsciente.[12]

Poder promover alguma mudança de compromisso em direção a colocar-se como autor de um desejo equivale precisamente ao que Lacan considerou sobre o “não ceder do desejo”, no Seminário 7. “Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo.” Reflexão sustentada logo a seguir quando considera que:

Ele frequentemente cedeu de seu desejo por um bom motivo, e frequentemente o melhor. Isso também não nos deve espantar. (…) Fazer as coisas em nome do bem, e mais ainda em nome do bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar não apenas da culpa, mas de todo tipo de catástrofes interiores. Em particular, isso não nos abriga certamente da neurose e de suas consequências. Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino particular.[13]

Freud funda a noção psicanalítica do conceito de ética quando, ao criar sua teoria sobre a interpretação dos sonhos, o inconsciente passa a ser tratado como escora da própria subjetividade, sem a transferência de seus demônios a outros. Diferente dos muitos métodos de decifração existentes é apenas com a psicanálise que a interpretação de um sonho precisa da implicação do sujeito para que seu conteúdo de desejo oculto venha à tona. Dessa forma, a essência da ética em psicanálise é a postulação de que o inconsciente não anula responsabilidade pelo que se diz ou faz.[14] Se há autoria do sujeito no conteúdo dos sonhos e na formação dos sintomas, ela não se dá apenas no sentido do sujeito ser causador do que está em jogo, mas também porque, a partir dessa posição, é possível criar algo. “A moral seria relativa aos ideais que constituem o Eu, enquanto a ética diria respeito às relações do sujeito com seu desejo inconsciente”[15].

Assim como a escolha de Freud, que se dá pelo caminho mais desafiador (teria sido mais fácil continuar atribuindo os sonhos a divindades), na tragédia de Antígona, igualmente, ceder ao modo de funcionar da censura (as leis da Cidade, erigidas pelo tirano Creonte) também teria sido mais pacato. Mas Antígona faz do desejo seu guia, e Lacan irá explorar no Seminário mencionado exatamente como se articulam implicação ética e abertura para o desejo.

Em torno disso tudo pode ser invocado, e é o que o faz o Coro no quinto ato, ao invocar o deus salvador. Dionísio é esse deus, se não, por que ele viria aqui? Nada menos dionisíaco que Antígona. Mas Antígona leva até o limite a efetivação do que se pode chamar de desejo puro.[16]

Dionísio é o deus grego adorador da embriaguez, dos transes inebriantes e que leva as mulheres à loucura. Se não há nada menos dionisíaco que Antígona, é por não haver nela tais características de se deixar levar pelo êxtase. Mas certamente também não podemos tomá-la como seu antônimo (abstinência). Nunca alienada em um discurso que não seja o próprio, denuncia a moral da Cidade, mas o que propõe não se trata de outra moral substituta, ou de um ideal. Essa posição desejante, de compromisso com a solução da jornada e de recusa ao comando tirânico é a posição que Antígona sustenta. E é precisamente diante da recusa ao comando tirânico da abstinência e da embriaguez, que Mariano recua.

Lacan relata em que termos Lévi-Strauss teria lhe retratado essa tragédia: “Antígona, diante de Creonte, se situa como a sincronia oposta à diacronia”[17]. Uma forma de entender isso poderia ser: Antígona representa dois enunciados simultaneamente – desejo e morte. Creonte figura a mesma palavra através do tempo, sustentando a reiteração do automatismo da lei. A posição dele é a da moral. O compromisso moral se diferencia do pacto ético em psicanálise na medida em que só este último pode levar em conta o desejo. Na relação entre sujeito e desejo as normas não são dadas de saída, como num código de conduta. A sustentação desse pacto pelo sujeito só existe se for possível estar implicado no que o produz.

Para Mariano, trata-se justamente de poder abandonar a moral em nome de um compromisso de fato novo. A chance de sustentação do desejo (do sonho) está na implicação ética. Entre embriaguez e abstinência, o exemplo de Antígona é a terceira margem: nem isso, nem aquilo; é preciso encontrar uma proposição autoral. Justamente, o que se busca como norte de uma análise não é definir-se por um dos lados do conflito sintomático, mas um novo posicionamento inventivo, em aberto.[18]

Com Imbert (2001), refletimos um tanto mais sobre a tendência em relação à norma. Para esse autor, virtudes e vícios se articulam na mera aceitação de regras, na medida em que a recompensa prometida pela moral em troca do esforço pela virtude tem poder inebriante. Tal construção nos permite colocar virtudes e vícios em relação de falsa oposição semelhante à que propomos entre abstinência e embriaguez.

“A moral define as Boas Formas da conduta, enquanto a ética interpela o sujeito exatamente ali onde ele acredita estar em regra”, diz Imbert.[19] E ainda:

Assim, a ética não é uma contramoral, uma imagem invertida da moral, mas o Outro da moral. O mesmo é dizer que compete à ética substituir o face a face entre ‘rivais’ — moralidade/imoralidade —, a rivalidade especular dos ‘contrários’, pela dimensão Outra e verdadeiramente terceira que saiba responder à questão do desejo; além disso, escape aos enclausuramentos mortíferos da moral e, ao mesmo tempo, se inter-diga no jogo das pulsões e da fruição imaginária (narcísica) da paixão.[20]

Não existe relação entre sujeito e objeto que não passe pelo Outro, daí a noção proposta por Imbert da ética entendida como o Outro da moral: ela está como um terceiro termo entre sujeito e moral. E precede a moral, portanto, ao contrário do que costumamos intuir. Está na base de todo código de conduta, ainda que a moral almeje ser generalizante e perpétua. O início de uma implicação ética é que permite a Mariano entrar em contato com o que o enclausura, tanto na norma como no transe, ou tanto no anjo como no diabo, como veremos num exemplo adiante.

Segundo Goldenberg[21], o que a noção de moral em Freud demonstra é a possibilidade fazer do sintoma que nos assombra o alicerce de novos intentos. (Notemos que o termo que destaco, usado pelo autor citado, é válido tanto no sentido do que nos paralisa por medo, como no sentido do que nos encobre, nos põe à sombra) Trata-se de sustentar uma clínica que coloca a ética na direção de tratamento, uma vez que quem sofre de tais sintomas também tem participação de autoria deles.

“Fingir ignorar o Wunsch que nos agita, torna-se, para Freud, a única covardia moral verdadeira”[22]. E ainda, conclui Goldenberg, tal esquiva só se explicaria pela visada à arbitrariedade do Outro, o que seria, portanto, a origem de todo empuxo à busca pela moral.

“Um desejo humano não “quer” nada além de permanecer desejando. Ele seria, nesse sentido, intransitivo”[23]. Se intransitivo, não precisa de outro termo para completar seu sentido. Mariano chega à análise querendo nada além de continuar a ignorar a voz do desejo. E se o desejo é intransitivo, o que Mariano busca na abstinência é que seja transitiva; que seja ela o termo que complete seu sentido.

Existe uma decisão a tomar e o neurótico a evita. Evita-a porque decidir-se implica em renunciar a um dentre os dois termos da alternativa em jogo, e é exatamente isso que o neurótico não quer. Ele não quer perder nada.[24]

Mariano não quer nada que se extinga; ou aponte para a finitude. Nas baladas, nada pode cessar: álcool, entorpecentes, transas; e assim uma noite se transforma em dias a fio. Na abstinência, nada pode arranhar a imagem idealizada, perfeita, e por isso apaziguadora. Com Lacan poderíamos afirmar que o desejo de Mariano se desenha na margem entre esses dois supostos opostos, e pode ser visto desde que entre eles abara-se uma fenda:

Com efeito, é muito simplesmente — e diremos em que sentido — como o desejo do Outro que o desejo do homem ganha forma, porém, antes de mais nada, somente guardando uma opacidade subjetiva, para representar nele a necessidade. (…) O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro, abre sob a forma de possível falha que a necessidade pode aí introduzir, por não haver satisfação universal (o que é chamado de angústia). Margem que, embora sendo linear, deixa transparecer sua vertigem, por mais que seja coberta pelo pisoteio do elefante do capricho do Outro. É esse capricho no entanto, que introduz o fantasma da Onipotência, não do sujeito, mas do Outro.[25]

É exatamente ao se deparar com o que Lacan nomeia aqui como a angústia que surge a vertigem de Mariano quando ele se vê fora de um dos dois polos onde não é preciso (nem possível) pensar e desejar. Vertigem essa que só passa quando ele se encontra novamente no que lhe serviu estabelecer como terra firme: a Onipotência apaziguadora da abstinência e da embriaguez. Topar avir-se com desejo é topar a visada da falta, o impossível da satisfação plena. O “objeto” faltante é que determina o vazio em torno do qual se organiza o desejo.

Ainda com Imbert (2001), podemos relembrar o mito de Narciso e pensar sua relação com a tentativa de Mariano de ajustar-se à norma. “Ao pretendermos adequar-nos à melhor, à maior imagem de nós mesmos, somos conduzidos – como nos é lembrado pelo mito de Narciso — a uma morte definitiva”[26]. No mesmo artigo já citado, Voltolini salienta o peso desse aprisionamento:

Lembremos que para Narciso isso representava uma condenação; era como maldição que ele deveria permanecer ‘para sempre’ (o que indica que o narcisismo não é uma fase) agarrado a si mesmo, sem poder interessar-se por nada que não fosse sua própria imagem.[27]

Se o consumo de entorpecentes e o transe apresentam riscos à vida de Mariano, o mito de Narciso nos faz observar que também a condenação à adequação a uma certa imagem apresenta sua face destrutiva.

No decorrer de uma sessão, Mariano relata o dilema que o acometeu antes de uma balada, dias antes. Diz: é como se houvesse um anjo falando numa orelha e o diabo na outra. Pergunto o que os separa. “No meio, estou eu. E essa é a dúvida: o que responder a eles?” — Mariano diz. A obrigação de responder a ambos faz-nos ver novamente a obediência e a vigília mortíferas impostas pelo convite a ceder do desejo.

Haveria o risco de tomar tal afirmação como a necessidade de um equilíbrio, um meio termo entre abstinência e embriaguez, para que se obtivesse bem-estar (caminho que seria, talvez, o da psicologia). Ou ainda seria fácil dar prosseguimento à afirmação de Mariano como busca por uma espécie de homeostase freudiana. A média ou o equilíbrio entre abstinência e embriaguez é o oposto do que se defende aqui como direção de tratamento, uma vez que, dessa forma, permaneceria a regulação por essas duas polaridades. Ao dizer nem uma coisa nem outra, apontamos que o desejo de Mariano pode modular-se de outro modo, de um modo Outro (um modo terceiro), fora da falsa oposição entre libertinagem e censura. Entre o anjo e o diabo estou eu, no contexto em que me diz, marca a presença de um sujeito que pode, enfim, pensar e desejar, ao invés de simplesmente obedecer, sem cogitar, a alguma dessas vozes, a algum desses convites de caminhos conhecidos, porém, já não tão apaziguadores. 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund (1900) “A interpretação dos sonhos (Primeira parte)”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1976a

______ (1900 e 1901) “A interpretação dos sonhos (Segunda parte) e sobre os sonhos”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. V Rio de Janeiro: Imago, 1976b

______ (1914) “A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos: Sobre o narcisismo: uma introdução”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV Rio de Janeiro: Imago, 1976c

______ (1915) “O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos: Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III)”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII Rio de Janeiro: Imago, 1976d

______ (1908) “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos: Escritores criativos e devaneio”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX Rio de Janeiro: Imago, 1976e

GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma.

IMBERT, Francis (2001) A questão da ética no campo educativo. Tradução de Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes.

LACAN, Jacques (1972) L’étourdit. Disponível em: <http://staferla.free-fr>. Acesso em: 18 de junho 2016.

______ ([1960]1966) “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; pp. 807-42.

______ (1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 2ª ed.. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

VOLTOLINI, Rinaldo (2006) Pensar é desejar. Revista Educação: Especial. São Paulo. Volume único. Número 1. Editora Segmento; pp. 36-45.


* Ana Galletti Martins de Oliveira é psicanalista.



[1] LACAN, Jacques (1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 2ª ed.. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2008; p. 18.

[2] FREUD, Sigmund (1915) “O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos: Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III)”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago. 1976d; p. 213.

[3] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 34.

[4] VOLTOLINI, Rinaldo (2006) Pensar é desejar. Revista Educação: Especial. São Paulo. Volume único. Número 1. Editora Segmento, 2006; p. 38.

[5] VOLTOLINI, Rinaldo (2006) Pensar é desejar. Revista Educação: Especial. São Paulo. Volume único. Número 1. Editora Segmento, 2006; p. 45.

[6] FREUD, Sigmund (1914) “A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos: Sobre o narcisismo: uma introdução”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV Rio de Janeiro: Imago, 1976c; p. 101.

[7]  GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 50.

[8]  IMBERT, Francis (2001) A questão da ética no campo educativo. Trad. G. Teixeira. Petrópolis: Vozes; p. 97.

[9]  GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 38.

[10] FREUD, Sigmund (1908) ““Gradiva” de Jensen e outros trabalhos: Escritores criativos e devaneio”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX Rio de Janeiro: Imago, 1976e; p. 135.

[11] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 98.

[12] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 59.

[13] LACAN, Jacques (1960) O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar. 2ª edição. 2008. p. 373.

[14] “O leitor dessa dissertação pode, enfim, orientar-se por um fio que a percorre por inteiro. A saber, a minha formal oposição ao Freud-explica com que a vulgata psicanalítica entrou no português (para ficar, parece), contrariando a essência de sua ética. Quem se serve do freudispilica, com efeito, exprime sua convicção de que o incosnciente seria de alguma maneira uma desculpa para não assumir as conseqüências pelo que se disse ou fez – sob pretexto de que não seria bem isso o que ele disse (ou fez); e que, no fundo, se disse (ou fez) aquilo, na verdade não queria dizer (ou fazer) o que, de qualquer maneira, já desdisse (ou desfez).” LACAN, Jacques (1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 2ª ed.. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar. 2008; p. 12.

[15] LACAN, Jacques (1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 2ª ed.. Trad. A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar. 2008; p. 11.

[16] LACAN, Jacques ([1960]1966) “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p. 333.

[17] LACAN, Jacques ([1960]1966) “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”. In: Escritos. Trad V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p. 336.

[18] Em L’etourdit, Lacan considera sobre o fim de análise: “Então o luto termina. Isso resulta, para o diálogo interno de cada [sexo] algum inconveniente. Nada poderia ser dito “seriamente” […] para dar sentido ao fim cômico, que não é sublime […] que não faz reverência.” (Lacan, 1972, p. 26, tradução nossa.). Trecho original: “Puis le deuil s’achève. (…)  il en résulte pour le dialogue à l’intérieur de chaque (sexe) quelque inconvénient,  – que rien ne saurait se dire « sérieusement » (…) qu’à prendre sens de l’ordre comique, à quoi pas de sublime (…) qui ne fasse révérence.” LACAN, Jacques (1972) L’étourdit. Disponível em: <http://staferla. free-fr>. Acesso em: 18 de junho 2016.

[19] IMBERT, Francis (2001) A questão da ética no campo educativo. Trad. G. Teixeira. Petrópolis: Vozes; p. 93.

[20] IMBERT, Francis (2001) A questão da ética no campo educativo. Trad. G. Teixeira. Petrópolis: Vozes; p. 72.

[21] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 108.

[22] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 59.

[23] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 85.

[24] GOLDENBERG, Ricardo (1994) Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma; p. 100.

[25] LACAN, Jacques ([1960]1966) “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p. 828.

[26] IMBERT, Francis (2001) A questão da ética no campo educativo. Trad. G. Teixeira. Petrópolis: Vozes; p. 96.

[27] VOLTOLINI, Rinaldo (2006) Pensar é desejar. Revista Educação: Especial. São Paulo. Volume único. Número 1. Editora Segmento; p. 40.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | OLIVEIRA, Ana Galletti Martins de (2017) Entre o anjo e o diabo, estou Eu. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 10, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-10/>