[ De l’angoisse à la méthode dans les sciences du comportement ]
por Georges Devereux
Tradução e Apresentação | Gabriel Inticher Binkowski
Apresentação | Georges Devereux – da etnopsiquiatria à psicanálise como artifício paradigmático das ciências humanas e sociais.
Pouco conhecido no Brasil, Georges Devereux (1908-1985) é uma figura bastante citada em meios psicanalíticos europeus (especialmente na França e na Itália) e entre antropólogos. Judeu nascido no Império Austro-Húngaro em uma região que logo seria incorporada à Romênia, György Dobó (seu nome de nascimento), teve sua vida marcada por uma constante renúncia à identidade, como ele mesmo escreveria em um ensaio. De judeu a católico, de físico a etnólogo e por fim psicanalista, Devereux se transformou no grande nome pioneiro da etnopsiquiatria, esta disciplina de pesquisa que, manuseando métodos e saberes da antropologia e da psicanálise, investiga o fundo cultural tanto do sofrimento psíquico como da própria constituição de sintomas e da relevância deles dentro de um certo espaço de vida social e cultural. Com efeito, um dos grandes insights de Devereux, ainda antropólogo e estudando a tribo dos Mohave, nos Estados Unidos, foi de entender que aquilo que chamamos modernamente de transtornos mentais é uma possibilidade, culturalmente codificada, de saída pulsional ali onde um conflito se instala entre sujeito e sociedade. Esses caminhos pulsionais são assim incorporados às próprias práticas sociais, tendo a figura do xamã um dos maiores impactos em sociedades ditas tradicionais: um tanto à margem dos grupos sociais, o xamã é alguém que teria vivido uma doença iniciática, renascendo após uma morte (simbólica e ritual, mas as vezes também “real”) e sendo capaz de intervir nas fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
Recentemente, a principal “experiência etnopsiquiátrica” de Devereux foi levada com êxito aos cinemas no filme Terapia Intensiva de 2013, dirigido por Arnaud Desplechin, baseado no livro Reality and Dream de 1951, onde acompanhamos um tratamento analítico de um indígena Blackfoot (vivido pelo hollywoodiano Benicio del Toro) que parecia refratário tanto às terapêuticas que lhe eram aplicadas num hospital psiquiátrico como às tentativas de diagnosticar daquilo que ele sofria depois de um estranho traumatismo sofrido durante seu período como combatente na Segunda Guerra Mundial. No entanto, a fama de Devereux vem aumentado nos últimos anos, especialmente na Europa, devido à ampliação da importância universitária, política e social dos dispositivos de atendimentos a populações imigrantes. Com sucessores bastante populares como Tobie Nathan e Marie Rose Moro, o primeiro defendendo as práticas etnopsiquiátricas, já a segunda falando mais diretamente em etnopsicanálise e em clínica transcultural, tem-se visto que o espectro da cultura (filiação, tradições, espiritualidades, sincretismos, desdobramentos pós-coloniais, etc.) vem se tornando cada vez mais relevante tanto no cuidado de populações migrantes (e em intervenções humanitárias) como participando da própria pesquisa no âmbito da psicologia clínica, social e da psicanálise.
Contudo, o próprio Devereux via com reservas dispositivos clínicos psicanalíticos que não seguissem certa ortodoxia da técnica psicanalítica. Ele preferia ater-se às possibilidades de manipulação da cultura num setting analítico. Em diferentes textos, opera a seguinte divisão: numa psicoterapia intracultural, paciente e analista pertenceriam ao mesmo espaço cultural; já numa terapêutica intercultural eles não seriam pertencentes ao mesmo universo de cultural, porém, o terapeuta teria conhecimentos sobre a cultura e/ou a língua do paciente, podendo manipular esses elementos a fim de produzir suas intervenções; por fim, e era nessa possibilidade que Devereux parecia mais interessado, ele falava de uma psicoterapia metacultural (que aparece citada em alguns contextos como transcultural): nela, o terapeuta desconheceria a cultura do paciente, mesmo assim, ele seria capaz de manipular a noção de Cultura (com C maiúsculo, como gostava de enfatizar), pois reconhece que as variações sociais e culturais humanas se submetem a certo universalismo dos processos psíquicos – sendo o psicanalista capaz de lidar e de teorizar com estes.
Devereux teve um longo percurso de pesquisa e de atuação. Trabalhou por muitos anos nos Estados Unidos e na França, tendo obtido um cargo de professor permanente apenas na parte final de sua vida. Se por um lado tal instabilidade parecia sinalizar certa vulnerabilidade da condição de um judeu do leste europeu, por outra sua instabilidade parecia colar perfeitamente com alguém que parecia refratário a processos de institucionalização e que sugeria em seus escritos estar sempre mudando de perspectiva, adicionando novos métodos e saberes, como quando, já em seus últimos anos, se dedica com afinco ao helenismo.
Se o Devereux das pesquisas sobre etnopsiquiatria e etnopsicanálise já é bastante reconhecido em diversos círculos, é o Devereux epistemólogo das ciências humanas e sociais que privilegiamos com a tradução escolhida para este volume da Revista Lacuna. A obra Da angústia ao método nas ciências do comportamento, publicada originalmente em 1967, tensiona a pretensa oposição entre subjetividade e objetividade enquanto marcadores conceituais e metodológicos das ciências ditas humanas e das ciências ditas exatas. Nos extratos de três partes do livro que escolhemos, vemos um Devereux contar sobre esse estranho arquivo que ele mantinha desde os seus anos iniciais como etnólogo, em que anotava suas impressões e experiências em cadernos de pesquisa (hoje gostamos de dizer diários de campo). Analisando suas escolhas teóricas, epistemológicas e conceituais, o que lhe parecia claro era que suas decisões teóricas e metodológicas seguiam uma certa trilha inconsciente que se nutria de seus mecanismos de defesa, evitações, inibições, etc. Ora, a hipótese que Devereux foi acalentando, com mais de trinta anos de estudos em antropologia e em psiquiatria e psicanálise, foi que toda inclinação excessivamente objetificante por parte de pesquisadores seria uma reação a certos elementos ansiogênicos experimentados pelo pesquisador/terapeuta, sendo que muito dessa angústia seria advinda de um mal-estar provocado pela diferença cultural. Como nossos sintomas se fazem a partir de possibilidades pulsionais culturais, nossas decisões enquanto pesquisadores seguem a mesma trama.
Atualmente, nos dedicamos a um projeto de versar alguns dos principais ensaios de Georges Devereux para o português brasileiro. Imaginamos que um dos primeiros impactos poderá se dar, efetivamente, entre grupos que se dediquem a trabalho clínicos e de atenção psicossocial com imigrantes. Todavia, nos parece que a própria obra de Devereux impõe desafios que vão muito além desse segmento de aplicação, pois seus trabalhos remetem à própria epistemologia e à ética para todo o campo das ciências humanas e sociais. Assim, no caso dos trabalhos relativos à etnopsiquiatria e à etnopsicanálise e clínica transcultural, muitos dos ensaios de Devereux são textos bastante completos, discutindo elementos-chave da psicanálise, da psiquiatria e psicopatologia, contudo, quando adentramos seus escritos sobre a prática do pesquisador, deparamo-nos com algo que tenderíamos aqui a chamar de um grande tornado epistemológico.
Enquanto pesquisadores, a leitura de Devereux nos leva a um incômodo absurdo: somos obrigados a colocar em suspensão nossos métodos, conceitos e nossa própria lógica, afinal, em cada aplicação ou associação de série lógica, um pesquisador (seja psicanalista, antropólogo, linguista, enfim, todo aquele que lida com fenômenos humanos ou com risco de antropomorfização, como a etologia) parte de sua angústia em compreender, esquematizar e distinguir não somente o mundo a seu redor, seus pacientes, grupos investigados, etc., mas como cada pesquisador experimenta sua angústia de conhecer e de desconhecer suas próprias condições narcísicas ao reconhecer um fenômeno. Diante disso, o que Devereux nos sentencia, ao longo da obra Da angústia ao método nas ciências do comportamento, é que só haverá investigação séria se elevarmos essa angústia fundamental do pesquisador como o fio de Ariane de todo cenário investigativo. Caso contrário, continuaremos subjugados pela angústia, que nos levará infortunadamente a criar novos aparatos de pesquisa, métodos de análise, dispositivos de coleta de dados, estratégias de revisão bibliográfica.
Por isso, ao chamar à psicanálise a responsabilidade de teorizar sobre a relação entre a subjetividade do pesquisador, sua vida psíquica e a angústia para com o campo pesquisado, o que Devereux acaba por propôr é que a psicanálise tem o dever, no sentido ético, de operar enquanto um artifício paradigmático central para as ciências humanas e sociais. Nos extratos da obra que escolhemos para tradução, a angústia vai surgindo como operador que serve tanto para avançar quanto como um especilho que nos entrincheira junto de nossos escotomas, preconceitos, limitações culturais, filiações teóricas e mesmo nos próprios fósseis lógicos que habitam e perturbam o coração das disciplinas com as quais trabalhamos. Portanto, nessa obra, Devereux acaba por sinalizar um outro lugar para a psicanálise, lugar forçosamente privilegiado dentro da epistèmê, mas um lócus de grande responsabilidade onde a ética do pesquisador anda ao lado de sua capacidade de se decompôr.
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Da angústia ao método nas ciências do comportamento[1]
por Georges Devereux
Introdução
Todo pesquisador escrupuloso possui entre suas anotações e papéis um dossiê onde vai se acumulando, ao longo dos anos, o melhor de suas pesquisas exploratórias. Seja por reservá-las ou não, de maneira mais ou menos consciente, para uma obra que ele espera escrever algum dia, suas notas constituem essencialmente um esforço para que ele mesmo se dê conta do sentido e da validade de suas atividades de pesquisador, independentemente do ponto aonde suas pesquisas podem conduzi-lo. É de um dossiê assim que esta obra nasceu.
O problema no centro do debate que pretendo instaurar me preocupou, de uma maneira ou de outra, durante a maior parte da minha vida. Algumas das questões que coloco, e mesmo algumas das respostas que proponho, retornam a pontos ainda mais distantes de minha vida, muito mais do que eu gostaria de admitir. A natureza do meu trabalho me conduziu a abordar alguns aspectos que ocupavam um lugar mais marginal em relação aos problemas centrais tratados em meus escritos teóricos. Eu até já tentara, por vezes, esboçar algumas partes desta obra, mas terminava sempre renunciando, ao julgar que nem o momento, nem o lugar eram propícios para fazê-lo[2]. Isso também pode ser uma forma de dizer que eu mesmo não estava pronto para alguns de meus próprios insights.
Eu me sentia avançando rumo a um território inexplorado: não havia nenhum modelo para uma obra deste porte. Desde o início, eu sabia o que queria dizer, porém, ainda não havia encontrado a melhor forma de fazê-lo. Até o último momento eu achava que iria escrever uma investigação puramente teórica sobre a epistemologia das ciências do comportamento[3], sem fazer uso de ilustrações concretas. Logo me dei conta de que isso não era possível. Entretanto, a própria existência deste projeto prova, se isso é mesmo necessário, que não se trata aqui de uma obra polêmica. Eu não nomeio quase nunca aqueles cuja atividade científica me parece indefensável, as únicas exceções sendo aqueles que atacam, de todos os modos, pontos de vista que eles não tentaram compreender. Todos os outros pesquisadores citados são pessoas cujo trabalho eu respeito de forma incondicional, onde suas atividades me parecem contestáveis apenas por algum de seus aspectos. Além do mais, algumas das críticas que poderiam parecer hostis segundo as normas tradicionais, o que, aliás, eu rejeito, são muito mais favoráveis seguindo as novas normas [para pesquisa] que eu defendo nessa obra.
Por isso, o único analista do comportamento que eu critico de forma sistemática sou eu mesmo. Em cerca de quarenta passagens, analiso meus próprios escotomas, angústias, inibições, etc. Trata-se de um expediente normal uma vez que é sobre ele próprio que o analista do comportamento deve dirigir seu olhar crítico (insight).
Sou bastante consciente que passei mais de trinta anos a trilhar um caminho repleto dos pedregulhos de meus próprios preconceitos, de minhas angústias e de meus escotomas, com o intuito de chegar às verdades, se é que se pode usar dessa expressão, contidas nesta obra. Eu seria então inocente em subestimar as dificuldades que certamente enfrentarão aqueles que lerão essa obra em poucos dias. Desejo apenas que eles partilhem do encorajamento que encontrei num desafio que Sócrates fez a Eutífron: “Vamos lá, Eutífron, faça um esforço! O que eu te digo não é tão difícil assim de entender”. A leitura dessa obra será proveitosa para aqueles que, ao abordar uma passagem aparentemente difícil, examinarão a si próprios para descobrir o que faz obstáculo em sua tentativa de compreender algo – é dessa forma que eu me examinei sem cessar enquanto escrevia sobre o que fazia obstáculo em mim.
Quando chegou a hora de encarar a aventura intelectual consignada para essa obra, tive de escolher entre fechar meu dossiê ou enfim escrevê-la da melhor forma que eu poderia, nas circunstâncias que me seriam possíveis. Qualquer uma das escolhas seria uma solução final – que como em todo fim – leva a outro começo.
As circunstâncias favoráveis foram reunidas quando, graças aos esforços dos professores Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss – aos quais minha dívida é muito maior do que eu poderia enunciar -, obtive uma cátedra numa Escola [trata-se da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris] onde apenas os únicos não conformistas são aqueles que não têm qualquer audácia intelectual e aonde o fogo do professor Marcel Mauss havia me ensinado a diferenciar, no estudo do homem, entre o que é ciência e aquilo que não passa de um mero aparato dessa mesma ciência.
Nessas condições escrever esta obra não mais me pareceu uma tarefa tão difícil de ser realizada. Ademais, quando a Escola me convidou para escrevê-la para sua coleção de obras teóricas, meus pensamentos se voltaram inevitavelmente para o que eu havia considerado até ali o meu dossiê de “causas perdidas”. Eu fui ainda encorajado pela ideia de que meu manuscrito poderia se beneficiar das críticas que meus colegas poderiam lançar quando da leitura de um primeiro esboço.
Em seguida, trabalhando, descobri que dar vida nova a notas envelhecidas, com mais de trinta anos, era uma tarefa tão fastidiosa que apagava até a última faísca o sentimento de uma necessidade em chamas que eu sentia quando me dava conta da necessidade de retomar tais ideias que habitavam essas folhas amareladas. Se minha obra retém alguma coisa dessas primeiras chamas de descoberta, é graças a Jane W. Devereux, que se encarregou do esmagador fardo de organizar minhas notas. Ela aplicou seu julgamento certeiro, seu gosto, sua fineza etnológica a sucessivos esboços, revendo as referências de uma grande parte do material, compilando a bibliografia e datilografando uma parte do manuscrito. Tais apontamentos não fazem toda justiça com ela, que é, nesse sentido, coautora desta obra.
O Argumento
O ponto de partida de meu texto é uma das proposições mais fundamentais de Freud, modificada sob a luz da concepção de Einstein sobre a fonte dos dados científicos. Freud estabeleceu que a transferência é o dado mais fundamental da psicanálise, considerada como método de investigação. À luz da ideia de Einstein segundo a qual nós podemos apenas observar eventos “ocorridos junto ao/do” observador – tudo o que podemos conhecer ocorre próximo ao e no aparelho de experimentação científica, cujo elemento mais importante é o próprio observador -, levei adiante algo cujo caminho fora apontado por Freud. Afirmo então que é a contratransferência, mais do que a transferência, o que constitui o dado mais crucial de toda ciência do comportamento, visto que a informação fornecida pela transferência pode ser em geral igualmente obtida por outros meios, enquanto que não é o caso daquela que se chega através da contratransferência[4]. Tal especificidade se mantém, mesmo que transferência e contratransferência sejam fenômenos ligados e igualmente fundamentais; porém, a análise da contratransferência é cientificamente mais produtiva em dados sobre a natureza humana.
O estudo científico do homem
1) é entravado pela angústia provocada pelo “cavalgamento”[5] do sujeito de estudo e do observador;
2) esse cavalgamento exige a análise do lugar e da natureza da partição entre os dois;
3) tal análise deve compensar a parcialidade da comunicação entre o sujeito e o observador num nível consciente, mas
4) não deve ceder à tentação de compensar a plenitude dessa comunicação num nível inconsciente,
5) a qual [a comunicação num nível inconsciente] desperta a angústia e, logo, as reações de contratransferência
6) que deformam tanto a percepção como a interpretação dos dados e
7) produzem resistências de contratransferência, as quais por sua vez se tornam numa metodologia e provocam novas deformações sui generis;
8) Pois a existência do observador, sua atividade de observação e suas angústias (mesmo na auto-observação) produzem deformações que são técnicas e logicamente impossíveis de se eliminar;
9) toda metodologia eficaz em ciência do comportamento deve tratar essas perturbações como sendo os dados mais significativos e característicos da pesquisa nessa ciência;
10) Ela deve explorar a subjetividade inerente a toda observação, considerando-a como a via real para uma objetividade autêntica, e não fictícia;
11) Essa objetividade deve ser definida em função do que é realmente possível, não daquilo que “deveria ser feito”;
12) Negligenciadas ou pareadas de maneira defensiva pelas resistências de contratransferência, maquiadas como metodologia, essas “perturbações” se tornam a fonte de erros descontrolados e incontroláveis, mesmo que,
13) quando tomadas enquanto dados fundamentais e característicos das ciências do comportamento, elas são mais válidas e mais capazes de produzir tomadas de consciência (insight) que qualquer outro tipo de dado;
Finalmente, os achados nas ciências do comportamento suscitam uma angústia contra a qual nós nos defendemos pela via de uma pseudometodologia inspirada pela contratransferência; essa manobra é a responsável de quase todos os problemas das ciências do comportamento.
É por conta disso que, há bastante tempo, o grande matemático Lagrange declarou que a Natureza não mostrava qualquer tipo de preocupação em relação às dificuldades que ela impunha ao pesquisador, cujo dever é de buscar a simplicidade, claro, mas também de desconfiar dela. Isso significa que o melhor – e mesmo o único – modo de atingir uma simplicidade em conformidade com os fatos é atacar frontalmente as coisas mais complicadas, utilizando-se para isso de um expediente extremamente prático que consiste em tratar a dificuldade encontrada como um dado em si, um dado fundamental do qual não devemos nos afastar, mas explorá-lo ao máximo – não para explicá-la [a dificuldade][6], mas para buscar nela uma explicação para os dados aparentemente mais simples.
Os primeiros capítulos desse livro insistem na angústia suscitada pelos dados nas ciências do comportamento; esses podem dar a falsa impressão que a objetividade é a priori impossível na pesquisa desse domínio, e que nós deveríamos então, com o intuito de reduzir as deformações subjetivas, interpôr entre nós mesmos e nossos temas de pesquisa telas de filtragem cada vez mais numerosos e complexos – sejam eles testes, técnicas de enquete, aparatos e outros artifícios heurísticos. Isso poderia até nos levar a pensar que o melhor “observador” seria uma máquina, sendo que o observador humano deveria almejar um tipo de invisibilidade que – caso isso fosse possível – acabaria por eliminar o observador da situação de observação.
Tal ponto de vista negligencia implicitamente que esses filtros, ao “corrigir” as deformações provocadas pela subjetividade, produzem deformações que lhes são próprias – e que permanecem eclipsadas. É uma teimosia ignorar que, já numa perspectiva aristotélica, o observador invisível deve em algum momento sentenciar: “E então é isso que eu percebo” – sem se preocupar em saber se o que ele percebe é da ordem do comportamento, ou algo que não passa de um eletroencefalograma ou de um resultado numérico. Ademais, esse observador ainda deve dizer em algum outro momento: “Isso quer dizer que…”. Em termos técnicos, isso se chama uma “decisão” e é um fato fundamental que a “teoria dos jogos” não pode dar uma decisão; ela apenas pode determinar as consequências e avaliar suas probabilidades. A decisão – que na ciência consiste em dizer: “Isso quer dizer que…” – é assim tomada pelo pesquisador em função de sua própria subjetividade e como resposta às angústias em que ele mergulha quando não se utiliza de nenhum filtro. Eu não sustento aqui a supressão dos filtros, o que eu pretendo é combater a ilusão segundo a qual os filtros abolem toda subjetividade e neutralizam completamente a angústia. Não é nem uma coisa nem outra: o que os filtros operam é um ligeiro deslocamento do lugar de partição [clivagem/fenda] entre o sujeito estudado e o observador, diferindo o momento exato onde intervém o elemento subjetivo (que é a decisão que cliva o sujeito estudado e o observador). Pois uma coisa é escolher o lugar de partição e o “momento da verdade” – o momento onde um fato se transforma em verdade otimizada -, e outra bem diferente é pretender que com isso se abole toda angústia e toda subjetividade. Além disso, o ponto e o momento de partição são eleitos de maneira adequada, devendo-se ainda levar em conta as deformações produzidas pelos filtros, as manipulações e outros meios que tornam possível esse arranjo otimizado.
Não se elabora ciência certeira ao desprezar os dados mais fundamentais e os mais característicos que constituem, de forma bastante específica, as dificuldades distintivas. O especialista do comportamento não pode desconhecer a interação do sujeito e do observador na expectativa de afastar tal questão o suficiente para que ela termine por desaparecer completamente.
A recusa em aproveitar essas dificuldades de maneira criativa não leva a nada mais do que a recolher dados cada vez menos pertinentes, cada vez mais segmentários, marginais e mesmo insignificantes, os quais não esclarecem nada desse organismo vivo que é o homem, disso que é humano. O pesquisador deve, portanto, cessar de dar valor exclusivamente à manipulação que ele opera sobre o sujeito, devendo procurar ao mesmo tempo, e talvez mais do que tudo, compreender a si mesmo enquanto um operador do dispositivo que opera. Nesse sentido, cada experiência praticada sobre um rato é também uma experiência praticada sobre o observador, cujas angústias e seus pontos de indecisão, tanto quanto a estratégia de pesquisa, a percepção dos dados e a decisão (interpretação dos dados) podem jogar mais luz sobre a natureza do comportamento, no geral, que a própria observação dos ratos – ou mesmo a de outros seres humanos.
Isso implica que as dificuldades tradicionais das ciências do comportamento não se devem apenas a uma determinação não judiciosa do lugar e da natureza da divisão entre dados “reais” e aqueles “produzidos” ou acessórios à estratégia de pesquisa. Isso quer dizer que uma experiência com ratos, uma enquete etnográfica ou um tratamento psicanalítico contribuem mais à compreensão do comportamento quando são considerados como fonte de informação, respectivamente, sobre o psicólogo experimental, o etnólogo ou o psicanalista, do que quando são tomados apenas enquanto fonte de informação sobre ratos, primitivos ou pacientes. Numa ciência do comportamento autêntica, os primeiros dados [aqueles que vêm do observador] são os fundamentais, os outros se constituindo apenas como epifenômenos… Eles são estritamente subprodutos que merecem também ser explorados.
O que nos dá acesso à essência da situação de observação não é o estudo do sujeito, mas do observador. Os dados oriundos das ciências do comportamento são, assim, de três tipos:
1) O comportamento do sujeito.
2) As “perturbações” induzidas pela existência do observador e por suas atividades no enquadre da observação.
3) O comportamento do observador: suas angústias, suas estratégias de defesa, de pesquisa, suas “decisões” (= atribuição de um sentido a suas observações).
Infelizmente, é sobre o terceiro tipo de comportamento que nós temos a menor quantidade de informações, pois nós temos recusado sistematicamente o estudo da realidade em seus próprios termos. A maior parte dos dados que citarei são provenientes de meus esforços para compreender o meu próprio comportamento, tanto o de etnólogo quanto o de psicanalista clínico, complementados por observações oriundas de leituras atentas de Lévi-Strauss[7], de Balandier[8] e de Condominas[9], que são, até onde sei, as únicas grandes tentativas para avaliar qual é, sobre o pesquisador, o impacto de seus dados e de sua atividade científica. Com efeito, mesmo com toda a importância da obra objetiva de Lévi-Strauss, pode-se afirmar que o lugar de Tristes Trópicos será ainda maior para o futuro das ciências do comportamento… em parte porque é um livro que nos permite um acesso privilegiado tanto aos dados ditos objetivos quanto às descobertas do próprio autor.
Como me pareceu indelicado analisar profundamente essas três obras autobiográficas, que são extremamente francas, fui obrigado a citar na maioria das vezes minhas próprias observações, completadas por inúmeros breves exemplos dados por outros pesquisadores, os quais não acharam ser necessário fazer um exame de si próprios na relação com suas pesquisas. Isso não é uma perda para a ciência, visto que a análise de uma grande quantidade de fatos relativamente superficiais – os quais ilustram a extensão de um fenômeno – entrega exatamente as mesmas percepções que a análise profunda de um fenômeno único[10]. Extensão é profundidade, trazida a uma posição horizontal a partir de uma rotação de 90º; profundidade é a extensão, quando girada 90º numa posição vertical. A equivalência das duas se enraíza numa hipótese ergódica[11]. Tomadas separadamente, cada uma de minhas observações é uma anedota; tomadas em conjunto, elas formam uma análise da extensão – e, portanto, também uma análise em profundidade – das reações de um pesquisador face a seus dados e à sua “prática científica”.
Os últimos capítulos dessa obra mostram a maneira transformar em pontes aquelas situações que são geralmente consideradas barreiras [da investigação científica].
As ciências do comportamento se tornarão simples quando elas começarem a tratar as reações pessoais do pesquisador para com seu material e sua obra, fazendo destes dados [as reações pessoais ] os elementos mais fundamentais de toda ciência do comportamento. Antes de chegar nisso, nós não teremos nada além de uma ilusão de simplicidade.
Ordinariamente, julgamos que livros sobre seres humanos são ou muito sóbrios ou demasiado sensíveis[12]. Meu livro não é nem um, nem o outro, mas também é os dois ao mesmo tempo, no sentido de que ele se esforça em ser objetivo no que tange à sensibilidade, algo que não se pode evitar para se fazer uma ciência do comportamento realista.
Toda obra sobre o Homem importa ao homem e, logo, esse deve ser definido sem rodeios. Creio que o Homem não precisa ser salvo dele mesmo; basta que deixemos sê-lo ele mesmo. O mundo precisa mais de homens do que de “humanistas”. A Grécia do século V era simplesmente humana, tendo se tornado “humanista” em reação aos horrores da guerra do Peloponeso. Ésquilo, combatente em Maratona[13] e autor de Eumênides, não foi um humanista. Sócrates, figura de transição, era muito mais homem do que humanista. Platão foi por sua vez um humanista, pois, ao nome da humanidade, tentou salvar a humanidade dela mesma. Toda filosofia da opressão está enraizada na de Platão[14], cuja filantropia[15] era preconceituosa por tratar o homem como objeto de contemplação e manipulação. Nesse sentido, a análise do comportamento que se diz “sóbria” é uma filantropia preconceituosa – um simulacro de “humanista”. Uma ciência do comportamento autêntica existirá quando aqueles que a praticam se derem conta de que uma ciência realista da humanidade só poderá ser criada por homens muito conscientes de sua própria humanidade, precisamente ao se expor totalmente em seu trabalho científico.
A contratransferência nas ciências do comportamento
Definição de transferência: Num enquadre de referência puramente cognitivo, uma reação de transferência corresponde mais ou menos a uma transferência de aprendizagem, tal como se entende na teoria da aprendizagem. O analisando, tendo desenvolvido reações características em relação de uma pessoa efetivamente importante para ele, tende – muitas vezes sob a forma de uma compulsão à repetição – a reagir em relação ao analista como se ele fosse essa pessoa, provocando por vezes deformações grosseiras da realidade.
Observação 31: Uma mulher em análise me enxergava com os traços de um homem muito grande, com gestos lentos, fumando um cachimbo e vestido com um grosso tweed. Apenas o tweed correspondia à realidade nesse quadro composto a partir da imagem de uma pessoa afetivamente importante para ela. Nesse momento [do tratamento], ela reatualizava sua relação com esse homem, e era por isso que ela precisava me identificar com ele, “me tomando como cobaia” tanto de suas reações do passado em relação àquela pessoa quanto daquelas que ela projetava para o futuro.
Trata-se de uma característica distintiva da transferência – como do supereu – de se manifestar mais fortemente em situações de “estresse”, quando as pressões externas ou conflitos internos trazem à tona um material inconsciente mal digerido[16]. Mesmo que as reações de transferência se produzam igualmente na vida quotidiana – sob a forma, por exemplo, de simpatias e de aversões imediatas inexplicáveis –, elas têm ordinariamente apenas um papel menor e raramente deformam [em demasia] a realidade (com o objetivo de racionalizar ou de justificar condutas de transferência objetivamente inapropriadas, mas subjetivamente necessárias) de modo tão radical como o faz uma verdadeira conduta de transferência em situação analítica.
Definição da contratransferência: A contratransferência é a soma total das deformações que afetam a percepção e as reações do analista em relação a seu paciente; essas deformações consistem naquilo que o analista responde a seu paciente como se esse constituísse uma imago primitiva, e se comportasse na situação analítica em função de suas próprias necessidades, vontades e fantasmas inconscientes – frequentemente infantis.
Terminologia: A transferência e a contratransferência têm fontes e estruturas idênticas. É estritamente uma convenção chamar de “transferência” as reações do informador ou do analisante, “contratransferência” aquelas do etnólogo ou do analista. Da mesma forma, trata-se de uma pura convenção e de um acidente histórico chamar de “contra-edipianas” as reações dos pais a uma criança, apesar de, sem dúvida, ser psicologicamente mais legítimo falar em reações contra-Laïos ou contra-Jocasta as reações de uma criança a seus pais[17][18].
Linha de conduta: Apesar do legítimo orgulho que sentem psicanalistas sobre a sua aptidão à auto-observação, historicamente as reações de transferência dos analisandos foram descobertas antes das reações de contratransferência do analista; ainda, estatisticamente, a literatura psicanalítica menciona com mais frequência a transferência do que a contratransferência. Além do mais, enquanto em estudos sobre a transferência o analista descreve as reações de seus próprios pacientes, os estudos consagrados à contratransferência são geralmente de natureza teórica ou discutem os erros ocorridos devido à contratransferência em candidatos a analista. Esses fatos sugerem que os psicanalistas – que supostamente deveriam estudar suas próprias emoções – são de algum modo um pouco reticentes no estudo das reações de contratransferência. A mesma coisa vale igualmente para todos os outros especialistas do comportamento. Eu não nomeio aqui aqueles colegas dos quais eu descrevo as reações contratransferenciais; das minhas, ao contrário, falo abertamente, esperando que alguns de meus colegas percebam que não é nada depreciativo fazê-lo, mas, ao contrário, que é realmente útil reconhecer seus próprios limites humanos, publicando suas auto-observações para exploração mais ampla deste importante aspecto, que é imperdoavelmente negligenciado no trabalho científico.
Objetivo: A segunda parte desta obra propõe discutir as fontes das deformações na observação, a consignação e a interpretação dos dados oriundos da estrutura e das manifestações da personalidade do pesquisador, tanto no campo de pesquisa quanto em suas tentativas de analisar seus próprios dados e de outros. A personalidade do pesquisador interessa à ciência na medida em que ela explica a deformação do material, imputável na falta, intrapsiquicamente determinada, de objetividade. Ela constitui uma fonte de erro sistemático, exatamente como as limitações e as falhas inerentes ao aparelho do físico são fonte de “erros sistemáticos”.
Escopo: Há cerca de trinta anos, Sapir[19] revolucionou a antropologia ao lançar uma brilhante luz sobre o escopo científico de uma frase já célebre de Dorsey: “Two Crows Denies It” (Two Crows nega isso)[20]. Talvez pela primeira vez na história da antropologia, reconheceu-se de forma explícita não apenas as divergências de opinião dos informadores, mas também o escopo antropológico da existência dessas divergências, assim como a necessidade de fornecer para isso [as divergências] uma explicação teórica. Ao menos nesse sentido, a segunda parte desse livro prolonga a revolução antropológica de Sapir: nisso se reconhece, por um lado, não apenas as diferenças entre os dados de Omaha e sua interpretação por Fortune[21], e, por outro, por Fletcher e La Flesche[22], mas também ainda tentamos compreender as causas dessas divergências e sua significação teórica.
Enfim, proponho não apenas o reconhecimento da existência e da significação científica das divergências nos relatórios de dois especialistas do comportamento [quanto a uma mesma observação, à observação de um mesmo fenômeno ou grupo social], o que também devemos atentar é que essas divergências aparecem em correlação com as personalidades dos dois especialistas, nas complexidades estruturais e funcionais de seus respectivos backgrounds culturais e também do grupo que eles estudam.
Prolegômenos teóricos: A percepção de uma situação é influenciada de forma radical pela personalidade do sujeito que a percebe. Frequentemente, o sujeito da experiência muda a realidade, seja por subtração, por adição ou por alguma alteração da realidade da experiência em função de suas próprias disposições pessoais, de suas necessidades, conflitos – que são em grande parte inconscientes[23]. Pötzl[24] provou, aliás, que os detalhes de uma imagem apresentada taquistoscopicamente a um sujeito, não percebidos num nível consciente, são inconscientemente percebidos e aparecem nos sonhos da noite seguinte. Muitas das “subtrações” aparentes são assim bastante relativas, já que o material aparentemente não percebido ressurge involuntariamente em outro contexto. Tal material está por vezes presente nos relatórios etnológicos, porém, não é utilizado na caracterização do conjunto de um modelo cultural. Malinowski[25], discutindo a negação por parte dos Trobiandeses do papel do coito na fecundação, não mencionou o mito, sobre o qual ele mesmo já tinha falado, da água caindo gota a gota na vagina de uma mulher sendo fecundada.
O relatório de um etnólogo sobre uma tribo, e a interpretação que ele dá para a cultura dessa mesma tribo, é assim comparável a um teste projetivo: a cultura estudada constitui a prancha de TAT ou de Rorschach, e o relato do etnólogo constitui o equivalente das respostas do sujeito testado.
Deformação e angústia: Os estudos de testes projetivos, da percepção como função da personalidade, da aprendizagem em estado de angústia, assim como o exame dos fenômenos de transferência e de contratransferência, indicam que a deformação é particularmente forte quando o material observado é ansiogênico. Diante desse gênero de material, o pesquisador procura se proteger contra a angústia pela omissão, colocando-o na surdina e como não-explorável ou mal-entendido, ou mesmo por meio de descrição ambígua, superexploração, remodelando parte desse material.
Atrapalharíamos o desenrolar da argumentação citando aqui dados que atestam que o material das ciências do comportamento pode ser ansiogênico, mesmo quando se trata de uma simples leitura ou ao assistir a um filme, e que essa angústia suscita reações de defesa características, determinadas pelas estruturas da personalidade do pesquisador. Esses dados podem ser encontrados em outros capítulos desta obra.
O caráter ansiogênico dos dados etnológicos pode ser considerado tanto do ponto de vista teórico como em função do impacto específico que eles exercem sobre cada etnólogo.
Causas da angústia no trabalho em ciência do comportamento
- As culturas tratam de forma diferente o mesmo material psíquico. Uma pode encorajar seu recalque, enquanto outra pode explorá-lo abertamente e até mesmo excessivamente, outra ainda talvez o aceite como alternativa autorizada para todos ou para certos grupos privilegiados ou muito desfavorecidos[26], etc. É dessa forma que o estudo aprofundado das culturas estrangeiras permite ao antropólogo observar, a céu aberto, muitos dos fenômenos que ele mesmo recalca: a experiência é tanto de angústia como de “sedução”[27]. Podemos até pensar sobre os problemas de um etnólogo que, obrigado a sustentar seus pais com seus módicos recursos, escolhe estudar uma tribo na qual a piedade filial obriga a matar pais idosos.
- O “narcisismo das pequenas diferenças”[28] força-nos a interpretar as crenças e práticas às quais não se é familiar como críticas a nossas práticas e crenças, e faz com que reajamos negativamente àquilo com que nos deparamos e nos é estranho.
- As angústias surgem tão logo o etnólogo ache atraente o estilo de vida de uma tribo cujas condutas são tabus em sua própria sociedade. Essas angústias podem ser consideradas como sentimentos de culpabilidade social.
Num plano mais subjetivo, a angústia é suscitada por um material que:
a) ameaça a vulnerabilidade fundamental de todo ser humano (perigo de morte, ou de mutilação, ameaça de castração, etc.) (observações 35 e 39)[29];
b) traz revivescências de angústias idiossincráticas relacionadas a experiências passadas (observação 34);
c) ameaça de minar as defesas ou sublimações principais (observações 36 e 37)[30];
d) torna os problemas atuais mais agudos, etc.
Observação 32: Durante sua primeira expedição, um estudante diplomado descobriu que ele não seria mais nomeado professor-assistente ao retornar, isso em razão da morte de seu antigo orientador e da subsequente troca de chefia no departamento. Isso o levou a se decidir por uma investigação minuciosa dos problemas de órfãos e de outras pessoas “abandonadas” da tribo que ele estudava.
Observação 33: Não é um acaso que o relatório mais detalhado sobre crianças adotadas, naturais e órfãos de uma sociedade primitiva tenha sido escrito por um padre católico, o pai (father/père) Maier[31][32][33].
- As angústias também podem decorrer de quando se experimenta uma “hiper-comunicação” perturbadora entre inconsciente do observador e do observado. É até mesmo possível que essa hiper-comunicação seja ressentida como o equivalente de uma “sedução”, provocando por isso inúmeras resistências. Certos psicanalistas, por exemplo, incompletamente analisados, tendem a se tornar extremamente organicistas; outros, menos incompletamente analisados, se engajam numa psicanálise “neurologizante”, o que, claro, não devemos confundir com um interesse legítimo pelos componentes orgânicos de certas neuroses; outros, ainda, fazem representações, de modo mais realista do que metafórico, dos processos dinâmicos como se esses fossem processos físicos[34].
- Noutros casos, a angústia vem à tona em razão do caráter fragmentário da comunicação consciente. Observa-se que costumamos nos sentir mal quando começamos a estudar uma tribo jamais estudada, cujos costumes e línguas são ignorados. Já retomei inúmeras vezes as dificuldades que vivi antes de entender a língua e os costumes dos Sedang. Uma defesa característica desse tipo de angústia aparece em certos helenistas, que opinam com muita firmeza que só se deve analisar a cultura grega em termos de conceitos gregos[35][36]. Mesmo sendo válido, esse princípio ignora que há controvérsias consideráveis sobre o sentido exato de certos conceitos (ou palavras) gregos[37]. A defesa aqui consiste em crer sinceramente que se compreende muito, o que não é uma realidade.
- Por vezes, a defesa contra uma “hiper-comunicação” num plano inconsciente é combinada com uma defesa contra uma “hipo-comunicação” (hipo-compreensão) num plano consciente. A consequência mais característica desse dilema: uma fixação ansiosa aos fatos “concretos” e a recusa total de qualquer outra interpretação de fatos além daquela considerada a mais “evidente”, ou seja, daquela estimada como “válida” para um certo pesquisador que, justamente, não é capaz de tolerar alguma outra interpretação em particular como não-científica e extravagante (e que são, na verdade, “psicologicamente” intoleráveis para ele)[38].
As angústias suscitadas pelo material das ciências do comportamento são pertinentes para a ciência na medida em que elas provocam reações de defesa que seguem um modelo e uma hierarquia designada pela personalidade do pesquisador, o que determina em última instância a maneira pela qual ele deforma seu material. Assim, proponho, ao demonstrar no próximo capítulo o caráter ansiogênico de tal material, proceder a um exame minucioso das reações de defesa do especialista do comportamento, o que explica as deformações que afetam sua consignação (inscrição) teórica e a exploração científica.
Outras observações citadas[39]
Observação 35: Um etnólogo filmou impassivelmente africanos fazendo sangrar um vitelo vivo e bebendo seu sangue fresco, contudo, foi invadido pela angústia ao ver uma dessas pessoas comer sangue coagulado. Como não tenho informações pessoais sobre esse etnólogo, não sei quais traços particulares de sua personalidade explicam que ele era capaz de suportar ver sangue fresco ser bebido, ao passo que teve um mal-estar ao ver sangue coagulado sendo comido. Entretanto, posso fornecer certas explicações dessa reação diferencial, em termos da cultura à qual pertence o pesquisador.
- A prática que consiste em beber sangue de bovídeos vivos em certas regiões da África é muito conhecida; esse etnólogo estava, assim, preparado intelectualmente para ser testemunha de um tal ato, suas defesas intrapsíquicas já estavam em estado de alerta para testemunhar a realização daquele tipo de espetáculo. Contudo, a maior parte das publicações não menciona (talvez apenas de passagem) a ingestão de sangue coagulado. É por isso que nosso etnólogo não estava “armado” (de defesas) para a cena que acabou por levantar tamanha angústia.
- O etnólogo não pertencia a uma cultura onde o sangue coagulado é uma “comida”. Para mim, ao contrário, imagino que por conta do meu amor por animais, eu estaria angustiado no momento do sangramento, mas não teria qualquer problema em ver homens comendo sangue coagulado logo depois: como todos os húngaros, passei a infância comendo sangue coagulado e frito de porcos frescamente abatidos. Trata-se de um tipo de diferença de vulnerabilidades culturalmente determinadas, o que tem uma certa importância para compreender as reações do etnólogo frente às cenas observadas.
Observação 36: Os Sedang Moï tem uma prática de sacrificar cães e porcos a golpes de bastão (baqueteamento) com tanta indiferença que o animal tem uma morte bastante lenta. Observar isso me fazia tão infeliz que criei o hábito de oferecer uma recompensa ao sacrificador ritual que conseguisse matar o animal em um minuto – o que é perfeitamente possível com um o uso de um bastão suficientemente grosso. Além disso, também dominei minha angústia escolhendo, dentre inúmeros temas de pesquisa, o da função dos cães na cultura Sedang[40].
Observação 37: Um psicanalista, bastante conhecedor dos conhecimentos da etnologia, coletou dados sobre o suicídio em sociedades primitivas. Ele me confiou não conseguir trabalhar sobre esse tema mais do que três ou quatro dias seguidos sem ter sonhos com mordidas ansiogênicas. Seria apenas uma coincidência esse homem possuir grandes dentes, bastante visíveis, que ele mostrava ao sorrir de forma “ameaçadora”?
Se os dados etnológicos suscitam angústia no psiquiatra, dados psiquiátricos angustiam o etnólogo. É inútil tentar provar que [dados e temas da vida psíquica], também provocam [angústia] no psiquiatra e no psicanalista: isso é um fato, por isso a importância de uma análise didática.
Observação 39: Consiste na descrição e análise das reações de grupo, tanto de etnólogos como de psicanalistas, e das reações individuais de psicanalistas e de psiquiatras aos ritos de circuncisão e de subincisão (subcisão) dos australianos, filmados por Norman Tinsdale[41] há mais de quarenta e cinco anos. Minhas observações foram feitas em duas ocasiões distintas:
- nos anos trinta, quando o filme foi mostrado a um grupo de jovens etnólogos;
- durante a guerra da Coreia, quando o exibimos aos trabalhadores médicos e paramédicos de um grande estabelecimento que eu visitava naquele momento;
No dia seguinte dessa última sessão, vários analistas homens, confirmados ou candidatos, e uma jovem psiquiatra me confiaram relatos detalhados de sonhos e/ou de reações psicossomáticas provocados após a visualização do angustiante filme. Para a comodidade da exposição, propus inicialmente discutir as reações manifestas dos dois grupos. ♦
REFERÊNCIAS
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* Georges Devereux é psicanalista e antropólogo franco-americano de origem húngara, nascido em Lugoj, em 13 de setembro de 1908, morreu em Paris em 28 de maio de 1985. Ele é um dos fundadores da etnopsicanálise .
** Gabriel Inticher Binkowski é Psicanalista, Doutor em Psicologia e Mestre em Clínica Transcultural pela Université Paris 13 Sorbonne Paris Cité. Atualmente é Pesquisador Pós-Doutorando no Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política do PPG de Psicologia Clínica – Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador Associado à Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie. Membro do comitê de redação da Revista L’autre – Cliniques, Cultures et Sociétés.
[1] Obra original de 1967, publicada em edição modificada e definitiva na França inicialmente em 1980. Tradução da edição francesa publicada em 2012 pela editora Flammarion, coleção Champs Essais.
[2] Podemos aqui tecer como hipótese a falta de estabilidade profissional, geográfica e mesmo pessoal de Georges Devereux. (N.do T.)
[3] Note-se que, ao longo de toda obra de Devereux, há grandes flutuações de termos com os quais ele se refere às disciplinas que trabalha, todas bastante volúveis ao longo do século 20, como etnologia, antropologia, etnopsiquiatria, etnopsicanálise, psiquiatria transcultural. A escolha por “ciências do comportamento” tinha por objetivo indicar uma certa constância epistemológica que hoje está em desuso. Assim, o melhor sinônimo que poderíamos utilizar para explicar o sentido de “ciências do comportamento” para Devereux é algo como “ciências psicológicas”, o que abrange desde o domínio da psicanálise até a psicopatologia psiquiátrica e mesmo as formas mais atuais de comportamentalismo. O objeto de Devereux na presente obra é trazer à luz o efeito transferencial existente entre o pesquisador e seu campo de pesquisa, seja seus métodos, objetos e toda o manancial teórico com o qual ele se confronta. Preferimos, porém, respeitar a expressão elegida por Devereux, “ciências do comportamento”, para indicar também o contexto epistemologicamente tão instável com o qual ele se depara ao longo de toda carreira. (N. do T.)
[4] Numa perspicaz resenha de meu livro sobre a Psicoterapia de um índio dos planaltos (1951), Caudill (1951) sublinha que eu tinha descrito, mas não analisado, minhas reações de contratransferência. Essa omissão foi deliberada: eu ainda não havia escrito o texto definitivo do presente livro. Cf. Caudill, W. (1951). “Compte rendu de Devereux 1951a”, American Anthropologist, n.s. 53: 565-567.
[5] Trata-se de um movimento de placas tectônicas onde a menos densa se sobrepõem a outra mais pesada ou consistente.
[6] As palavras e frases em colchetes foram adicionados pelo tradutor com intuito de auxiliar a leitura. (Nota da Edição)
[7] Lévi-Strauss, C. (1955). Tristes tropiques. Paris.
[8] Balandier, G. (1957). Afrique ambiguë. Paris.
[9] Condominas, G. (1965). L’Exotique au quotidien. Paris.
[10] Devereux, G. (1955). A Study of Abortion in Primitive Societies. New York.
[11] A hipótese ergódica postula que podemos obter os mesmos resultados jogando ao ar simultaneamente um número infinito de moedas ou também jogando repetidamente uma única moeda, infinitas vezes.
[12] Nas primeiras versões da obra, em inglês, Devereux havia escolhido as expressões tough-minded e tender-minded, o que ele julgou intraduzível ao preparar a versão em francês. Nessa, ele escolheu, respectivamente, sobres e sensibles. Atente-se que a palavra sensible, em francês, é também denotativo o mundo dos sentidos, do sensorial. (N. do T.)
[13] Cidade grega, próxima a Atenas, palco de batalha de atenienses e plateienses contras os persas (N. do T.)
[14] Popper, K.R. (1962). The Open Society and its Enemies I: The Spell of Plato. 4e éd. London.
[15] Utilizo “filantropia” no sentido moderno do termo, e não daquele utilizado por Aristóteles em sua Poética.
[16] Devereux, G. (1956). Therapeutic Education. New York.
[17] Devereux, G. (1960). “Retaliatory Homosexual Triumph over the Father”, International Journal of Psycho-Analysis 41: 157-161.
[18] Devereux, G. (1953). “Why Oedipus Killed Laius”, International Journal of Psychoanalysis 34: 132-141.
[19] Sapir, E. (1949). The Selected Writings of. Berkeley..
[20] Two Crouws Denies It. A History of Controversy in Omaha Society (1984) é uma obra de R.H. Barnes que analisa a produção bibliográfica da antropologia sobre o sistema de filiação e parentesco dos Omahas. A obra gerou polêmica por mostrar a dissonância entre o construto intelectual produzido em torno dos Omahas (por teóricos como Lévi-Strauss, Dorsey e Fletcher) daquilo que era percebido pelos membros de sua população a propósito dos elementos estruturais de sua sociedade. O sistema de filiação e parentesco dos Omaha ganhou importância dentro da antropologia por demonstrar um tipo bastante paradigmático de descendência do tipo patrilinear. (N. do T.)
[21] Fortune, R.F. (1932b). “Omaha Secret Societies”, Columbia University Contributions to Anthropology 14, New York.
[22] Fletcher, A.C. & La Flesche, F. (1905-1906). “The Omaha Tribe”, Bureau of American Ethnology, Annual Report 27, Whashington D.C.
[23] Blake, R.R. & Ramsey, G.V. (1951). Perception: An Approach to Personality. New York.
[24] Pötzl, O. (1917). “Experimentell erregte Traumbilder in ihrer Beziehung zum indirekten Sehen”, Zeitschrift für die gesamte Neurologie und Psychiatrie 37: 278-349.
[25] Malinowski, B. (1932). The Sexual Life of Savages in North Western Melanesia. London.
[26] Cf. a demonstração feita por Dollard (1937) em que os brancos do Sul dos Estados Unidos encorajam nos negros um comportamento infantil, ilegal e repreensível. Pode-se comparar igualmente a indiferença da polícia diante de crimes cometidos por negros contra negros. Para um apanhado de fenômenos análogos na sociedade espartana, ver Devereux, 1965.
[27] O caráter “sedutor” [preferiríamos, em vez de sedutor, “fascinante”] do comportamento psicótico é conhecido de todos aqueles que trabalham com “loucos” e mesmo daqueles que experimentam algum episódio de psicose. Um homem brilhante, completamente “curado” de um episódio psicótico, tinha a capacidade de compreender o sentido real daquilo que diziam os psicóticos, contudo, ele afirmava não poder se permitir compreendê-los, de medo de uma recaída na psicose. Isso representa uma defesa contra a hiper-comunicação num nível inconsciente.
[28] Freud, S. (1955). Group Psychology and the Analisys of the Ego. Standart Edition 18, London.
[29] Ver na próxima seção da presente tradução. (N. do T.)
[30] Idem.
[31] Meier, J. (1929). “Adopting among the Gunantuna”, Publications of the Catholic Anthropological Conference vol. 1, n. 1: 1-98.
[32] Meier, J. (1938). “Illegitimate Birth Among the Gunantuna”, Publications of the Catholic Anthropological Conference vol. 2, n. 1: 1-61.
[33] Meier, J. (1939). “The Orphan Child Among the Gunantuna”, Publications of the Catholic Anthropological Conference vol. 2, n. 1: 63-128.
[34] Scheflen, A.E. (1958). “An Analysis of Though Models which Persist in Psychiatry”, Psychosomatic Medicine 20: 235-241.
[35] Wilamowitz-Moellendorff, U. von. (1955). Der Glaube der Hellenen. 2 vol. Basel.
[36] Wilamowitz-Moellendorff, U. von. (1959). Euripides: Herakles. 3 vol. Bad Homburg.
[37] O mesmo vale para a exegese dos textos gregos, tanto do ponto de vista da gramática quanto da sintaxe. Um helenista poderia declarar que compreendeu de tal modo uma frase grega, enquanto outro afirmaria que tal compreensão é corrompida.
[38] Nós mesmo rejeitamos muitas vezes nossas próprias intuições. Uma vez, ao dar uma aula, eu disse: “Eu tive que me violentar para ver que os fatos são…”. A turma desandou a rir: o diagrama que eu tinha desenhado no quadro, no mesmo momento em que eu fazia minha confissão, representava os fatos tais como eu tinha desejado.
[39] Trecho presente no Capítulo VI Reações de angústia aos dados das ciências do comportamento, e que escolhemos apresentar aqui como complemento do extrato escolhido para tradução. (N. do T.)
[40] A “defesa como meio da atividade científica”, tendo um caráter sublimatório, é tema de outro capítulo da obra.
[41] Antropólogo que filmou a cultura aborígene entre 1926 e 1937. (N. do T.)
COMO CITAR ESTE ARTIGO | DEVEREUX, Georges (1967) Da angústia ao método nas ciências do comportamento [Trad. G. I. Binkowski.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -6, p. 7, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2028/11/21/n06-07/>.