Conferência de Liubliana

[Conférence de Ljubljiana]

por Alain Badiou

Tradução | José Mauro Garboza Junior

Em Lógicas dos mundos[1] indico que, quando um indivíduo participa de um processo de verdade, isso é sinalizado por um afeto. Para cada tipo de verdade, há um afeto diferente. Escolhi falar de entusiasmo para a política, de alegriapara o conhecimento científico, de prazerpara a arte e de felicidade para o amor. É verdade que não descrevi realmente esses afetos. Não entrei em uma fenomenologia de seu valor individual. Provavelmente vou remediar isso se chegar a escrever o terceiro volume da série cujo título geral é o ser e o evento: A imanência das verdades. Esse livro trará o conjunto daquilo que se passa para um indivíduo determinado quando ele se incorpora a um procedimento de verdade, quando é tomado pela Ideia. Terei de abordar novos pontos, em particular aquele da distinção desses afetos: a felicidade não é o prazer, o prazer não é a alegria, e o entusiasmo difere dos outros três.

Mas qual é a necessidade geral de um terceiro livro, depois de O ser e o evento e Lógicas dos mundos?

Coloquemos primeiro as coisas em perspectiva. Podemos fazê-lo de maneira muito simples. O ser e o evento pode ser considerado como a primeira parte de uma construção em três tempos. A ele concerne principalmente a questão do ser. O que é o ser, o ser enquanto ser, como o diz Aristóteles? Quais são as formas e os meios de conhecê-lo? Minha proposição ontológica é que o ser enquanto ser é multiplicidade pura, isto é, multiplicidade não composta de átomos. O ser é evidentemente composto de elementos, mas esses elementos são multiplicidades que são elas mesmas compostas de multiplicidades. Desse modo, chegamos a um point d’arrêt, que definitivamente não é o Um – o Um seria necessariamente um átomo –, mas o vazio. Eis, portanto, minha proposição sobre o ser. Quanto ao conhecimento do ser, minha proposição é de identificar a ontologia – o discurso sobre o ser – à matemática. Além disso, O ser e o evento desenvolve em contraponto uma teoria das verdades, que é uma teoria formal das verdades: as verdades são, como todas as coisas, multiplicidades; trata-se de saber de qual tipo. Então, por sua vez, o livro trata de uma teoria do ser e de uma teoria das verdades, ambas em uma teoria do múltiplo puro.

A segunda parte dessa construção, Lógicas dos mundos, ocupa-se da questão do aparecer. Trata-se de uma teoria daquilo que, do ser, aparece em mundos determinados e forma relações entre os objetos desses mundos. Proponho dizer que essa parte da construção do conjunto é uma lógica. Trata-se de uma lógica na medida em que ela não carrega mais a composição daquilo que é, mas sim as relações que se tecem entre todas as coisas que aparecem localmente nos mundos. Depois, então, de uma teoria do ser, uma teoria do ser-aí– para empregar um vocabulário próximo daquele de Hegel –, quer dizer, do ser tal que é colocado e disposto nas relações de um mundo singular.

Em Lógicas dos mundos, a questão da verdade é evidentemente retomada. O ser e o evento tratava do ser das verdades enquanto multiplicidades especiais, que, depois do matemático Paul Cohen, chamei de multiplicidades genéricas. Com Lógicas dos mundos, entramos na questão dos corpos reais, da lógica de suas relações, e em particular na questão do aparecer das verdades. Se tudo aquilo que aparece em um mundo é um corpo, é preciso abordar a questão do corpo de uma verdade. Esse segundo tomo tem, pois, por finalidade em grande parte uma teoria dos corpos, que possa também ser uma teoria do corpo das verdades. Enquanto o primeiro tomo tem por finalidade uma teoria das verdades como multiplicidades genéricas.

O projeto do terceiro tomo será examinar as coisas do ponto de vista das verdades. O primeiro tomo pergunta: O que são as verdades em relação ao ser? O segundo: O que são as verdades em relação ao aparecer? E o terceiro perguntará: O que é o ser e o aparecer do ponto de vista das verdades? Assim terei dado uma volta em torno da questão.

Uma verdade, do ponto de vista humano, do ponto de vista antropológico, compõe-se de incorporações individuais nos conjuntos mais vastos. Por isso, gostaria de saber como se apresentam, como se dispõem o mundo e os indivíduos do mundo, quando os examinamos no interior do processo das verdades em si. É uma questão que inverte de todo modo a perspectiva dos dois primeiros volumes. Perguntávamos quais eram as verdades do ponto de vista do ser e do ponto de vista do mundo, agora perguntamos o que é o ser e o mundo do ponto de vista das verdades.

Naturalmente encontramos esboços dessa proposta nas duas obras anteriores. O ser e o evento, em particular, contém uma teoria bastante complicada do retorno das verdades ao mundo na figura do saber. A tese é que chamaremos saber, novo saber, criação de um saber, a maneira em que uma verdade esclarece de forma diferente a situação ontológica. É como em Platão: chegamos à Ideia saindo da caverna das aparências, mas é preciso descer novamente na caverna para esclarecer aquilo que existe a partir da Ideia. E para fazê-lo é preciso correr um certo número de riscos. Com efeito, é no momento de retorno à caverna que o risco é maior, no momento em que você se pronuncia, do ponto de vista daquilo que você estima ser as verdades, sobre o mundo tal como aparece, e então sobre as ideologias dominantes. Essa questão do retorno, eu já a tratei em O ser e o evento sob o nome de teoria do forçamento: forçamos uma transformação do saber a partir da verdade. É uma teoria bastante complexa, como já é, a bem dizer, a teoria do retorno à caverna em Platão. Platão, no fim das contas, não disse grande coisa, exceto que o retorno é muito arriscado, muito difícil, incerto. Platão nos diz que esse retorno deve ser forçado, caso contrário, permaneceríamos no calmo domínio da contemplação das verdades. Nisto, o termo forçamento, utilizado no ser e no evento naquilo que concerne à relação de uma verdade aos saberes está plenamente em seu lugar. Não é um procedimento natural, espontâneo.

Quanto a Lógicas dos mundos, o livro não comporta uma teoria do forçamento, mas uma teoria das relações íntimas entre a singularidade do mundo e a universalidade de uma verdade, através do fenômeno das condições concretas, aparecentes, empíricas da construção do corpo das verdades. Sustento que a verdade é um corpo. Como tal, ela é feita com aquilo que há, isto é, com outros corpos individuais, e é a isso que se chama uma incorporação. Essa incorporação nos esclarece sobre a maneira pela qual uma verdade procede em um mundo e sobre sua relação com os materiais desse mundo mesmo, a saber, os corpos e a linguagem. Vocês sabem que, em Lógicas dos mundos, eu parto da fórmula: “Em um mundo, só há corpos e linguagens, exceto que há verdades.” Procedo a um primeiro exame materialista desse “exceto que”: as verdades são também corpos e linguagens, corpos subjetiváveis. Para esclarecer a relação das verdades aos corpos e às linguagens, utilizo uma noção que é o equivalente do forçamento em O ser e o evento, ou seja, o conceito de compatibilidade. Um corpo de verdades é composto de elementos compatíveis, em um sentido por sua vez técnico e elementar: eles se deixam dominar por um mesmo elemento.

No fundo, uma verdade é sempre uma multiplicidade unificada, dominada ou organizada por alguma coisa que torna compatível aquilo que não o era necessariamente. Para dar um exemplo muito simples, uma boa parte da concepção daquilo que era um partido revolucionário consistia em criar uma teoria em que intelectuais e trabalhadores fossem compatíveis e onde a política tornasse compatíveis diferenças de classe que normalmente não o eram. A teoria de Gramsci do intelectual orgânico, e outras teorias vizinhas, são desse tipo. Elas não tratam simplesmente de diferenças de classe enquanto conflito, elas criam também compatibilidades entre classes que não existiam, por exemplo, de uma teoria das alianças de classe. Na estética, temos uma situação da mesma ordem. Uma obra de arte – considerada como sujeito – cria compatibilidades entre coisas que eram consideradas como não compatíveis, absolutamente separadas. Uma pintura cria algo entre cores que não pareciam destinadas a andar juntas, entre formas que eram díspares. Ela integra formas e cores em compatibilidades de tipo superior.

Em resumo, o conceito de forçamento, no nível ontológico, e o conceito de compatibilidade, no nível fenomenológico, tratam já da relação entre a verdade e a situação à qual a verdade procede. O terceiro volume, se realmente terei a coragem de escrever, sistematizará tudo isso. Ele se instalará de alguma forma nos diferentes tipos de verdade para se perguntar: O que se passa quando todo um mundo é abordado do ponto de vista da verdade? O que se passa ontologicamente quando adotamos o ponto de vista de multiplicidades genéricas sobre as multiplicidades ordinais, seja quais forem, que compõem ontologicamente uma situação?

E, nesse contexto, tratarei dos afetos singulares que assinalam, no nível individual, o processo de incorporação. O que é a felicidade amorosa? O que é o prazer estético? O que é o entusiasmo político? O que é a alegria – ou a beatitude – científica? Em A imanência das verdades, tudo isso será sistematicamente estudado.

A construção desse livro porvir será em suma bastante simples. Prevejo um grande desenvolvimento inaugural, mais técnico e mais preciso, do problema que venho apresentar-lhes rapidamente: o problema da relação entre os indivíduos incorporados a uma verdade e as multiplicidades ordinárias, pensadas em seu ser como em seu aparecer mundano. Prevejo em seguida uma segunda parte que liberará as leis gerais, os dispositivos formais, que organizam as relações no mundo a partir do ponto de vista das verdades. Teremos assim uma teoria geral da incorporação individual e dos afetos que a assinalam. Perguntaremos: O que é a revelação (l’éclaircie) do mundo do ponto de vista das verdades? O que é um obstáculo? Uma vitória? Um fracasso? Uma criação? Uma terceira parte retomará as coisas, procedimento de verdade por procedimento de verdade, propondo uma teoria sistemática da arte, da ciência, do amor e da política. Uma tal teoria, mesmo se ela é esboçada em vários momentos de minha obra, não está presente em parte alguma. Eis o plano, ideal, na sua atual ausência, de A imanência das verdades

Gostaria de insistir sobre o fato de que na segunda parte pretendo compor uma teoria daquilo que há de comum entre os quatro procedimentos de verdade e de sua unidade virtualmente possível. Essa parte comportará, com efeito, a retomada de uma teoria das verdades, mas dessa vez do ponto de vista das verdades por elas mesmas. Tratar-se-á de se perguntar aquilo que as identifica nelas mesmas e não aquilo que as diferencia do ser anônimo ou dos objetos do mundo. Mas se tratará também de continuar minha interrogação sobre a filosofia. Vocês sabem que, no Manifesto pela filosofia, eu a defini como aquilo que cria um lugar de compossibilidade, um lugar de coexistência, para as quatro condições. Resta examinar se a filosofia não depende de uma figura de vida que integre esses procedimentos. É uma questão que me coloco com bastante frequência e tenho a intenção de atacá-la de frente.

De certo modo, tudo se resume a se perguntar: O que é uma vida completa? Não falo somente de uma verdadeira vida. Essa última questão, eu a abordo no final de Lógicas dos mundos. O que é a verdadeira vida, que Rimbaud diz que ela é ausência, mas na qual sustento que ela pode estar presente? É viver sob o signo da Ideia, quer dizer, viver sob o signo da incorporação efetiva. A outra questão é vizinha, mas diferente: Há uma Ideia das ideias, isto é, uma Ideia da vida completa? Retornamos assim à ambição da sabedoria antiga. Retornamos a essa aspiração inicial de uma vida, não somente marcada pela Ideia e pela verdade, mas pela ideia de uma vida completa, uma vida na qual foi experimentada em matéria de verdade tudo aquilo que possa o ser. Essa interrogação irá até supor que pode existir um sujeito filosófico? O que se mantém, por assim dizer, no meio das quatro condições, é que circulam conceitualmente da arte à ciência passando pela política e o amor, é a filosofia ela mesma e não um sujeito filosófico, cuja existência é duvidosa. A questão do sujeito vai, no entanto, assombrar este terceiro tomo. Sempre me defendi contra a tese de que a filosofia fosse um procedimento de verdade como os outros. Ela não pode ser como os outros, pois depende da existência deles, enquanto que nem a arte, nem a ciência, nem o amor, nem a política dependem da existência da filosofia. Portanto, é evidente que a filosofia está defasada em relação aos quatro tipos de procedimentos de verdade. No entanto, a questão de saber se podemos indicar o lugar de um sujeito filosófico está aberta. Se há um sujeito filosófico, do que se trata? O que é ter acesso à filosofia? O que é o ser na filosofia? Certamente não há incorporação filosófica, no sentido em que a encontramos no militante político, no artista, no cientista ou no amante. E, no entanto, acessamos bem, na filosofia, um pensamento consistente, e não qualquer coisa. A questão permanece aberta: Se assumirmos a existência de um sujeito de filosofia, qual seria o seu lugar? É ele, como algumas de minhas metáforas sugerem, um centro ausente? É claro que a filosofia propõe uma doutrina geral do que é um sujeito de verdade. Mas como entramos nessa proposição filosófica, à medida que nos a alimentamos? De que nova maneira ela permite retornar aos procedimentos de verdade? Como, finalmente, ela pode abrir o caminho para a vida verdadeira ou para a vida completa? Estas são as perguntas que colocarei. É claro que minhas abordagens dessas questões sempre foram um tanto hesitantes. Estou diante de um problema não resolvido. Não é porque minha filosofia é sistemática que pretende ter resolvido todos os problemas!

É preciso dizer que até agora tenho tendido a abordar certos problemas negativamente, rejeitando-os em vez de propô-los. Assim, rejeitei a tese sofista segundo a qual a filosofia é somente uma unificação geral das coisas apenas porque é uma retórica geral. A virada linguística do século XX resultou fundamentalmente em um tipo de doutrina que assimila a filosofia à retórica geral. Isso pode ir até a tese de Barbara Cassin: não há ontologia, mas unicamente uma logologia. É a linguagem que corta e constitui tudo o que propomos como forma do ser. O século XX conheceu uma tendência, ao mesmo tempo acadêmica, crítica, antidogmática, que é centrada progressivamente sobre a potência criadora da linguagem. Derrida faz parte integralmente dessa tendência. Para mim, isso faz da filosofia uma retórica geral, retórica sutil, moderna, tudo o que queremos. Mas, já disse isso muitas vezes, não estou nesse registro. Eu me inscrevo da discussão entre Platão e os sofistas. Como o Crátiloo estabelece, nós, os filósofos, partimos das coisas e não das palavras.

Então, negativamente, já tomei uma série de posições sobre o acesso à filosofia. Sobre o modo mais afirmativo, designei o que chamei de operações filosóficas: falei pois não de eventos mas de operações. Duas dentre elas me pareceram impossíveis de contestar. Em primeiro lugar, as operações de identificação: a filosofia localiza verdades, em particular as verdades do seu tempo, através da construção de um conceito renovado daquilo que é uma verdade. Segunda operação: através da categoria de verdade, a filosofia torna compossíveis os diferentes e heterogêneos registros de verdade. Trata-se de uma função de discernimento e de uma função de unificação. A filosofia sempre foi tomada entre essas duas operações. O discernimento leva a uma concepção crítica, distinção do que é verdadeiro e não verdadeiro; a unificação leva aos diferentes usos da categoria de totalidade e de sistema.

Mantenho essas duas funções clássicas da filosofia. Sempre afirmei que eu era um clássico. Mostro que a filosofia elabora, na contemporaneidade com suas condições, categorias de verdade que a permitem discernir essas condições, de isolá-las, de mostrar que elas não são redutíveis ao longo do mundo ordinário. Por outro lado, ela tenta pensar de alguma forma um conceito de contemporâneo, mostrando como as condições compõem uma época, uma dinâmica do pensamento, na qual cada todo sujeito se inscreve.

Tudo isso já realizei. Mas é preciso ir mais longe e se perguntar qual é a relação da filosofia com a vida. É uma questão primordial. Se não podemos dizer para que a filosofia serve do ponto de vista da vida verdadeira, ela não é mais que uma disciplina acadêmica suplementar. O terceiro volume também tentará criar a possibilidade de uma abordagem frontal dessa questão. Tratar-se-á de retomar a questão platônica da relação entre a filosofia e a felicidade.

Em suma, é preciso passar de uma doutrina negativa da singularidade universal das verdades a uma doutrina imanente e afirmativa. Fico impressionado comigo mesmo com o fato de que até o momento não tratei das verdades e, consequentemente, do sujeito – o sujeito é o protocolo de orientação de uma verdade, verdade e sujeito estão absolutamente ligados – a não ser de uma maneira diferencial. Eu me perguntei qual tipo de multiplicidade é uma verdade. O que a diferencia de uma multiplicidade qualquer? Essa foi a proposta fundamental de O ser e o evento. Já naquela época estava na exceção. Se uma verdade é uma exceção às leis do mundo, devemos ser capazes de explicar no que consiste essa exceção. Se estamos no domínio da ontologia, da teoria do ser, da teoria matemática do ser, devemos ser capazes de explicar matematicamente qual é o tipo de multiplicidade que singulariza as verdades. Apoiando-me sobre a teoria dos conjuntos e os teoremas de Cohen, mostro que essa multiplicidade é genérica. Em outros termos, é uma multiplicidade que não se deixa ser pensada através dos saberes disponíveis. Nenhum predicado do saber disponível permite identificá-la. É para isso que serve a técnica de Cohen: para mostrar que pode existir uma multiplicidade indiscernível, que não se deixa discernir pelos predicados que circulam nos saberes. Dessa forma, a verdade escapa ao saber no nível de seu próprio ser. Isso parece uma determinação positiva das verdades: elas são multiplicidades genéricas. Mas, olhando-as de perto, trata-se de uma determinação negativa: são multiplicidades que não sãoredutíveis ao saber disponível. A definição da verdade passa, portanto, por uma démarche diferencial e não por uma construção intrínseca ou imanente.

Em Lógicas dos mundos, a verdade é definida como um corpo subjetivável. Quais são as características próprias disso? Há várias delas, mas uma é central: o protocolo de construção deste corpo é tal que tudo o que o compõe é compatível. Assim, essa compatibilidade é, no fundo, apenas uma característica relacional daquilo que é uma verdade. No interior de uma verdade, encontramos uma relação de compatibilidade entre todos os seus elementos. É uma característica objetiva. Em ambos os casos, portanto, cheguei a uma determinação objetiva precisa, respectivamente do ser de uma verdade e do aparecer de uma verdade. Mas falta uma determinação subjetiva, precisamente. Tudo isso não nos diz o que é a verdade vivida do interior do procedimento de verdade, isto é, o que ela é para o sujeito de verdade mesma.

Minhas respostas a essas questões permanecem, na minha opinião, bastante funcionais. Digo que o sujeito é no nível ontológico um ponto, um momento local da verdade. No nível fenomenológico, digo que um sujeito é uma função de orientação da construção de um corpo subjetivável. Estas são as definições funcionais que permanecem elas mesmas objetivas. De agora em diante, é preciso chegar a algo que materialize, escreva, organize o protocolo de verdade, visto desta vez de maneira imanente, isto é, subjetivada enquanto tal. Em Teoria do sujeito, distingui o “processo subjetivo” da “subjetivação”. Para utilizar essa distinção, direi que O ser e o evento e Lógicas dos mundos contêm coisas decisivas sobre o “processo subjetivo”, mas a “subjetivação” resta obscura, tratada negativamente e de forma puramente diferencial. A subjetivação é a forma na qual subjetivamos do interior o protocolo de verdade. Falta uma intuição daquilo que é uma subjetivação.

Mas como tratar de forma convincente a subjetivação? E quais são os protocolos formais de um tratamento parecido? Até o momento, em todo caso, sei de uma coisa: isso irá supor uma transformação formal da categoria de negação. Se os protocolos subjetivos de uma verdade se compõem de assembléias (ralliements)ou de incorporações de indivíduos no devir de uma verdade, então a questão de saber como funciona a diferença individuada no interior do protocolo de verdade. É uma questão que sempre me interessou. Tomemos um exemplo muito simples. Duas pessoas olham um quadro. Teremos um fragmento de incorporação, fragmento indicado por um certo afeto, por um trabalho da inteligência, pela imobilização do olhar sobre o quadro. Coloco-me antes do ponto de vista do espectador que do criador, para indicar que uma verdade está constantemente disponível para a incorporação. Esse ato de subjetivação que é a incorporação é idêntico nos dois espectadores? Trata-se de identidade ou de compatibilidade? Em todo caso, não podemos dizer que a dualidade no seio dessa experiência – pode haver ali milhões de pessoas nessa mesma experiência – romperá a unidade do sujeito. Como é possível? Uma grande parte do ceticismo no tocante às verdades se enraíza nesse tipo de experiência. A cada um sua verdade, dizia Pirandello! “A cada um sua verdade” implica que não haveria verdade. No caso de um quadro, haverá um objeto único que vai se deslocar em direção às percepções de uns e de outros.

Por que, agora, isso conduz ao problema da negação? Porque todo o problema está em saber que tipo de negação se reenvia essa diferença. Cada um vê o quadro a sua maneira, a percepção de um não é a percepção do outro. Mas, o que significa “não é”? O que desloca a percepção e conduz ao ceticismo é a ideia que esse “não é” é uma negação clássica, isto é, que uma das percepções possa e deva ser contraditória com a outra.

Sobre qual teoria da negação podemos então nos apoiar para evitar essa consequência cética da negação ordinária? A resposta é que devemos tomar apoio sobre a teoria da negação paraconsistente, o terceiro tipo de lógica (depois da clássica e da intuicionista) descoberta pelo brasileiro Newton Da Costa, na qual o princípio da contradição não é válido. O formalismo novo que será então introduzido à grande escala no terceiro tomo será a negação paraconsistente, que explicitamente contradiz o princípio da não-contradição. Esse formalismo permite que percepções contraditórias, desde que se trate de uma verdade, possam coexistir sem interromper a unidade dessa verdade. Isso me interessa ainda mais porque no coração do amor se coloca um problema desse gênero se admitirmos, o que é minha tese, que devemos partir para compreendê-lo inteiramente, da coexistência de uma posição feminina e de uma posição masculina – posições em certos aspectos inteiramente disjuntos.

Se então o formalismo maior de O ser e o evento foi a teoria dos conjuntos e o teorema de Cohen; se o formalismo maior de Lógicas dos mundos foi a teoria dos feixes, a topologia, e portanto, em grande parte, a lógica intuicionista; o formalismo do terceiro volume será a lógica paraconsistente, com toda uma meditação sobre os limites do princípio da não-contradição.

Sendo assim, não há mais que formalismos. Eles são de fato formas de andaimes para a construção conceitual, e realmente supõem uma boa dose de intuição. Podemos sustentar que todo filósofo parte de um contato subjetivo com a verdade – seu ponto pessoal de encontro com a verdade de alguma forma. É esse ponto que ele procura transmitir através de sua filosofia. Mas, ao mesmo tempo, ele sabe no fundo de si, que esse ponto não é transmissível, estando seu contato absolutamente próprio com a verdade. Isso não explica, em particular, a dificuldade que Platão prova ao definir a Ideia do Bem? Não arriscamos chegar, nesse ponto, ao inefável?Isso acontece em muitas disposições filosóficas. Chegamos a um ponto que é o último ponto real. Este último, conforme é dito por Lacan, não se deixa simbolizar. Spinoza, por exemplo, nomeia um ponto último que é a intuição intelectual de Deus, mas ele não dá nenhuma intuição real dele. Prova disso é que a melhor aproximação está na beatitude provada no saber matemático. Agora, o saber matemático é do segundo gênero de conhecimento, não do terceiro. A intuição do ponto último escapa. Quanto a Platão, declara expressamente em A república, que não pode dar mais que uma imagem do Bem, e nenhuma outra. A imanência das verdades será, em parte, uma tentativa de cercar esse ponto tanto quanto for possível, com a esperança de reduzi-lo enquanto um ponto inefável. Tratar-se-á de torná-lo tão inefável quanto possível e, assim, tão transmissível quanto possível. Não sei até agora, no momento, até onde em direção devo ir. Mas sei que aqui me separo de Platão.

Platão parte de uma experiência filosófica da Ideia, mas a necessidade de transmitir essa experiência permanece nele em grande parte fora da própria experiência. É por isso que ele afirma que seria preciso forçar os filósofos a se tornarem políticos e pedagogos. Quando os trouxermos para a Ideia do Bem, eles terão apenas uma ideia, a de ficar lá! Essa necessidade de transmitir, que vem de fora da própria experiência da verdade, é para Platão uma exigência social e política. É preciso que essa experiência possa ser compartilhada no nível da organização geral da sociedade. Se não a transmitirmos, deixamos as pessoas sob o império das opiniões dominantes. É preciso, portanto, “corromper” a juventude, no sentido que foi aquele de Sócrates, isto é, transmitir-lhe os meios de não ser escravizada pelas opiniões dominantes.

Eu compartilho inteiramente dessa visão da filosofia. E estou muito ligado, como sabemos, à sua didática. Mas devo reconhecer que em Platão há uma obscuridade sobre a questão de saber qual é a natureza da verdade. Essa verdade, ele realmente não a disse. Sabemos que houve interpretações absolutamente contraditórias de Platão. Puderam ser vistas em Galileu e em muitos outros, como o próprio exemplo do racionalismo científico. Mas entre os neoplatônicos, ele foi considerado como o próprio exemplo da teologia transcendente. Essas divergências se explicam pelo fato de que Platão não disse grande coisa dessa verdade sobre a qual eu falo. Ele mais ou menos reservou experiência.

Para mim, as verdades existem, eu as caracterizo, e disse e direi de maneira explícita – em A imanência das verdades – como e porque elas existem. É verdade que a transmissão aqui é difícil. O que é preciso transmitir, é que as verdades, enquanto elas existem, estão em exceção do resto. Platão também a apresenta pela Ideia do Bem como excepcional. A Ideia do Bem não é uma Ideia! Ela supera em muito a Ideia em prestígio e em potência, de acordo com uma passagem de A república frequentemente comentada. O que é que isso pode ser? A teologia negativa dirá que é Deus, e de Deus não podemos dizer nada. Do lado do racionalismo, encontramos a interpretação de Monique Dixsaut e tantos outros – a minha também, neste caso. Ela consiste em mostrar que há um princípio de inteligibilidade que não é redutível à Ideia mesma. Que a Ideia seja princípio da inteligibilidade se situa naturalmente para além da Ideia como princípio regional da ação ou da criação.

Platão é um personagem fundador e de uma importância enorme para mim. Mas é preciso reconhecer que ele está fugindo. Ele mostra uma obliquidade que promove o diálogo porque jamais sabemos exatamente quem fala e quem diz a verdade. Isso flui como uma torrente; no final, compreendemos o problema, mas não a solução. Não sabemos exatamente em qual sentido se pronuncia Platão. É como uma decepção organizada. Por exemplo, os interlocutores de Sócrates, em A república, fazem-no apontam que já é tempo de ele definir essa Ideia do Bem, a qual mantém há muito tempo. Vemos pois Sócrates titubear (faire des manières) e dizer mais ou menos: “Vocês me perguntam demais!”

Isso não faz meu tipo. Ao contrário, tento dizer o máximo que posso dizer. Sou um platônico mais afirmativo e menos fugidio que Platão. Pelo menos tento! É a concepção que tenho da filosofia: um exercício de transmissão de alguma coisa que poderia se contentar em declarar intransmissível. Nesse sentido, essa é a impossibilidade própria da filosofia, seu propósito, seu termo. Portanto, estou engajado na luta contra o ceticismo contemporâneo, o relativismo cultural, a retórica generalizada, exatamente como Platão estava engajado contra os sofistas. Trata-se para mim de afirmar a posição de exceção da verdade, mas de não a declarar como intransmissível, porque isso seria endossar uma fraqueza considerável em relação ao niilismo dominante.

No entanto, deixo aberta a possibilidade de que o conceito de verdade, e mais ainda o que chamo sua ideação, o que quero dizer a incorporação de um indivíduo ao devir de uma verdade, seja, como parece ser o caso em Platão, bastante inquietantemente transmissível. É a esse propósito realmente interessante de observar o programa de aprendizagem da filosofia em A república: 1. Aritmética, 2. Geometria, 3. Geometria espacial, 4. Astronomia, 5. Dialética. Agora, na passagem sobre a dialética, como todo mundo pode notar, não há quase nada! Contentamos, então, em registrar que o aprendizado filosófico é baseado na matemática e na astronomia, sendo assim explicitamente referido a uma condição científica. Para além dessa base, “dialética” nomeia alguma coisa de diferente. Mas essa diferença permanece abstrata, ela não é mais clara que a Ideia do Bem.

É preciso então concordar com a famosa tese de Bergson segundo a qual cada filósofo encontra em sua consciência um ponto indescritível? Como Bergson diz: “Neste ponto está alguma coisa de simples, de infinitamente simples, de tão extraordinariamente simples que a filosofia jamais foi capaz de dizer. E é por isso que ela falou toda a sua vida”?

Se em minha filosofia vejo um ponto desse gênero, é aquele que cercamos e idenficamos, e que consiste de fato a pensar até o fim a subjetivação do verdadeiro – e não somente a existência do processo de verdade. É o que chamo de incorporação, não apreendida em sua lógica objetiva, mas reaprendida do ponto de vista do próprio indivíduo, no momento em que ele toma participa da atividade de um Sujeito, porque que ele é incorporado ao devir-corpo do verdadeiro. A intuição dessa incorporação é geralmente acompanhada por um afeto singular que, sem dúvida, nada mais é do que esse sentimento de dificuldade de transmissão sobre o que falamos. É o problema que será o objeto da obra que projeto e sobre a qual temos falado.

Hesitaria dizer que o obstáculo é a simplicidade. Essa simplicidade é evidentemente típica da ontologia bergsoniana, uma ontologia não matemática, mas vitalista. O ponto radical de uma ontologia vitalista consiste em se situar no diferencial puro do movimento ou da pura duração. Esta é, com efeito, a experiência da simplicidade absoluta e, ao mesmo tempo, o fundamento do pensamento para Bergson. Mas quando a ontologia é matemática, como é o caso para mim, partimos de uma complexidade intrínseca, uma multiplicidade pura que não se refere a uma simplicidade originária outra que o vazio. Que dado o vazio não se podemos dizer nada.

Finalmente, estou de acordo com Bergson sobre o fato de que há um ponto originário da experiência, ponto que toda a didática filosófica se esforça em reunir e transmitir. Mas penso que a experiência desse ponto é a experiência concentrada de uma complexidade e não a experiência de uma simplicidade. Estou, no fundo, bastante de acordo com Spinoza. O exemplo que Spinoza propõe para o terceiro gênero de conhecimento, conhecimento intuitivo e absoluto, é aquele de uma demonstração matemática que seria recolhida em um ponto. Isso me convém. Quando verdadeiramente compreendemos uma demonstração matemática, não precisamos mais das etapas: entendemos alguma coisa que se junta em um ponto. Dito isso, a didática é obrigada para retomar as etapas, porque há uma complexidade desse ponto, complexidade oculta, na medida em que estamos lidando com um ponto. Não é a mesma coisa que ter uma complexidade contraída e uma simplicidade pura como em Bergson.

Em vez de vitalista, acho que sou um tanto materialista e platônico. Posso partir de um fato que me impressionou muito. O próprio Althusser sustentou, com uma força particular, a ideia de que a principal contradição da filosofia estava entre materialismo e idealismo. Para ir até o fim dessa tese nas condições do materialismo moderno (consideradas a matemática, a ciência moderna, no balanço geral do materialismo), ele se viu forçado a introduzir a noção de materialismo aleatório. Por razões muito diversas, foi preciso fazer um lugar inelutável para a questão do acaso em todo materialismo contemporâneo, a mais espetacular dessas razões sendo o desenvolvimento da mecânica quântica. Na unidade do plano materialista que desenvolvo, a existência objetiva de multiplicidades é limitada, se posso dizer assim, pela possibilidade do aleatório, pela possibilidade de que alguma coisa sobrevenha e que não se deixa nem prever, nem calcular, nem reincorporar a partir do estado de coisas existente. É isso que chamo um evento. Há alguma coisa como um ponto absoluto acasual, acasual no sentido no qual não se deixa organizar por aquilo a que procede. Não preciso de mais nada que um tal ponto acasual. Um evento me basta para implantar a exceção do verdadeiro. E não saio do materialismo, que razão alguma intrínseca limita a ser organicamente ligado ao determinismo. O determinismo foi apenas uma das concepções possíveis do materialismo.

Como sabemos desde as origens do materialismo, o determinismo é insuficiente, uma vez que, do atomismo primitivo, o clínamen, esse subito desvio de átomos, sem lugar nem causa, introduz um evento subtraído à toda determinação –falei longamente disso em Teoria do sujeito. Admiro muito particularmente os primeiros materialistas, consequentes, heróicos, Demócrito, Epicuro, Lucrécio, que em um mundo povoado de deuses, de superstições, introduziram a tese radical de que há somente átomos e o vazio. No entanto, eles se deram conta com essa evidência de que não poderiam deduzir o evento do mundo apenas dos átomos e do vazio. É preciso um terceiro termo, que tem a forma de um puro acaso. Finalmente, quando digo: “Só há corpos e linguagens, exceto que há verdades”, realizo um gesto epicurista. Digo que há uma exceção. Mas essa exceção é ela mesma fundada apenas na existência do evento. E o evento nada mais é do que a possibilidade do aleatório na estrutura do mundo. Não penso que com a introdução dos eventos eu saia do materialismo. Alguns julgaram que haveria aí um novo dualismo. Disseram-me: “Você introduziu a exceção, isso não é mais materialismo”. Mas acontece que as conseqüências de uma exceção estão inteiramente situadas em um mundo. Não há plano sensível e plano inteligível, plano do evento e plano do mundo que sejam distintos. Além disso, sustento que podemos interpretar Platão fazendo a economia dessa dualidade do sensível e do inteligível, que expressa antes um platonismo vulgar. Evidentemente, Platão se exprime frequentemente assim. Mas não nos esqueçamos de seu lado fugidio, inescrupuloso (retors),e da utilização constante das imagens.

Para voltar ao evento, ao aleatório, é necessário insistir na existência de um corte. Há o antes de o depois. Esse corte não faz passar de um mundo inferior a um mundo superior. Estamos sempre no mesmo mundo. As consequências do corte certamente têm um estatuto de exceção em relação ao que não depende do corte. Mas será preciso demonstrar que essas consequências são organizadas de acordo com a lógica geral do mundo em si. É uma demonstração, é um labor que me imponho a cada vez. Meus velhos amigos marxistas, como Daniel Bensaïd, que me acusam de introduzir um elemento miraculoso, são simplesmente materialistas mecanicistas. Marx, já, e mesmo Lucrécio, lutaram incansavelmente contra eles.

Acrescentemos que quando você é um materialista não-mecanicista, é porque você é dialético. Com efeito, acredito que podemos considerar meu empreendimento filosófico como uma vasta travessia da dialética. Mantive, do início ao fim, a Ideia de que o estatuto ontológico das verdades é um estatuto de exceção: exceção do genérico em relação ao que é construtível, exceção do corpo subjetivável em relação ao corpo ordinário, exceção de meu materialismo em relação a um materialismo simplista pelo qual há somente corpos e linguagens. Agora, a categoria de exceção é uma categoria dialética, o pensamento da exceção tendo sempre lugar em duas versões contraditórias. É preciso pensar uma exceção como uma negação, porque ela não é redutível àquilo que é ordinário, mas é preciso também não a pensar como milagre. É preciso então pensá-la como interna ao processo de verdade – não miraculoso – e pensá-la apesar disso tudo como exceção.

Talvez seja isso que Lacan queria dizer com “êxtimo”: tanto íntimo quanto exterior ao íntimo. Estamos no núcleo da dialética. Em Hegel, por exemplo, a negação de uma coisa é imanente a essa coisa, mas ao mesmo tempo a excede. O núcleo da dialética é esse estatuto da negação, como um operador que separa e inclui ambos. Nesse sentido, direi que estou continuamente na dialética, e especialmente em Teoria do sujeito, livro ainda muito ligado ao marxismo clássico e a seus desenvolvimentos maoístas. Em Teoria do sujeito, não há teoria geral das quatro condições da filosofia, e menos ainda há uma teoria geral do evento. As categorias fundamentais de O ser e o eventosão apenas ocas, como o que permitiria reunificar o que permanece um tanto fragmentário em Teoria do sujeito. Mas podemos dizer que continuo de um lado para o outro meu empreendimento filosófico, de Teoria do sujeitohá trinta anos à futura A imanência das verdades, uma meditação sobre a negação. Procuro simplesmente dar razão à possibilidade de mudança, à possibilidade de passar de um certo regime das leis daquilo que é a um outro regime, pela mediação do protocolo de uma verdade de seu sujeito. Estou, portanto, no pensamento dialético. Mas como meu pensamento dialético inclui uma figura do acaso, ele é não-determinista. Lembro-me de que a dialética hegeliana é implacavelmente determinista. Nisso ela é um grande pensamento típico do século XIX. Ela é o espetáculo do autodesenvolvimento do absoluto na necessidade imanente desse desenvolvimento. Evidentemente estou muito longe de tudo isso. É a razão pela qual tenho com Hegel uma relação ao mesmo tempo fechada e complicada. Não é preciso esquecer que nos meus três grandes livros, Hegel é um autor minuciosamente discutido: em Teoria do sujeito, a propósito do próprio processo dialético; em O ser e o evento, a propósito do infinito; em Lógicas dos mundos, a propósito do ser-aí, das categorias do ser-aí. Em A imanência das verdades, discutirei diretamente o conceito hegeliano da experiência da consciência, e também o conceito hegeliano do absoluto. Sempre tive uma discussão íntima com Hegel, mas também com Marx, Lênin, os grandes revolucionários dialéticos, a respeito da condição política. Simplesmente, com a presença de um elemento aleatório, introduzo um princípio de corte que não é exatamente homogêneo aos princípios clássicos da negação. É por essa razão finalmente que usarei três lógicas diferentes e interligadas: a lógica clássica, a lógica intuicionista e a lógica paraconsistente.

Essa tríade provavelmente se refere à minha definição da filosofia, sobre a qual vou concluir. A filosofia é essa disciplina do pensamento, essa disciplina singular, que parte da convicção de que há verdades. De lá, ela é conduzida em direção a um imperativo, uma visão da vida. Qual é essa visão? A de que tem valor para um indivíduo humano, aquilo que lhe entrega uma vida verdadeira e orienta sua existência, de fazer parte nessas verdades. Isso supõe a construção, muito complicada, de um aparelho para discernir as verdades, aparelho que permite circular no meio delas, para compossibilizá-las. Tudo isso sobre o modo da contemporaneidade.

A filosofia é esse trajeto. Ela vai, pois, da vida, que propõe a existência de verdades, à vida que faz dessa existência um princípio, uma norma, uma experiência. O que a época na qual vivemos dá a nós? O que ela é? Quais são as coisas que têm valor nela? Quais são as coisas que são têm valor nela? A filosofia propõe uma classificação na confusão da experiência, donde ela encontra uma orientação. Essa elevação da confusão à elevação é a operação filosófica por excelência e sua didática própria.

Isso supõe um conceito da verdade. Essa “verdade” pode muito bem receber um outro nome. Assim, uma parte da obra de Deleuze, o que chamamos aqui de “a verdade” é chamada de “o sentido”. Posso identificar, em qualquer filosofia, o que nomearia de “verdade”. Pode ser chamada de “Bem”, “espírito”, “força ativa”, “númeno”. Eu escolhi “verdade” porque assumo o classicismo.

É preciso então uma classificação, e para isso é preciso uma máquina de classificar, isto é, um conceito de verdade. É preciso mostrar que essa verdade existe verdadeiramente, mas que, em definitivo, não há milagres, e que não é necessário ter dispositivos transcendentes. Certas filosofias possuem esses dispositivos transcendentes. Mas de forma alguma esse é meu caminho. Então, retornamos à pergunta simples, à pergunta inicial: O que é viver? O que é uma vida digna e intensa, não redutível aos estritos parâmetros animais?

Penso que a filosofia deve incluir, tanto em sua concepção quanto em sua proposição, a convicção de que a verdadeira vida pode ser experimentada na imanência. Algo deve marcar a verdadeira vida no interior dela mesma, não somente como um imperativo exterior, como um imperativo kantiano. Isso indica um afeto o qual assinala, indica, na imanência, que a vida vale a pena ser vivida. Há em Aristóteles uma fórmula de que gosto muito e que retomo de bom grado: “Viver no imortal”. Há outros nomes para esse afeto, “beatitude” em Spinoza, “além-do-homem” em Nietzsche. Acredito que há um afeto da verdadeira vida. Esse afeto não tem componentes sacrificiais. Nada no negativo é exigido. Não há, como nas religiões, sacrifício cuja recompensa está no amanhã ou em outro lugar. Esse afeto é o sentimento afirmativo de uma dilatação do indivíduo, já que ele copertence ao sujeito de uma verdade.

Compreendi muito recentemente a incrível obstinação de Platão em demonstrar que o filósofo é feliz. O filósofo é o mais feliz de todos aqueles que acreditamos ser mais felizes que ele, os ricos, os hedonistas, os tiranos… Platão retorna a isso sem cessar. Ele nos livra de inumeráveis demonstrações desse ponto: só é verdadeiramente feliz aquele que vive sob o signo da Ideia, e é o mais feliz de todos. O que isso significa é bastante claro: o filósofo experimentará, do interior de sua vida, o que é a verdadeira vida.

A filosofia é, portanto, três coisas. É um diagnóstico da época: O que a época propõe? É uma construção, a partir dessa proposição contemporânea, de um conceito de verdade. E é, enfim, uma experiência existencial relativa à verdadeira vida. A unidade das três é a filosofia.


Alain Badiou é filósofo, dramaturgo, novelista, professor emérito da Escola Normal Superior de Paris (1937-). É conhecido por sua militância maoísta, por sua defesa do comunismo e dos trabalhadores estrangeiros em situação irregular na França. Aluno de Sartre, Althusser e Lacan, seu pensamento é fortemente marcado pelo marxismo, pela psicanálise e pela matemática. É autor, dentre suas dezenas de títulos, da trilogia O Ser e o Evento (1988), Lógicas dos Mundos: o ser e o evento, 2 (2006), e da obra recém publicada A Imanência das Verdades: o ser e oevento, 3 (2018).

José Mauro Garboza Junior é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (PPGCJ-UENP). Graduado em Ciências Sociais e História pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES), graduado em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII). (http://ideiaeideologia.com/). Membro associado ao Instituto Lalangue Psicanálise de Londrina. Contato eletrônico: garbozajm@gmail.com.



[1]Embora alguns dos títulos mencionados pelo autor não possuam tradução para a língua portuguesa (cf. respectivamente Théorie du sujet [1982], Logiques des mondes [2006], L’immanence des vérités [2018]), optou-se por traduzi os títulos em versões aproximadas.




 COMO CITAR ESSE ARTIGO | BADIOU, Alain (2011) Conferência de Liubliana. [Trad. José Mauro Garboza Junior] Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -7, p. 2, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/08/07/n-7-2/>.