[ Avec Lacan… ou se faire son contemporain ]
por Sidi Askofaré
Tradução | Keylla Barbosa
A partir do século 20, na França, houve o que podemos chamar de um “acontecimento Lacan”, acontecimento cujo impacto ainda não cessou de produzir seus efeitos. Acontecimento que marcou a psicanálise, antes que toda a cultura fosse marcada ou até mesmo infectada por ele. Será que essa constatação nos autoriza a falar de um lacanismo, a nos dizer lacanianos — versão positiva — ou a ser chamados de lacanianos — versão negativa ou até mesmo estigmatizante —, consequências paradoxais, posto que fundamentalmente indentitárias, da adjetivação do nome próprio de Lacan?
Ora, será que não nos convém ir além da simples identificação dos diferentes modos de ser ou de não ser lacaniano, ou da declinação da pergunta “como podemos não ser lacanianos?”, colocando até mesmo em questão a expressão “ser lacaniano”?
Este “ser lacaniano” comporta, na verdade, não somente a divisão entre os que se dizem ser e os que se dizem não ser “lacanianos” mas também a divisão entre os “verdadeiros lacanianos”, os lacanianos “autênticos”, e os “apócrifos”. E, quem sabe, os “bons” e os “maus” lacanianos.
Nas linhas seguintes, dedico-me a mostrar que a questão passa menos por ser ou não ser lacaniano — visto que não há nenhuma essência lacaniana a ser alcançada — do que por reconhecer o acontecimento Lacan e, então, usá-lo com a finalidade de assegurar a ex-sistência do inconsciente, a produção da análise, a extensão do discurso psicanalítico e a expressão do ato analítico.
Ser freudiano…
Partirei do seguinte ponto: se é tão problemático falar de um “ser lacaniano” quanto de um “ser psicanalista” — o que, evidentemente, não impede ninguém de enunciar um ou outro —, a dificuldade parece bem menor quando se trata de “ser freudiano”. Não porque o freudismo seria uma doutrina constituída, um sistema de pensamento constituído ou até mesmo uma Weltanschauung, mas sim porque Freud, de uma certa maneira formula as condições para isso. Com efeito, em 1924, em “‘Psicanálise’ e ‘Teoria da libido’”, Freud escrevia:
A suposição de que há processos mentais inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e da repressão, a consideração da sexualidade e do complexo de Édipo são os principais conteúdos da psicanálise e os fundamentos de sua teoria, e quem não puder aceitá-los não deveria considerar-se um psicanalista.[1]
Freud, como vemos na citação acima, não fala simplesmente enquanto praticante e teórico da psicanálise. Ele deixa implícita a equivalência entre “psicanalista” e “freudiano”; ele fala ao mesmo tempo como mestre, como pai da psicanálise, como chefe do movimento psicanalítico, enfim, como um “fundador de discursividade”, para retomar essa bela e justa expressão de Michel Foucault[2]. Desse lugar, ele pode dizer quem é e quem não é freudiano e em que condições nós temos o direito de nos dizer freudianos.
Retomando a interessante fórmula que outrora obteve forte impacto e reconhecimento, “o que Freud inventa, Lacan fundamenta”, o mínimo que podemos dizer é que Lacan não é um “fundador de discursividade” no sentido foucaultiano, à imagem de um Marx ou de um Freud. E não somente porque ele não é um dissidente — como Jung ou Adler —, ou porque ele sempre foi definido como um freudiano de estrita obediência — cf. sua “Escola Freudiana de Paris” de 1964, ou sua formulação de Caracas, de 1980: “sejam lacanianos se vocês quiserem; eu, eu serei freudiano”[3] —, ou que ele tenha sido colocado no lugar de Freud como o equivalente do que Lênin foi para Marx. Não, ele não é um fundador de discursividade porque ele nunca questionou o ato inaugural de Freud e tampouco os conceitos fundamentais que este fomentou para sustentar e para orientar a experiência. Ao contrário, ele até mesmo reduz os “conceitos fundamentais da psicanálise” a quatro conceitos freudianos: inconsciente, repetição, transferência e pulsão.
Chegamos então à seguinte questão: por que acrescentar o nome de Lacan ao “ser freudiano” do psicanalista ou até mesmo substitui-lo por “ser lacaniano”? Ou seja, por que o nome “lacaniano” se o campo é freudiano?
Os trilhamentos de Lacan[4]
Para esta questão não há uma resposta só. Aliás, não é só o nome de Lacan que foi imposto nesse campo desde a descoberta freudiana do inconsciente e da invenção da psicanálise. Há vários outros. Vamos chamá-los de instauradores de correntes epistêmico-clínicas em psicanálise: Sándor Ferenczi, Anna Freud, mas também e acima de tudo Melanie Klein, Donald Winnicott, Heinz Kohut, Wilfred Bion. Ou, de uma forma menos personalizada, a psicologia do ego com Heinz Hartmmann, Ernst Kris et Roudolf Loewenstein.
Estes são psicanalistas que não somente praticaram a psicanálise, enriqueceram-na de conceitos novos e de perspectivas originais, como também, pela transferência que suscitaram, fizeram escola. Jacques Lacan, sem dúvida, faz parte desse grupo, com a singularidade conferida pela sua língua materna — a francesa, ao invés do inglês que se tornou o globish da psicanálise depois de Freud — e pela sua cultura que não era nem a da Europa central, nem a anglo-saxônica.
Entretanto, há ainda uma outra particularidade de Lacan: é que, essencialmente, seu modo de intervenção no campo aberto por Freud foi o que ele chamou de seu ensino. Ensino e não teoria, pois é totalmente nutrido por uma prática e orientado por um objetivo: a formação dos analistas.
Ocorre que, não obstante, Lacan desempenhou certos trilhamentos que não somente ampliaram[5] a psicanálise como também subverteram a invenção e o saber freudiano. É impossível fazer a conta exata de todas essas contribuições ao mesmo tempo numerosas, ricas e variadas. Neste caso, atenho-me somente a lembrar aqui algumas delas:
– no plano doutrinal: a introdução, na psicanálise, dos registros do imaginário, do simbólico e do real; o axioma da estrutura de linguagem do inconsciente; a teoria da estrutura do sujeito; a função do sujeito suposto saber como “efeito estruturante” da transferência; o objeto a; a categoria de gozo; o discurso como conceito de laço social que se funda na linguagem; o nó borromeano; o inconsciente real; o falasser e o sinthoma;
– no plano da prática e da técnica: as entrevistas preliminares, as sessões de duração variável ou até mesmo as sessões curtas, a interpretação-corte etc.
– no plano institucional e político: o cartel, o passe, a Escola e a sua dissolução.
Não poderíamos terminar essa rápida enumeração sem antes lembrar que o próprio Lacan considerava que o que ele transmitia a seus alunos não era somente um saber ou um saber-fazer, mas um estilo!
Esse simples e breve lembrete das inovações teóricas, técnicas e institucionais de Lacan basta para lembrar-nos o quanto é difícil fazer, desses trilhamentos, um sistema ou uma doutrina unificada e homogênea. O que de fato aparece e o que pode ser deduzido da amplitude de um ensino como esse é sua impossibilidade de coincidir consigo mesmo. A tal ponto que nós podemos nos perguntar se é possível estar de acordo com uma diversidade de teses e de perspectivas como essa.
Mas é talvez justamente essa própria impossibilidade que abre o caminho a um necessário modo de “ser lacaniano”, outro que não o usualmente requisitado pelas posturas de analisante, discípulo ou aluno.
Com Lacan…
Se “ser lacaniano” na psicanálise não é, ou não é apenas, ser um (ex-)analisante, um discípulo ou um aluno de Lacan, é precisamente pela razão que o mesmo indicava em seu “Prefácio a uma tese”, ou seja, que seus Escritos — portanto, seu ensino — são antitéticos por natureza”[6]. É sem dúvida esse antidogmatismo fundador de seu ensino que se contrapõe a toda redução universitária de seus trilhamentos. É o analista, e não o autor, que aumenta os recursos doutrinais da psicanálise e que amplia a envergadura da experiência. Portanto, o que é “ser lacaniano” hoje senão ser, não simplesmente o leitor, o comentador ou aquele que pretende “ultrapassá-lo”, mas ser seu contemporâneo? Seu contemporâneo, no estrito sentido que propunha Giorgio Agamben, em 2008, em O que é o contemporâneo: “[…] é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual […]”[7].
Não seria, no fundo, uma questão de se situar face a Lacan tal como ele próprio fez em relação a Freud? Nem antes, nem depois, nem acima, mas… com. Sim, com Lacan. Talvez não haja melhor maneira de ser, e de continuar sendo, lacaniano do que manter a relação com Lacan e com sua enunciação no lugar onde ela deveria estar, ou seja, para além da identificação e da idolatria! ♦
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio (2007) “O que é o contemporâneo?” In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. V. N. Honesko. Chapecó: Argos, 2009; pp. 55-76.
BOUSSEYROUX, Michel (2011) Au risque de la topologie et de la poésie. Elargir la psychanalyse. Toulouse: Érès.
FOUCAULT, Michel (1969) “O que é um autor?” In: Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Trad. I. A. Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001; pp. 264-298.
FREUD, Sigmund (1923) “‘Psicanálise’ e ‘Teoria da Libido’”. In: Obras Completas. Psicologia das Massas e análise do eu e outros textos (1920-1923), vol. 15. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; pp. 244-276.
LACAN, Jaques (1970) “Prefácio a uma tese”. In: Outros Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; pp. 389-399.
_____. (1980) “Le Séminaire de Caracas” In: Almanach de la dissolution. Paris: Navarin, 1986; pp. 81-87.
* Sidi Askofaré é psicanalista e professor de Psicologia da Universidade de Toulouse-Jean Jaurès onde dirige o laboratório Cliniques Pathologique et Interculturelle. É autor de D’un discours l’Autre : la science à l’épreuve de la psychanalyse (PUM, 2013) e membro do Forum do Campo Lacaniano de Paris.
** Keylla Barbosa é mestre em linguística pela Unicamp e doutoranda em psicopatologia e psicanálise pela Université Paris Diderot-Paris VII.
[1] FREUD, Sigmund (1923) “‘Psicanálise’ e ‘Teoria da Libido’”. In: Obras Completas. Psicologia das Massas e análise do eu e outros textos (1920-1923), vol. 15. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; pp. 261.
[2] FOUCAULT, Michel (1969) “O que é um autor?” In: Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Trad. I. A. Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001; pp. 264-298.
[3] LACAN, Jacques (1980) “Le Séminaire de Caracas”. In: Almanach de la dissolution. Paris: Navarin, 1986; pp. 81-87.
[4] No original: “Frayages de Lacan”. A palavra frayage significa traçar ou abrir um caminho, uma trilha. É muito usada no contexto da agricultura para fazer referência ao traço deixado pelo arado. Nas obras completas de Freud em francês, “frayage” é a tradução da palavra Bahnung, utilizada pelo autor em seu “Projeto para uma psicologia científica” (1985[1950]) e usada para designar um certo tipo de marca ou memória produzida nas barreiras de contato neuronais devido a passagem recorrente da excitação sensorial. Nas edições das obras completas de Freud pela Imago, a palavra Bahnung foi traduzida por “facilitação”. (N. da T.).
[5] BOUSSEYROUX, Michel (2011) Au risque de la topologie et de la poésie. Elargir la psychanalyse. Toulouse: Érès.
[6] LACAN, Jaques (1970) “Prefácio a uma tese”. In: Outros Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 389.
[7] AGAMBEN, Giorgio (2007) “O que é o contemporâneo?” In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. V. N. Honesko. Chapecó: Argos, 2009; p. 58.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | ASKOFARÉ, Sidi (2019) Lacan… Ou ser seu contemporâneo [Trad. K. Barbosa]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 7, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-07/>.