[ Die psychosexuellen Differenzen der Hysterie und der Dementia praecox ]
por Karl Abraham
Tradução e notas | Caio Padovan & Julia Joergensen Schlemm
Originalmente em Abraham, K. (1908). “Die psychosexuellen Differenzen der Hysterie und der Dementia praecox”, Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie, 31(Zweites Juliheft), pp. 521-533[1].
O método psicanalítico nos permitiu conhecer importantes analogias na organização [Aufbau] da Histeria e da Dementia praecox[2]. A este respeito, bastaria indicar os pontos mais importantes. As fontes dos sintomas de ambas as doenças repousam em complexos sexuais reprimidos [verdrängten][3]. Nos dois casos tanto as excitações [Regungen] normais quanto as perversas podem agir de maneira determinante na formação dos sintomas. As formas de expressão das duas doenças são em grande medida as mesmas; basta que eu mencione aqui o simbolismo sexual. Apesar desses traços comuns, todos os observadores estão de acordo quanto à existência de uma contradição fundamental. Mas até agora nenhum deles foi capaz de definir satisfatoriamente essa contradição. Eles não fizeram mais do que indicar diferenças graduais, que, na verdade, acabaram mais uma vez nos revelando as semelhanças entre os dois quadros clínicos.
Posto aqui que os importantes traços comuns entre a Histeria e a Dementia praecox são de natureza psicossexual, surge então a pergunta sobre os limites desse comportamento análogo. Em outras palavras: na busca pelas diferenças fundamentais entre ambas as doenças, fomos novamente conduzidos ao campo psicossexual.
Os “Três ensaios para uma teoria da sexualidade” de Freud (1905), em particular suas considerações sobre a sexualidade da criança, sobre as perversões sexuais e sobre o impulso sexual [Sexualtrieb][4] dos neuróticos, nos fornecem a base para tal investigação. Todos os elementos teóricos que eu gostaria de propor a vocês sobre a sexualidade dos doentes mentais crônicos se baseiam na teoria sexual de Freud[5].
De acordo com Freud, as excitações [Regungen] sexuais infantis mais precoces estão relacionadas com uma única zona erógena – a boca. Durante os primeiros anos de vida, além da zona oral, outras regiões do corpo assumem a função das zonas erógenas. As primeiras expressões da libido na criança possuem um caráter autoerótico. Nesse estágio, a criança não conhece nenhum outro objeto sexual [Sexualobjekt] além de si mesmo. Nos períodos seguintes do desenvolvimento, passa-se ao amor objetal. No entanto, essa passagem não implica de imediato uma orientação precisa e definitiva a pessoas do sexo oposto. A criança traz consigo uma série de impulsos parciais [Partialtrieben], dentre os quais, normalmente um em particular, o heterossexual, tenderá a se impor tomando a dianteira. As energias provenientes de outros impulsos parciais são privadas de seu uso sexual e desviadas para outros fins socialmente importantes; eis o processo de sublimação. A partir da sublimação dos componentes homossexuais, se formam principalmente os sentimentos de nojo [Ekelgefühle]; da sublimação do prazer infantil em se exibir ou se mostrar [Schau- und Exhibitionslust] se forma a vergonha; da sublimação dos componentes sádicos e masoquistas o pavor, a compaixão, entre outros sentimentos do mesmo tipo.
Mas o desenvolvimento psicossexual não se esgota quando a criança aprende a transferir sua libido a pessoas do outro sexo e a transformar o resto dos seus impulsos parciais nesses sentimentos sociais. Tanto a transferência sexual quanto a sublimação das energias sexuais ultrapassam esses limites; os dois processos agem normalmente em conjunto, de modo harmônico. As atividades artísticas[6] e científicas e, em certa medida, muitas outras atividades profissionais se baseiam em processos sublimatórios. Pessoas com libido insatisfeita [unbefriedigte] aplicam sua energia sexual não ligada em uma atividade profissional por vezes bastante intensa. Outros direcionam sua libido excedente a ambições sociais e encontram nelas o que a língua alemã descreve de modo preciso como sua “satisfação” [Befriedigung][7]. Desta mesma fonte escoa a força que se dirige aos doentes e aos recém-nascidos, que se estende à caridade e ao trabalho social, à mobilização em prol do direito dos animais, etc.
O comportamento social do homem se apoia em sua capacidade de adaptação; esta capacidade é, no entanto, uma transferência sexual sublimada. Um rapport positivo ou negativo se estabelece entre as pessoas depois de um certo tempo de convívio, que se expressa na forma de sentimentos de simpatia ou antipatia. Os sentimentos de amizade, de harmonia espiritual [seelische Harmonie], encontram nestas condições um solo fértil. O comportamento social de um ser humano corresponde perfeitamente a sua forma de reagir a estímulos [Reize] sexuais. Em ambos os casos, as pessoas são mais ou menos maleáveis, brutas ou delicadas, seletivas ou pouco exigentes. O que chamamos em alguns casos de rígido, retraído, quadrado e, em outros, de cortês, flexível, etc. reflete uma maior ou menor capacidade de adaptação, ou seja, de transferência.
Como em todas as formas de tratamento psíquico, nós fazemos em psicanálise um uso terapêutico da transferência[8]. Uma forma particularmente clara da transferência sexual é a sugestão, que, por sua vez, alcança seu auge na hipnose.
No entanto, o homem não transfere sua libido apenas a objetos vivos, mas também a objetos inanimados [lebende, leblose Objekte]. Mobilizado pela sua sexualidade, ele se relaciona de modo subjetivo com uma parte dos entes [Gegenstände][9] que o circundam. Em um ensaio que será publicado em breve, intitulado “Sonho e mito”[10], discutirei essa questão em detalhe. Aqui, farei apenas menção a alguns pontos essenciais. Com base em algumas de suas características, nossa linguagem atribui um sexo aos seres inanimados, comparando-os ao homem ou à mulher. Como diz Kleinpaul[11], “o homem sexualiza tudo”[12]. Da mesma fonte se origina o simbolismo sexual da língua, que encontramos também nos sonhos e nos transtornos mentais. Nós estabelecemos com os seres que, por diferentes razões, nos são caros – seja através do uso, seja através valor estético por eles assumidos – uma relação pessoal evidente, o que corresponde precisamente com a atração sexual. A preferência que manifestamos em nossas escolhas corresponde completamente à escolha de objeto sexual. A intensidade deste tipo de amor objetal pode variar muito; algumas pessoas não têm praticamente nenhuma necessidade nesse sentido, outras são completamente dominadas pelas exigências ligadas a uma paixão dirigida a certas coisas. Sensível ao caráter psicológico destas relações, a língua alemã denomina de Liebhaber[13] aquele que não mede esforços para obter o objeto almejado, o que o coloca como conquistador de uma mulher. A espécie mais característica do Liebhaber é o colecionador. Sua exagerada estima pelo objeto de coleção corresponde precisamente à supervalorização sexual das pessoas apaixonadas. Uma paixão por colecionar é muitas vezes o substituto de uma inclinação sexual; assim, na escolha por um objeto de coleção se esconde por vezes um simbolismo sutil. Com frequência, a tendência a colecionar dos solteiros se enfraquece após o casamento. Sabe-se que o interesse em torno do colecionismo se modifica com o passar dos anos.
Em relação ao impulso sexual normal, o impulso sexual do neurótico se distingue, em primeiro lugar, pelo excesso da força que o mobiliza. Falta a ele, portanto, harmonia interna: por um lado, os impulsos parciais não se encontram completamente subordinados aos impulsos sexuais heterossexuais, ao passo que, por outro lado, uma tendência à repressão contra estes mesmos impulsos se impõe. As representações ligadas à atividade sexual normal evocam desgosto e nojo. Ao longo de toda a vida do neurótico, os impulsos parciais entram em conflito uns com os outros; anseios particularmente intensos entram em conflito com uma rejeição [Ablehnung] igualmente intensa. Assim, o homem foge desse conflito através da doença. Com a eclosão da neurose, materiais reprimidos reaparecem na consciência, sendo convertidos durante esse processo em sintomas histéricos. A conversão serve ao escoamento de aspirações normais que foram reprimidas, em particular as perversas: enfim, os sintomas da doença são atividades sexuais anormais.
Nos períodos marcados pela ausência da doença propriamente dita, a libido neurótica se manifesta através de uma transferência massiva; os objetos são investidos libidinalmente de maneira anormal. Existe também nestes casos uma tendência excessiva e fora do normal à sublimação.
Com base nestas considerações, podemos agora comparar o comportamento psicossexual das pessoas que sofrem de Dementia praecox com o de pessoas saudáveis e com o dos neuróticos. Com esse intuito, apresentamos alguns tipos que fazem parte do grande grupo dos doentes mentais crônicos [chronisch Geisteskranken], os quais reunimos, juntamente com Kraepelin, na categoria de Dementia Praecox[14].
Em um canto do asilo[15], ou andando de um lado para o outro, vemos um paciente portador de uma doença grave em estágio avançado. Ele dirige fixamente seu olhar ausente para um ponto qualquer, alucina, sussurra uma porção de palavras, gesticula de modo bizarro. Ele não fala com ninguém e evita toda e qualquer relação interpessoal. Ele não possui impulso [Trieb] para realizar nenhuma atividade. Ele é negligente com sua aparência, come sem demonstrar apetite, suja-se ou esfrega-se com seus excrementos e masturba-se em público sem constrangimento ou vergonha. É como se o ambiente que o cerca praticamente não existisse para ele.
Um doente menos comprometido apresenta basicamente o mesmo comportamento; a única diferença é que sua doença não chega a assumir uma forma tão extrema. Ele também é antissocial e apático [ablehnend]; ele produz ideias de perseguição e de grandeza. Sua postura frente aos outros e a forma como ele se comunica são bizarras, cheia de maneirismos, afetadas [geschraubt]. Ele se queixa vivamente do seu internamento, no entanto, estas queixas ele as expõe – assim como tudo – sem um afeto adequado. Ele entende o que se passa no mundo externo, mas não demonstra um real interesse por esses eventos. Ele se esforça em realizar trabalhos mecânicos, mas não extrai daí nenhuma satisfação.
Um paciente cuja doença não inclui fenômenos particularmente gritantes e cuja internação talvez seja contornável, sente-se facilmente perturbado por outras pessoas, relaciona-se mal com seus familiares, não faz amigos, mas também não sente falta deles. Ele é desprovido de qualquer tipo carência emocional [gemütliche Bedürfnisse], de tato e de delicadeza. Não conseguimos estabelecer com ele nenhum rapport emotivo. Talvez ele possua uma inteligência acima do normal; mesmo assim, de uma maneira geral, seu desempenho não é propriamente fecundo. O que ele produz no âmbito intelectual é quase sempre bizarro e afetado [geschraubt], fere os princípios da estética e não carrega consigo nenhuma tonalidade sentimental [Gefühlsbetonung].
Essas diferentes formas[16] correspondem a uma mesma anomalia da vida sentimental [Gefühlsleben][17] e, neste sentido, as variações são apenas graduais. Uma forma mais branda pode dar lugar a uma mais grave; uma mais grave pode apresentar remissões significativas. Enquanto as representações de pessoas saudáveis são acompanhadas de sentimentos adequados, às representações dos doentes falta uma tonalidade sentimental adequada. Mas todas essas transferências de sentimentos remontam à sexualidade. Nós chegamos à conclusão de que a Dementia praecox destrói a capacidade para a transferência sexual, para o amor objetal.
A primeira inclinação afetiva, inconsciente e sexual, da criança se dirige aos pais, especialmente à parte do casal parental do sexo oposto. Uma vívida transferência também ocorre entre irmãos. Lembramos que no contexto familiar, sentimentos [Gefühle] de revolta, de ódio, aparecem principalmente entre pessoas do mesmo sexo. Por influência da educação, entre outros fatores exógenos[18], essas inclinações são submetidas à repressão [Verdrängung]. Em circunstâncias normais, existe entre pais e filhos uma relação de afeto, um sentimento de pertencimento. Nos histéricos, encontramos essa mesma inclinação afetiva sendo dirigida a uma pessoa, muitas vezes de maneira patologicamente aumentada, e, quando direcionada a outra, é transformada em uma intensa rejeição. Em doentes com Dementia praecox, sentimos em geral uma falta de inclinação afetiva em relação aos familiares; encontramos no lugar disso indiferença ou extrema inimizade, que se transformam em delírio de perseguição.
Um paciente instruído recebeu a notícia da morte de sua mãe que, apesar de seu comportamento distante, havia guardado por ele um amor afetuoso durante sua longa doença. Sua reação à notícia acabou se dando a contragosto [unwillig] nos seguintes termos: “Era essa a novidade?” – Nossa experiência cotidiana nos mostra que, nos casos de Dementia praecox, também os sentimentos dos pais em relação aos filhos tendem a se esfriar.
Em um jovem por mim observado, a doença se manifestou de maneira bastante precoce. Sua transferência sobre a mãe era tamanha que durante a sua primeira infância, aos 3 anos de idade, ele teria certa vez explicado: “Mãe, quando você morrer, vou jogar uma pedra na minha cabeça, assim, também estarei morto”. Ele não permitia, nem por um instante, que sua mãe ficasse com seu pai, ele tomava posse dela durante os passeios e a supervisionava com ciúmes, manifestando hostilidade contra seu irmão. Desde pequeno, ele mostrava uma tendência anormal ao conflito [Widerspruch]; a respeito dele, sua mãe diz: já naquela época, ele era o espírito que sempre nega [der Geist, der stets verneint ][19]. Ele não se relacionava com outros meninos e não saia de perto de sua mãe. Com treze anos, ele se tornou indisciplinável em casa, a ponto de seus pais precisarem confiá-lo a uma outra pessoa. A mãe o levou a sua nova residência e, no momento da despedida, o jovem estava completamente mudado. O excessivo afeto e amor até então dirigido à mãe havia se transformado em um sentimento de frieza [Gefühlskälte] absoluta. Ele escrevia cartas rudes e formais, nas quais ele nunca mencionava a mãe. Gradualmente, desenvolveu-se no paciente uma grave psicose alucinatória, ficando cada vez mais claro, ao longo de sua evolução, o empobrecimento [Verödung] de sua vida sentimental [Gefühlslebens].
Como a investigação psicanalítica nos aponta, uma forte inimizade costuma se manifestar em doentes mentais assumindo o lugar antes ocupado por de uma afetuosidade fervorosa[20]. Esse abandono da libido ligada a um objeto, que em um dado momento havia se transferido com muita intensidade, é irrevogável na Dementia praecox.
Na anamnese dos nossos pacientes, ouve-se muito: ele (ou ela) era mais quieto, inclinado à ruminação, não se relaciona com ninguém, evitava o convívio social e os momentos de lazer, nunca estava muito contente na presença dos outros. Ora, podemos dizer que tais pessoas não possuíam a real capacidade para transferir sua libido ao mundo externo. Essas pessoas irão mais tarde compor os elementos antissociais nas instituições asilares. Falta o elemento sentimental [Gefühlsinhalt] às suas palavras. Eles usam o mesmo tom de voz, e os mesmos gestos [Mimik], ao falar de coisas importante e de coisas sem qualquer importância. Uma reação dos afetos [Affekte] aparece apenas quando tocamos no complexo[21], podendo nestes casos se manifestar de um modo particularmente intenso.
Os doentes que sofrem de Dementia praecox são em certo sentido muito sugestionáveis, o que poderia estar em contradição com a hipótese por nós assumida a respeito da insuficiência da transferência sexual nestes pacientes. Em todo caso, a sugestionabilidade aqui é completamente diferente daquela que ocorre na histeria. Ela parece consistir apenas no fato do paciente não questionar este ou aquele comando, posto que no momento ele se encontra demasiado indiferente para questionar alguma coisa (“automatismo de comando” [Befehlsautomatie] de Kraepelin[22]). O chamado transtorno de atenção [Störungen der Aufmerksamkeit] é aqui um fenômeno de importância capital[23], o que me faz pensar que essa sugestionabilidade é na verdade uma simples perda da resistência [Widerstandslosigkeit]. Ela se altera facilmente em resistência. O negativismo na Dementia praecox é o completo oposto da transferência. Os doentes são – ao contrário dos histéricos – apenas até certo ponto acessíveis através da hipnose. Também, ao tentar a psicanálise[24], percebemos a falha na transferência; por esta razão, ela não entra no procedimento terapêutico da Dementia praecox.
No trato com os pacientes, reconhecemos essa escassez de transferência ainda de outras formas. Nunca os vemos realmente bem-humorados. Eles não têm senso de humor. Seu riso é vazio, forçado, ou ainda grosseiramente erótico, mas nunca cordial. Normalmente, aliás, não há nada de alegre neste riso, mas apenas a manifestação do complexo; isso vale, por exemplo, para a risada estereotipada daquele que alucina, pois as alucinações sempre dizem respeito ao complexo. O doente passa a se apresentar de maneira rude e desajeitada; ele exprime uma falta de implicação [Applikation] em relação ao seu entorno de modo particularmente claro. Kraepelin chama bastante a atenção para uma “perda da graciosidade [Grazie]”. A necessidade de constituir um entorno agradável e amigável se perde no doente. Tal como o apego às pessoas, o apego às atividades ordinárias e aos ofícios também tendem a desaparecer. Os doentes se afundam de bom grado dentro de si mesmos e – o que me parece particularmente característico – eles não sabem o que é tédio. Nas instituições, podemos instruir os doentes em sua maioria para que realizem trabalhos bastante úteis. Trata-se aqui de uma sugestão-ao-trabalho [Arbeitungssuggestion], um trabalho ao qual os pacientes se subordinam de modo indiferente, sem prazer na sua ação. Quando a sugestão cessa, o trabalho se interrompe. Uma aparente exceção são os pacientes que trabalham incansavelmente, sem descanso, começando de manhã cedo e indo até tarde. Via de regra, essa forma de trabalhar se dá em função de um complexo. Por exemplo, um doente cultiva com bastante zelo a horta do asilo, pois considera todo o território da instituição como sendo sua propriedade. Um paciente bastante idoso atua incansavelmente na cozinha da sua unidade, lavando as louças, e não aceita a ajuda de ninguém. Ele escuta duendes falando através da água da pia. Um dia os duendes o teriam profetizado que se o paciente lavasse 10.000 louças antes de sua morte ele iria se juntar a eles. O homem de 80 anos não se interessava por mais nada a não ser por essa atividade, que ele exercia em meio a cerimônias secretas.
Os doentes deixam de estabelecer uma relação íntima com os seus pertences. Nada o que os circunda é capaz de estimulá-los. É claro que com alguma frequência eles manifestam um grande anseio [Verlangen] por certas coisas; porém, a realização deste desejo permanece completamente sem efeito [Eindruck]. Eles também guardam cuidadosamente certos objetos, no entanto, situações oportunas acabam mostrando que eles não possuem qualquer carinho real por essas coisas. Por exemplo, um paciente colecionava uma grande quantidade de pedras ordinárias. Ele as considerava como preciosas e lhes atribuia um imenso valor. A gaveta na qual ele as guardava acabou cedendo por causa peso. Quando as pedras foram retiradas, o paciente protestou contra a usurpação dos seus direitos. Ele não ficou triste pelas preciosidades perdidas, mas procurou novos pedregulhos. Essas serviram tão bem quanto as anteriores como símbolo de sua pretensa riqueza. – Certamente, a tão frequente ânsia de destruição doentes [Zerstörungssucht] dos doentes se enraíza em parte na falta de satisfação com as coisas[25].
Em uma boa parte dos casos, o transtorno toca não apenas às sublimações sociais mais sofisticadas, que se formaram gradualmente ao longo da vida, mas também àquelas que apareceram durante infância: vergonha, nojo, sentimentos morais, compaixão etc. Uma investigação mais aprofundada poderia nos mostrar uma eliminação parcial desses sentimentos em todos os casos de Dementia praecox. Tal transtorno é facilmente perceptível em todos os casos graves. Os fenômenos mais grosseiros desse tipo correspondem aos atos de chafurdar nos excrementos, de beber urina, e a falta de higiene, todos eles indicando uma perda do sentimento de nojo [Ekelgefühls], assim como o comportamento erótico inconveniente e o ato de se exibir, que revelam por sua vez uma perda do sentimento de vergonha [Schamgefühls]. Lembramos aqui do comportamento das crianças que ainda não conhecem o nojo ligado aos excrementos, nem a vergonha diante da exposição. É neste mesmo sentido que podemos entender a ausência de inibição que leva muitos desses doentes a falar sobre a sua vida íntima. Desse modo, eles rejeitam apenas aquelas reminiscências que para eles acabaram perdendo todo valor e interesse. O sentimento de compaixão também desaparece, como demonstra especialmente o comportamento destes doentes frente às ações cruéis por eles cometidas. Certa vez, poucas horas após ter baleado seu inofensivo vizinho e ferido gravemente sua mulher, vi um desses doentes contar com toda calma e paz de espírito os motivos do ato por ele cometido enquanto assaboreava tranquilamente refeição que lhe havia sido oferecida.
A partir daquilo que foi visto até aqui, tomamos conhecimento de dois grupos de fenômenos: uns mostram que a libido é afastada dos objetos animados e inanimados, os outros revelam a perda dos sentimentos adquiridos por meio da sublimação. Assim, a Dementia praecox implica a dissolução [Aufhebung] do amor objetal[26] e da sublimação. Ora, um tal estado da sexualidade, nós não testemunhamos senão durante a primeira infância. Juntamente com Freud, nós daremos a este estado o nome de “autoerotismo”. Nesta mesma época, os investimentos objetais e a sublimação eram ausentes. Neste sentido, a particularidade psicossexual da Dementia praecox consiste no retorno do indivíduo doente ao autoerotismo, sendo os sintomas da doença uma forma de atividade sexual autoerótica.
Obviamente, isso não quer dizer que toda exigência [Regung] sexual do doente seja puramente autoerótica, mas sim que toda afeição dirigida pelo doente a outras pessoas se encontra, em algum nível, afetada pelo palor do autoerotismo. Quando testemunhamos em uma paciente do sexo feminino um amor aparentemente muito intenso e arrebatador, somos logo surpreendidos pelo caráter sempre despudorado das suas manifestações. A perda do sentimento de vergonha enquanto produto sublimatório significa em todo caso para nós um passo em direção ao autoerotismo. Além disso, notamos que esses doentes se apaixonam rapidamente e aleatoriamente por uma pessoa, trocando-a por outra com a mesma rapidez. Nos asilos, as mulheres sempre se apaixonam pelo mesmo médico; cedo ou tarde, cada uma delas produz o delírio de estar noiva ou casada com ele; elas acreditam estarem grávidas do médico, vendo em cada palavra dele um sinal de amor. Se o médico vai embora, um substituto acaba rapidamente ocupando o seu lugar na vida sentimental [Gefühlsleben] dessas pacientes. Os doentes se encontram, portanto, ainda em condições de projetar suas necessidades sexuais sobre uma pessoa, mas não são mais capazes de realmente aplicá-la à pessoa amada. Outros pacientes cultivam ao longo dos anos um amor imaginário; mas se trata de um amor que existe apenas na sua fantasia – talvez elas nunca tenham visto o objeto sexual; na realidade elas se fecham a todo e qualquer tipo de contato com as pessoas. Em suma, alguma expressão do autoerotismo é sempre verificável. – Nestes casos, em que um longo período de remissão dos sintomas parece nos indicar uma cura, a limitada capacidade de adaptação ao mundo externo constitui em geral o traço patológico mais facilmente identificável.
O doente que afasta sua libido dos objetos coloca-se deste modo em oposição ao mundo. Sozinho, ele acaba então se defrontando com um mundo que lhe é hostil. Ao que tudo indica, é como se as ideias de perseguição[27] manifestas pelo paciente se direcionassem principalmente às pessoas sobre as quais ele já havia um dia transferido sua libido em um grau particularmente elevado. Assim, em muitos casos, o perseguidor teria sido originalmente o objeto sexual, e o delírio de perseguição teria uma origem erógena.
No autoerotismo da Dementia praecox, não se encontra apenas a fonte do delírio de perseguição, mas também do delírio de grandeza. Em condições normais, quando duas pessoas transferem sua libido uma à outra, existe uma relação mútua de superestimação amorosa (chamada por Freud de “superestimação sexual”[28]). O doente mental transfere a si mesmo, como seu único objeto sexual, toda a libido que um indivíduo sadio distribui à soma de objetos animados e inanimados que o rodeiam. A superestimação sexual acaba se aplicando apenas a si mesmo, chegando a tomar proporções enormes, a ponto do doente se considerar a totalidade do mundo! A origem do delírio de grandeza da Dementia praecox é a superestimação sexual, reflexiva ou autoerótica, que retorna ao eu[29]. Portanto, o delírio de perseguição e o delírio de grandeza estão intimamente ligados. Todo delírio de perseguição na Dementia praecox contém, implicitamente, um delírio de grandeza.
O bloqueio autoerótico contra o mundo externo não age apenas no comportamento reativo do doente, mas também no receptivo. O doente se protege contra as percepções sensoriais reais a que ele tem acesso. Pela via alucinatória, seu inconsciente dá forma a percepções sensoriais com base nos desejos reprimidos. O doente vai tão longe nesse autobloqueio que chega a mesmo boicotar em algum nível o mundo externo; ele não mais age sobre o mundo, e dele nada mais retira, o doente sozinho detém o monopólio da entrada das impressões sensoriais.
Este paciente, que não se interessa pelo mundo externo, que vive em um estado vegetativo, completamente absorto em si mesmo, e que através de sua expressão facial sem vida nos dá a impressão de uma completa lentidão no pensamento, pode parecer aos olhos habituados do observador como um indivíduo debilitado intelectual e emocionalmente [intellektuell und gemütlich verblödet][30]. “Demência” é a expressão corrente utilizada para designar este estado. No entanto, a mesma expressão é utilizada para descrever os estados que se seguem a outras psicoses que, concretamente falando, são absolutamente distintas da forma que nos interessa aqui. Refiro-me à demência epiléptica, paralítica e senil. O que esses estados têm em comum é apenas o efeito – um rebaixamento das capacidades intelectuais –, mas isso também apenas até certo ponto. Se não perdermos de vista este detalhe, estaremos autorizados a manter a nomenclatura. Mas antes de qualquer coisa, é preciso cuidar para não tomar – como ocorre com frequência – uma ideia delirante por uma forma de “debilidade mental” [schwachsinnig][31] pelo simples fato dela ser absurda. Se fosse assim, teríamos também que considerar os absurdos cheios de sentido dos sonhos como um produto da debilidade mental. A demência paralítica, bem como a demência senil, destrói completamente as capacidades intelectuais; ela conduz a fenômenos patológicos grotescos. A demência epiléptica conduz a um extraordinário empobrecimento e a uma monotonia da vida representacional, a uma perturbação do entendimento. No caso dessas doenças, as alterações podem no máximo interromper temporariamente sua evolução, mas em geral elas são progressivas. Por outro lado, a “demência” na Dementia praecox se assenta no bloqueio sentimental [Gefühlsabsperrung]. As capacidades intelectuais permanecem conservadas; o contrário, com frequência alegado, nunca foi realmente comprovado. Em função do bloqueio autoerótico, o doente se mostra apenas insensível às novas impressões, não reagindo ao mundo externo em absoluto ou interagindo com ele de modo anormal. Este estado pode se dissolver a qualquer momento; a remissão pode ser tamanha a ponto de nem mesmo suspeitarmos de um déficit intelectual.
Ao passo que a “demência” na Dementia praecox é um fenômeno autoerótico e que, nesse estado, toda e qualquer reação sentimental normal ao mundo externo se mostra ausente, o epiléptico ou os dementes orgânicos reagem ao mundo externo com intensos e vívidos sentimentos, pelo menos enquanto são capazes entender o que se passa em torno deles. O epiléptico nunca se relaciona de modo indiferente, manifestando de maneira extravagante tanto sentimentos de amor como de ódio. Ele transfere uma enorme parcela da sua libido às pessoas e às coisas e demonstra amor e gratidão em relação aos seus familiares. Ele tem prazer no seu trabalho e, com grande obstinação, mantem-se ligado a seus pertences, guardando cuidadosamente o menor pedacinho de papel e contemplando reiteradamente e com alegria os seus objetos de valor.
É também no nível do autoerotismo que repousa a oposição entre Dementia praecox e a Histeria. Naquela, afastamento de libido, nessa, investimento objetal excessivo; naquela, perda da capacidade de sublimação, nessa, aumento da sublimação.
As características psicossexuais da histeria podem ser observadas com certa frequência já durante a infância, ao passo que a irrupção das suas manifestações patológicas mais graves ocorre apenas muito mais tarde. Todavia, alguns casos já apresentam durante a infância sinais manifestos da doença. Deduzimos daí que a constituição psicossexual dos histéricos é inata. A mesma conclusão vale para a Dementia praecox. Durante as anamneses, constatamos com bastante frequência que os doentes sempre foram bizarros e sonhadores e que não se relacionavam com ninguém. Muito antes da “irrupção” da doença, eles já não eram muito inclinados a transferir sua libido, fazendo da fantasia o campo de suas aventuras amorosas. Dificilmente um caso se mostra livre dessas características. Deve-se também indicar a tendência especialmente grande dessas pessoas ao onanismo[32]. Tais indivíduos nunca superaram completamente o autoerotismo infantil. Neles, o amor objetal não se desenvolveu completamente, razão pela qual se voltam completamente ao autoerotismo quando a doença se torna manifesta. A constituição psicossexual da Dementia praecox se baseia, portanto, em uma inibição do desenvolvimento [Entwicklungshemmung]. Os casos patológicos menos numerosos que apresentaram rudimentos de manifestações psicóticas desde infância comprovam essa concepção de modo surpreendente, na medida em que permitem o claro reconhecimento da permanência patológica destes indivíduos no autoerotismo. Um paciente por mim observado já mostrava no terceiro ano de idade um declarado negativismo[33]. Na hora do banho, ele resistia contraindo os dedos e não se deixava secar. Esse comportamento, ele também demonstrou durante o segundo ano do Ginásio[34]. Em seu terceiro ano de vida, ao longo de alguns meses, esse mesmo paciente não colaborava na hora de fazer cocô: todos os dias sua mãe tinha que insistir para que ele parasse com essa mania. Esse exemplo mostra uma fixação anormal em uma zona erógena – uma típica manifestação autoerótica. O jovem paciente mencionado mais acima, que aos 13 anos de idade afastou repentinamente sua libido de sua mãe, comportava-se do mesmo modo, negativista, já durante a primeira infância.
A inibição do desenvolvimento psicossexual não consiste apenas na superação incompleta do autoerotismo, mas também em uma persistência anormal dos impulsos parciais [Partialtriebe]. Essa característica, que mereceria uma análise especial e aprofundada, será aqui ilustrada unicamente através de um único fragmento da história clínica desse mesmo paciente, cujo comportamento autoerótico negativista eu acabei de descrever. Quando (aos 27 anos de idade), por conta de sua recusa alimentar, precisou ser alimentado por um médico com ajuda de uma sonda, ele viu nessa intervenção um ato de pederastia [päderastischen][35], vendo a partir de então no médico um perseguidor homossexual. Encontramos aqui um exemplo da expressão do impulso parcial homossexual e de seu deslocamento da zona anal a uma outra zona erógena (“deslocamento para cima” [Verlegung nach oben] de Freud[36]), assim como a origem erógena de uma ideia de perseguição.
Uma persistência anormal dos impulsos parciais também é próprio às neuroses. Ora, tal persistência também aponta para uma inibição no desenvolvimento psicossexual. Nelas, no entanto, falta a tendência autoerótica. O transtorno na Dementia praecox é muito mais profundo; o indivíduo que nunca se libertou completamente dos estágios mais precoces do desenvolvimento psicossexual é, cada vez mais, com a evolução do processo patológico [Krankheitsprozess][37], reenviado ao estágio autoerótico.
A suposição de uma constituição psicossexual anormal, relativa ao autoerotismo, me parece explicar grande parte das manifestações patológicas da Dementia praecox, tornando supérfluas as hipóteses tóxicas discutidas recentemente[38].
Naturalmente, é impossível esgotar em uma curta conferência os inúmeros fenômenos patológicos que podem ser atribuídos a essa inibição do desenvolvimento. Em todo caso, um ensaio mais amplo sobre o assunto não seria hoje realizável, posto que a análise das psicoses fundada na teoria freudiana ainda se encontra em seu início. Mesmo assim, ela parece nos trazer um esclarecimento que não poderia ser obtido por outras vias. Tenho aqui em mente, em primeiro lugar, o problema do diagnóstico diferencial da Dementia praecox em relação à Histeria e à Neurose obsessiva. Da mesma forma, a gênese das diferentes formas de delírio me parece acessível à pesquisa analítica. Sobre transtornos intelectuais no quadro clínico da Dementia praecox, o presente método talvez nos ajude a alcançar uma compreensão da qual hoje ainda estamos bem longe. ♦
Referências
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* Karl Abraham é… Karl Abraham.
** Caio Padovan é Psicólogo, doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Atualmente é professor de Psicologia clínica na Universidade de Montpellier 3 e pesquisador associado do Centre de recherche psychanalyse, médecine et société (CRPMS) e do Laboratoire Epsylon (Dynamiques des capacités humaines et des conduites de santé).
*** Julia Joergensen Schlemm é psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia clínica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutoranda em Filosofia da Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
[1] Baseado em uma palestra. [N.T. A palestra em questão fora realizada em Salzburgo, no dia 26 de abril de 1908, no contexto do primeiro Congresso internacional de psicanálise. O texto aqui traduzido foi publicado três meses mais tarde, em: Abraham, K. (1908). “Die psychosexuellen Differenzen der Hysterie und der Dementia praecox”, Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie, 31(Zweites Juliheft), pp. 521-533].
[2] Ver principalmente: Jung, C.G. (1907). Über die Psychologie der Dementia praecox. Halle a. S: Verlagsbuchhandlung Carl Marhold, 179 p. [N.T. Para uma tradução brasileira, ver: Jung, C. G. (1986). A psicologia da Dementia praecox: um ensaio. In: C.G. Jung. Obra completa, 3: Psicogênese das doenças mentais. Petrópolis: Editora Vozes, 341 p., pp. 1-137. O quarto capítulo desta obra será dedicado ao estabelecimento de um paralelo entre a Histeria e a Dementia praecox].
[3] [N.T. A partir da discussão apresentada por Paulo César de Souza em As palavras de Freud, decidimos traduzir Verdrängung por “repressão”, entendendo ser esta a tradução mais adequada do ponto de vista etimológico. Cf. Souza, P.C. (2010). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Companhia das Letras, 265 p., p. 112s.].
[4] [N.T. Sobre a tradução de Trieb por “impulso”, baseamo-nos no trabalho de Fonseca, E. R. (2012). Psiquismo e vida: o conceito de impulso nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba: UFPR, 383 p.].
[5]Como principal fonte de inspiração para a presente exposição, cujo conteúdo vai muito além das considerações até então publicadas por Freud, devo muito às comunicações escritas e orais do Herr Prof. Freud; alguns elementos tomaram corpo através de conversas com os Herren Prof. Bleuler e Dr. Jung durante o meu serviço na clínica psiquiátrica de Zurique. [N.T. Entre 1904 e 1907, Abraham havia trabalhado com Jung e Bleuler na clínica psiquiátrica Burghölzli, em Zurique. Por iniciativa de Bleuer, diretor da instituição desde 1898, as teorias de Freud já vinham sendo estudadas pela sua equipe há alguns anos. Abraham deixaria a Suíça no mês de novembro de 1907 e começaria sua prática psicanalítica em Berlin em 1908. Para uma biografia do autor, ver o recente estudo de Bentinck van Schoonheten, A. (2016). Karl Abraham. Life and Work, a biography. London: Karnac, 432 p.].
[6] Ver: Rank, O. (1907). Der Künstler: Ansätze zu einer Sexual-Psychologie. Wien und Leipzig: Hugo Heller & Cie, 56 p. [N.T. Esta obra constitui a primeira grande contribuição de Otto Rank à psicanálise. Recebida com entusiasmo por Freud e pelo movimento psicanalítico a ele contemporâneo, a obra de Rank seria reeditada três vezes, entre 1918 e 1925. A partir de sua quarta edição, consideravelmente aumentada em relação à primeira, o presente trabalho será traduzido para outras línguas, como o inglês, o francês e o italiano].
[7] [N.T. Abraham lança mão aqui de um jogo de palavras particularmente difícil de reproduzir em português. A libido “insatisfeita” [unbefriedigte] dá lugar à “satisfação” [Befriedigung], produzindo assim um estado de “tranquilidade” e “paz interior”. A partir do substantivo Frieden, as noções de tranquilidade e paz interior se encontram implícitas nestas duas palavras compostas, unbefriedigte e Befriedigung].
[8] Ver Freud, S. (1905). “Bruchstück einer Hysterie-analyse”, Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie, 18(4), pp. 385-309, (5), pp. 408-467; e Sadger, I. (1907). “Die Bedeutung der psychoanalytischen Methode nach Freud”, Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie, 30, pp. 41-52. [N.T. Neste mesmo ano em que Abraham publica seu artigo, Isidor Sadger será o primeiro a empregar o termo “Narcisismo” desde um ponto de vista psicanalítico. Cf. Sadger, I. (1908). “Psychiatrisch-Neurologisches in psychoanalytischer Beleuchtung”, Zentralblatt für das Gesamtgebiet der Medizin und ihrer Hilfswissenschaften, 7, pp. 45-47; 8, pp. 53-57].
[9] [N.T. Ao longo de todo texto, evitamos traduzir o termo alemão Gegenstand por “objeto”, entendendo que a noção de objeto, em alemão Objekt, assume em psicanálise uma dimensão majoritariamente conceitual – enquanto objeto do impulso – que não pode ser sistematicamente estendida para os Gegenstände, quer dizer, os objetos concretos do mundo].
[10] Abraham, K. (1909). Traum und Mythus: eine Studie zur Völkerpsychologie. Wien und Leipzig: Franz Deuticke, 73 p. [Abraham desenvolverá este argumento na terceira parte do presente trabalho, intitulada Die Symbolik in der Sprache und im Traume sowie in den anderen Phantasiegebilden (“O simbolismo na linguagem e nos sonhos, bem como em outras formações da fantasia”). Lembramos que esta obra compõe o quarto volume da coleção organizada por Freud: Schriften zur angewandten Seelenkunde ou “Escritos de psicologia aplicada”].
[11] Kleinpaul, R. (1892). Das Stromgebiet der Sprache: Ursprung, Entwickelung und Physiologie. Leipzig: Wilhelm Friedrich, 527 p., p. 468. [N.T. Abraham faz referência aqui ao trabalho do escritor polímata alemão Rudolf Alexander Reinhold Kleinpaul (1845-1918). Em 1893, seus escritos sobre linguagem serão reunidos em três volumes sob o título de Das Leben der Sprache und ihre Weltstellung. A obra supracitada, Das Stromgebiet der Sprache, inicialmente publicada em 1892, irá compor o segundo destes volumes].
[12] [N.T. Localizamos na página indicada por Abraham uma referência não literal de Kleinpaul sobre o assunto. Ela se encontra em um capítulo dedicado à Angabe des Geschlechts (“Indicação de gênero”). Um ano mais tarde, em Traum und Mythus, Abraham retoma a mesma referência de maneira não literal: Der Mensch sexualisiert das All (“o homem sexualiza tudo”), citando uma passagem mais longa a partir da mesma obra de Kleinpaul. Cf. Abraham, K. (1909). Ibid., p. 13-4. No entanto, o leitor interessado, que porventura for atrás da referência, irá logo se dar conta que Abraham a cita de maneira imprecisa, fazendo menção a outra obra de Kleinpaul, a saber: Sprache ohne Worte. Idee einer allgemeinen Wissenschaft der Sprache, publicada originalmente em 1888 e que compõe o primeiro e não o segundo volume de Das Leben der Sprache und ihre Weltstellung].
[13] [N.T. “Liebhaber” significa literalmente “aquele que tem amor”].
[14] [N.T. A primeira descrição da Dementia praecox feita por Emil Kraepelin data de 1893, na quarta edição de seu célebre manual de Psiquiatria. No segundo volume da sétima edição desta mesma obra, publicado em 1903, a Dementia Praecox será definida como um transtorno mental crônico, caracterizado por um “estado particular de debilidade” [eigenartige Schwächezustände], podendo assumir três formas clínicas principais: hebefrênica, catatônica e paranoide. Cf. Kraepelin, E. (1903). Psychiatrie. Ein Lehrbuch für Studierende und Ärzte, 2 vol. Leipzig: Johann Ambrosius Barth, 7. Edição, 478 p., 892 p., p. 176. Trata-se aqui da edição que precede diretamente o artigo de Abraham e onde Kraepelin irá abordar os diferentes estados de debilidade, intelectual, emocional e da vontade que serão retomadas sistematicamente pelo psicanalista ao longo do seu trabalho].
[15] [N.T. O termo Anstalt, que poderia ser traduzido de maneira genérica por “instituição”, é empregado aqui sinônimo de Irrenanstalt, tradução alemã da expressão francesa Asile d’aliénés. Considerando o modo particular de funcionamento deste tipo de instituição na passagem do século XIX para o século XX e seu uso corrente em língua portuguesa durante o mesmo período no Brasil, optamos aqui pelo termo “asilo” em português].
[16] Ao falar em doença “mais grave” e “mais branda”, não nos referimos aqui ao processo patológico em si, mas sim às consequências práticas (sociais) da doença. [N.T. Na quinta edição de seu manual de psiquiatria, datado de 1896, Kraepelin introduz a noção de “processo patológico” [Krankheitsprozess] a partir de sua crítica às abordagens puramente sintomatológicas das doenças mentais. A este respeito, ver o prefácio do autor em: Kraepelin, E. (1896). Psychiatrie. Ein Lehrbuch für Studirende und Aerzte. Leipzig: Johann Ambrosius Barth, 5. Edição, 825 p. É por esta razão que Abraham chama a atenção em nota para a continuidade entre formas mais graves e mais brandas da Dementia praecox. Embora houvesse, do ponto de vista sintomatológico, diferenças notáveis entre os dois quadros clínicos, ambos manifestariam o mesmo processo patológico. Mais adiante, discutiremos com mais detalhes a noção de processo patológico em Kraepelin].
[17] [N.T. A noção de “sentimento” [Gefühl] não coincide com aquelas de “emoção” [Gemüt ou Gemütbewegung] e de “afeto” [Affekt]. Quando Abraham utiliza os termos sentimento e emoção, podemos supor aqui uma referência implícita à Kraepelin, que tenderá a empregá-los no mesmo sentido no capítulo de seu manual dedicado à Dementia praecox. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol. 2, p. 182-3. Quanto ao uso do termo afeto ou afetividade, talvez seja possível estabelecer aqui uma ponte com proposta feita por Bleuler dois anos mais cedo. Cf. Bleuler, E. (1906). Affektivität, Suggestibilität, Paranoia. Halle a. S.: Carl Marhold, 144 p].
[18] [N.T. A partir da quinta edição de seu manual de psiquiatria, publicada em 1896, Kraepelin irá distinguir, do ponto de vista etiológico, “dois grandes grupos de transtornos mentais” [zwei grosse Gruppen von Geistesstörungen]: as “doenças endógenas” e as “doenças exógenas”. Essa distinção, que encontra sua origem no Esboço para uma teoria das doenças do sistema nervoso do neurologista alemão Paul Möbius, estabelece duas ordens de fatores causais: as “causas internas” [inneren Ursachen] e as “causas externas” [ausseren Ursachen]. Quando o principal fator etiológico de uma doença corresponde a uma causa interna, esta doença será considerada como endógena; em contrapartida, quando o principal fator etiológico corresponde a uma causa externa, ela será considerada como exógena. Cf. Möbius, P.J. (1893). Abriss der Lehre von den Nervenkrankheiten. Leipzig: Ambr. Abel (Arhut Meiner), 188 p., p. 7. Seguindo este princípio, Kraepelin irá isolar dois tipos de causa interna: as “predisposições gerais” [Allgemeine Praedisposition] e as predisposições individuais [persönliche Praedispotion], assim como dois tipos de causa externa: as “causas físicas” [körperliche Ursachen] e as “causas psíquicas” [psychische Ursachen]. Cf. Kraepelin, E. (1896). Ibid., p. 13s. Esta mesma tipologia pode ser encontrada desde a primeira edição de seu manual, datada de 1883. Ela equaciona uma série de categorias etiológicas já bastante consolidadas em psiquiatria durante a segunda metade do século XIX. Traçamos suas origens a partir das contribuições do alienista francês Etienne Esquirol que, já em 1816, propõe uma distinção entre causas “gerais e particulares, físicas ou morais, primitivas ou secundárias, predisponentes ou excitantes”. Cf. Esquirol, E. (1816). “Folie”, Dictionnaire de sciences médicales, vol. 16. Paris: Panckoucke, pp. 151-240., p. 164. Em seu artigo, Abraham retoma a noção de “fator exógeno”, então definida por Möbius e por Kraepelin entre 1893 e 1896, interpretando-a a partir das recentes contribuições de Freud sobre o desenvolvimento psicossexual infantil. Segundo Abraham, por influência de fatores externos – como a educação – a criança será em um dado momento normalmente levada a inibir suas inclinações afetivas de amor e ódio dirigidas aos pais e aos irmãos e irmãs. Porém, em função de causas internas – uma “constituição psicossexual anormal”, como dirá o autor mais adiante – aquele que sofre de Dementia praecox será incapaz de inibi-las, permanecendo, portanto, preso a uma forma autoerótica de relação com o mundo externo. É neste sentido que, ao cabo de seu artigo, Abraham afirmará de maneira categórica “a constituição psicossexual da Dementia praecox se baseia (…) em uma inibição do desenvolvimento”. Seria interessante acompanhar, a partir de 1908, a evolução das ideias a respeito do estatuto psicopatológico das psicoses no interior do movimento psicanalítico – e principalmente a partir de 1911, quando a noção de Narcisismo, pensada enquanto período intermediário do desenvolvimento psicossexual entre o autoerotismo e o amor objetal, será utilizada como um importante articulador conceitual no contexto do caso Schreber, um caso de Dementia praecox paranoide. Não dispondo aqui das condições ideais para aprofundar tais considerações sobre a história da recepção psicanalítica das psicoses, limitamo-nos a chamar a atenção para esta íntima relação da psicanálise com a psiquiatria descritiva de seu tempo, uma relação em geral negligenciada e pouco estudada pela literatura secundária].
[19] [N.T. Considerando a popularidade do poeta aleão Johann Wolfgang von Goethe, podemos tomar essa passagem – tal como sugerem Douglas Bryan e Alix Strachey, tradutores ingleses de Abraham – como uma referência implícita a sua obra Fausto. Cf. Abrahem, K. (1927). Selected Papers of Karl Abraham, M.D. London: Leonard & Virginia Woolf at the Hogarth Press and The Institute of Psycho-analysis, 527 p., p. 70. Ela se encontra na primeira parte da tragédia em questão, quando Mefistófeles se apresenta a Fausto como um “(…) espírito que sempre nega, e com razão, pois tudo aquilo que existe merece ser colocado abaixo, e seria muito melhor se nada existisse. Assim, aquilo que você chama de pecado, de destruição, em outros termos o mal, me constitui” [Ich bin der Geist, der stets verneint! Und das mit Recht; denn alles, was entsteht, Ist wert, daß es zugrunde geht; Drum besser wär’s, daß nichts entstünde. So ist denn alles, was ihr Sünde, Zerstörung, kurz, das Böse nennt, Mein eigentliches Element – tradução livre]. Independente do caráter voluntário ou não desta referência, seja pela paciente, seja por Abraham, a comparação não deixa de ser interessante, entre um paciente que tudo nega, incluindo às exigências do mundo externo, e o personagem de Goethe, que se apresenta, de um ponto de vista por assim dizer filosófico, como o negativo de tudo aquilo que é].
[20] [N.T. Trata-se aqui do mesmo fenômeno descrito por Alfred Adler neste mesmo ano de 1908, em As manifestações da pulsão agressiva na vida e na neurose. Neste trabalho, traduzido por nós e publicado em um número anterior na presente revista, o médico vienense chamará a atenção para os processos de “reversão da pulsão em seu contrário”. Cf. Adler, A. (2018). “As manifestações da pulsão agressiva na vida e na neurose”, Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -6, p. 9. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/12/10/n06-09/>. Como discutido em nota à tradução de Adler, Freud irá retomar o mesmo mecanismo em 1915, em seu artigo sobre as pulsões, empregando para tal a expressão “reversão em seu contrário”].
[21] [N.T. Referência do autor à teoria dos “complexos”, tal como fora desenvolvida pela chamada “Escola psicanalítica de Zurique”, grupo do qual Abraham fazia parte. Ela encontra suas origens nos experimentos de associação realizados pela equipe de Bleuler a partir de 1902, no Burghölzli. Cf. Jung, C.G. (1906-1910). Diagnostische Assoziationsstudien. Beiträge zur experimentellen Psychopathologie, 2 vol. Leipzig: Johann Ambrosius Barth, 281 p., 222 p. Uma aplicação direta desta noção será feita por Jung no segundo e no terceiro capítulo da Psicologia da Dementia praecox, ambos inteiramente dedicados à influência dos “complexos carregados de sentimento” [gefühlsbetonte Komplexe] no psiquismo e nas associações de ideias. Segundo Abraham, o pensamento dos pacientes que sofrem de Dementia praecox não porta nenhuma “tonalidade sentimental” [Gefühlsbetonung] fora do complexo. Lembramos que a primeira referência de Freud à noção de complexo será feita em 1906, em uma conferência sobre as contribuições da psicanálise para o estabelecimento de fatos jurídicos. Cf. Freud, S. (1906). “Tatbestandsdiagnostik und Psychoanalyse”, Archiv für Kriminal-Anthropologie und Kriminalistik, 26, pp. 1-10. Encontramos nesse texto uma referência direta aos estudos de Bleuler e Jung sobre os experimentos de associação].
[22] [N.T. Na sétima edição de seu manual de psiquiatria, Kraepelin discutirá o “automatismo de comando” na Dementia praecox como um fenômeno marcado por “um grave comprometimento da vontade” e por um “sufocamento dos próprios impulsos”, dentre outras formas de inibições. Esses pacientes, dirá o autor, especialmente aqueles que se encontram em um estado avançado da doença, manifestam uma docilidade muito característica, submetendo-se voluntariamente a monotonia do dia a dia das grandes instituições asilares. Em alguns casos, é possível observar ainda fenômenos próprios à catalepsia e, muitas vezes, também à ecolalia e à ecopraxia. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol. 2, p. 185].
[23] [N.T. O presente transtorno, que não coincide com aquilo que chamamos atualmente de “déficit de atenção”, será concebido em 1903 por Kraepelin como uma perturbação da reação psíquica aos estímulos provenientes do mundo externo. Segundo o psiquiatra, este fenômeno será observado de maneira particularmente acentuada em pacientes que sofrem de Dementia praecox. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol. 1, p. 158].
[24] [N.T. Entendemos aqui que o autor está se referindo à aplicação do método psicanalítico].
[25] [N.T. Recorrendo mais uma vez à sétima edição manual de psiquiatria de Kraepelin, notamos que o autor irá discutir com mais detalhes a chamada “tendência à destruição” [Neigung zum Zerstören] de alguns doentes, um fenômeno que tende justamente a se manifestar em forma de “ânsia em destruição” [Zerstörungssucht]. Segundo o psiquiatra, essa tendência “geralmente surge da excitação interior, mas às vezes também do tédio e da falta de uma atividade plena de finalidade”, sendo a atribuição de uma função, uma ocupação no asilo, um meio de remediar a situação. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol.1, p. 438].
[26] Um dos pacientes por mim observados conversava consigo mesmo em seus incontáveis escritos tratando-se por “você”; ele era, portanto, o seu único objeto de interesse.
[27] De modo geral, o afastamento da libido do mundo externo está na base da formação do delírio de perseguição. Outros possíveis fatores a serem considerados não serão abordados aqui.
[28] [N.T. Freud discutirá o problema da superestimação sexual na primeira parte dos Três ensaios para uma teoria da sexualidade, dedicada ao estudo das chamadas “Aberrações sexuais”. O tema será abordado no segundo capítulo, sobre os desvios relativos à meta sexual. Cf. Freud, S. (1905). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 83 p., p. 12-3].
[29] De um modo geral, considero que a superestimação sexual autoerótica é a fonte do delírio de grandeza na Dementia praecox. No entanto, a forma especial assumida pelo delírio – a ideia de grandeza – é determinada por um desejo reprimido em particular. [N.T. É interessante notar aqui que Abraham distingue, em termos por assim dizer metapsicológicos, o mecanismo psíquico do delírio de grandeza e o conteúdo ou as representações implicadas nesse mesmo delírio. Esta preocupação com o conteúdo dos delírios manifestos por pacientes psicóticos já havia sido explorada pelo autor um ano antes, em: Abraham, K. (1907). “Über die Bedeutung sexueller Jugendtraumen für die Symptomatologie der Dementia praecox”, Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie, 30, pp. 409-415. Publicado no ano seguinte a partir de uma conferência, o curto trabalho de Jung sobre o Conteúdo das psicoses caminha no mesmo sentido. Cf. Jung, C.G. (1908). Der Inhalt der Psychose. Wien und Leipzig, 26 p.].
[30] [N.T. Referência provável, ainda que indireta, a Kraepelin, que considera de maneira genérica a debilidade intelectual e afetiva como sintomas da Dementia praecox. A este respeito, ver o quinto capítulo, dedicado à Dementia praecox, no segundo volume de Kraepelin, E. (1903). Ibid.
[31] [N.T. Encontramos aqui mais uma provável referência não textual a Kraepelin, neste caso bastante crítica. Em seu manual de psiquiatria, o autor irá empregar o termo Schwachsinn para designar estados genéricos de debilidade mental observados em diferentes formas psicopatológicas, como a epilepsia, a idiotia e, também, a Dementia praecox. O psiquiatra discutirá esses mesmos fenômenos a partir de casos clínicos em seu Introdução à psiquiatria clínica, publicado em duas edições, entre 1901 e 1905. Cf. Kraepelin, E. (1905). Einführung in die Psychiatrische Klinik. Leipzig: Johann Ambrosius Barth, 2. Ed., 373 p].
[32] [N.T. Termo técnico utilizado na época – em alusão à figura bíblica de Onan – para se referir à prática da masturbação. Para um aprofundamento sobre um assunto desde um ponto de vista histórico, ver: Laqueur, T. (2004). Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation. New York: Zone Books, 501 p.].
[33] [N.T. Isolado por Kahlbaum em 1874 como um dos sintomas da Catatonia, o “negativismo” será definido pelo autor como uma perturbação da “esfera da ação e da vontade” [Sphäre der Bethätigung und des Willens] caracterizada por uma tendência à negação de toda e qualquer forma de sugestão ou solicitação, podendo se manifestar de maneira ativa ou passiva. Cf. Kahlbaum, K. (1874). Die Katatonie oder das Spannungsirresein. Eine klinische Form psychischer Krankheit. Berlin: August Hirschwald, 104 p., p. 46s. O mesmo fenômeno será discutido por Kraepelin a partir da quarta edição do seu manual de psiquiatria, publicado em 1893, onde o autor também irá considera-lo como um dos sintomas da Catatonia. Ao lado da Dementia praecox e da Dementia paranoides, a Catatonia será classificada neste ano por Kraepelin como o resultado de um “processo de degeneração psíquica” [psychischer Entartungsprocess]. Cf. Kraepelin, E. (1893). Psychiatrie. Ein kurzes Lehrbuch für Studirende und Aerzte. Leipzig: Ambr. Abel (Arthur Meiner), 4. Ed., 702 p. p. 446s. Mais tarde, enfim, em sua sétima edição, a Catatonia – incluindo os sintomas de negativismo – será descrita como uma das formas da Dementia praecox. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol. 2, p. 209. Um dos primeiros psiquiatras a descrever o negativismo desde um ponto de vista psicanalítico será Otto Gross, em seu trabalho sobre o Diagnóstico diferencial do fenômeno negativista. Neste artigo, publicado em 1904, Gross propõe uma interpretação psicológica do fenômeno em questão com base nas recentes teorias de Freud sobre os mecanismos de defesa. Cf. Gross, O. (1904). Zur Differentialdiagnostik negativistischer Phänomene, Psychiatrisch-neurologische Wochenschrift, 6(37), pp. 345-353, (38), pp. 357-363.
[34] [N.T. “Sekundaner des Gymnasiums”, equivalente ao sétimo ano, de acordo com o sistema educacional brasileiro].
[35] [N.T. Muitas vezes utilizado em língua portuguesa como sinônimo de pedofilia, o termo “pederastia” é empregado aqui em um outro sentido, como sinônimo de comportamento homossexual.
[36] [N.T. Freud utilizará essa expressão anos mais tarde em suas conferências introdutórias, mais precisamente na vigésima primeira, intitulada Desenvolvimento da libido e organização sexual. Cf. Freud, S. (1916-1917). Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, 2 vol. Wien: Hugo Helle, 545 p. Porém, já em 1905, com a publicação da análise do Caso Dora, Freud propõe uma relação deste tipo – na ocasião entre a boca e os órgãos genitais femininos – ao discutir o sonho das ninfas (p. 450-1), sugerindo assim a participação desse mesmo “deslocamento para cima”. Cf. Freud, S. (1905). “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie, 18, pp. 285-309, 408-467. Em Realização de desejo e simbolismo nos contos de fadas, publicado em 1908, Franz Riklin dedicará um capítulo inteiro a este mecanismo de “deslocamento para cima”, citando justamente o caso o Caso Dora como referência. Cf. Riklin, F. (1908). Wünscherfüllung und Symbolik im Märchen. Leipzig und Wien: Hugo Heller, 96 p. Ao que tudo indica, no entanto, a primeira menção explícita de Freud ao mecanismo em questão será feita na segunda edição da Interpretação dos sonhos, publicada em 1909 e provavelmente discutida meses antes com seus colegas mais próximos. Encontramos nesta obra a seguinte expressão: “Verlegung von unten nach oben” (“deslocamento de baixo para cima). Cf. Freud, S. (1909). Die Traumdeutung. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 2. Ed., 386 p., p. 194 (ver o sonho dos dois professores universitários, discutido no quinto capítulo). Em apoio a esta hipótese, podemos citar uma carta de Ernest Jones enviada a Freud no dia 8 de novembro de 1908. Nesta, o psiquiatra inglês afirma ter observado o “seu mecanismo” – quer dizer, de Freud – em um caso de “hipomania”. Tal caso, onde o autor discute um possível deslocamento para boca e para os lábios da excitação dos órgãos sexuais (p. 215), será publicado no ano seguinte. Cf. Jones, E. (1909). “Psycho-analytic notes on a case of hypomania”, American journal of insanity, 66(2), pp. 203-218. No caso particular de Abraham, citamos a carta enviada a Freud no dia 8 de março de 1908, onde o médico descreve o caso de duas pacientes que manifestam um sentimento de tensão e de contração na região da boca, como se ela estivesse amarrada. Como ambas recusam o comércio sexual com seus maridos, tal sentimento será interpretado por Abraham como um “deslocamento para cima” [Verlegung nach oben], quer dizer, dos órgãos genitais para a boca, explicando assim alguns sintomas corporais que teriam daí resultado, como o vaginismo. No dia 2 de fevereiro de 1909, a partir de um outro caso, Freud discutirá o mesmo mecanismo em carta enviada a Abraham, referindo-se a um possível deslocamento do erotismo anal para o erotismo oral].
[37] [N.T. Como explicado acima, a noção de processo patológico será introduzida por Kraepelin em 1896, na quinta edição de seu manual de psiquiatria. Na ocasião, o autor propõe uma “abordagem clínica” das doenças mentais, buscando superar as insuficiências da “abordagem sintomatológica”, quer dizer centrada na descrição e classificação de sintomas. Esta “mudança de ponto de vista”, como dirá o psiquiatra alemão, “mostrou-se cada vez mais urgente” em função de exigências práticas ligadas à “delimitação e ao agrupamento de quadros clínicos”. Segundo Kraepelin, tal mudança consiste no recuo em importância da “significação dos signos patológicos” – quer dizer, dos sintomas – face aos processos que resultam das “condições de emergência, do curso e do término de um dado transtorno”. Passando assim para primeiro plano, o estudo destes processos conduzirá o autor a uma reforma da chamada “teoria das formas” [Formenlehre] clínicas, até então baseadas na descrição “quadros de estado” [Zustandsbilder]. Tal concepção, que encontra suas origens nos anos 1860, com os trabalhos Karl Kahlbaum, será completamente assimilada pela comunidade médica internacional ao longo das primeiras décadas do século XX].
[38] [N.T. Essa hipótese, ligada à “autointoxicação”, será discutida em 1903 por Kraepelin em uma seção de seu manual dedicada às causas da Dementia praecox. A expressão alemã utilizada pelo autor será Selbstvergiftung. Cf. Kraepelin, E. (1903). Ibid., vol. 2, p. 270-1. É interessante notar que, nesta passagem, Kraepelin faz referência a uma possível participação dos órgãos genitais nesse tipo de intoxicação, considerando os efeitos nocivos da “abstinência sexual” [geschlechtliche Enthaltsamkeit]. Curiosamente, o autor não fará qualquer menção aos trabalhos de Freud, limitando-se a evocar os trabahos de um outro médico menos conhecido, Wladimir Tschisch (1855-1924), na época professor na Faculdade de medicina de Dorpat, onde Kraepelin havia trabalhado entre 1886 e 1891. Em 1899, em um artigo dedicado à Catatonia, Tschisch sustentará essa mesma hipótese toxica ligada aos efeitos da abstinência sexual, uma hipótese que ele havia sustentado 1896 – tal como Freud o faria em 1895 – a respeito dos estados de angústia. Cf. Tschisch, W. (1899). “Die Katatonie”, Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie, 6, pp. 38-58, 140-147, 241-257, p. 143-4. Em outra passagem, Kraepelin (1903, vol. 1, p. 76) tratará com desconfiança a posição de Tschisch a respeito da Catatonia. Sobre as relações entre Freud e Tschisch em torno da etiologia sexual da neurose de angústia, ver Padovan, C. (2018). Les origines de la méthode psychanalytique. Thèse en psychopatologie et psychanalyse. Université Paris 7, 850 p., p. 677-8.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | ABRAHAM, Karl (1908) As diferenças psicossexuais entre a Histeria e a Dementia praecox [Trad. C. Padovan e J. J. Schlemm]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 9, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-09/>.