por Thiago Majolo et al.
Introdução
Título | A pandemia e a peste
Autor | Thiago Majolo, 38 anos, psicanalista
Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória.
Albert Camus. A Peste.
Não existem formas erradas de se lidar com tragédias, com exceção de todas as formas desumanas. Isso quer dizer o óbvio, de que a dor, o medo, o desespero, o sofrimento, a renitência, a decência, a coragem, a covardia, o luto, a delicadeza, a leveza, a resiliência, a esperança… todas essas e tantas outras são formas humanas de enfrentar o caos, o absurdo, a morte e tudo aquilo que nos atravessa e que nos tira das mãos o comando. Não há, portanto, formas erradas de responder à pandemia, com exceção de todas as formas que negam nossas limitações e agem como se nada fosse, como se fôssemos desumanos.
Dito isso, e com a terrível consciência de que nossa sociedade brasileira, em muitas esferas públicas e privadas, insiste em abusar de todas exceções, podemos apenas admitir que vivemos num Estado de exceção. Sem meias palavras, sem concessão às metáforas: vivemos sob um regime de exceção. Isso não é de agora, é claro, atravessamos séculos sob o julgo do mandonismo e o do autoritarismo, da confusão entre público e privado, da recusa às leis comuns e, portanto, do descaso com o pacto social. É preciso que se diga que todo o mundo padece da pandemia, mas nós brasileiros também enfrentamos uma peste.
É essencial que reconheçamos essa distinção não como um jogo de palavras, mas de conceitos. Pois o vírus, assim como as bactérias ou fungos são formas de vida. Vidas que podem ou não se harmonizar com as nossas. Vida indesejada, no caso da recente pandemia do coronavírus. Mas, ainda sim, vida que viceja, brota e se multiplica até morrer. E a morte é parte incontornável da vida.
Já a peste é o próprio mal, aquilo que é indiferente à vida, cuja força motriz lhe serve para desfazer todas as forças motrizes, incluindo a própria. O mal, a peste, é a indecência desumana e a ruína que leva ao nada. O mal separa a profunda ligação entre morte e vida que há em todos os organismos, e provoca uma espécie de apatia espessa que apenas corrói e corrói até que apenas o pó se esfregue no pó e enfim tudo desapareça. Em Fausto, Goethe nos mostra que Mefistófeles não é a crueldade ou outra face obscura que carregamos, mas a destruição de qualquer vida possível.
Uma das tarefas humanas mais difíceis é de se deparar com a tragédia, com o absurdo da vida, aquilo que nos cobra um grau de aceitação maior do que gostaríamos de lhe ceder. É o que mais nos aproxima da ideia de Destino, de caminho do qual não podemos fugir. É uma tarefa que nos lembra que a vida não contém nenhum valor absoluto ou sentido intrínseco, mas que ainda sim temos que caçar jeito de nos levantarmos todos os dias, com honestidade e dignidade, e enfrentá-la.
Quantas mulheres e quantos homens têm feito isso nessa pandemia. Quantos têm se lembrado de que a vida é maior que cada um de nós, que ela é capaz de apresentar tarefas para as quais não estávamos preparados, pintando o presente e o futuro de trevas, mas que nem por isso vamos abrir mão de nossos valores e nossa ética. Mesmo humilhados por um ser invisível aos nossos olhos, a maior parte das pessoas segue a vida honestamente, porque a dignidade não está em ser forte, mas em recomeçar todos os dias.
Algumas dessas pessoas, há meses ou há anos, confiam à minha escuta psicanalítica e humana partes significativas de suas vidas. Com um sentimento sempre de gratidão, aprendizado e honra, eu me encontro presencial ou virtualmente com elas semanalmente para a tarefa que nos cabe: suas análises individuais. Algumas moram na minha cidade, São Paulo, outras em diferentes cidades ou Estados do Brasil, as demais em países diversos. São todos brasileiros. No começo da pandemia, pensei em cada um deles com preocupação, a mesma que votei a mim. Sei que uma das características da tragédia é ela nos atingir de roldão, sem aviso, e convocar em nós a criatividade, pois não temos frente a ela nenhum recurso pronto. Imaginei que assim também essa pandemia me atingiria e a todas as pessoas que acompanho. Mas como todos reagiríamos?
E foi a criatividade, na sua mais diversa expressão humana, que encontrei em mim e nas pessoas que escuto. A decência, a honestidade e dignidade de redescobrirem a vida e o pacto de suas próprias vidas com as alheias. A análise é um lugar de encontro com a verdade interior, e essa verdade pode ser dura e crua, mas é costumeiramente libertadora. Mas como se ocupar apenas do interior, da vida da alma, quando o mundo se transforma lá fora? Pois é claro que nesse momento a análise também seria um convite para olhar para fora, para o coletivo, para o compromisso com o social.
Pois então resolvi escutar mais de algumas dessas pessoas que acompanho e lhes fiz um convite. Selecionei as que pareciam mais instigadas pelo momento, as que me pareciam estar querendo elaborar ainda mais o que viviam e a compartilhar suas experiências comigo e com outros. O convite era simples: escrever algo sobre como era viver esse momento inédito, como era ter em vida essa marca. Se possível – mas não obrigatório -, também perguntava a eles: se você puder fazer algo pelo mundo que não seja apenas para seu próprio desfrute, o que seria?
Esse convite foi feito entre abril e maio, e as experiências relatadas datam, no máximo até o período de junho. Mas, ainda que circunscritas em um curto período de tempo num mundo que tem mudado tão rapidamente, parecem também carregar um sentimento universal e atemporal.
Não sem surpresa, ao receber os textos, descobri que enquanto essas pessoas enfrentavam a tragédia, a pandemia, elas também sabiam estar enfrentando a peste. A peste, o mal que atravessa a sociedade brasileira num pacto perverso de destruição dos outros e de si, pó contra pó até o nada. Nas linhas ou entrelinhas, muito do que escreviam parecia me dizer de que há uma peste historicamente instalada em nosso país, um mal que acompanha e funda nossa trajetória desde as primeiras destruições dos povos originários, passando por toda a recusa às leis a que compactuamos como sociedade, até o momento atual. Uma peste que, agora, aproveita para se propagar a reboque do vírus.
Li e escutei isso nos textos e ouvi isso nas sessões. Contudo, o sentimento que surgiu, e que poderia ser derrotista, se transformou em raiva e ação. Sim, a pandemia carrega algo de ineditismo frente aos atuais recursos, mas o mal sempre esteve aí, desde o começo de nossa história. Pois então contra ele devemos ter muitos recursos. Temos palavras e sangue. Temos conhecimento e memória. Talvez não tenhamos uma vacina que nos deixe perfeitamente imunes à sua ação e reaparecimento, mas já conhecemos diversos remédios e tratamentos, já somos capazes de destruí-lo cada vez que ele renasce. E assim, enquanto atravessamos essa longa jornada juntos, todos nós, que não nos entregamos à desumanização, vamos criando novas potências frente a essa tragédia da pandemia, e recuperando potências ancestrais contra da peste.
Resolvi escolher para cada texto uma frase retirada do magnífico e tão oportuno livro A Peste, do fabuloso Albert Camus. Essa peste que ele inventa para uma cidade fictícia era simultaneamente a tragédia de uma epidemia e o mal do nazismo. Acredito que se configura como uma boa moldura para nossos textos diversos e nossas diferentes formas de expressão, algo que nos une e alinha.
Esse é o conjunto de relatos que recebi, com admiração e senso de comunidade, e que gostaria de compartilhar. Que seja apenas um pequeno parágrafo na memória do mundo, mas que nos conte de diversas formas humanas de lidar com a tragédia e, quiçá, enfrentar a peste.
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A aparição do invisível
Título | Cena 1: o elemento invisível e as novas impressões
Autor | Felipe Cabral, 36 anos, cozinheiro por necessidade, viajante por sina, fotógrafo por prazer, herdeiro de nome do que aqui chegou depois de cruzar o Atlântico Sul em busca das Índias
Sim, havia na desgraça uma parte de abstração e de irrealidade. Mas quando a abstração começa a matar-nos, é necessário que nos ocupemos da abstração.
Albert Camus. A peste.
Férias de verdade
Ao primeiro dia de março do ano de 2020, embarcamos – eu, minha companheira e nossa filha – rumo ao Chile. A ideia era passar dez dias conhecendo um pouco mais desse pedaço da América Latina, extensa terra que se banha do Pacífico de um lado e se guarda, imensa, com suas cordilheiras do outro. Fomos de férias, com agenda e compromissos pintados para alegria, sem grandes pressas ou sobressaltos. Dividimos o plano de viagem entre capital e litoral, tentando aproveitar os dias sem precisar correr para ver o país todo de uma única vez, afinal, sendo o Chile um país tão extenso, essa não deveria ser uma viagem definitiva.
Jamais poderíamos antever o que viria, embora alguns sinais tenham passado por nós. Foi melhor assim. Há certas coisas que não devem ser antecipadas para benefício do prazer de viver o agora. Foram dias mágicos. Houve cansaço, pequenos percalços, mas a aventura, o novo e o belo estiveram em nossos horizontes e fermentaram ideias há tempos esquecidas. Vimos o mar e a montanha, as planícies secas, mas também as vinhas verdes cobertas de cachos de uvas. Andamos como anônimos usando transporte coletivo e experimentando pratos locais nos lugares mais corriqueiros que encontrávamos. Passados os 10 dias, sem grandes questões, voltamos. Cheios de novas experiências e instigados a continuar vivendo aquelas novidades imaginamos fazer um jantar para diversos amigos e familiares com o tema “Chile: cheiros e sabores”. Já havíamos feito algo assim depois de voltar do Uruguai, Portugal e do Japão, mas dessa vez seria diferente…
De volta… ao lar?
Ao chegar em São Paulo, metrópole cosmopolita e muito verticalizada, o sentimento inicial era de voltar à rotina. Fomos recebidos no aeroporto por minha cunhada, que veio nos buscar de braços abertos e com flores. No dia seguinte – uma quarta-feira ensolarada, dia 11 de março – logo cedo eu já estava no escritório na Avenida Paulista, um dos centros empresariais mais abundantes da cidade. Olhando pela janela do alto da torre onde trabalho, via novamente o horizonte de prédios e as ruas cheias de carros indo e vindo. No almoço, como sempre, restaurantes cheios e muita gente em todos os cruzamentos. Naquele dia, em especial, marquei de almoçar com meu irmão e minha mãe para revê-los e para entregar alguns presentes que havia trazido da viagem. Em especial, trouxe na mala o Ají, pimenta muito encontrada nas mesas de refeição dos chilenos, e outras especiarias e condimentos. A ideia era trazer um pouco dos sabores que nos conduziram durante a parte gastronômica da jornada.
Fomos a um restaurante coreano que havia sido aberto há poucos anos na rua logo atrás ao prédio onde trabalho. Depois de fazer o pedido, fomos ao salão principal, como sempre cheio, onde as pessoas estavam com dificuldades de achar lugares para sentar. Por fim, sentamos numa mesa compartilhada. Entreguei os presentes, contei um pouco da viagem, disse-lhes que tinham de ir ao Chile, que era um lugar fabuloso, cheio de paisagens incríveis e praias fantásticas. Insisti na narrativa sobre as zonas urbanas da capital Santiago, cidade toda plana e cheia de parques com uma arquitetura urbanística invejável. Também falamos sobre o momento político que o país vizinho estava atravessando, o colapso da qualidade de vida para a população da base da pirâmide, que se dava muito provavelmente por conta do esgotamento do modelo econômico que vinha sendo empregado há décadas. Por fim, disse do jantar que iriamos organizar em casa e pedi que viessem, que aguardassem com expectativas e prometi não decepcionar.
Quando estávamos terminando, meu irmão comunicou que precisava dizer uma coisa. Começou assim: “Você está acompanhando essa doença da China? Isso já chegou aqui e vai ser feio.” Eu disse apenas que vi que havia sinalizações sobre isso no aeroporto de Santiago e um pouco no aeroporto internacional de Guarulhos, que ao que parecia havia um homem doente em São Paulo vindo da Itália e que outros casos estavam surgindo, ainda sem confirmações precisas. Ele me respondeu “Você não está entendendo, esse negócio tem um potencial para acabar com a gente, vai vir uma crise gigante”. Achei um tremendo exagero. Achei que ele estava ansioso e preocupado com a economia e com a empresa que eles haviam aberto há três anos. Tentei relativizar, tecer argumentos, mas foi meio em vão. Terminei o almoço com a sensação de que meu irmão estava paranoico e que ele deveria fazer alguma coisa para seu próprio bem-estar. Nos despedimos e ele me disse: “Se você tiver dinheiro em algum investimento, resgate hoje, agora!”. Respondi apenas que sim, mas por dentro com a certeza de que eu não iria fazer nada.
Começando o desespero!
A semana foi passando, mais dois dias e o sábado havia chegado. A quinta e a sexta-feira foram dias caóticos, muito estressantes. O noticiário já pintava o cenário cataclísmico e mostrava como a Europa estava imersa em uma situação difícil, sem precedentes nos tempos mais modernos, com especial ênfase à Itália, cujo número de doentes era exponencialmente crescente e os hospitais já dava sinais de incapacidade de atendimento na Lombardia. Seria mesmo uma pandemia global com poder de paralisar tanta gente em todos os lugares? Eu já estava bem preocupado. Saí de casa no sábado para comprar álcool, luvas e máscaras e vi farmácias lotadas. Segundo informações de quase todos os veículos de mídia, estes seriam insumos básicos para se proteger em meio ao que estaria por vir. Depois de entrar em cinco diferentes estabelecimentos, encontrei o álcool e as luvas, mas as máscaras tinham sumido. Por sorte encontrei algumas na internet e fiz uma compra online. Sem saber muito o que fazer e carregado de informações do medo propagado pelos meios de comunicação, fiz uma refeição leve no final da tarde e resolvi fazer algo que não fazia há dois anos: correr à noite no parque Ibirapuera, um dos principais da cidade.
O parque estava relativamente tranquilo, com tudo funcionando, mas com menos pessoas circulando do que de costume. Nas noites de verão dos meses de férias, era comum certa dificuldade dos passantes em caminhar devido à quantidade de gente que circulava, certamente dez vezes mais do que eu estava vendo ali naquela noite. Voltei para casa renovado, de alma lavada, depois de dar três voltas completas no parque, tendo corrido mais ou menos uns 15 quilômetros. Tomei um banho quente, fiz um chá e coloquei um filme na televisão. Depois de meia hora já estava com tanto sono que só consegui desligar a televisão e ir direto para cama.
Eu estivera sozinho desde a volta para o Chile. Minha companheira, levando minha filha, resolveu estender as férias com os pais dela pelo interior de Minas Gerais. Eles só iriam voltar no início da semana seguinte. Por telefone, no domingo de manhã, matei as saudades e avisei que a situação não era boa, contei um pouco do que estava acontecendo e da escalada da coisa como um todo. Minha mulher achou que eu estava afetado demais. “Olha, talvez seja bom você parar de ler notícias, vamos com calma, você só deve estar se sentindo sozinho e chateado por ter voltado ao trabalho em meio à rotina estressante” ela me disse. “Encontre algo para fazer, algo que desperte sua criatividade, vai te fazer bem. Aproveite o tempo sem nós.” O que eu poderia dizer? “A partir de segunda-feira nenhum escritório da Avenida Paulista, quiçá de toda cidade, vai estar funcionando. Minha empresa convocou uma reunião de emergência do conselho diretor no final de semana e decretou, a priori, duas semanas de home office para todo mundo. Em trinta anos de existência da empresa essa é a primeira vez que fazem isso, eles são contra trabalhar de casa. Dessa vez é muito sério.”, eu argumentei. Incrédula, ela só me disse que ia terminar de curtir a viagem e que deixaria essa preocupação para a volta.
Não há fronteiras seguras
Guerra invisível no que tange ao inimigo, ruidosa por todos os canais de comunicação, desacreditada pelos mais altos escalões da política do mundo, a mais temida e incontrolável porque desconhecia fronteiras num mundo cada vez mais conectado. A primeira do século XXI de proporção total. Não há uma só nação que não tenha soldados abatidos por ela e ainda assim todos lutam sem saber quando será decretada a paz.
Este era apenas o primeiro capítulo da história acontecendo. As semanas que se seguiram foram norteadas por uma grande falta de perspectiva e uma certeza crescente de que estávamos enveredando por uma guerra sem-fim. Entrincheirados em casa, passamos a primeira semana muito desconfortáveis e emotivos, sem saber como conciliar trabalho, rotina dos afazeres básicos de sobrevivência, cuidados com nossa filha e espaço de descanso.
Acostumados a sair todos os finais de semana e agora obrigatoriamente confinados a sessenta metros quadrados de um apartamento, nos vimos forçados a repensar o normal. Como abasteceríamos a dispensa e a geladeira? Como poderíamos trabalhar e ao mesmo tempo cuidar sozinhos de nossa filha? Como faríamos para ter comida pronta para o café, almoço e janta todos os dias? Seria possível praticar alguma atividade física nesse contexto para manter a saúde do corpo? Como manteríamos o contato com nossos familiares? Essas perguntas nos sufocavam e encontrar respostas saudáveis para elas foi um tanto desafiador nesse contexto onde as informações eram muito paralisantes. Mas aos poucos fomos criando novas rotinas e funcionamentos.
O primeiro passo foi criar uma lista de tudo aquilo que não usávamos há muito tempo e que não seria útil nem afetiva nem funcionalmente nesse período de contenção. Essas coisas foram direto para caixas de doação e nos primeiros dias saíram de casa. Depois, tratamos de estabelecer um protocolo de saída e chegada em virtude das vezes que íamos ser obrigados a sair, como, por exemplo, na hora de jogar o lixo ou buscar alguma coisa importante do lado de fora. A ideia era não trazer contaminantes para nossa pequena morada, então saíamos de máscara e luvas descartáveis e quando voltávamos, deixávamos os sapatos do lado de fora. Fizemos também uma lista de alimentos essenciais e abastecemos a dispensa e a geladeira sem exageros para um período de quatro semanas, com compras online, privilegiando produtores e comércios locais próximos ao nosso endereço.
Assim passamos o primeiro mês, nos ajeitando e entendendo como ia ser dali para frente. Cogitamos sair da cidade, mas para onde? Fugir para as montanhas não parecia nem um pouco razoável, uma vez que a iminente decretação de uma quarentena total iria nos obrigar a ficar mais ilhados do que já estávamos. Se acontecesse algo que necessitasse de intervenção, um acidente doméstico ou mesmo se um de nós ficasse doente e precisasse de atendimento médico de emergência, um lugar pequeno e pouco estruturado tinha menos chances de nos ajudar do que onde estávamos. Para o bem e para o mal, moramos na cidade mais populosa da América Latina, com os maiores hospitais e a maior rede de farmácias, consultórios e estabelecimentos no geral. Além disso, mesmo separados por alguns quilômetros, estávamos dentro da mesma cidade que nossas famílias, o que significava uma possibilidade ao menos imaginada de poder contar com eles ou apoiá-los.
Ideias, novas efervescentes ideias
A falta de horizontes e a razoabilidade deteriorada da situação nos deu alguns empurrões. Sem saídas externas, nós nos voltamos para dentro, cada vez mais para dentro numa investigação intuitiva de desejos latentes. O que era possível fazer nas condições que estavam dadas? Com que futuro seria possível sonhar diante de um hoje tão broxante? Eu ia dormir pensando no que faria no dia seguinte e tudo era tão igual e tão enfadonho, tão sem perspectiva, que logo me vinha a vontade de distração e de não pensar em qualquer assunto. No meio desse mato sem qualquer cachorro, comecei a vislumbrar pratos diferentes para os almoços que faria. Detalhe importante que não mencionei até aqui: na divisão de tarefas da nova rotina fiquei responsável por lavar as roupas, cuidar de nossa filha no período da manhã, cuidar da dispensa de alimentos, do refrigerador, da cozinha de modo geral e por preparar os almoços todos os dias, de segunda a segunda. Essa última não foi uma tarefa difícil; com certa predisposição à gastronomia, ao longo da vida me dediquei a aprender alguns pratos que não me fizessem passar vergonha numa mesa.
Assim, atarefado com o almoço de todos os dias, me vi na singular missão de fazer algo novo sempre que pudesse. Retomei então o projeto de pães caseiros de fermentação natural, habilidade que havia desenvolvido há seis anos e que estava adormecida pela falta de tempo. Toda semana passei a fazer um pão novo com objetivo de encontrar o pão perfeito, aquele de casca dura e miolo macio feito a partir de apenas três ingredientes: farinha, água e sal. Depois do pão vieram os petiscos de espalhar, pastas de grãos e leguminosas para comer junto. E aí outras novidades apareceram com força: os fermentados. Comecei a aprender sobre processos de fermentação em livros que havia ganhado e nunca lido, além de procurar desesperadamente sobre o assunto na internet. As notícias sobre os doentes, mortos e desastres políticos rivalizavam com as pesquisas sobre como preparar e conservar alimentos sob fermentação. No começo foi só o chucrute e alguns legumes. Depois vieram as bebidas, o kombucha, a ginger ale, o refrigerante fermentado caseiro com kefir. E aí começaram a vir os processos mais controlados, os sabores do oriente como o missô, o koji kin, o natto, o kimchi e o tempeh.
Pouco a pouco a minha cozinha resignada ao arroz e feijão foi dando espaço a pratos e acompanhamentos mais exóticos, vivos, efervescentes, cujo tempo de preparação excedia a noção de dia ou semana. Os seres microscópicos – bactérias e fungos que os povos antigos aprenderam a conhecer e controlar – agora pareciam estar ao nosso favor, fornecendo sabores e vitaminas novas num tipo de alimentação que a humanidade conhece há tempos, mas que já não é mais tão praticada na maioria das casas em tempos de fast-food.
Entramos assim numa nova fase, que certamente deixará marcas. Lá fora, alma que chora. Aqui dentro, vida nascendo. Crise epidemiológica, crises políticas e crises financeiras varrendo os países, deixando a todos com perspectivas cada vez mais diminutas do amanhã. Aliás, o que será do amanhã? Nunca soubemos e nunca saberemos responder essa pergunta com assertividade. Mas, pela lógica do saber acumulado, já entendemos que plantando e perseverando hoje, alguma coisa poderá ser colhida amanhã. Então, talvez a pergunta seja: o que podemos cultivar hoje para ter uma colheita interessante amanhã, ainda que essa colheita demore mais para chegar do que o tempo incerto em que estaremos vivos?
De certo modo já comecei a cultivar coisas novas por aqui. Dos fungos, bactérias e leveduras que agora populam nossa cozinha tem saído novos sabores e aromas para alegrar a mesa. São culturas que pretendo manter e espalhar. Elas chegaram até aqui pelo conhecimento de muitas gerações e passarão adiante mesmo depois de tudo isso acabar; afinal se dá pra espalhar os bichos invisíveis que acabam conosco, dá para espalhar também aqueles que nos mantiveram de pé. Aquele jantar chileno provavelmente nunca irá acontecer, mas no lugar dele virá toda uma mesa de conservas da sobrevivência que pudemos produzir. Quando isso irá acontecer? Se dissesse que sei estaria mentindo. Há certas coisas que não devem ser antecipadas para benefício do prazer em viver o agora, mesmo que o agora tenha começado semana passada e só vai estar de fato pronto daqui a alguns dias.
Título | Quando a pandemia acabar, teremos paineira.
Autora | Luciana Prado, 47 anos, psicóloga e psicanalista
Foi a partir desse momento que começou o medo e com ele a reflexão.
Albert Camus. A peste.
Diante da minha janela, com o olhar perdido, entre um gole de café e outro, me deixo conduzir por imagens dispersas. Aporto num campo coberto de flores silvestres de colorações brancas, amarelas e rosas que displicentemente circundam a trilha em direção a uma imensa paineira. Caminho a passos de procissão tocando as flores que em transe oscilam ao sussurro do vento. Alcanço a frondosa árvore, elevo a cabeça, reverencio sua grandiosidade e num só rodopio integro sua copa ao céu. É ele agora que me detém.
Na minha infância, em noite de lua cheia, tínhamos o habito de ficar até mais tarde na rua e, às vezes, cansados, sentávamos na calçada e nos dedicávamos a indagar o céu.
Sabíamos que o véu da noite, com seu chão de estrelas reluzentes que abria caminho para uma imensa lua soberana, ao amanhecer se dissiparia e a próxima noite seria diferente; talvez o céu tivesse poucas estrelas, poderia estar nublado ou a lua preguiçosa se escondesse atrás de alguma nuvem, mas era a condição para que houvesse um amanhã.
O magnetismo da noite abria-nos a imaginação, dando lugar a uma filosofia despretensiosa e particular. Criávamos teorias de como seria a vida em outros planetas e, tentando entender as estrelas, sempre discutíamos a ideia do fim do mundo. O medo que tínhamos era de que algo pudesse bater na terra e acabar com tudo. Não era sempre que pensávamos no fim de todas as coisas, mas curiosamente quando isso acontecia era em noite de domingo. O domingo me dava medo de que não houvesse o amanhã.
Anos mais tarde, seria uma quinta-feira e não mais um domingo a me trazer o assombro e o temor de que algo havia batido no planeta e poderia exterminar tudo. Não seria uma explosão causada por uma imensa esfera gigante como havíamos imaginado, mas algo invisível a olho nu, um total desconhecido que sabíamos estar envolto numa superfície em forma de coroa, assim como o Sol.
Sua Majestade, o coronavírus, já havia se espalhado por toda esfera terrestre, noticias de pessoas infectadas em vários lugares chegavam a todo instante, mas ainda assim, eram sentidas como distantes. Na noite de quarta para quinta a Organização Mundial de Saúde fez o alerta de que o mundo vivia uma pandemia e recomendava o recolhimento. Sem entender o que aquilo queria dizer, adormeci. Como de costume, fui trabalhar no outro dia vestida de ingenuidade e ignorância de que o globo ainda estava no eixo. Enquanto psicóloga, tinha que fazer triagens para um grupo de psicoterapia no hospital onde faço trabalho voluntário. Após o atendimento, saí da sala com uma pretensiosa alegria, pois o grupo começava a tomar corpo e logo viria à luz, mas me deparei com a minha equipe assustada e sombria. Senti um abalo como se tivesse sido extraída da minha própria festa sem entender o porquê.
O encontro, muitas vezes, caloroso e afetuoso, agora gélido e impessoal, contava com a imposição de que não poderíamos mais nos cumprimentar de maneira habitual, teria que ser à distancia, pois não sabíamos onde o vírus estava. A partir daí o temor e a perplexidade tomou conta de todos que saíam da sala. Partilhando o sentimento de caos, conversamos sobre o comunicado da OMS, entendemos a necessidade de nos recolher e decidimos suspender os atendimentos até a pandemia acabar. Logo o governo paulista, bem como os de outros estados, decretariam a quarentena e a vida de todos tomaria novo curso.
Em meu outro trabalho, no consultório, pairava uma atmosfera cinza e de incertezas compartilhadas. Acordei com os meus analisandos que continuaríamos o trabalho pela internet e confidenciei que seria uma novidade tanto pra eles como pra mim. Dessa forma, eu também precisaria da ajuda deles.
Antes de fechar a porta da minha sala do trabalho, fui até a janela, observei a rua, e fechei lentamente o vidro; arrumei delicadamente a cortina, alisei a manta do divã, desliguei o abajur e, já na porta, olhei a sala arrumada à espera de gente e desejei que eu pudesse voltar logo. Saí com um gosto amargo e uma escuridão tamanha que eu não sabia explicar.
A rua tinha uma beleza triste, um movimento assustado, lento e desconfiado de gente, de carro. No metrô, os olhares, em sua grande maioria costumeiramente voltada para o celular, agora eram dirigidos em todas as direções, num total estranhamento. O vírus poderia estar incorporado em qualquer pessoa ali e, dessa forma, todos éramos suspeitos.
No telefone, do outro lado do mundo, minha irmã narrava em tempo real seu assombro diante do supermercado com prateleiras vazias – como se estivesse sido saqueado – e lotado de gente com carrinhos cheios de estoque para meses, sem a mínima preocupação se faltaria comida aos outros. O que ela narrava de outro país logo seria a extensão do que viveríamos aqui e que eu também presenciaria, com assombro e temor.
Nos primeiros dias, quase não consegui acompanhar a enxurrada de informações e mensagens que chegavam até mim por fontes diversas. Entre as mensagens, algumas falavam do número de mortos na Itália, da calamidade vivida no Equador, do desespero das pessoas que estavam em outros países e não conseguiam voltar para casa, dos casos já diagnosticados no Brasil; outras traziam teorias de que se tratava de uma gripezinha e que tudo era um exagero ou que os chineses queriam acabar com o capitalismo.
Experimentava uma sensação estranha, como se estivesse vivendo numa composição de filmes, livros e séries sobre o fim do mundo cujo enredo eu não tinha escolhido e nem sequer gostaria de fazer parte. Além do espanto, tive medo e senti toda opacidade do mundo em pleno dia de sol.
Sem conseguir processar a avalanche que soterrava minha vontade, meu desejo e minha força, decidi, como uma forma de preservar certo equilíbrio, selecionar as mensagens e as noticias que veria e passei a buscar também aspiração de outros ares para que pudesse de fato respirar.
Busquei filmes que me acalentassem a alma ou dessem sentido para o que estávamos vivendo, mas o sofá se tornou desconfortável porque os filmes que me interessavam se tornaram próximos demais de uma realidade que eu não conseguia assimilar. Ainda sim, o controle remoto, que era acionado freneticamente de canal em canal, proporcionava certo alívio e a sensação de dominar alguma coisa.
Eu temia pelo futuro, pelas pessoas que me eram caras, às quais não poderia ter por perto talvez por um longo tempo. Mas também temia por aquelas pessoas que não conhecia e que estavam à margem, debaixo de pontes, viadutos, nas marquises do metrô, as que não teriam um sustento no final do mês, as que tinham que dividir a casa, o quarto ou o barraco com mais cinco, dez ou tantas pessoas. Convicta de que ficar em casa era imprescindível e, portanto, o que deveríamos fazer, me sensibilizava pensar no impacto que isso implicava para os que não tinham casa, os que precisavam estar na linha de frente nos hospitais, na limpeza pública, no transporte e outros trabalhos.
Também não fiquei imune ao sentimento de indignação, raiva e dor diante do descaso e do cinismo com que a autoridade máxima do país dedica à população em cada pronunciamento, em cada saída, em cada nota dissonante disparada por ele.
Mas ficar em casa não era algo que me desagradava, a casa sempre foi um lugar de aconchego, descanso e prazer. Ainda assim, sentia uma estranha sensação de estar desabrigada, que só cedeu lugar quando busquei abrigo no contato com outras pessoas em múltiplos contextos. Foi então que compreendi que casa que não se pode abrigar gente, memória, afeto – não importando o tamanho – é casa vazia, sem eco, sem cor, sem vida.
Quando carecia sair à rua, sentia que os estabelecimentos fechados e a pouca mobilidade de pessoas faziam o dia parecer o de Finados. Era como se o tempo passasse mais rápido dentro de casa. Mas o mundo acontece de dentro e de fora, a vida não para, ela pode mudar seu curso, parecer mais lenta e só quando ela cessa já não se pode mais dizer que é vida.
Aos poucos fui me adaptando à nova experiência. O uso da tecnologia nunca foi um problema pra mim, mas passou a desempenhar um papel maior do que eu supunha ou desejava, pois se converteu em uma ponte indispensável para o trabalho, estudo, meu processo de análise, contato com meus amigos, familiares, com o mundo.
Quando me dei conta do significado do uso da máscara, também me dei conta do quanto posso ser nociva para os outros, para a natureza, para o mundo, e isso me causou grande desconforto. Sonhei que reencontrava uma pessoa muito querida e que ela, de braços abertos, vinha ao meu encontro; assustada, eu dizia que estávamos em quarentena e não podíamos nos tocar. Ela então me dizia que naquele lugar não havia vírus, muito menos quarentena, todos estavam bem. Mas eu, mantendo certa distancia, anunciava que talvez o vírus estivesse comigo e que poderia contaminá-la. Acordei sentindo o abraço se dissipar no ar e revisitei várias imagens de afago, abraços, aperto de mão, choro compartilhado, toque, cutucão, os esbarrões nas ruas, no metrô… tudo isso que me despertava saudade. Curioso como diante de um impedimento de toque de qualquer tipo, a lembrança de um simples esbarrão passa a ter a dimensão de um anteparo, de delimitação de um espaço e da sensação de que se tem um corpo.
Tenho alguns planos para futuro, quero voltar a interrogar o céu, fazer longas caminhadas, conversar na rua ou num quintal até o dia clarear. Desejo encontrar várias pessoas, trocar abraços, aperto de mão, voltar a ouvir nas saudações os estalos dos beijos apressados.
Enquanto escrevo, do lado de fora o sol brilha num céu azul com grandes nuvens esparsas que parecem se mover lentamente, impulsionadas pela ação do vento fraco que também acaricia as folhas das árvores num embalo sutil como uma canção de ninar. Já o vírus continua ampliando seu território e eu nem sei se estou contaminada por ele. Sei que o temo, tenho medo. Mas além dele, também temo e tenho medo de outros vírus anteriores a ele, o do desamparo, do abandono, da incompreensão e da falta de empatia, porque esses não nos abandonaram nem em tempo de pandemia.
Sinto e me compadeço pelos que se foram, pelos que perderam pessoas queridas, pelos que estão lutando pela vida ou para salvar vidas. Lamento, mas também me enraiveço com os que negam as mortes e só conseguem ver números. Temo por mim, pelos que me são valorosos, pelos que não conheço, e busco inspiração nos que usam a indignação, inquietação e o amor como combustível para a ação e transformação. Acredito que algumas coisas podem ser transformadas, significadas e ressignificadas e para isso preciso dar vazão a esse algo a mais que em mim pulsa.
O mundo pós-pandemia é uma incógnita e me inquieta pensar como vamos nos relacionar, quais os costumes iremos conservar e quais vão se modificar.
Um dos costumes que eu gostaria de manter, e que vem dos primórdios da humanidade, são as conversas que se dão em roda, em volta do fogo, tendo o mar como testemunha, ou em parques, ruas, calçadas, na mesa do jantar, do bar ou em qualquer lugar.
Uma das primeiras rodas de conversa que me recordo ter sido testemunha foi à sombra de uma paineira rosa. A paineira rosa quando cresce se torna uma árvore tão grande quanto é a dimensão de sua beleza. Na época da floração as folhas caem, dando lugar a flores com cinco pétalas de cor rosa, com pintas vermelhas e bordas brancas. Seus frutos, quando maduros, despencam no chão espalhando sementes revestidas de fibras brancas e finas que mais se parecem um algodão.
Sou amante de todas as árvores, mas tenho predileção pela paineira, que simboliza, para mim, união, beleza, alegria e vida. Assim, como meu legado eu queria deixar para o mundo uma paineira. Gostaria de plantar em uma praça ou num parque. Gosto de imaginar que ela poderia ser o abrigo de alguém em um dia de sol escaldante, que seria incentivo para outro alguém se deitar em suas raízes só pra contemplar o céu. Essa paineira poderia testemunhar círculos de bocas e ouvidos sedentos de música, risos, abraços, partilha, vivência. E mesmo de longe a sua beleza talvez colorisse a paisagem com um rasto de esperança, lembrando-nos de que a vida persiste.
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O isolado pandêmico e pestilento
Título| Isolamento
Autora | Luara Rodrigues Codognotto, 25 anos, gerente de produtos digitais
Quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.
Albert Camus. A peste
Quando eu decidi mudar de país definitivamente, li alguns textos e ouvi de algumas pessoas sobre a parte que você deixa para trás. É como se você abdicasse de algo profundamente seu, a sua raiz. E, como consequência disso, você se torna extremamente mais conectada a ela.
Em tempos esquisitos e inéditos de quarentena, tenho encontrado abrigo em lugares que me lembram de onde eu vim. Em quase um ano vivendo na Irlanda, os últimos dois meses têm sido os que mais visitei os mercados brasileiros – mesmo com as idas ao mercado sendo drasticamente reduzidas e nos fazerem sentir como se estivéssemos “indo à caça” – temos preferido caçar feijão, farofa, pipoca… Além de estar comendo pão de queijo toda semana e preferindo guaraná a qualquer outro refrigerante recentemente, o samba tem me conquistado como estilo musical. Eu nunca fui muito ligada ao samba, mas não sei bem o porquê. Acho que nunca fui devidamente apresentada a ele, mas pulando de vídeo em vídeo na quarentena acabamos nos tornando mais próximos.
A quarentena na Irlanda começou antes que no Brasil. No início de março já estávamos em lockdown, buscando conter o avanço do “inimigo invisível”. Felizmente, eu me encontro no grupo dos privilegiados que puderam continuar trabalhando normalmente de casa, mas pude assistir de perto o governo irlandês auxiliar as pessoas que tiveram horas reduzidas ou foram demitidas – além das inúmeras medidas e benefícios implantados para ajudar empresas pequenas e gigantes a se sustentarem nesse período. Me senti confiante da escolha que fiz em viver aqui, mas não fui (e nunca seria) capaz de ignorar o que acontece no lugar de onde eu vim.
O vírus, apesar de chamado de “inimigo invisível”, de invisível já não tem nada. Está estampado nas capas de todos os jornais, nos títulos de todos os sites, em cada feed de qualquer que seja a rede social e em todo o mundo. Mas, para o meu desespero, no lugar de onde eu vim, eles ainda não o veem. Mesmo depois das mortes, mesmo depois de toda e qualquer obviedade, as pessoas parecem estar vendadas.
Ter contato com o Brasil tem se tornado uma tarefa dolorosamente necessária, que infelizmente vai muito além de ouvir o samba no fim da tarde. O desespero tomou conta de mim no início da quarentena, quando eu não via qualquer reação do governo brasileiro. Eu li publicações científicas, procurei fontes confiáveis, busquei compartilhar informação e cheguei ao ponto de implorar que meus parentes tomassem cuidado. Até eu perceber que não era sobre informar, não era sobre ver. Era sobre o não querer ver, e todas as coisas que o ver envolvem. O outro lado da linha, do outro lado do mundo, não quer ver o que eu vejo daqui.
É fato que o isolamento social para deter o coronavírus demorou a ocorrer na maioria das cidades brasileiras. Mas há outro tipo de isolamento no Brasil que começou muito antes de qualquer traço de coronavírus. O isolamento faz parte do Brasil, e isso se tornou particularmente claro para mim a partir de 2018, quando mais de 50 milhões de brasileiros elegeram o homem que isola gays, negros, lésbicas, transexuais, mulheres e qualquer outra figura que não seja a que ele se identifica. Por fim, isola-se até mesmo de seus iguais, colocando-se como “mito” – a fantasia que encarna forças superiores às humanas. Uma fantasia de isolamento. Fantasia essa que parte da população gosta de ouvir.
A fantasia de isolamento e superioridade de uns perante aos outros foi o estopim para que eu deixasse o lugar de onde eu vim. Abusar do ódio e usá-lo contra o que eu concebo como família funcionou como trampolim de poder para o homem-mito, e isso me disse muito sobre o que eu não queria para o meu futuro. A história que a maioria dos votantes gostou de ouvir me dava medo, porque fantasiava sobre a minha (e tantas outras) inexistência. Eu assisti o discurso do isolamento penetrar em parte da sociedade, nas mesas das famílias, no metrô, nas ruas. Essa foi a linha que eu decidi não aceitar que cruzassem sobre a minha vida – e, por isso, eu fui embora.
Agora assisto, de longe, o orgulho ignorante reinar na mente de pessoas que eu achava conhecer. Assisto todos os limites sendo testados e as mais puras demonstrações de maldade – com absolutamente todas as linhas sendo cruzadas. Mas, do outro lado da linha, do outro lado do mundo, eles ainda não querem ver. E eu temo que seja tarde demais quando eles o fizerem.
Eu queria pedir que lhes tirassem as vendas, que eles vissem o mundo aos olhos de tantos outros. Aos olhos de quem perde a família pela doença, aos olhos de quem vê os familiares por uma chamada de vídeo pela última vez antes de entrar na UTI, aos olhos de quem tem o filho baleado e arrancado de casa cruelmente por alguém armado… aos olhos de quem foi isolado muito antes desse isolamento começar.
Título | A man is not an island
Autor | Leonardo Nery, 26 anos, advogado (por ora)
Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados.
Albert Camus. A Peste.
O ano de 2020 chegou chegando. Pra mim, era pra ser um ano de renascimento, com muitas coisas novas, muitos aprendizados e autoconhecimento. Quem sabe até com o almejado sucesso profissional.
Com a chegada do coronavírus e o início de todas as veiculações sobre ele, nada parecia mudar. Parecia ser mais uma doença nova que afetaria o globo, mas que logo seria controlada. Assim como foi com a gripe suína. Assim como foi com a gripe aviária.
Foi então que os países da Europa começaram a ser fortemente arrasados, com muitas mortes. Eu ainda tinha certeza que haveria um controle rápido.
Daí então os países da Europa fecharam. Restaurantes e lojas fechadas, atrações turísticas fechadas, viagens canceladas. Parecia que não ia chegar ao Brasil, na minha realidade – mas chegou.
À primeira vista, meu mundo ruiu. Em março, milhões de planos a serem colocados em prática e levados a cabo e, de um dia para o outro, suspensos até segunda ordem – e segunda ordem de quem? (Hoje sabemos que se tivéssemos a clareza de quem dá as ordens, estaríamos mais bem colocados). Com tudo isso de lado, restaram algumas perguntas: o que fazer? Como fazer? Com quem fazer? Estavam todos esses planos suspensos mesmo?
Inicialmente, tinha que lidar com o “estar em casa”. Para mim, isso é especialmente difícil, já que desde a mais tenra idade nunca paro em casa, muito menos aos finais de semana. Em que ponto o refúgio começa a ser prisão? Minha relação com a minha mãe (com quem vivo) é desde muito cedo reduzida a algumas horas durante toda a semana, já que nossos horários não são compatíveis. E mesmo assim, não nos damos bem. Isso teria que ser rapidamente atacado: temos visões de mundo (quase que) diametralmente opostas. Tivemos que inverter os papéis de mãe/filho algumas vezes para nos proteger e cuidar daqueles que nos cercam.
Alguns atritos surgiram, mas era esse o momento para enfrentar de frente todos os sentimentos que têm deixado essa relação dessa forma. Ouvi e me fiz ouvir e, no final, o que aconteceu foi que me descobri tendo uma voz maior dentro de casa, onde sempre me senti aprisionado e um mero visitante. É uma luta diária, mas hoje me sinto com mais poder de fazer a realidade que eu quero para mim, no tanto que me faz saudável comigo mesmo e que traz (o que eu acho que é) a melhor versão de mim para a minha relação com os outros.
Inocentemente, acreditei que as medidas governamentais vinham sendo tomadas no andar certo e que, por conta disso, tudo seria resolvido rapidamente. Em abril estamos de volta às ruas, não? Em maio? Se tudo rapidamente será resolvido, nenhum plano deve mudar: vou estudar, vou ler, vou ver aquela série e aquele filme no streaming que levo empurrando com a barriga há anos. Maravilha. Uma ou outra ligação pela internet para ver os amigos e parentes e tudo certo.
Com o andar dos dias e o aumento vertiginoso do número de contaminados, de vítimas fatais, a falta de colaboração do Poder Público e a consequente falta de colaboração da população, ficou claro que não seria em abril ou em maio que estaríamos de volta às ruas fazendo o que sempre fizemos. (Junho? Julho? Agosto? Algum dia?).
E agora?
Bem, mais um baque. Ficaremos nessa por muito tempo. As prioridades dos últimos anos não parecem mais ter lugar, vou encontrar novas.
Foi aí que percebi que o isolamento social não me fez bem como achei que fosse fazer. Não é no isolamento que vou produzir mais, saber mais, aprender mais e, como comumente veiculado nos memes da internet, escrever teorias físicas, como fez Newton em seu isolamento. O isolamento me faz perceber que o que eu sempre tratei como prioridade é facilmente esfacelado, e que o que eu sempre deixei em segundo plano é, na verdade, a única prioridade que eu devo ter: os outros.
Repito para mim mesmo como um mantra já há algum tempo que o ser humano é social e que devo ser também; que ninguém vive sozinho e que ninguém é uma ilha (da expressão inglesa “a man is an island.”, cunhada pelo poeta John Donne). Claro, podemos viver sozinhos e podemos conseguir apreciar a própria companhia. Devemos saber viver sozinhos, quando preciso. O que não pode ocorrer comigo é viver sozinho quando eu posso viver com outros, ser um ermitão dentro dessa sociedade cheia de gente, da maneira poeticamente ilustrada por Edward Hopper. Sem amigos, sem pessoas carinhosas, sem família, não consigo enxergar o futuro. Fica sem sentido o mundo pós-pandemia se for sozinho. Na última sessão de terapia, fiquei com a seguinte pergunta: vale sobreviver à pandemia se for pra viver sozinho depois? Para mim, fica claro que a resposta é um (gritante) “não”!
No fim, fico que 2020 veio, coronavírus chegou e ruiu com a minha vida. Mas isso para que uma nova vida e um novo ponto de vista renascesse e eu pudesse me ver diferente. Tenho achado que se eu sair dessa realidade esquizofrênica do mesmo jeito que entrei, eu não a terei vivido. Então é nisso que vou continuar trabalhando: não em aprender todos os conteúdos de ensino formal possíveis, ler todos os livros já escritos, ver todos os filmes. Eu vou é aprender a pegar essa fase e todas as lições que me traz e usar pra ser uma melhor versão de mim. Menos sozinho. Menos egoísta. Menos inflexível. Mais companheiro. Mais presente.
Tem sido, então, de uma maneira muito diferente da que imaginei o ano que tinha planejado para mim mesmo.
PS: no espaço de tempo entre o ponto final desse texto e o envio, fui acometido pela atordoante notícia de que minha avó, idosa de 85 anos, havia tido contato com sua cuidadora, que estava infectada pelo vírus. E que, por conta da tentativa familiar de diminuir a utilização do transporte público por parte da cuidadora, eu também. Minha primeira reação foi de calma, de reconhecimento de privilégios sociais (em relação à minha avó, que pode ter acesso a bons cuidados médicos) e de preocupação pela cuidadora infectada (haveria uma culpa minha em sua infecção?). Depois, como tudo tem se demonstrado até esse ponto na minha experiência no corona-mundo, comigo: não fiquei preocupado com o meu estado de saúde, com a minha possível doença fatal, mas sim com a minha possível infecção de terceiros.
No final das contas, mesmo depois de enfrentar algumas noites mal dormidas pensando no, possivelmente, triste e solitário fim da vida de minha avó, estamos tranquilos. Eu, impelido pela necessidade de saber até que ponto seria agente transmissor, fiz os devidos exames e testei negativo, sem sintomas; minha avó, por questões que se fossem abordadas tomariam seu próprio texto, não fez os exames, mas se manteve sem sintomas no espaço máximo de aparição da doença. Estamos a salvo, dessa vez.
E é curioso ver que, quanto mais nos cegamos e nos blindamos, mais percebemos as brechas que a vida abre. E o pior tipo de brechas: involuntárias e desconhecidas. Para mim, melhor que se for para abrir uma brecha de perigo, que seja ela consciente, pensada, matutada e calculada. Impossível se blindar.
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Cuidados e cuidadores
Título | Qual herói irá mudar o mundo?
Autor | Sergio Tranchesi Ortiz, 41 anos, médico
Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós.
Albert Camus. A peste.
Alguns de nós, quando crianças, gostávamos de brincar que éramos super-heróis. Eu gostava do Batman. Talvez por influencia do meu irmão, achava o homem morcego o super-herói mais sensacional de todos.
O tempo foi passando e mesmo com o meu crescimento, a ideia de ser um herói sempre me agradou. Vieram os filmes e jogos eletrônicos. Os seres com poderes extraordinários deram lugar a pessoas bem treinadas, inteligentes, determinadas e/ou predestinadas, mas sempre com uma característica importante comum a todos eles: a solidão. Eram os únicos que entendiam a situação, os únicos sobreviventes, os últimos ainda vivos etc.
Joguei e assisti muitos enredos parecidos. Adorava assistir Rambo, Comando para Matar, diversos filmes de zumbi. Joguei e me diverti com Doom, Quake, Blood, Wolfenstein, entre outros.
Um destes heróis era meu pai. Médico com certo imã para acidentes, eu havia testemunhado ele salvar várias pessoas ao longo de viagens e passeios: o menino que escorregou na praia de pedra e, batendo a cabeça, convulsionava no mar; ou a criança que, brincando num restaurante, cortou o braço na porta de vidro. Estes foram alguns casos onde meu pai reforçou o papel de herói que ele representava.
Foi assim que terminei na Medicina também, seguindo meu pai na especialidade da Cardiologia, e alimentei minha imaginação com as minhas próprias aventuras. Os feitos dos outros heróis sempre me pareceram mais impressionantes do que os meus, e eu buscava me preparar para o dia em que algo extraordinário iria me acontecer e eu seria equivalente aos meus heróis da infância.
Quando os kits de primeiros socorros passaram a ser obrigatórios nos carros aqui em São Paulo, eu me preparei inspirado pelos médicos dos jogos de computador, que com um simples kit de emergência poderiam trazer de volta a vida soldados moribundos. Montei uma mochila com fio de sutura, pinças cirúrgicas, tesouras, gases e outros materiais para curativos. Não estava cumprindo uma simples lei de transito, estava pronto para operar uma vítima de trânsito em plena via pública.
Filmes como Eu sou a lenda ou Epidemia continuavam a alimentar minha fantasia de um herói, agora médico, sozinho na sua batalha para salvar o mundo. Até o dia em que me dei conta que todos estes heróis, mesmo os da minha infância, não eram perfeitos: tinham problemas sérios, alguns de personalidade, outros com problemas familiares ou grandes culpas que os assolavam dia e noite.
Meu pai também perdeu o manto de um herói imaculado, passando a ser mais humano e menos heroico. Talvez a decepção com todos eles tenha me deixado com raiva, tristeza ou apenas decepcionado. O fato é que a ideia de ser um herói passou a ser apenas uma utopia, algo tão distante e impossível que me frustrava quase todo dia.
Então, um cenário de filme apocalíptico se instalou no mundo real. Havia uma doença matando milhares de pessoas por todo o mundo, se alastrando rapidamente, praticamente imparável.
Pra minha imaginação foi um prato cheio. Eu seria um grande herói desses que ficam longe de suas famílias e se sacrificam pelo bem maior. Fui neste raciocínio até a doença chegar de fato ao Brasil. Aí eu descobri algo novo em mim: um dos meus defeitos, o medo.
Embora tão preparado tecnicamente quanto à maioria dos outros médicos que atendiam a doença, eu me senti ameaçado por ela. Ela atinge com mais vigor a minha faixa etária e os mais velhos do que eu. Ela tem tido mais agressividade com os pacientes hipertensos, como eu. Eu não estava pronto para deixar minha família e ir para a guerra.
Eu era medroso e esse sentimento pesou durante um tempo em minha consciência, até que comecei a ver que eu não era o único: embora todos nós médicos tenhamos um voto a cumprir, vários de nós não estávamos adorando a ideia de o colocar em prática. Vários de nós estavam na expectativa de que este tipo de sacrifício não fosse necessário.
Alguns dos meus chefes me abriram a mente: nem todos os médicos são necessários numa sala de emergência. A medicina do dia a dia não pode parar totalmente. Pessoas com sintomas graves ainda precisam fazer exames ou serem internadas. Algumas cirurgias não podem ser adiadas.
Ah, que alívio eu senti. Seria útil durante a crise de saúde mais séria dos últimos anos no mundo e ainda não precisaria me expor totalmente à doença. É assim que tenho passado estes dias: fazendo exames, algumas tele-consultas e tele-monitoramentos, ajudando uma pessoa aqui ou ali com uma receita de uso crônico que não foi renovada.
Tenho me sentido útil. Não heroico como se eu fosse a última esperança da Terra, mas útil dentro do que consigo fazer. Alguns daqueles que eu consigo ajudar me deixam com a sensação de que para eles, tenho feito atos heroicos. Quando fico sabendo deste sentimento deles, fico feliz, mas procuro não alimentar este estereótipo. Estou feliz em ser apenas útil.
Para aquele paciente que pegou a doença e precisou de uma UTI, talvez o médico que o ajudou ao longo do tratamento seja um herói. Para aqueles que por conta de um exame feito durante uma crise destas tiveram seus diagnósticos confirmados ou puderam dar continuidade no tratamento de suas doenças, o médico atuante na UTI daquele outro hospital pode não ser tão importante.
Impactamos as pessoas próximas e as que temos contato, é assim que temos que agir. Se todo mundo se esforçar para ajudar uns aos outros, superaremos esta fase da história humana com algumas batalhas vencidas, outras perdidas, mas com certeza com uma experiência rica e transformadora.
Hoje, pra mim, mudar o mundo não é algo de uma pessoa solitária e com um grande ato, mas sim de pessoas com empatia, altruístas, que com pequenos atos geram ondas de transformação que se espalham pelo mundo. Não um grande Tsunami, mas pequenas ondas, frequentes e constantes, onde um impacta na vida do outro positivamente, e todos saem engrandecidos da pandemia. Talvez o grande herói não seja aquele que vence, sozinho, uma grande batalha, mas aquele que ajuda os outros a vencerem pequenas batalhas que, para cada um deles, pode ser a batalha mais importante da vida deles.
Seremos os heróis que o mundo precisa que sejamos, não aqueles que desejaríamos ser para alimentar nossa fantasia. Sejamos heróis reais, todos nós, e que a fantasia fique apenas na fantasia.
Mudaremos o mundo uma pessoa por vez. É possível e está ao nosso alcance.
Título | Relato de uma médica sobre a sua experiência com o Covid-19
Autora | Tamiris Carneiro Mariano, 29 anos, neurologista infantil
Na realidade, um homem deve lutar pelas vítimas. Mas, se deixa de gostar de todo o resto, de que serve lutar?
Albert Camus. A peste.
Esse é um relato pessoal feito para que daqui muitos anos eu possa contar em detalhes para os meus netos como foi vivenciar a pandemia como médica e paciente curada do Covid-19. Compartilho com vocês, pois talvez possa ajudar alguém a lidar com seus medos, aceitar que todos temos nossas fraquezas, porém, se você tiver um bom motivo, pode superar as adversidades e até mesmo aprender com elas.
Na madrugada do dia 17 de abril, acordei e senti que estava com febre, meu corpo doía muito e me sentia fraca. Acordei o meu parceiro, que também estava quente, indaguei como ele estava e ele me disse que se sentia cansado, com dificuldade de respirar. Nesse momento meu coração acelerou e pensei, “Estamos com Covid-19 e fui em quem passei pra ele”. Levantei e peguei o termômetro e o oxímetro. Estávamos com 38,3 e 38,2 graus, respectivamente. Coloquei o oxímetro para checar o nível de oxigênio no sangue dele, e para minha surpresa ele saturava 95%, Tentei me manter calma, mas as lágrimas escorriam e eu orava em silêncio pra que ele ficasse bem. Chequei a minha e estava 96%. O valor normal é algo entre 98 – 100%. Tomamos a medicação para a febre e tentamos dormir, mas passei a noite com medo, checando a nossa saturação. Ele dormiu sentado, pois estava difícil respirar deitado. No dia seguinte ficamos na cama, eu sentia fortes dores no corpo e a febre não baixava.
Conversamos e decidimos que não iríamos contar para nossos familiares porque eles iriam ficar muito preocupados e não poderiam fazer nada em razão de morarem a muitos quilômetros de distância de nós. Iam querer saber notícias nossas com frequência e não tínhamos força para ficar olhando o celular.
Confesso que não me recordo em detalhes dos dias que se seguiram. Lembro de sentir muita dor. Minhas costas, na região do pulmão doíam muito e chegaram a ficar inchadas; só de o pijama encostar na pele eu já sentia dor. Os analgésicos aliviavam parcialmente o incômodo e diminuíam a febre para 37-37,5. Foram sete dias com a temperatura acima de 37 graus e sentindo dor o dia inteiro. Levantava pra ir ao banheiro e comer e já ficava cansada e com dificuldade para respirar. Quase não sentia fome e comia forçadamente e muito devagar. Perdi cerca de cinco quilos em 12 dias de doença.
Fiquei sem trabalhar e optei por não tomar nenhuma medicação, além de analgésicos, as vitaminas que já tomo diariamente, muito líquido e repouso. Confiei na minha imunidade, acreditei que meu corpo iria vencer o vírus, e sabia o que fazer caso piorasse. E o meu companheiro confiou em mim. Cuidávamos um do outro dentro do possível.
Com o tempo as coisas passaram, melhoramos e contamos para nossos familiares e amigos como forma de alerta, pois mesmo sendo jovens e saudáveis não foi apenas uma “gripezinha”.
Mesmo antes de adoecermos, a quarentena já havia mudado grande parte da nossa rotina. Dizem que levamos cerca de 21 dias de repetição para criar um hábito, então na segunda semana de abril muita coisa nova estava consolidada. Seguimos acordando cedo, meu parceiro para trabalhar via home office e eu para estudar. A academia foi substituída pelo treino em casa, sempre às 11 horas na live ao vivo no instagram. Ao descer para buscar a comida ou compras, já era regra colocar máscara e luvas, não encostar no elevador e não entrar se tivesse alguém dentro. Na porta do apartamento, tirar a comida da sacola e colocar em outra, deixar no balcão alguns minutos, passar álcool em todas as embalagens e só depois guardar ou comer. Nos dias em que eu saía para trabalhar, o ritual ao retornar era ainda mais cauteloso: tirar os sapatos antes de entrar; jaleco e bolsa iam direto para uma sacola; ao adentrar, com cuidado, tirar toda roupa que ia para outra sacola; a N95 e a face shield colocadas na lavanderia em um local específico; ir para o banheiro de visitas sem tocar em nada; cuidar na hora de lavar o cabelo para a água não cair no rosto; as roupas e jalecos lavados separadamente das demais roupas…
Enquanto isso, a luz do sol eu sentia apenas da sacada. Nas noites de sexta e sábado, filmes ou lives dos cantores. Todos os dias, no noticiário, checava a evolução dos casos e a taxa de ocupação dos leitos em Fortaleza e na cidade dos nossos familiares… E assim o novo foi se tornando comum. Junto a essa nova rotina vieram reflexões e mudanças internas. Com mais tempo pra pensar surgiram muitas lembranças que estavam trancadas na minha mente, uma explosão de sentimentos. (No isolamento a minha mente está trabalhando mais do que nunca). Estava claro que não eu não era mais a mesma. E após adoecer vieram as principais mudanças.
Já não sinto a necessidade de ocupar o meu dia em casa com diversas atividades produtivas, me dei o direito de desacelerar, fazer as coisas com calma, e em alguns dias apenas descansar. Não consigo mais comer em pé e em menos de 10 minutos como eu fazia antes; a refeição virou algo que leva pelo menos 20 minutos agora, mesmo que eu tente comer rápido. Ao acordar, não é mais olhar o celular a primeira coisa que eu faço, e sim uma breve oração e alguns minutos de reflexão antes de sair da cama. Falar com a minha família e saber notícias deles deixou de ser algo feito por obrigação e passou a ser motivo de preocupação diária. As ligações por vídeo com a minha família e amigos mais próximos são eventos extremamente esperados e importantíssimos. Mesmo distantes, estamos mais conectados agora. Minha mente também se acalmou, minha empatia pelo sentimento dos pacientes em relação ao processo de adoecimento aumentou. Quando o médico vira paciente, consegue enxergar e entender algumas atitudes e sentimentos que só o doente pode sentir.
Após cumprir meu afastamento e me recuperar, retornei no inicio do mês de maio para o hospital infantil em que trabalho como neuropediatra. E no primeiro dia de retorno eu fui convidada a trabalhar no ambulatório de Covid-19 recém-criado apenas para atendimento dos funcionários do hospital com suspeita da doença. O hospital não estava conseguindo voluntários e como eu era jovem e já tinha pegado o vírus, seria uma boa candidata para assumir esta tarefa. Pensei por alguns minutos para responder, dado que no inicio do isolamento social aqui em Fortaleza, em março, eu prometi que tentaria não trabalhar na linha de frente dos atendimentos da pandemia por alguns motivos pessoais: primeiro que sou pediatra, mais especificamente neuropediatra, e atender adultos não é minha formação e nem tampouco algo que eu goste de fazer; segundo, que na maioria dos lugares infelizmente não recebemos os equipamentos de proteção individual necessários e temos que reutilizá-los e adaptá-los; além da carga emocional de estar na linha de frente, que é enorme, tem ainda a física, em razão de após estar paramentado você não poder mais beber água ou ir ao banheiro, além do que as máscaras machucam sua face, e você não pode tocar seu rosto para movê-la e aliviar a dor; as camadas de roupas e aventais de proteção são quentes e com o passar das horas o calor vai ficando insuportável e o ar condicionado do setor não pode ser ligado. Ou seja, é uma verdadeira prova de resistência física. E os gestores te perguntam, “Quantas horas você consegue aguentar direto, pois precisamos economizar os EPI’s ?” , e “Qual o limite da sua força?” , pergunta difícil, não é mesmo? Talvez por isso os profissionais de saúde estejam sendo chamados de heróis.
Entretanto, senti no meu coração que deveria aceitar essa missão e atuar na linha de frente, ajudando meus colegas de trabalho e funcionários do hospital. Aceitei e disse que aguentaria trabalhar por seis horas contínuas, e assim estou fazendo três vezes por semana. Atendo cerca de 20 pacientes por turno, solicito os exames para confirmar a doença, forneço os atestados, prescrevo medicações e encaminho para internação quando necessário. E mais do que isso, escuto com atenção e tento compartilhar com eles que compreendo o que estão passando, a dor, o medo e tudo que vem junto com o diagnóstico de Covid-19.
Essa foi a maneira que encontrei de fazer a minha parte e ajudar nessa pandemia. Não me sinto uma heroína, pelo contrário, me sinto fraca e indefesa diante de um vírus tão potente e avassalador, contudo quando coloco toda a paramentação e caminho para o corredor do Covid, no meu pensamento estão aqueles profissionais de saúde e demais funcionários doentes e com medo, e aí por seis horas me sinto forte e faço meu melhor por eles.
Com o novo emprego, maio passou tão rápido, e pensar que lá em meados de março acreditávamos que maio seria o começo do fim, que no final de abril atingiríamos o pico e então viria a redução dos casos e gradativamente iríamos retornar ao que éramos antes…Estávamos enganados; e os dias foram passando e os casos aumentando, UTIs cada vez mais lotadas, as mortes deixando de ser apenas estatísticas e se tornando nomes conhecidos, o pico ficando cada vez mais longe, mais hospitais e leitos sendo construídos, cada semana um novo protocolo de tratamento, polêmicas e brigas entre os políticos, dois ministros da saúde que se demitiram, enfim, tudo bem diferente das previsões iniciais.
Contudo, para mim, maio não foi como abril, teve menos ansiedade e medo, teve mais calma e mais consciência do meu papel atual nisso tudo. A batalha pelo outro tem mais sentido que a nossa própria batalha solitária. Junho chegou e diante do cenário atual do Covid-19 no Brasil, não dá para prever como serão os próximos dias ou meses, muito menos se um dia voltaremos ao que éramos antes, e eu realmente espero que não. Desejo que sejamos melhores com nós mesmos e com os outros.
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Conhecendo o estrangeiro que somos
Título | A estrangeira
Autora | Jennifer Gonçalves, 25 anos, publicitária
Suas fisionomias alegravam-se à simples visita de uma luz dourada, enquanto os dias de chuva lhes punham um véu espesso sobre o rosto e os pensamentos.
Albert Camus. A Peste.
ALERTA | Texto escrito da perspectiva de uma pessoa muito consciente de seu privilégio durante esse período – e da Cidade do México.
*Nomes foram inventados para os vizinhos, como não os conheço.
Da janela do meu quarto, tenho uma visão limitada de uma cidade que ainda não tive a oportunidade de conhecer. Eu vejo os arranha-céus que parecem dançar com o passar das nuvens e ser ainda maiores ao lado dos prédios baixos que ficam ao seu redor. Os mesmos que iluminam o céu à noite com seus escritórios vazios, como um farol sinalizando o que agora parece uma realidade paralela.
Da janela do meu quarto, onde eu passo a maior parte do meu dia, eu tenho acesso à vida cotidiana de diversos vizinhos – quase como um Big Brother sem precisar pagar o per-per-view. Observando daqui eu começo a perceber as rotinas nas vidas deles; como José, que sai todos os dias de manhã para pendurar sua toalha de banho no varal e aproveita para conversar com suas plantas, ou Javier, que passa o dia todo na frente do computador (imagino que trabalhando) e só sai para se sentar à mesa e comer com suas filhas, ou Dona Magdalena, que parece gostar de limpar sua casa todos os dias enquanto ouve alguma música que a faz dançar muito. E é assim que paro, às vezes por horas, imaginando a vida e a história de cada um desses vizinhos.
Da janela do meu quarto, começo a perceber que durante esse tempo aprendemos a desvendar e habitar novos cantos da casa, antes esquecidos. Melhor que isso, aprendemos a usufruir de um mesmo espaço de várias formas. Um espaço de três metros por dois, que antes era só usado para dormir, se tornou um espaço para uma mulher trabalhar, uma jovem adulta assistir filmes e séries, a criança interior dançar sem filtro com a música no volume máximo, uma atleta descobrir talentos, ou falta de, em novos exercícios… Tudo isso em um só espaço e em um só corpo. Enquanto aprendemos a habitar novos cantos da casa, também aprendemos a dividir esses cantos mais intensamente com as pessoas com quem convivemos. Querendo ou não, casais, amigos e irmãos estão precisando reconhecer e reaprender a passar tanto tempo juntos. E no meu caso, completos estranhos (que se conheceram na primeira semana da quarentena) a descobrir as regras de convivência.
Da janela do meu quarto, percebo que os sonhos para esse ano não se foram por completo, simplesmente se moldaram à realidade atual. O ano começou com um desejo, repetido no pular das sete ondas, escrito embaixo de um Daruma, pedido nos três nós de uma fita do Senhor do Bonfim, e cantado quase como um mantra. Um pedido simples, mas que carrega em si muitas possibilidades: a possibilidade de muita aprendizagem, de uma imersão total em uma nova cultura, de desbravar o mundo, de se conhecer melhor, de deixar de lado os medos… E daqui, percebo que por mais que a ida à Lucha Libre, ou as viagens às Pirâmides Maias e até as festas do Día de Los Muertos foram prorrogadas, estou desbravando tudo agora dentro de quatro paredes. Ao escolher ficar aqui durante esse momento em que passamos, estou aprendendo a desbravar o mundo de comidas e temperos novos e descobrir tudo de novo; por exemplo, os restaurantes que mais gosto pelas ofertas dos aplicativos de delivery; estou aprendendo a falar uma língua nova com a colega de apartamento local que fala com todas as gírias possíveis…
Ao escolher ficar aqui, em uma cidade que não conheço, me vi tornar mais próxima de pessoas que quase não conhecia, mas que agora compartilham o mesmo desafio que eu e também trazem consigo um pouco do conforto de casa para esse país estranho. Aqui, me vejo precisando encarar os meus medos, mesmo não sendo da forma que imaginei que os faria; descobrindo como diminuir a distância das pessoas amadas, como cuidar de mim mesma, como estar sozinha, e mais que tudo, como me posicionar e fazer minha voz ser ouvida.
Da janela do meu quarto, vejo o mundo se mover um pouco mais devagar, nos permitindo espaço para contemplar. Mais tempo para aprender a dançar e cantar enquanto se cozinha, porque agora não precisamos mais comer em quinze minutos enquanto fazemos três outras coisas. Mais tempo e espaço para tentar e errar, sem ser julgado; errar uma nova receita, um passo de dança, um tipo de exercício (no meu caso yoga), uma nova língua, um instrumento ou qualquer coisa nova. Mais tempo para não se preocupar com coisas, aparência, status ou o que pensam de nós. Mais tempo para perceber as coisas que realmente fazem a diferença. Mais tempo para os amigos e a família. E mais tempo para pensar em si; o que faz sentido, o que não faz, o que me faz bem, o que quero ser quando crescer (independente se tenha 16, 25, 33, 47, 52, 70 anos ou mais). Querendo ou não a pergunta é: “O que vai ser do mundo quando isso acabar? E que papel eu vou ter nele?”
Além de todo o caos e terror que essa doença trouxe, para os privilegiados, assim como eu, ela parece ter trazido uma pausa; um tempo para respirarmos de novo. Essa doença é um pouco irônica, no sentindo que ela prejudica e afeta exatamente isso que ela está trazendo para o planeta e para esses de nós que estão em casa esperando ela passar: o tempo. E convenhamos, parar para respirar não era uma coisa que estávamos fazendo muito ultimamente, acho que posso dizer como humanidade. Quando foi a última vez que você parou pra respirar e simplesmente estar? O mundo parecia estar girando cada vez mais rápido e a lista de coisas a fazer e conquistar cada vez mais interminável. E agora? De que serve toda essa lista de coisas para fazer?
Então daqui, da janela do meu quarto, eu fico observando uma cidade com fantasmas nas ruas, mas muita vida e amor dentro de quatro paredes. Percebo que o som de uma das cidades mais populosas do mundo se converteu em cantos de pássaros e o trompete de um vizinho muito talentoso. E o final de semana, com muitas coisas para fazer, se tornou um período de tempo interminável para pensar.
Então, quem serei eu depois dessa quarentena?
Ainda não tenho certeza. Mas vejo que essa pandemia parece ter colocado um holofote nos impactos negativos que pensamentos egoístas podem ter. Passo uma parte do meu dia lendo as notícias do Brasil e do México, onde estou, e vejo que não existe muita diferença; dois países dirigidos por líderes despreparados que deixam seu ego falar mais alto do que os especialistas. E isso não digo como uma crítica ao posicionamento político porque os dois são de ideologias opostas, mas parecem seguir o mesmo roteiro: o de manter poder frente a tudo e todos. Existe um movimento acontecendo no mundo, o de mais amor e mais liberdade. Ao mesmo tempo, existe um movimento contrário que parece querer limitar tudo o que já foi conquistado. Esse momento em que vivemos parece deixar muito claro que o pensamento que muitos têm de “Isso não me afeta, então não me importo” não funciona. No final, de alguma forma isso vai te afetar; seja a revolta por não querer usar a máscara e não querer ficar longe dos amigos, ou a escolha de representantes com discursos violentos e preconceituosos. No final, tudo volta.
Eu cresci e me formei especialista em fugir de conflitos e pensar “Não adiantar brigar, você nunca vai conseguir convencer eles”, mas nesse momento me encontro precisando brigar, porque agora é muito claro que se não brigar essa quarentena vai continuar pro resto de nossas vidas. E talvez com isso eu aprenda a entrar em mais embates e ajudar a garantir que continuemos conquistando mais amor, liberdade e pensando mais nos outros.
Título | Tempo de espera
Autora | Iara Frias, 66 anos, professora de yoga
O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter.
Albert Camus. A peste.
De repente, sinal vermelho, pare! Perigo.
Olho ao redor, meu corpo, minha casa. Gosto deles. Estão saudáveis.
Penso, aqui estarei por 3 semanas, 4, 5, 6, quantas será?
Primeiro vou me cuidar, empenho para estar bem.
Gosto dessa sensação de ficar, parar. Acolhe, dá prazer.
Abre-se um espaço para novos acontecimentos.
Mas fora do território particular, olhando para o bairro, o país, o mundo, sinto receio: aonde vai dar essa pandemia? Estamos desamparados.
Sinto dor social. Raiva do descaso, da violência, da mentira, da imoralidade, do desrespeito com os povos.
Difícil em qualquer país, mas o Brasil, pior. Somos o primeiro lugar em negligência com a pandemia da América. É triste estar no meio dessa devastação.
E dessa necessidade do isolamento social surgiu, para mim, acontecimentos inéditos, na percepção do meu mundo, meu espaço, de um novo sentir. Uma abertura de viver outras experiências, diferente de tudo que eu sempre fiz.
Sigo meditando, trabalhando, dormindo, fazendo, estando, me acolhendo, regando o jardim.
Até o pior dos temporais aduba o jardim.
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Futuro invisível?
Título | De um a um, vamos à ruína.
Autora | Sofia Ladeia, 16 anos, estudante
Conta-se os mortos, contam-se os vivos, e pronto. Essa porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la no coração.
Albert Camus. A peste.
Não aguento mais ficar em casa. Já escrevi e falei isso milhões de vezes desde o começo da quarentena.
Todas as tarefas que eu tinha como obrigação antes disso tudo, e que raramente reclamava de fazer, tornaram-se fardos pesados: lavar a louça, arrumar meu quarto, fazer lição, assistir aula, fazer qualquer tipo de exercício físico e a lista se estende. Não consigo parar de procrastinar, não acho jeito de colocar minha cabeça no lugar, não sei como vou estar no dia seguinte e, sempre que ele chega, falo que serei mais produtiva no próximo, quando nunca sou.
Fico presa nesse ciclo, com pequenas variáveis, e tudo desmorona. Me afasto dos meus amigos, da minha família, minha saúde mental se deteriora e meu desempenho escolar cai mais rapidamente do que o coronavírus se espalha.
Enquanto isso, contudo, é esperado de mim puro sucesso acadêmico. A escola manda quatro, cinco trabalhos por semana, seis aulas de vinte a trinta minutos de duração cada e eventuais verificações de aprendizagem desse conteúdo – não dado, mas cuspido nas caras dos alunos, de uma maneira tão volumosa que cabe a nós apenas nos afogarmos nele.
Além, claro, da ansiedade de não saber quando a quarentena vai acabar. Eu nunca poderia imaginar o quão difícil é viver sem saber como será a próxima semana, mês ou até ano, se nada se resolver. Passo horas conversando com meus amigos por ligação e mensagem, ponderando todo tipo de idiotice que faremos na próxima vez que nos virmos, porque acredito veementemente que, caso não o faça, vou enlouquecer. A incerteza dessa data mágica – que, apesar de ter consciência de que será um processo gradual, não consigo parar de fantasiar sobre – faz da minha mente uma refeição e vai devorando-a de pedaço em pedaço, enquanto me entrego ao desespero.
Contudo, acho que o que mais temo com a possível aproximação do fim desse inferno são as consequências. Ignorando os aspectos políticos e econômicos, que já podem ser previstos, não fazemos ideia de como nossas cabeças sairão do isolamento. Eu, poucos dias atrás, me peguei atravessando a rua se visse pessoas andando na minha direção, na mesma calçada – da mesma maneira que as vejo evitando cruzar caminho comigo e com qualquer outro, estando esse de máscara ou não.
Nosso sentimento de comunidade, se já não era fraco, agora é praticamente inexistente. O brasileiro é, típica e imperdoavelmente, individualista: cuidamos apenas do que é nosso, nos preocupamos apenas com nosso próprio nariz e, sempre que possível, gostamos de impor nossa moral em todo e qualquer um que discorde. Há vídeos na internet de gente sendo chutada para fora de ônibus por não estar de máscara, negros são assassinados de maneira escancarada pela instituição cujo único objetivo é a proteção dos cidadãos e pessoas teimam em aglomerarem-se como protesto à quarentena, porque aparentemente suas visões políticas transcendem as centenas de mortes por coronavírus que são documentadas diariamente. Se estamos assim agora, como será o depois? De que jeito podemos querer um retorno à “normalidade” se não há cooperação nem no momento de crise?
Mas, o que será a normalidade? Existirá algum conceito, nem que análogo a esse, dentro dos próximos cinco, dez anos? Acho que não. Temo que não.
Invariavelmente, enquanto nos encontramos no centro do furacão, não adianta aderir ao pensamento pessimista e catastrófico. A catástrofe já está aqui, entre nós, não só toda vez que colocamos o pé para fora de casa, como também quando abrimos portais de notícias para tentar o máximo possível não nos permitir a alienação.
E esse é um mal mascarado que vem me seduzindo lentamente. É tentador ceder ao isolamento total, focar completamente em si mesmo como indivíduo e, assim, ignorar o contexto no qual o mundo se apresenta. As pessoas que alegam acreditarem que a quarentena pode ser uma oportunidade de relaxamento, produtividade e autocuidado já passaram, há muito, da alienação. Sim, suas vidas se tornaram muito mais fáceis, mas a custo de quê? Em que elas contribuem para o “continuar” da sociedade, se recusando a participar dela? E pior, como conseguem dormir à noite tendo consciência disso?
Para ser honesta, nem tentando “participar” de maneira positiva das questões sociais atuais consigo dormir tranquila. E não falo isso, de jeito nenhum, para soar altruísta ou empática, pois me sinto o exato oposto: egoísta. Ao mesmo tempo em que carrego pura gratidão por todos os recursos aos quais tenho acesso, não usufruo deles do jeito que melhor poderia e, por isso, não sai de minha cabeça a culpa. Culpa por não estudar direito durante o ensino à distância enquanto milhares de estudantes não têm aula desde março, culpa por não poder fazer nada para ajudar quem mais precisa a não ser assinar petições na internet; culpa por, essencialmente, ficar no conforto da minha casa, tendo como maior problema tentar estudar alguma coisa e ativamente não o fazer, mesmo tendo todo o tempo do mundo.
E a pior – ou melhor, dependendo da perspectiva – parte dessa quarentena é o tempo. Ficar sozinha, para mim, sempre foi uma terapia de relaxamento; agora, é torturante. Tenho uma quantidade excessiva e insuportável de tempo comigo mesma que, mesmo que eu tente evitar, está me enlouquecendo. Fico assistindo filmes, séries, lendo, mas tudo sempre acaba numa reflexão que parece chegar a lugar nenhum. Acabo ficando revoltada, porque com dezesseis anos, eu deveria estar fazendo todo tipo de besteira por aí! Ter uma obrigação moral de isolamento é excruciante posto que, mesmo que queira muito, não posso sair buscando festas nem frequentado casas de amigos, já que me foi dada a informação necessária para entender que isso implicaria em muito desastre e que é exatamente essa atitude individualista que está atrasando tanto o “achatamento da curva” de contaminação.
Se tem uma coisa que reconheço ser – mas desprezo – é hipócrita. Não comprometeria o bem da comunidade pela vontade de sair, vontade que todos compartilham comigo, mas muitos abdicam para que tudo isso acabe logo; não há nada que me dê o direito de satisfazer um desejo que está sendo sacrificado, também, por tantos outros. Por isso e por muitas outras coisas, quero deixar para as gerações futuras a seguinte invocação: olhem para além do seu próprio umbigo. Porque senão, ao invés de salvarmos um ao outro, nós apenas vamos, um a um, à ruína.
Título | Um urso polar sobre um pedaço de gelo.
Autor | Leonardo Tura, 54, economista
Mas, na realidade, já estavam dormindo e todo este tempo não foi mais que um longo sono.
Albert Camus. A peste.
Há anos um dos filmes que me impacta da mesma forma a cada vez que o assisto é Koyaanisqatsi. A edição das imagens cria um contraste ao colocar, de um lado, a beleza da natureza, culturas, religiões e, do outro, o progresso tecnológico da humanidade, com tudo o que tem de maravilhoso e ao mesmo tempo, destrutivo. A música, quase um réquiem, é a trilha sonora para uma conclusão melancólica e visionária: não vai dar certo.
A ponto de completar quarenta anos, o filme continua atual ao construir a imagem de um mundo frágil e sob a permanente ameaça das ações do homem. Um castelo de cartas, cujo equilíbrio torna-se cada vez mais precário e sujeito a ameaças na medida em que aumenta de tamanho. Até que, a certa altura, o bater das asas de um morcego fez com que tudo desmoronasse. Como um raio, a Covid-19 instalou-se e provocou mudanças profundas num curtíssimo espaço de tempo.
Pessoalmente, como isso me atinge? Da forma menos prejudicial possível dentre tudo o que vejo nas notícias. Não ter a necessidade de me expor diariamente ao risco de contrair essa doença me deixa a sensação de ser um privilegiado. Tenho condições de ficar em casa e ter o mínimo de contato possível com o mundo lá fora; tenho um trabalho e consigo fazê-lo de casa, e ainda tenho um salário que, apesar de reduzido, continua caindo. Temos em casa dois cachorros, Boris e Nino; por um passeio eles trocam comida, carinho, qualquer coisa, até mesmo nós. Essa obsessão que têm pela rua, por sair necessariamente duas vezes ao dia, uma pela manhã e outra à tardinha, é o que me salva de uma quarentena de fato.
Para mim, falar a respeito da pandemia é falar de uma incômoda privação da liberdade. Passo por esse momento dentro de uma casa com saneamento básico, água potável, acesso à luz, gás, canais de TV por assinatura e internet. Moro num bairro central, seguro, arborizado, com um bom comércio local e posso fazer compras on-line.
Em condições normais de vida gosto de ficar em casa no meu tempo livre. Por esse motivo, a reclusão não me cai tão mal. Já passei pela experiência de trabalhar de casa, e sei que não ter diversões ao redor me deixa mais concentrado. Não ter que me deslocar pela cidade de São Paulo é um bônus que me acrescenta, por dia, umas duas horas a mais de vida. O fato de eu acordar, e não ter a pressão de partir para o trabalho imediatamente, faz uma grande diferença, e poder tomar a primeira xícara de café do dia com tranquilidade me deixa mais feliz. No final das contas, o meu é o relato de um incomodado, que chega a ser egoísta nos momentos em que fico mais aborrecido por estar de “castigo”. É um momento chato, mas é só isso – e espero que fique nisso.
Porém, quando olho para fora da minha sacada, vejo o povo que já sofria por conta dos problemas históricos de desigualdade, engolido pela injustiça, e que passou a sofrer ainda mais. O abismo que separa os desvalidos no Brasil, tendo servido para mantê-los à margem das oportunidades e direitos, agora está servindo ao funesto destino que boa parte dos excluídos terá. A cova já está lá, aberta e à sua espera, aprofundada a cada dia pelo governo mais inepto que o país já teve. Acrescentaria caricato, mas o momento não é para rir.
Superada essa crise, o que virá? Qualquer resposta seria mera adivinhação. O modelo econômico vigente há uns 300 anos vem dando sinais de desgaste e esgotamento, mas o DNA do capitalismo é forte, portanto não espero uma mudança radical. Esse mundo desequilibrado mudará lentamente, qual um iceberg, que passa por um processo lento de derretimento, que faz com que o corpo de gelo dê “voltas” em torno do seu eixo a cada tanto, até que no fim seja incorporado ao mar. Passaremos por essa primeira “volta” e virão outras, cada qual trazendo suas pequenas mudanças, até que, finalmente, a humanidade alcance outro estágio e venha uma nova forma de organização. Pena que já não estarei mais aqui para viver esse momento.
PS: espero influenciar meus sobrinhos atuando pelo exemplo na construção de um mundo menos desigual. Seria muita ambição da minha parte querer ter um alcance maior; será muito bom ajudá-los a pensar de uma forma diferente. E se eles educarem seus filhos e influenciarem seus amigos, e estes a outros, serei mais que feliz.
Título | In(visíveis)
Autor | Raphael Rodrigues Martins, 29 anos, experimentador, pesquisador e artesão da vida; professor, pesquisador de educação infantil e acompanhante terapêutico.
Para lutar contra a abstração, é preciso assemelhar-se um pouco com ela.
Albert Camus. A peste.
Para os invisíveis.
Queridxs,
Não é de agora que sei da existência de vocês. Percebo-xs pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos, pela boca, pela pele, pelos sonhos… Ora os aceito, ora os reprimo.
Não vou negar, sempre tive medo da presença de vocês. Quando não identificadxs, agem com selvageria.
Um dia, fui apresentado a um laboratório, onde pude investigá-lxs. Lá, consegui descobrir as origens, os efeitos e até os possíveis caminhos para me relacionar com vocês. Afinal, isso foi preciso porque alguns dxs senhorxs já estavam me comendo vivo e deteriorando o meu entorno.
É muito foda entrar nesse laboratório às segundas. No meu tempo de vida, como um analista sensível, vou esmiuçando as histórias e as palavras para identificá-lxs e tratá-lxs. Nesses momentos, descubro as minhas forças e as minhas vulnerabilidades frente a vocês.
O que eu não sabia, até o finalzinho do mês de março, era que, entre vocês, também existem influenciadorxs.
A família dx Covid-19 vem influenciado muitxs de vocês a se tornaram mais perceptíveis. Não sei como isso tem acontecido, mas parece que eles implantaram no mundo um acelerador. Estão crescendo com muita velocidade! É difícil não enxergá-lxs, e ver os efeitos dos influenciados por vocês.
No mundo, vejo a desigualdade social acelerando, mas também vejo crescer o número de ativistas pró-terráqueos. No meu país, vejo a ignorância política nos aprisionando cada vez mais em bolhas, mas também vejo nós, brasileiros, descobrindo a importância de políticas públicas para mediar as liberdades e as responsabilidades. No meu Estado, falsos civilizados se multiplicam, mas também vejo crescer os desobedientes ao presidente. Na minha cidade, vejo, com mais ênfase, para quem o prefeito governa, mas também vejo acelerar a diminuição da poluição. No meu bairro, Santa Efigênia, vejo crescer o número de moradores de rua, mas também vejo o trânsito mais calmo. Na minha rua, em frente ao metrô Luz, vejo que os trabalhadores que levam o “país nas costas” continuam na ativa por questão de sobrevivência, mas também vejo mais passarinhos ocupando o céu dessa rua. No prédio em que resido, vejo que não somos ainda uma comunidade que zela um pelo outro, mas também vejo que posso dar esse primeiro passo me colocando a cooperar. No meu lar, vejo que os afazeres só aumentam, mas também vejo que as minhas plantas estão mais vivas! No meu relacionamento amoroso, vejo que eu e a minha companheira estamos mais irritados um com outro devido ao isolamento, mas também nos vejo mais sensíveis aos prazeres da vida. Da janela, vejo mais sirenes tocando e helicópteros sobrevoando o céu, mas também vejo mais beleza na paisagem. Na minha família, vejo os conflitos não resolvidos sendo retomados com mais frequência, mas também vejo que já consigo conviver com eles, não dentro deles. Nas telas tecnológicas, vejo o aumento de casos e mortes provocados por esse grande invisível no Brasil, mas também vejo o quanto os humanos vêm se reinventando para viver esse novo tempo. No meu corpo, vejo que o meu humor tem oscilado mais, mas também vejo que os meus sonhos estão se transformando em bússolas.
Olha, invisíveis… Faltam-me palavras para falar de vocês!
Eu não sei se agradeço ou mando vocês para a casa do queridíssimo caralho…
Nesse momento, eu só desejo mais laboratórios para aprender a lidar com vocês! Quero mais espaços de cultura, mais escolas, mais universidades, mais ruas brincantes, mais espaços terapêuticos, para que, em lugares protegidos, nós possamos brincar e aprender a conviver com vocês, porque enfrentá-los no mundo real não é nada legal, as consequências são mais severas, mais violentas, mais destrutivas.
Por favor, invisíveis, maneirem!
Atenciosamente. ♦
* Thiago Majolo tem 38 anos, psicanalista.
** Em ordem alfabética: Felipe Cabral, Iara Frias, Jennifer Gonçalves, Leonardo Nery, Leonardo Tura, Luara Rodrigues Codognotto, Luciana Prado, Raphael Rodrigues Martins, Sergio Tranchesi Ortiz, Sofia Ladeia e Tamiris Carneiro Mariano.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | MAJOLO, Thiago et al (2020) A vida diante do vírus: relatos de uma experiência clínica e social. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -9, p. 02, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2020/07/11/n-9-02/>