Editorial

Nós mudamos. Chegamos ao fim de algo e ao começo de um outro algo. E o início só é percebido a partir do meio. Um mito, uma vontade de início. Também é, no pior dos casos, a partir do fim. Mas o início verdadeiro, aquele antes do movimento, construímos como mito. A mentira que nos contamos para garantir nossa existência. O antes de mim, antes da matéria, antes de tudo, a natureza das coisas. Pensando sobre essa mesma natureza, produzimos o homem de duas cabeças parmenidiano. Aquele que pensa, mentiroso, sobre sua verdade, o início. Disso produzimos muita coisa; o transcendente, o espírito, nosso deus. E a verdade. O problema é que só pensamos a verdade com duas cabeças, de dentro da mentira. No início, era mentira. Alguém, com a boca muito pesada para falar, mentiu, inscrevendo a verdade que versava sobre o número de ovelhas, pães e jarras de mel de uma transação comercial babilônica, ou em Kish ou Nerkhen ou Ur. Algum lugar que não é mais.

Mas deixemos a filosofia da invenção da verdade pra lá. O que importa disso tudo é que precisamos do início. Hoje a profecia do novo, das boas novas está viva. Um Messias que refaz nossa promessa de que tudo mude a partir de agora. O ruim acabe, o bom se instaure: a história mais antiga do mundo. É tudo mentira, fake, sabe-se. Mas temos de acreditar na borracha que apaga o ruim, o feio, o mundano, quinhentas e cinquenta mil pessoas. Somos deus, enfim, e como deus falamos a verdade.

A voz de um povo — de onde emana todo o poder — é a voz de deus. Quanto aos outros povos, ficam sem voz, sem deus, sem casa, sem terra, sem nada. Sem verdade. Empurrados conflito abaixo, a escolha forçada é a seguinte: qual povo queremos ser?