por Luciano Salles
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Escrevo não para procurar sentido, mas para tentar transmitir algo da minha relação com o Contardo. Será falha, com buracos, quem sabe até fantasiosa, mas foi assim.
Depois de nossa dupla oficialmente firmada pela Folha de S.Paulo, ele envia o primeiro e-mail (de muitos) me convidando para tomarmos um café e nos conhecermos melhor. Lembro de ter respondido com certa dose de humor, pois estava a 300 km de distância. Uma ligação telefônica foi combinada.
Eu já conhecia o Contardo Calligaris. Lia suas colunas na biblioteca da faculdade, depois nos exemplares da Folha nas agências bancárias que trabalhei. Assinava o jornal, assistia aos episódios do programa Café Filosófico que protagonizava.
No horário combinado, a tela do telefone indicava, pelo DDD, quem era. A voz dele parecia mais carregada de sotaque do que lembrava já ter escutado. Tinha motivos para ficar nervoso ao conversar com ele. A conversa persistiu por, talvez, 5, 10 minutos. Pouco falei, apenas “sins” e “nãos”.
Após algumas poucas colunas publicadas e do trabalho engrenado, surgiu a oportunidade de ir para São Paulo. Avisei da minha visita à cidade e marcamos o café. Ele me convidou para que fosse em sua casa, mas preferi que fosse em uma cafeteria, afinal, tinha motivos para.
Já no local, em uma mesa para três, o Contardo chegou com um amplo sorriso e nos abraçamos (era um outro mundo, diferente do que hoje vivemos). A conversa fluiu por uma, duas, quase três horas e nos despedimos com outro abraço, esse mais demorado. Alguma coisa havia se encaixado ali, para além do escritor com o ilustrador. Mais, ainda.
As publicações fluíam bem, estruturavam minha semana e, mesmo depois de muito falarmos (para além do trabalho também), eu escondia algo dele. Como revelaria para o Contardo Calligaris que o ilustrador de sua coluna percursava por estudos psicanalíticos? Como contar que estudava em um centro de estudos lacanianos?
Supus muitas coisas, deixei que minha angústia, parceira, conduzisse aliada de ansiedade. O Contardo havia estudado com Lacan, ajudou a montar o seminário de Joyce, além de o ter como uma biblioteca poliglota ambulante. Estava em uma situação confusa: havia criado uma diferença entre o icônico colunista, escritor, e o renomado psicanalista.
Depois de um ano e meio de parceria, decidi contar. Pensei em ligar, mas preferi que fosse por uma mensagem de WhatsApp. Não gaguejo quando digito.
Na mensagem, relatei sobre meu percurso psicanalítico orientado pelo Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade (Clin-a) e confessei que omiti o fato por respeito (?), ou por algum tipo de vergonha intelectual, se é que isso existe. A resposta? A mais doce possível sobre o assunto e, ao final da mesma mensagem, uma informação sobre o andamento de sua enfermidade.
Foram textos, desenhos e publicações, textos, desenhos e publicações. A repetição seguia quando em uma terça-feira, dia em que enviava o texto, o e-mail não chegou. Não chegaria mais.
Fiquei preso naquilo que não mais existia, os dias da semana se diluíram e não conseguia me orientar para voltar a seguir. Por vezes pensava, falava baixinho comigo mesmo: “me deixa ir, Contardo. Preciso seguir”. Imputava a ele, ao outro, quem sabe ao Outro, minha inação.
Eu senti demais a partida do Contardo. Ainda sinto.
Demorei dias e dias para ter vontade de desenhar. Precisei inventar uma série chamada “Ilustração para um texto que não recebi”, na qual, literalmente, me proponho a desenhar algo para um texto que não existe.
Fiz o desenho que ilustra esta coluna para outro texto, um que nunca receberei. ♦
* Luciano Salles é quadrinista e ilustrador da Folha de S.Paulo. Ilustrou as colunas do psicanalista Contardo Calligaris de abril de 2019 até seu último texto. Sua arte chamou atenção a partir da publicação de suas histórias em quadrinhos, onde trabalha por temas distópicos.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | SALLES, Luciano (2021) Preciso Contar. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -11, p. 4, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/08/02/n-11-04/>.