Sempre estive entre línguas[1]. Um dos motivos, talvez o principal, de eu me tornar psicanalista origina-se nesta condição “entre”, já que numa psicanálise a gente explora a língua secreta da infância e dos afetos. Aquele lugar reservado que só pode ser compartilhado na intimidade (deve ser por isso, por ser o depositário da vida secreta do outro, incluindo-se ali o lado oculto dos seus amores, que a figura do analista do cônjuge pode ser tão odiosa).
Meu pai falava idisch, que poderia traduzir-se como “judeês”, assim como traduzimos, english, a língua dos ingleses, por inglês. Era a sua língua de infância. A minha mãe, também filha de imigrantes judeus, nunca aprendeu o idisch porque quis distanciar-se da sua infância e integrar-se na língua e na cultura argentinas na qual nascera. Eu não falo idisch, mas incorporei expressões e palavras que exprimem melhor do que nenhuma outra língua determinadas situações ou sentimentos. Exprimem para quem?, cabe perguntar, já que não posso compartilhar esse código com quase ninguém. Seja como for, às vezes me surpreendo soltando, sem pensar e como que para ninguém, um “oy veis mir!“, que talvez seja como que uma aceno para o meu pai.
Em todo caso, num movimento contrário ao daquele desejo materno de integração, que na verdade significava antes um afastamento do antissemitismo ambiente, eu tive uma educação cosmopolita, voltada para o mundo. Fui educado numa escola bilíngue, por exemplo, para que o inglês, a língua imperial, fosse a minha segunda língua.
Essa abertura para mais de uma língua, acrescida de uma suspeição das identidades nacionais, que me vem de ambos os pais, simpatizantes dos ideias libertários e revolucionários de inspiração marxista que agitavam o mundo na década de sessenta, e mais o horror da minha mãe pela segregação, me tornaram não apenas muito sensível à música da língua do outro, como me fizeram querer falar essa língua como se fosse a minha, de modo a não ser identificado como estrangeiro. Por isso, considero um sintoma a vigência deste meu sotaque, que me destaca dentro do conjunto dos brasileiros, como a estrela amarela obrigatória costurada na roupa durante o regime nazista europeu. Hoje não me incomoda mais, mas já vivi como uma frustração dizer “oi” e me responderem “você é de onde?”. Um amigo brasileiro me disse há muitos anos: “não reclama, que esse sotaque teu vai te permitir aumentar bastante o valor dos teus honorários”.
Esta condição entre línguas também me fez interessado pela tradução e suas vicissitudes, ou melhor, pelo intraduzível que existe em cada língua. Isto está na mais estreita relação com a psicanálise, que necessariamente lida com o impossível de traduzir (relaciono isso com o que Freud chamava de “umbigo do sonho” e que ele qualificava como unerkannt, impossível de conhecer) e, claro, com a tarefa tão difícil de fazer circular em português os textos escritos pelos colegas falantes de outra línguas. Tanto como analistas quanto como tradutores, temos a obrigação de tentar traduzir o que não pode ser traduzido, isso que Barbara Cassin diz, tão lacanianamente, “o que não cessa de (não) se traduzir”. Estou lhes dando minha versão da fórmula “a clínica psicanalítica é o real impossível, a ser suportado” (la clinique psychanalytique c’est le réel impossible à supporter). Talvez volte a isso.
Mas, antes, queria me deter no “entre”.
Enquanto pensava no que iria preparar para vocês, topei com um artigo de Jeremy Bentham que se pergunta se a preposição between não seria um defeito da língua inglesa. Em português ou espanhol, between só pode traduzir-se pela partícula “entre”. Só que “entre” implica o número três. Isso que está “entre” intervém como um terceiro termo no vínculo dos dois que ele separa ou junta. Deriva de inter, em latim, que, ao pé da letra, significa “em terceiro”. Ou seja, aquilo ou aquele que está “em terceiro” ou “como terceiro” na relação dos outros dois. A preposição (ou o advérbio) between, ao invés, foi construída a partir do número dois (“by tween“, por um par; em castelhano seria de a dos), que condena o inglês a um pensamento binário, mesmo quando ele está referindo-se a uma ordenação de três ou mais classes ou elementos. É isso que Bentham considera se não seria uma falha da sua língua, na qual uma proposição que compare três termos ou se refira à relação entre três elementos comete uma antinomia, uma contradição interna, já que por um lado afirma haver ali três objetos e por outro, e ao mesmo tempo, afirma não haver ali mais do que dois.
Bentham observa algo para nós assaz interessante: considerando o tipo de lógica que o between pressupõe, devemos concluir que, em inglês, só podem ser comparados os objetos um a um. “A verdade”, escreve, “sobre esse fundamento, a língua inglesa trabalha sob uma imperfeição (the English language labours under a defect)”, a saber, a limitação pela qual ela se obriga a reduzir a dois os termos de qualquer comparação. O que me chamou a atenção não foi a imposição da dualidade, com a topologia da esfera, do dentro e do fora, do isto ou aquilo, que lhe seria inerente, senão que mediante esta operação de redução da multiplicidade a um jogo de pares o que de fato se realiza é uma análise em que a partir de um, que pode funcionar como padrão de comparação, todos os elementos devem ser tomados um de cada vez, o que faria objeção a constituir o Uno, a totalidade.
Por outro lado, e inversamente, quando falamos em português da relação “entre A e B” estamos, sem querer e sem saber, introduzindo um terceiro que os vincula ou os distingue. Trata-se do “e” que concerne ao verbo ser usado como cópula, como ligação apenas entre dois termos. Adela Stoppel me sugere contar a relação mesma como esse terceiro; no fim das contas, denomina-se tertium comparationis (a terceira parte da comparação) a qualidade que tem em comum A e B, que me levou a compará-los para começar. A solução é tentadora, ainda que eu não goste muito dela por duas razões: primeira, pela substancialização da operação de comparar; e, segunda, porque me lembra essas chicanas a que os professores recorrem para encerrar as discussões mediante um deus ex machina. Os anglófonos não deixam de comparar as coisas ainda que o façam de modo dual.
Para os psicanalistas, entretanto, este inter é precioso por ser um dos nomes do “falo”. Freud inventou o complexo de Édipo para pensá-lo, como sabem, e com quanto afinco Lacan demonstra que esse terceiro não permite comparar A e B de um modo exato, sem resto! Isso significa questionar a concepção familiar e apressada da estrutura ilustrada por Freud mediante o triângulo papai-mamãe-neném. Aquela imagem da Nossa Senhora segurando seu bebê, nosso futuro Senhor, como figura de uma totalidade fechada, de um Uno, com o pai como fornecedor do complemento materno e garante da sua unificação. Primeiro, então, Lacan usa como modelo das relações sexuais — não digo entre homens e mulheres, já que aí vocês vão pensar que sou um velho reacionário —; usa como modelo para pensar as relações sexuais o número de ouro, um número irracional, constante, produto da comparação dos termos relacionados, tal que nunca haverá entre ambos uma cifra exata para exprimir a relação. Sobra um resto. Aquilo de “um é pouco, três é demais”. Esse “demais” é apelidado de “filho” precisamente no seminário A lógica da fantasia, de 1967. Ou seja, onde Freud lê a completude, Lacan lê uma incompletude que elemento nenhum, ou filho nenhum, jamais preencherá.
E sobra o “dois é bom”, isto é, o casal. Este casal, todo casal, esconde, segundo Freud, a trinca originária papai-mamãe-neném, com este terceiro, a que ele chamava “falo”, encarnado ou não. Pode ser o ex-marido da esposa, o pai do marido, o colega de trabalho, ou simplesmente Brad Pitt, por quem ela suspira não tão secretamente, enquanto ele, secretamente, sonha em comer aquela loira da academia na qual não ousa chegar. Figuras do falo, como disse, mas como este não é o mesmo para ambos os participantes, estamos às voltas com um terceiro bífido.
Como dizia, Lacan aborda em primeiro lugar o “entre” mediante o paradigma da proporção áurea, e apesar de usar o coito heterossexual como referência e como exemplo, a lógica estaria valendo para o casal do sujeito com seu objeto e é por isso que se trata da “lógica da fantasia”. Alguns anos depois, tematizará as relações, agora sim, entre homens e mulheres, discursivamente falando — ou seja, não do ponto de vista da biologia —, mediante as operações topológicas denominadas de compacidade. Para não me alongar, digamos que a compacidade se refere a dois modos de tratar matematicamente o espaço em termos de infinitude (o ilimitado) e de finitude (o limitado). É uma ideia bastante estranha e muito resistida dentro e fora da psicanálise, de que aquilo a que denominamos mulher talvez seja apenas o nome de um modo de interpelar a finitude mediante uma infinitude (e vice-versa: nenhuma preponderância patriarcalista aqui). Não posso desenvolver esta ideia agora, mas leiam o seminário chamado Mais, ainda com esta chave e verão abrir-se uma quantidade de questões bem interessantes.
Encontramos o “entre”, também, em “interpretação”, que significa “mediação” — o interpretante é um medianeiro, um negociante—; mediar entre, por exemplo, o charuto e aquilo que ele simboliza, a saber, o nosso falo de agora há pouco (isso nos casos em que o charuto não é um charuto apenas). A meu ver, o psicanalista tem mais de tradutor do que de intérprete, não porque ele decodificaria a linguagem críptica do inconsciente, mas antes pela sua função de conduzir o outro através das línguas que habitam nele. E não estou sendo metafórico ao dizer isso porque tradutor vem de trans-ducere. Este ducere deveria soar familiar aos ouvidos dos paulistanos, já que está escrito no brasão de São Paulo, non ducor, duco, “não sou conduzido, conduzo”. Um tradutor é aquele que te conduz de uma língua para a Outra (escutem o “o” maiúsculo).
Por isso, penso, os sintomas da tradução nos concernem como psicanalistas. Barbara Cassin diz haver dois modos de traduzir: um deixa o leitor confortável e o autor frustrado; o outro, ao contrário, atende o autor provocando no leitor o incômodo de perceber os ecos de outra língua na sua. A maioria das traduções de Lacan para nossa língua deixam transparecer um tradutor que parece nos dizer “que pena que não somos franceses!” Prefiro um que me faça acreditar que Lacan escrevia em português.
Last but not least, temos o inter em “sujeito”, o terceiro relativo aos dois significantes. Lacan o define como o intervalo mesmo entre eles. E aqui cabe um parêntese para examinar a noção de intervalo, que, por sinal, significa etimologicamente a região entre duas defesas, mais precisamente, entre duas fileiras de estacas; enfim, o que hoje, por deslizamento, chamamos “trincheiras”, já que vallum, de onde deriva “vala”, na verdade se referia aos muros erigidos contra o inimigo, não ao buraco ou à região entre eles, à que se denominava, precisamente, “intervallum“. Por isso cabe insistir que entrelinhas não há nada além de um espaço em branco. A nossa tarefa é ler as linhas e, dentro do possível, ao pé da letra, atentando para a sintaxe e para a lógica, não apenas para a semântica.
Ouço falar disso com toda a naturalidade, ninguém parece achar nada demais, mas é uma ousadia Lacan chamar de “sujeito” algo que estaria nos brancos ou no intervalo, onde claramente não há nada. Neste sentido, “sujeito” é o nome para designar o resultado da operação mediante a qual a metáfora produz uma significação suplementar, inesperada, que não estava nem numa, nem na outra das palavras consideradas. Sujeito seria pois o “entre”, o inter, que resulta de pôr em relação um significante e outro.
Isso tudo, para chegar ao “entre línguas”, fundamentando a minha preferência pelo “entre” em vez do agora quase obrigatório “trans” — preposição latina em acusativo que virou um prefixo que significa “atravessar de um lado ao outro, ir além, perpassar, ultrapassar”, como em “transatlântico”, que atravessa o oceano de uma margem à outra. Prefiro “interdisciplinar”, por exemplo, que implica o respeito pelos campos respectivos das disciplinas que se relacionam, a “transdisciplinar”, que flerta com a ilusão de ir além de ambas a um espaço superador, mítico, que me lembra os sonhos do Homem Novo de um São Paulo (redimido do pecado) ou de um Che Guevara (liberto da alienação capitalista) ou ainda o Super-Homem de um Nietzsche (esse que não seria um escravo) e até o transumano imaginado por Sturgeon num livro da minha adolescência escrito em 1953, Mais que humano.
“Entre línguas”, então, supõe três. Vamos dizer algo sobre esses três, mas antes haveria que perguntar, com Barbara Cassin, “o que é uma língua?”. Responde ela: “um mundo”. E a língua dita “materna” é teu mundo de todos os dias. Não precisa ser a da mãe, pode ser a do pai, ou a de nenhum deles; pode ser a língua que se fala no lugar em que você nasceu, ou no qual você cresceu. É a língua familiar e na qual pode irromper precisamente aquilo que Freud chamava de Unheimliche e que o Paulo Sérgio de Souza Jr. acaba de nos propor traduzir como “o incômodo”. Para uma paciente minha, brasileira, era menos o português que o dialeto napolitano do avô. E apesar de eu não entender patavina do que ela dizia, às vezes pedia para ela não traduzir as frases que lhe vinham em napolitano, enquanto associava em português, e isso deu muito pano pra manga, menos pelo sentido que pela voz, pela música e pelo modo como isso infletia o português materno dela.
Varias vezes me perguntaram como é analisar em língua estrangeira. Por um lado, a minha estrangeirice me torna depositário da língua do Outro, ou melhor, do Outro da própria língua, já que toda língua tem seu gêmeo idealizado ou demonizado. É um lugar-comum da antropologia que o Brasil é visto como o Outro do europeu — toda aquela estória de terra exótica, desejada e temida, sobre a qual tanto já se escreveu —, mas ao mesmo tempo convivemos com o fascínio pela cultura e a fala do estrangeiro, que facilita aos meus pacientes depositarem o estranhamento inerente à própria língua em mim. Como suporte da língua do Outro, o inconsciente deles fica do meu lado, o que pode constituir um modo de resistência. Isso que apareceu durante a sessão não lhes concerne, seria meu. Percebo isso quando, do nada, um paciente me pergunta se eu sei o que tal palavra que acabou de usar significa. Nesse momento, a minha incompreensão de estrangeiro é uma figura do recalque, e podemos ter certeza de que a palavra em questão virou significante desse recalcado. Por outro lado, o fato de o português ser outra língua para mim me permite escutar coisas que passariam batidas para um ouvinte brasileiro por estarem demasiado perto, por serem familiares demais. Como, por exemplo, a mulher que me conta ter assinado o contrato de aluguel da sala onde começaria a atender, anunciando o início da sua prática de analista, que sabíamos ser uma decisão difícil para ela, com a expressão: “fechei o consultório”.
A própria língua nunca é própria (ou apropriada), como diz também Barbara Cassin, agora citando Derrida, une langue, ça n’appartient pas, o que pode entender-se como que ao mesmo tempo a temos — já que podemos dizer o que queremos— e é ela que nos tem — na medida em que me obriga a dizer minha vontade do modo que ela quer e não que eu quero. E mais, é ela quem determina o modo como meus pensamentos se constroem em mim, a tal ponto que Nietzsche pôde dizer que não sou eu quem pensa, isso se pensa em mim. Ao falar, então ela pertence a mim e eu a ela. Tampouco pertence a um país ou uma nação, ou mesmo a um povo (como queria Heidegger, sinistro em relação ao alemão), já que pode ser aprendida por não nativos, precisamente, e é falada em diferentes lugares do mundo com culturas muito diversas, como em Portugal, Brasil, Angola ou a Ilha da Madeira, por exemplo.
Em todo caso, podemos ver a própria língua como aquela na qual fomos crianças, na qual configuraram-se nossos afetos. E mais, na qual tomam corpo nossos pensamentos (Lacan chegou a dizer que o pensamento é mais um afeto). Melhor, ainda: é a língua que faz corpo conosco. É nela e por ela que temos um corpo (ser ou ter é todo um tema da filosofia, no qual não vamos entrar). Enfim, é nela que sonhamos ou xingamos. Por isso, o português dos meus amores nunca me será materno, pois mandar alguém tomar no cu, digamos, não realiza minha raiva. Este recurso ao insulto brasileiro é, para mim, como usar um aplicativo de traduções: na Tailândia entre o motorista e eu, com o iphone como terceiro, tínhamos um diálogo de doidos em que nenhum de nós sabia como tinha, e se tinha, atingido o outro. Sei que ofendi ele como queria, mas é um conhecimento meramente intelectual, já que jamais terá para mim a força e a função catártica de um: “andate a la reconcha de la puta madre que te parió, pe-lo-tu-do!“
Português sempre será Outro para mim, ou melhor, Outra, pois, como bem observa Caetano, nossa terra chama-se “pátria”, não “mátria”, e apesar de referir-se ao pai fundador, se diz no feminino. Cabe, então, perguntar pela relação entre a língua mãe, como lugar onde se habita, onde se é sujeito, e o topos circunscrito pelo pai que a domestica, conferindo-lhe uma borda, um limite, sempre atravessado pela poesia e pelas formações do inconsciente. A domestica até a página dois, pois a partir da página três começa o inconsciente que é o outro absolutamente Outro de que Lacan tanto fala. Trata-se do cruzamento entre a política, que faz a nação, transformando a língua em geografia e estabelecendo a soberania do falo, com o que passou a ser denominado mediante um neologismo francês jouisens, a vida sentida que a linguagem nos permite.[2]
Como já disse, adotei o português e posso acrescentar que ele me adotou de volta; não por aquilo de amor correspondido, mas porque uma vez que uma língua te acolhe, se você não resistir, o teu pensamento será metamorfoseado por ela. Estou dizendo que não se pensa do mesmo modo, nem com a mesma lógica, em castelhano, inglês ou português: a língua obriga (lembrem do caso de “entre” e “between“). A resistência a que me refiro seria a pressão da minha língua materna sobre a língua do Outro. O portunhol costuma ser o resultado. Poderíamos pensar se a criação de um dialeto não responde a tal mecanismo. Um mal falar como signo de resistência contra uma língua, por alguma razão de ordem histórica, vista como imperial. É o que Joyce fez, de caso pensado, contra o inglês, que tinha pouco menos que exterminado a sua língua natal, o gaélico.
No caso dos argentinos que, diferentes de mim, não escolheram emigrar mas foram obrigados pela perseguição da ditadura militar, o portunhol em que ficaram instalados não se deve a que chegaram adultos à nova terra, mas é um gesto inconsciente de amor pelo pai nacional, senhor do castelhano, que os expulsou ou não soube retê-los. A língua do exílio é torturada pela língua do exilado. Eu, que acredito ter vindo por opção, não por imposição, falo e escrevo mais ou menos sem sotaque, mas ao emitir a voz, ela permanece marcada pela música de mi buenos aires querido. Nos primeiros anos, em que eu fazia um esforço manifesto de imitar a pronúncia daqui, me perguntavam se eu era português (foi o mais perto que cheguei) ou americano. Depois desisti e deixei o espanhol parasitar-me a língua de Camões de vez, como matéria fônica, não na sintaxe ou na semântica. Eu não falo portunhol, faço questão. Entretanto, meu texto, meu estilo de escrita em português deve muito ao castelhano. Sei de leitores brasileiros estranhados por tal ou qual giro da minha escrita, que terminaram indo verificar no dicionário se aquilo era, ou não, português. E contra as suas expectativas, lá estava, aquele giro inusual ou inesperado. Isto acabou configurando uma idiossincrasia que foi reconhecida como um estilo pela minha orientadora de doutorado, Leda Tenório da Motta, que me fez o maior elogio que recebi na vida ao falar disso no dia da minha defesa. É graças a ela que me atrevo a dizer-me um escritor brasileiro.
Mas, me desviei, estava falando do entre línguas. Suponho que agora deve ter ficado claro que, no caso do bilinguismo, quem está inter, em terceiro, articulando e desarticulando ambas as línguas, é quem fala. Parece bom, entretanto, não esquecer que aquele que fala a sua própria e única língua apenas também está “entre”, já que ao tomar a palavra faz surgir aquele terceiro a que Lacan apelidava outro-com-maiúscula, o lugar em relação ao qual a palavra emitida se postula como verdadeira. E isso na menor emissão de fala, na medida em que esta está sempre dirigida a um interlocutor, mesmo quando se fala sozinho. Estamos sempre às voltas com três elementos: quem fala, aquele a quem se dirige (presente ou ausente) e o lugar que se deduz estar sempre ali como terceiro.
Para concluir, não é figura de expressão dizer que todo psicanalista, enquanto tal, como adoram dizer os lacanianos, está na posição do bilíngue; e não pretendo me fazer de poético ao dizer isso, apenas constato o fato de que nossa função é fazer existir a divisão subjetiva dos nossos pacientes na transferência, e isso, trocando em miúdos, significa que somos o suporte para eles da metade de sujeito que não conseguem reconhecer, o que equivale a dizer que um analista está entre por dever de ofício. Ele entra como terceiro no casal do paciente com a sua própria língua; terceiro na relação em que este tem a ilusão de ser uno, de ser único, de ser um eu. E tal constatação, além de estrutural, é política, já que é outro modo de dizer que o nacionalismo, o monoglotismo, o racismo, a xenofobia, o amor pelo uno lhe são repugnantes quase que por lógica[3]. ♦
* Ricardo Goldenberg é psicanalista. Mora e atende em São Paulo desde 1983. Licenciado em psicologia pela Universidad de Buenos Aires, Mestre em filosofia pela USP e Doutor em comunicação e semiótica pela PUC/SP. Autor de, entre outros, No círculo cínico ou caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? (2002); Política e Psicanálise (2006); Do amor louco e outros amores (2013); Solidão e multidão (sobre Psicologia das massas e análise do eu, de Freud) (2014) e Desler Lacan (2018) .
[1] Artigo escrito para o Colóquio “Brasil, política, memória”, organizado pela PUC-Campinas, em 18/09/2021.
[2] Nota de rodapé inevitável: jouissance, gozo, com a palavra sens, sentido, embutida.
[3] Este final meio intempestivo é minha resposta a uma colega que nas eleições de 2018 declarou seu voto e seu apoio ao candidato fascista que ela ajudou a eleger e que hoje, 20 de setembro de 2021, preside este desditado país, com as consequências que não era difícil prever há três anos. Quando tentei mostrar-lhe que a sua não era, ainda que parecesse, uma escolha entre outras dentro do jogo democrático, posto que estava em pauta a defesa do jogo mesmo, único no qual a psicanálise pode ter lugar, ela veio a público pelas redes a dizer que eu a estava acusando de falta de ética. Respondi que se a acusava de alguma coisa era de falta de lógica, não de ética. Eis o porquê.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | GOLDENBERG, Ricardo (2021) Entre línguas. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -12, p. 1, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/10/27/n-12-01/>.