por Rodrigo Alencar
Introdução
Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida, do Universo e de nós mesmos.
*
Lima Barreto, Diário do hospício
Esse texto consiste num esforço de aproximação impossível e inevitável. Impossível porque não é pertinente comparar biografias de figuras com um século de distância, porque não se aproxima a biografia de um morto a de um vivo, também não é possível conjugar uma figura que já foi biografada com outra que está em ascensão, que não é só viva no sentido biológico, mas no sentido artístico, autoral e público. Ao mesmo tempo, uma aproximação contingencial se mostrou inevitável pelo modo em que as duas obras tocam no mesmo lugar, um lugar improvável, sensível, insurgente, lugar que não reflete só os trabalhos de ambos os artistas, mas também suas trajetórias e o impacto no autor desse texto. O enfrentamento do descaso, da mortífera corrosão causada pela força simbólica que aplaca classes e raças. Assim como o potencial criativo que habita as contradições de ambas as trajetórias.
Suas histórias também servem de grandes lições a acadêmicos e profissionais que atuam na área de saúde mental, comportam registros de sua história de uma perspectiva que poucas vezes ganham reconhecimento social: o de pacientes em tratamento, ainda que dentro das disciplinas das instituições preservam seu olhar aguçado e sua criatividade para transmitir sua experiência.
As duas obras carregam a desrazão e a razão em toda a sua potência, ainda que modos completamente distintos: vício, virtude, ócio e ofício são características que se movimentam em espiral e rompem com os maniqueísmos entre o bom e o mau, ou o digno e o reprovável, são trabalhos que demonstram perícia na arte de não só sobreviver, como fazer viver o que é negado em si e em muitos outros. Os escritos de Lima Barreto e as músicas de Black Alien nos permitem ir mais além da destruição pragmática e persistentemente planejada e praticada dos nossos tristes trópicos. Visões cosmopolitas e universais que partem da margem para atingir o todo. Nessas obras não encontramos não só o subúrbio carioca, brasileirismos ou latinidades, mas a literatura russa e francesa, o hardcore novaiorquino e o reggae jamaicano. Reconstruções de mundo que nos fazem pensar o quê, do Brasil e sua máquina de moer talentos, possibilitou que emergissem talentos tão singulares e contundentes como estes que abordamos aqui.
Em momentos diferentes da história do Brasil a produção de Lima Barreto e Black Alien[1] se encontram e dialogam, cruzam referências, reivindicam clássicos e compartilham não só a luta como a enfrentam com armas primas: a literatura e a música. Os dois artistas sofreram com a dependência de drogas, no caso de Lima Barreto, o álcool, no de Black Alien, a cocaína. A vida a partir do subúrbio e a notoriedade por meio do talento artístico, além da negritude que resiste ao extermínio e a subalternização generalizada de um país conhecidamente racista, fazem das duas trajetórias e suas respectivas produções, marcadores de lugares homólogos em tempos análogos.
Lima Barreto, além de um dos maiores escritores de nossa história, foi um bebedor costumaz, fã da cachaça chamada Parati, sofria do que hoje seria classificado como psicose alcoólica. A produção do seu último romance, inacabado, “Cemitério dos vivos”, se deu a partir de sua experiência de internação no Pedro II, unidade na qual acontecera o que era chamado de “tratamento”. Fascinado pela loucura, como confessa diversas vezes em seu diário, foi testemunha ocular da postura pretensiosa, bem como dos limites e da impotência do saber médico da época.
O tamanho dessas limitações é evidenciado pelo isolamento e ocultação dos pacientes aos olhos da sociedade. Trancar os loucos não funciona só como aparência de proteção do louco e da sociedade, mas também protege médicos e demais profissionais de saúde do testemunho público de suas dificuldades e eventuais incompetências.
A aproximação das duas figuras históricas não seria possível sem o lançamento do cd que Black Alien apresentou em 2019: “Abaixo de zero: Hello Hell”[2]. As reflexões a respeito de si e do caótico e violento mundo que o atravessa já estavam presentes no primeiro grande álbum solo: “Babylon by Gus Vol. 1 – O ano do macaco”[3], lançado em 2004. No álbum, a palavra hell já estava fazia rima paradoxal na faixa “from hell do céu”, o inferno transmitido por meio da palavra anglófona aparece por uma camada que demonstra o trabalho do artista em converter dificuldades em rima, dando ritmo e força ao que vem do sofrimento. Mas se o álbum de significativo sucesso de sua carreira pós Planet Hemp alcançou grande destaque dentre os artistas do rap nacional e da música brasileira, o álbum “abaixo de zero: Hello Hell” traz a narrativa do artista que atravessou o submundo da própria fama e conquistou um feito que muitos artistas não conseguiram: sobreviver ao próprio sucesso.
“Abaixo de zero: Hello hell”, é o “cemitério dos vivos” de Black Alien, com a diferença de que o artista pôde terminar, lançar e apresentar seu trabalho, diferente de Lima Barreto.
O cd demonstra as lutas imbricadas na rotina, algo que corresponde à experiência de quem já sofreu sacudidas violentas e quedas fulminantes. A estabilidade, o apego à vida, a definição de prioridades, tudo isso depende da estruturação de um cotidiano formado para evitar deslizes, “o café orgânico”, o “cochilo da tarde”, as “aulas de muay thai”, o contraste da rotina ordenada com o precedente “magro e drogado” que faz “mais um furo no cinto” por estar desparecendo dentro das próprias roupas, transmite por meio dos versos da música “Carta para Amy”[4] as distintas percepções sobre si ao longo da própria carreira.
Os horários que depreendem de uma rotina na qual manter cada coisa em seu lugar é uma luta, que pode ser silenciosa por fora e barulhenta por dentro. Uma luta que para o artista jovem pode parecer aprisionamento metódico e cerceamento, mas revela o esforço contra o empuxo um empuxo de caos que pode lançar o corpo numa angústia sem fim e sem possibilidade de sustentação. Na qual o desligamento proporcionado pelo uso de drogas atinge até as atividades e pessoas mais essenciais, como narrado ao longo das músicas do cd.
O que podemos testemunhar no mais recente disco de Black Alien é a sua trajetória de atravessamento por um tratamento que transmite referências pertencentes ao trabalho de Philippe Pinel, porém, já em um outro momento. Referência essa que imperou no tratamento que Lima Barreto fora submetido um século antes de Black Alien, porém, numa época que se encontrava em estágio ainda precoce, com instituições sociais enrijecidas e responsáveis pela imposição da ordem, e sem a diferenciação e segmentação para a dependência química.
A psiquiatria moderna no Brasil racista: a loucura nos descendentes diretos da escravidão
O réu, meus senhores, é um irresponsável. O peso da tara paterna dominou todos os seus atos, durante toda a sua vida, dos quais o crime de que é acusado não é mais do que o resultado fatal. Seu pai era um alcoólico, rixento, mais de uma vez foi processado por ferimentos graves e leves. O povo diz: tal pai, tal filho; a ciência moderna também.
*
Lima Barreto, Cemitério dos vivos
Quando falamos de tratamento pineliano nos referimos ao médico Philippe Pinel (1745 – 1826), considerado um dos pais da psiquiatria moderna[5], instituiu o formato do que pôde ser concebido como o mais avançado no tratamento da loucura nos séculos seguintes, sendo a referência em todo o século XIX e primeira metade do século XX, até a eclosão da luta antimanicomial e os movimentos antipsiquiatria, que colocaram em questão diversos aspectos até então cruciais aos tratamentos. Dentre as características criticadas estão o isolamento social, a disciplina hospitalar e intervenções que ocorrem a despeito das manifestações de contrariedade dos pacientes.
Conceber a loucura como doença e objeto da atenção médica possibilitou distanciamento dos rituais religiosos e do tratamento dos loucos e desviantes como possuídos pelo demônio, punidos por Deus, ou mesmo vitimados por seus pecados. Porém, a modernização engendrada por Pinel conteve em sua presença na história a marca da contradição própria a modernidade, o apreço pela razão isolou e escondeu os loucos e desviantes fazendo com que pessoas passassem décadas em reclusão. É sob a perspectiva pineliana que surgem as Instituições para alienados. A história moderna do Brasil tem nessas instituições, episódios que podem ser contados como dentre os mais escabrosos de sua história[6].
Quem tem alguma proximidade com literatura brasileira, facilmente se lembrará do conto de Machado de Assis, “O alienista”, com seu caricato psiquiatra Simão Bacamarte e a impossibilidade de traçar a linha que separa a loucura da sanidade. A crítica ácida, típica de Machado, retrata com destreza o ímpeto salvacionista e higienista da psiquiatria moderna chegando ao Brasil no fim do século XIX. O isolamento dos loucos do convívio social, a noção de periculosidade atribuída ao desvio da norma, a ocultação dos estranhos e desajustados.
Independente de paródias, a modernização do tratamento da loucura não consistia só no isolamento social, mas também a ordenação da rotina, o protagonismo da orientação médica no tratamento e a divisão de pacientes em diferentes alas de acordo com gravidade do quadro clínico e diagnóstico. A rotina associada ao controle de estímulos e diminuição de contingências, poderiam operar como a espinha dorsal do tratamento pensado no Brasil como “higiene mental”. Por meio dessa técnica, acreditava-se ser possível expurgar maus hábitos e ideias tresloucadas por meio da barreira mais eficiente oferecida por um hospital; seus muros e a vigilância de seus cuidadores.
Dentre tais premissas, alguns detalhes podem passar desapercebidos por quem nunca trabalhou ou foi paciente em uma instituição de saúde mental que funcione em regime de internação. O mais ameaçador, sem dúvida, é o poder do médico e o silenciamento da voz do louco. Se um doente com qualquer patologia física já costuma encontrar dificuldade e resistência em mudar algo que seja parte do regime hospitalar que o trata (como horários de visita, dieta, rotina de exames), não é difícil imaginar o quão desafiador pode ser estar internado com algum diagnóstico ligado à loucura e tentar manifestar algum desacordo com a conduta médica. Do ponto de vista de um paciente, o embaraço e a dificuldade dos psiquiatras com a loucura perdem seu aspecto pretensioso com ares de ridículo do texto de Machado de Assis e apresenta a sua face mais trágica.
Lima Barreto sentiu essa pressão e a manifestou de diversas formas, uma delas, registrada em seu diário, falava justamente da percepção de que alguns médicos não eram muito atentos aos pacientes:
É bem curioso esse [Henrique de Brito Belford] Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério — que mistério! — que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza.[7]
A preocupação de Lima Barreto seria muito mais alarmante se estivesse internado no final da década de 30, quando as instituições asilares brasileiras praticavam a lobotomia, procedimento cirúrgico que consiste na mutilação cerebral como forma de extirpar a loucura do doente. Seu resultado mais comum era um estado semi-vegetativo proporcionando ao louco a docilidade por meio de suas limitações motoras decorrentes do dano cerebral. Sua prática, em vigor no Brasil de 1936 a 1947, só foi interrompida mediante a proibição do Código de Nuremberg, normativa firmada após a segunda guerra mundial para prevenir os excessos da experimentação médica em seres humanos[8].
Se o contexto era preocupante, algumas figuras fizeram contraponto a desumanização das instituições asilares. Dentre essas figuras podemos destacar o psiquiatra chamado Juliano Moreira, homem de extrema importância para a psiquiatria brasileira, diretor do Pedro II, hospital no qual o escritor esteve internado, e responsável por combater e reformar a instituição que vinha de um histórico de descalabro, com diversas denúncias de abusos de toda ordem contra os internos.
Juliano Moreira, que foi o primeiro psiquiatra negro brasileiro, detém sagaz perspectiva sócio-histórica da patologia de seu paciente. Em seu relatório chamado “Notícia sobre a evolução da assistência de alienados no Brasil”, descreveu a formação de dois grupos étnicos brasileiros de modo bastante crítico e, ao mesmo tempo, permeado pelos valores médicos da época:
[Portugal] foi buscar à África, nas zonas seguramente de população mais embrutecida, os milhões de negros com cujo auxílio explorou este país. Esses, pessimamente tratados e nutridos, após muitas vezes uma longa travessia sob o trópico africano, vinham empilhados naqueles detestáveis navios do tempo, a longo prazo, como lhes permitiam os ventos, até às costas do Brasil onde ainda permaneciam nos grandes trapiches do Valongo e outros, ao Deus dará das vicissitudes do nefando tráfico. O álcool representou nesse bárbaro processo de colonização o maior papel imaginável. Com ele procuraram aumentar a pacatez das vítimas, mas simultaneamente foram-se-lhes infiltrando nos neurônios os elementos degenerativos que, reforçados através do tempo, dão a razão de ser de muita tara atual atribuída à raça e à mestiçagem por todos aqueles que não querem se dar ao trabalho de aprofundar as origens dos fatos.[9]
A descrição de Juliano, também aborda os indígenas e seu trágico destino que vêm se perpetuando até os dias atuais:
o elemento indígena, também foi aproveitado à custa de álcool e miçangas, mas sem receber em troca de sua abdicação da liberdade selvagem que usufruía senão os sacramentos da igreja. A instrução fornecida nunca foi além do uso das armas de fogo e dos mais rudimentares instrumentos de lavoura. Em permuta com as suas poucas moléstias evitáveis trouxeram-lhes sífilis, lepra, tuberculose, alcoolismo etc.[10]
O resultado das práticas que foram sistematicamente dizimando e açoitando as populações negras e indígenas do Brasil, passou longe da reparação histórica, encontrando na internação das instituições asilares sua maior resposta, uma lida a altura do espelho que a população brasileira buscava refletir, os métodos e costumes da sociedade europeia com suas práticas coloniais.
Lima Barreto, ao reconhecer o trabalho de Juliano Moreira, deixou o seguinte comentário:
Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou. Fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na Seção Calmeil. Deu ordens ao Sant’Ana e em breve lá estava eu.[11]
Lima Barreto, apesar de ser neto de escravizados, pôde ser alfabetizado graças ao ofício do pai, tipógrafo, e da mãe, professora, além de ser acolhido pelo Visconde de Outro Preto, de modo que conseguira acesso à escola politécnica apesar de não poder conclui-la e, posteriormente, escreveu de artigos e crônicas para diferentes órgãos de imprensa. Isso lhe permitiu o acesso a experiências de lugares de distinção na sociedade carioca. Ao ponto de dar entrada no Centro de Internação Pedro II e identificar médicos que eram familiares de colegas de curso da Escola Politécnica.
Importante ressaltar que, apesar do trânsito pela alta sociedade carioca e brasileira, o destaque feito a ternura e ao respeito transmitido por Juliano Moreira demarca como sua presença no manicômio não era objeto de comoção ou de qualquer privilégio por parte do corpo de profissionais, impossibilitando que Lima Barreto escapasse da violência institucional que afetava os demais pacientes.
A desconstrução do projeto moderno e a ocupação da fé
A psiquiatria praticada por Juliano Moreira, atenta ao funcionamento social e a história das populações marginalizadas que eram atendidas por ele, encontraria entraves para progredir no Brasil de 2020. No entanto, expoentes da reforma psiquiátrica, que justamente avançaram sobre as instituições pinelianas nos idos de 1970 e 1980, tendo sua implementação recebendo investimento e estruturação até idos de 2016, sejam, talvez, os profissionais mais atentos para as vicissitudes dos portadores de sofrimentos mental, assim como seus contextos que não podem ser corrigidos unicamente por fármacos ou aprisionamento.
A ironia desse paralelo histórico é que desde 2010, determinados projetos de comunidades terapêuticas dentre as quais a conversão religiosa e a prática de punições mais diversas fazem parte de um tratamento que em determinados espaços fazem regredir até mesmo o modelo pineliano adotado no século XIX. Isso pode ser afirmado em função do crescente número de projetos de abordar os problemas com o uso de drogas pelo viés religioso. Por vezes sem o acompanhamento de profissionais adequados.
Segundo dados do IPEA, existem hoje 1800 Comunidades Terapêuticas no Brasil, sendo que apenas 300 tem alguma ligação com o Governo Federal. Já um relatório de inspeção produzido pelo Conselho Federal de Psicologia no ano de 2017, aponta que 27 das 28 instituições visitadas, possuem como propostas de atenção a “laborterapia”, prática que não é reconhecida como método de tratamento segundo as premissas científicas adotadas pelo conselho. Isso porque a “laborterapia” vai de encontro às diretrizes de Saúde Mental do Sus, dentre as quais podemos destacar a pactuação de plano terapêutico singular.
É importante destacarmos que a “laborterapia” parece seguir a série de um traço histórico nefasto da sociedade brasileira, a saber, a sua construção enquanto sociedade a partir da exploração escravagista[12] e a imposição de trabalhos forçados como resposta universal a qualquer problema que suas classes desaventuradas possam causar. Assim, “laborterapia” se apresenta, a rigor, como um nome cínico que traz em si a negação do tratamento e a exploração por meio da força da mãe de obra daquele que é tido como doente.
O relatório do Conselho também aponta que 24 das 28 instituições visitadas não contemplam a diversidade religiosa dentro de seu espaço. Limitando práticas e manifestações, bem como impondo referências de religiões específicas por meio do tratamento. Ao retomarmos o levantamento feito pelo IPEA em 2017, do total de 83.530 bagas de comunidades terapêuticas no Brasil, 34. 277 vagas são de instituições de orientação pentecostal e somente 15.327 vagas são de instituições sem orientação religiosa.
Isso nos aponta não só o modo como setores pertencentes ao campo da saúde pública que precisariam ser assistidos pelo Estado Brasileiro seguindo suas prerrogativas técnicas são ocupados por entidades terceiras com outros parâmetros, mas também como a condução de políticas e a apropriação de seu trabalho vem sendo apropriado por grupos que podem deter interesses distintos do que somente a prestação do serviço em saúde.
Essa dinâmica não ocorre sem lastro histórico.
A própria noção de abstinência como enfrentamento ao excesso de álcool tem seu nascimento histórico na idade média por meio da cultura cristã. Nos períodos anteriores, como na Grécia antiga, a conduta abstinente era tida como excessiva e demarcava a incapacidade de ponderação[13].
Não é ao acaso que, comunidades religiosas, principalmente cristãs, são pioneiras no acolhimento e na criação de métodos de trabalho com dependentes químicos. Seja na criação do AA, ou na origem das comunidades abstêmias de estudos da Bíblia, no século XIX na Inglaterra.
Como ciência e religião se separam em método, mas não necessariamente em sujeitos, as ações de proibição de substâncias e campanhas abstêmias que eclodiram no começo do século XX eram encampadas por médicos e membros da comunidade cristã, seja protestante, como a WASP nos Estados Unidos, ou católica como a Liga Anti-Bares no Brasil[14]. Nos dois movimentos, médicos adotam a postura abstêmia como modelo de conduta exemplar, confundindo-a como uma espécie de militância higienista na saúde pública. Tal postura foi adotada até mesmo por médicos do calibre de Joseph Bleuler. Diretor do hospital suíço no qual trabalhou Gustav Jung e um dos principais colaboradores na construção do diagnóstico de esquizofrenia.
A postura higienista por parte da ciência médica e a puritana, por parte das comunidades religiosas, encontraram consonância nos combates às drogas, construindo um espaço de acolhida a usuários que se institucionalizou na nossa cultura.
Já a reforma psiquiátrica no Brasil, atenta e zelosa com a questão da loucura, acabou por segmentar seu atendimento para usuários de drogas somente em 2005, com a formulação dos CAPS A.D.[15], uma versão adaptada de seu projeto pensado para tratar a loucura e suas consequentes formas de sofrimento. Importante frisar que não sabemos por quanto tempo o modelo de CAPS A.D. resistirá ao desmonte da reforma e o progressivo aumento das comunidades terapêuticas.
O apanhado feito acima nos ajuda a explicar por que Lima Barreto detém sua história de tratamento em um sanatório, e Black Alien faz referência a uma clínica de dependência química[16] na qual não se específica seu regimento, princípios ou diretrizes.
Não há dúvida de que os CAPS A.D. trataram e tratam centenas de milhares de pessoas ao longo dos seu tempo de existência. Mas também não é inapropriado afirmar que seu modelo de tratamento oferece um suporte e uma estrutura aquém de hospitais e até mesmo algumas comunidades. Isso em função da importância de que alguns casos possam usufruir de moradia, ainda que provisória, e até mesmo deslocamento do contexto de origem por uma multiplicidade de fatores, dentre eles proteção em casos de risco de morte por dívidas com o tráfico.
A vulnerabilidade desses pacientes requer a chamada “intersetorialidade” das políticas públicas: um morador de rua, dependente de crack e ameaçado pelo tráfico demandaria de ações das secretarias de: habitação, saúde e segurança pública. Por vezes, a clínica particular ou a comunidade terapêutica, atende às três questões instantaneamente, no entanto, isso não quer dizer que esse atendimento seja sempre da forma mais apropriada e/ou dentro da legalidade.
Dito isso, não é de se surpreender que quando as pessoas buscam ajuda para a dependência química, os primeiros locais a serem buscados ainda são os hospitais e as igrejas.
Do século XIX ao XXI: ou, do ano do macaco até o infinito
E qualquer pergunta que não goste
A resposta vem ao cuboSe esquiva, quando a alma desarquiva
Mágoa de gente nociva, e perde a calma
E a esportiva, atropela que nem locomotiva
Sangra a gengiva, energia negativa
Bateu na trave e lhe causou a Síndrome Respiratória Aguda Grave
Aí ficou esquisito, definiu atrito
Tiroteio, correria e grito
No ano do macaco até o infinito*
Black Alien, Babylon by Gus
Juliano Moreira e Lima Barreto, que compartilharam a mesma sociedade carioca do início do século XX, ainda que a partir de posições diferentes, possuem visões atentas e críticas às mazelas sociais com seu acento racial. No entanto, é no atravessar de um século por um fio que parece atemporal, que se evidencia a luta do artista para sobreviver a um mundo que se mostra hostil à sua existência. É nesse sentido que o álbum de Black Alien tem um feito singular que merece ser destacado com calma.
As culturas próprias às referências de Black Alien, o Rock, o Hard Core, o Rap e o Raggae são povoadas por talentos meteóricos. Diversas figuras que por meio do sucesso prematuro tiveram a vida abreviada por uma comunhão de fatores que vão desde a maior tomada de riscos comum à juventude, passando pela turbulenta perda de privacidade inerente à fama, a demanda frenética do show bizz; até à famosa causa mortis de uma extensa lista artistas que marcaram época: a overdose.
Quando falamos de rap e artistas oriundos do subúrbio e periferias a lista se expande ainda mais, com a violência que atinge corpos jovens e periféricos impiedosamente. Categoria na qual cabe um dos maiores parceiros de Black Alien, Speed Freaks, autor em conjunto do cd Jah Overall. Speed Freaks foi assassinado em meio a violência urbana das periferias do Rio de Janeiro.
Black Alien é o músico que passou pelo Planet Hemp, grupo conhecido por defender a cultura canábica e a descriminalização, perdeu seu parceiro de composição, fez sucesso em sua carreira solo, teve problemas com drogas, mas conseguiu atravessar o mórbido destino que se apresentou como rota comum. Diante de uma cultura que foi maciçamente construída sobre as bases do “viva rápido e morra jovem”[17], o trabalho de Gustavo, Black Alien, se torna referência para uma geração. Considerando a geração de rappers e rockstars que dominaram a cena musical das últimas quatro décadas: Black Alien se destaca pela capacidade de glamourizar a vida, ao invés da morte, esse é o seu grande trunfo.
Diferente de músicos que, ao abandonar as drogas, abandonam o vínculo com seu estilo artístico, Black Alien transmite com força a capacidade de síntese de trajetória, quando canta nos seus versos: “Em febre constante, e o dom da cura, nem mais um instante, sem o som e a fúria”. São versos por meio dos quais notamos alguém que ao invés de sacrificar a própria divisão subjetiva como forma de alienar o vício, conjuga o caos da contradição e a faz produzir.
É o retrato de alguém que ao invés de sacrificar os seus demônios, os enfrenta até que consegue persuadi-los para trabalhar como força criativa. Não é pouca coisa em meio a comunidade de ex-usuários, em meio a qual encontramos muitos arrependidos e até mesmo outros que se tornam falsos moralistas, atacando nos outros as vontades que habitam em si.
Já Lima Barreto, morto de um enfarto aos 41 anos, 2 anos depois de sua alta do manicômio, não teve a mesma sorte, com a saúde debilitada decorrente do uso do álcool, não pôde usufruir da longevidade da qual os mais bem nascidos tinham acesso.
Há uma consideração que merece destaque: Lima Barreto, antes de ser julgado e enviado ao Manicômio, fica preso no Casarão da Praia Vermelha, sofrendo todos os maus tratos que eram dispensados aos presos da República Velha[18]. Dentre os maus tratos, o primeiro foi ser exposto nu, o que lhe causou a sensação de enorme humilhação. É nesse momento que Lima Barreto resgata de “A casa dos mortos” de Dostoiévski e se apega ao texto como defesa da própria vida: “Ah! A literatura! Ou me mata ou me dá o que eu peço dela”.
É nesse momento que testemunhamos a violência da repressão e a capacidade de resistência da qual o rap se viria a converter e arma cultural se tornando um forte recurso simbólico e artístico não hegemônico, partindo das periferias. Sua existência na cultura brasileira marca e nomeia a vida de populações que estão marginalizadas, ou mesmo divididas entre o centro e a margem, a elite e a pobreza, aqueles que fazem a complicada travessia das tão distantes classes sociais no Brasil e circulam por esses países tão distintos. Essa nomeação detém em si, um aspecto fundamental do tratamento de sua população que é o seu viés não adaptativo, se emerge como uma existência não cordial, que não se abstém da contradição e não renega a violência à qual fora submetida e à qual se vê impelida a recorrer como forma de sobrevivência[19][20].
É por essa via que percebemos que a tragédia que foi vivida por Lima Barreto e a odisseia que é vivida por Black Alien se constituem como duas pontas de diferentes momentos do Brasil, o primeiro, do tempo de Cemitério dos vivos, ainda não havia a emergência de vozes periféricas, fundamentais para apontar a vida e a produção dos artistas negros do Brasil como uma importante força contra-hegemônica que passou a responder ao processo de culturalização colonial ao qual fomos submetidos. Nesse sentido, o mais próximo do rap que temos nos tempos de Lima Barreto, são seus livros e os prontuários de Juliano Moreira, registrando a permitindo a transmissão histórica de toda a violência presente no tráfico de escravizados que fora tão presente em nossa formação como nação. Já Black Alien teve a oportunidade de se servir desse dispositivo tão poderoso que se constitui por meio da arte que não nega a violência e as cores.
O giro produzido por todo esse processo, por esse século em que podemos identificar uma virada e um contra-ataque, uma emergência da voz dos pacientes que antes de se tornarem pacientes já eram sobreviventes de uma sociedade violenta e dividida como a brasileira, se apresenta nos seus efeitos de formação e influência dos profissionais que atuarão na linha de frente dos cuidados de sua população. É dessa forma que os trabalhadores da saúde podem se deixar tocar pelo “maravilhoso, fantástico e hipersensível” advento cultural que se construiu e continua a ser construído nas periferias do Brasil e do mundo.
É por todo o exposto acima que se torna importante agradecer ao Gustavo de Almeida Ribeiro, o Black Alien, por seu último álbum que, instantaneamente, após a sua publicação, se torna referência bibliográfica fundamental, junto de Lima Barreto e Machado de Assis, à formação dos profissionais de saúde mental no Brasil, principalmente dentre aqueles que lidarão com os problemas decorrentes do uso de drogas. ♦
REFERÊNCIAS
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BARRETO, Lima. Diário do hospício & O cemitério dos vivos. Companhia das Letras, 2017. Edição do Kindle. Posição 484 de 5174.
BOSI, Alfredo. Prefácio para a publicação “Diário do hospício e cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CARNEIRO, Henrique. (2010) Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e moderna. São Paulo: Ed. Senac.
CASTRO, Odilon. Negro drama: mães, filhos e uso radical de crack. Tese de doutorado, Unifesp, 2017.
CERRUTI, Marta. O jovem e o rap: ética e transmissão nas margens da cidade. Tese de doutorado, IP – USP, 2016.
MACHADO, Ana Regina & MIRANDA, Paulo Sérgio. Fragmentos da história da atenção à saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil: da Justiça à Saúde Pública. In: Rev. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v.14, n.3, p.801-821, jul.-set. 2007.
MASIERO, André Luis. A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros. Revista “História, ciência e saúde – Manguinhos”, 2003.
MOREIRA, Juliano. Notícia sobre a evolução da assistência de alienados no Brasil. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 728-768, dezembro 2011.
RIBEIRO, Darcy. (1995/2014) O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. edição digital. Global Editora.
* Rodrigo Alencar é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pelo IP – USP. Membro do laboratório de Psicanálise, sociedade e política do IP – USP. Participante do Instituto Vox. Autor do livro “A fome da alma: psicanálise, drogas e pulsão na modernidade”.
[1] Black Alien é o nome artístico de Gustavo de Almeida Ribeiro.
[2] ALIEN, Black. Abaixo de zero: Hello hell. São Paulo: Polysom, 2019
[3] ALIEN, Black. Babylon by Gus vol 1: o ano do macaco. Álbum acessado em spotify. Ano de publicação: 2004.
[4] O título é uma homenagem a Amy Whinehouse, cantora inglesa que morreu de overdose em 2011.
[5] Pinel, sem dúvida alguma é um dos principais fundadores desse campo, mas não é o único, outros nomes de figuras proeminentes são Ludwig Biswanger e Paul Eugen Bleuler, este último defensor da conduta abstêmia como tratamento do alcoolismo.
[6] ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração editorial, 2013.
[7] BARRETO, Lima. Diário do hospício & O cemitério dos vivos. Companhia das Letras, p. 2017. Edição do Kindle. Posição 484 de 5174.
[8] MASIERO, André Luis. A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros. Revista “História, ciência e saúde – Manguinhos”, 2003.
[9] MOREIRA, Juliano. Notícia sobre a evolução da assistência de alienados no Brasil. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 728-768, dezembro 2011, p. 727.
[10] MOREIRA, Juliano. Notícia sobre a evolução da assistência de alienados no Brasil. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 728-768, dezembro 2011, p. 727.
[11] BARRETO, Lima. Diário do hospício & O cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Edição do Kindle.
[12] RIBEIRO, Darcy. (1995/2014) O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. edição digital. Global Editora
[13] CARNEIRO, Henrique. (2010) Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e moderna. São Paulo: Ed. Senac.
[14] MACHADO, Ana Regina & MIRANDA, Paulo Sérgio. Fragmentos da história da atenção à saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil: da Justiça à Saúde Pública. In: Rev. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v.14, n.3, p.801-821, jul.-set. 2007.
[15] Atualmente ameaçados pelo furor conservador do governo brasileiro, que constantemente ameaça revogar as portarias que regulamentam os serviços.
[16] Faixa7: Aniversário de sobriedade. Álbum: Abaixo de zero: Hello Hell
[17] Frase atribuída ao astro de cinema norte-americano James Dean
[18] BOSI, Alfredo. Prefácio para a publicação “Diário do hospício e cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[19] CERRUTI, Marta. O jovem e o rap: ética e transmissão nas margens da cidade. Tese de doutorado, IP – USP, 2016.
[20] CASTRO, Odilon. Negro drama: mães, filhos e uso radical de crack. Tese de doutorado, Unifesp, 2017.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | ALENCAR, Rodrigo (2021) Parati na área 51: as drogas, a arte e a saúde mental no brasil moderno. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -12, p. 3, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-03/>.