Ai, como é gostosa essa tal alienação!  

Por Douglas Rodrigues Barros

Deus fez tudo a partir do nada, Às vezes o nada ainda aparece No meio do que Ele fez

*

Paul Valéry

Alienado são os Outros

Coragem! A alienação que é gostosa não é aquela da economia política. Aquela que é assentada nas formas de produção e reprodução de uma vida social engolfada pelo impulso irrefreável da forma-mercadoria. Esta seria, nas lições do velho mouro, a alienação determinante da modernidade, graças, sobretudo, a um modelo social que sob égide da forma-valor objetifica a humanidade e a torna assujeitada ao sujeito automático: o capital.[1] Em linhas diretas e francas: fomos assujeitados por forças econômicas que direcionam nossas ações e delas não temos consciência. Processos dinâmicos, racionalmente irracionais, escolhas concebidas pela possibilidade de acréscimo do valor, um crescimento cego que precisa dinamitar todo empecilho, criação destrutiva; um caminho que nos leva ao nada pela estrada do tudo, doravante reduzido ao lucro. Em suma, o reino do capitalismo que retira de nós a capacidade de sujeitos do processo político-econômico. Definitivamente, não! Não é essa alienação que é gostosa![2]

De maneira não insidiosa (para desgosto do marxismo vulgar, que se esforça devidamente para não compreendê-lo nisso) Marx evidenciou as forças atuantes no desdobramento do capitalismo, aquilo que tornaria a economia preponderante em face da política reduzindo esta última à gestão. Numa redução vulgarizada de nossa parte, mas que funciona; desalienar a vida social, nesse sentido de alienação, significa organizar a produção sob critérios de necessidades da própria sociedade e não o contrário. Estamos de acordo! Mas para nós há ainda outros sentidos de alienação que são fundamentais e, que ironicamente, na base da filosofia da história marxista, segue ignorada nos seus efeitos concretos.

No prefácio à segunda edição de Ciência da lógica Hegel, por vias tranquilas, longe da turbulência de seu dialeto, aborda a linguagem. Nesse prefácio, a linguagem aparece como uma representação carregada de significados que são posteriormente elaborados por categorias. Destino comum da extensa elaboração da língua, menos a fala, instituição e sistema, que deixaria Pécheux[3] de antenas ligadas. Nas trilhas hegelianas, a categoria é uma representação elaborada que na vida comum é rebaixada pois tem a serventia de dotar de sentido o funcionamento espiritual dos conteúdos sociais. A categoria, no mundo concreto de homens vivos, se resume assim à simplicidade da representação.

Iniciamos por aí, simplesmente, para elaborar a noção, não tão vaga assim, de que em matéria de categoria, talvez, nenhuma outra tenha encontrado na contemporaneidade destino mais múltiplo e paradoxal do que a categoria de alienação. De modo que toda tentativa de abordar o conceito de alienação sugere um referencial. De que alienação, afinal, tu falas? Eis uma provável pergunta. Isso, contudo, não elimina algo de comum, de tornado comum, à ideia de alienação; a sua vinculação com a noção de progresso e com a finalidade da história. Vivemos sob os escombros de um certo orgulho do sentido histórico, ruínas de uma filosofia da história, e neste ponto não podemos suprimir um suspiro de saudades: a viva primavera da modernidade, no final do século XIX com a “Belle Époque”, encontra seu rápido outono em Hiroshima através de uma bomba superprodutiva em matéria de destruição em massa.

A possibilidade de uma desalienação, que seria fruto do destino histórico de homens guiados pelo progresso das forças produtivas, foi afinal a sútil perspectiva, no meio de tantas outras, de obliteração do negativo. Em toda experiência, da Comuna de Paris até a de Xangai, não conseguimos realizar a suprassunção do valor, fomos massacrados pelos chefes, e a produção da riqueza continuou tendo como fim a reprodução de si mesma. Diante do nosso fracasso, tudo que representava negação à ordem deveria, portanto, ser suprimido. Resultado: hoje, para onde quer que se olhe, o hegelianismo de direita parece ter triunfado e, com ele, a perspectiva de um resgate da unidade perdida. Incrível como o paraíso adâmico mantém na cabeça de centenas de jovens, chutados no vazio do mundo, a ideia de recuperação da unidade e do pertencimento. Agora, contudo, em vestes seculares e institucionais. Fulgente que essa unidade é encarnada na figura de um deus profano, um pai; seja o banqueiro milionário da capa da Forbes, seja o chefe de um Estado em trajes militares e postura máscula. Ambos devem ter as respostas para nossa frustração, sabem sobre aquilo que nos devolveria a unidade, a identidade, perdida. A razão no comando, como escutamos outro dia na boca de um adorador. Que não se esqueça: a alienação econômica se confundiu com a alienação da política e, por sua vez, com a alienação subjetiva.

Que nos perdoem tocar em algo tão cristalizado! A situação é hoje a mesma de sempre: nós, filhos da Revolução Haitiana, órfãos da Revolução Russa, vemos em cada promessa a recuperação do nosso Ser. No jovem Lukács — aquele interessante, de História de consciência de classe[4] — a coincidência fechada, Sujeito/Objeto, encarnada na figura do proletariado, como consciência-em-si-e-para-si, se combina com o sentido da história. O sujeito torna-se um sujeito histórico à medida que tem consciência de classe. E, com essa medida, a consciência muda a própria realidade na qual o sujeito está inserido. O ato do sujeito, ao ver-se como classe, efetiva uma unidade histórico-subjetiva e, portanto, o desaliena. Há uma clarividência, uma positividade que supera a contradição gerada por aquilo que o nega. Porém, quidquid luce fuit, tenebris agit (o que acontece na luz atua nas trevas): a identificação da alienação não a suprime diretamente, apenas a torna visível. Esta lição da Fenomenologia do espírito[5] será, por outros caminhos e objetivos, uma constante também no livro Interpretação dos sonhos[6].

Há, portanto, uma reversão ao se desvendar o leitmotiv da alienação. A ideia de uma desalienação no campo da história se reverte em idealismo. É preciso lembrar, com Hegel, que não há uma autoconsciência totalmente transparente sobre o processo e dinâmica históricos, sequer sobre os resultados de uma ação mais imediata. O pensamento é imanente à realidade, concordamos! Ele a transforma na medida em que observa seus limites, concordamos! Porém, lembramos com Hegel; ele é impotente quanto ao devir e a totalidade dos resultados dessa transformação. Noutros termos, sabemos como algo começa, mas, numa escala histórica, não sabemos como pode terminar. Essa conclusão não suprime, porém, a possibilidade de uma organização da riqueza voltada para a sociedade. Ela não invalida, portanto, a posição de uma desalienação econômica organizada a partir da relação própria à economia política e o equilíbrio necessário para a sobrevivência da espécie humana, hoje algo urgente. Essa posição, todavia, não faz a imediata relação de uma suprassunção da alienação econômica que automaticamente nos guie à suprassunção de alienações de ordem política e subjetiva.

Por mais gratos que sejamos ao desnudamento revelado pela apreensão dialética sobre o real — e quem já não teria se cansado da mesmicidade lógica e seus jogos? — a noção de uma desalienação ficou ataviada à ideia de uma clarividência sobre o curso do mundo. Inocente, supostamente ingênua, maliciosamente política, essa noção que acreditava se livrar do negativo ao superar a alienação econômica — algo que, entretanto, constitui o próprio curso da história — manteve, sob sua fé, o negativo como algo subjacente às fronteiras políticas fechadas. Como o negativo não some por um passe de mágicas no curso do mundo, uma lição explícita na filosofia do direito de Hegel, ele se reorganizou, e sob seu curso, para manter a pureza revolucionária da desalienação alcançada como uma graça, se organizou o bode expiatório necessário à manutenção do socialismo num só país. Quando esse negativo, encarnado na contradição da luta e da sobrevivência, reapareceu internamente, para manter o status quo propiciado sob novos ritos políticos, e a fé no progresso, foi preciso então se livrar de todos os opositores que apresentavam a explicitação da negatividade. Como todo lance de fé, que se mantém sob a égide do sacrifício como sentido à sua manutenção, era preciso organizar a vítima sacrificial para manter operando a normalidade e a vigília sobre os rumos do triunfo histórico.[7]

O terror revolucionário, ao contrário do que possa parecer, foi algo de características populares: se livrar do Outro, daquele que possa colocar em risco a unidade perfeita que atingimos pela desalienação do curso do mundo, era uma bandeira sempre evocada[8]. Pobre Maiakóvski, se deu conta tardiamente disso… A noção de uma consciência histórica desalienada em sua totalidade levou à uma suposta identidade que gerou um princípio monádico organizador da realidade social. Princípio que se via frustrado pela invasão espaço temporal do Outro e pela negação que o tempo histórico impõe. Para ter sucesso, as burocracias precisaram controlar o trabalho social total e reduzir as margens gerais de escolhas das massas que eram exploradas. Por isso, sua ditadura foi acompanhada por uma violência e vigilância permanente. Entretanto, vale a pena enfatizar que, para que essa ditadura funcionasse, se fez necessário a construção da ideia de bem, de moral e de melhor dos mundos possíveis através da suposta supressão da alienação histórica e da encarnação dos ideais num príncipe. Afinal, a história estava do nosso lado.

Daí que o personalismo, a encarnação da ideia de bem supremo numa figura, se tornou radicalmente necessária porque esta imagem da figura espetacular é a garantia da coesão forçosamente unitária do corpo social. Trata-se da construção da imagem heroica, que impõe um sentido aceitável para a exploração absoluta, e uma narrativa que evoca a atitude, também heroica, da submissão; um signo ritualizado de pertencimento em uma comunidade presa ao chefe. Como nos apontou Debord, houve a estruturação de uma ideia que configurou a justificativa radical de submissão na qual a necessidade de um nome e de uma persona iria servir para garantir o escopo ideológico-revolucionário em detrimento da teoria revolucionária[9]. Seja como for, qualquer outra revolução terá que lidar com essa questão ao preço de ou se manter uma nostalgia que nos induz à melancolia ou se repetir farsescamente o mesmo problema. Tudo bem! Não abramos definições definitivas para os nossos explicadores modernos e da ordem, entre leitores temerosos, tais como existem hoje em grande quantidade, tal noção é considerada perigosa. Claro, que a fé na desalienação total não explica todo o nosso fracasso, mas não é algo que se possa facilmente esquecer em meio às invasões e terrores brancos. Afinal, o exemplo de até onde um equívoco pode ir está historicamente ilustrado. Aliás algo que atormentou os dialéticos do século XX: Sartre e Adorno entre os mais sensíveis.

Enfim queremos dizer com tudo isso que o destino da noção de alienação está ligado à posição da dialética assumida.

Em 1957, Sartre, que desde o início de sua jornada estabeleceu uma tensa relação com a psicanálise, no célebre Questão de método[10] denunciava a posição dialética que estabelecia um fecho impeditivo ao negativo: a atualidade de Marx, argumentava ele, residia no grande processo de síntese reveladora da totalidade histórico-humana como algo em processo indeterminado. Sua grandeza é tanta que, devido aos seus resultados, obra de Marx cria uma órbita em que todo e qualquer pensamento, seja pró ou contra, permanece sobre seu eixo. A questão que se deve revelar se marca pelo marxismo vulgar que, na ótica sartriana, essencializou o movimento da história humana. A razão na história foi admitida como algo que concretizaria as reivindicações progressistas e desalienantes; com um só golpe traria as reivindicações dos milhares de marxistas à luz do dia. A história tornou-se assim o campo de absolvição dos pecados: ela nos absolverá! Mais uma vez; se entrona o caráter histórico numa mitificação que nos devolveria o elo perdido. Contrariamente ao próprio cerne do pensamento de Hegel, que sabia que ninguém poderia agarrar a história pelas mãos, nessa perspectiva o mal deixa de ser reabilitado como qualidade de componente necessário ao bem global[11] e a alienação é vista como algo a ser superado em sua integralidade. Em Crítica à razão dialética Sartre retomará essa análise e estabelecerá uma crítica avassaladora dessa mistificação, mas sigamos…

Por outro caminho, mas na tormenta do mesmo problema, Adorno que, desde o início, divisou, com sua clareza peculiar, a fratura narcísica à ideia de sujeito moderno advinda da psicanálise, ressaltou como a imposição da positividade sempre malograda abriria caminho para uma inaudita violência. O seu encontro com a psicanálise lhe foi fundamental para organizar uma crítica àquela noção de dialética que vigorava na sua época. A ideia de um sujeito totalizador e autoesclarecido, a ideia de que um conjunto de homens iluminados pudessem agarrar a história pelos cabelos, terminaria no avesso daquilo que se propunha: uma violência secular que, paradoxalmente, era teológico-política na sua justificativa de supressão de qualquer um que aparecesse como o negativo à história triunfante ali alcançada. “O princípio de individuação, a lei da particularização, à qual a universalidade da razão está ligada nos indivíduos”, diz ele, “fecha-se tendencialmente contra os contextos que os abarcam, reforçando, com isso, a confiança lisonjeira na autarquia do sujeito. Seu modelo é contrastado sob o nome de liberdade com tudo aquilo que restringe a individualidade.”[12]

Mas, deixemos de conversa! Voltemos ao tema da alienação para estabelecer, nesse arbitrário percurso, sobre sua recente história nas ideias, três caracterizações:

  1. A alienação, a despeito da perspectiva crítica marxiana, foi vista como algo possível de ser totalmente superada.
  2. A alienação foi tratada como uma separação à qual estamos condenados e que nos impede um autoconhecimento que é também um conhecimento efetivo do curso da história em que o real se coloca em concordância com o sujeito.
  3. Essa superação da alienação foi confundida como unidade sujeito/objeto e o estancamento do processo negativo do curso da história. Isso gerou na política um processo de supressão violenta da negatividade (Outro/diferente) e impôs a noção de um sujeito total e dominante encarnada sobretudo na figura do chefe.

Alienado são os Outros! E a ideia de desalienação passou a representar na vida comum, em meio ao nosso ordinário cotidiano, o saber de algo; o segredo das estrelas que nos devolve uma libertação do negativo e a unidade entre sujeito e objeto. Vejamos, portanto, o avesso disso.

Alienação e sujeito

A ideia de alienação é inerente a noção de sujeito moderno. E nesse sentido não deve haver dúvidas de que a força das ideias cartesianas fornece a direção que impregnará o pensamento moderno no que diz respeito ao sujeito. Mas com isto não há como fugir a esta outra questão: que tinha ele realmente a ver com a ideia de alienação? No famoso Discurso do método se mostra não só a abertura radical causada pela suspensão dos saberes gerais — daquele Eu que pensa — como ainda o caráter genérico da razão em sua implicação vinculada à espécie humana.[13] Essa posição genérica da atividade racional torna-se ainda mais contundente à medida que a posição do sujeito vai emergindo ao suspender os pressupostos lógicos da vida e dos saberes ordinários. A suspensão metodológica, que acaba culminando no exame geral das opiniões, presume um corte realizado pelo indivíduo que analisa: “o melhor a fazer”, diz Descartes e continua, “seria dispor-me de uma vez por todas, a retirar-lhes essa confiança, para substituí-los em seguida por outras melhores.”[14]

Essa posição de um Eu que ergue os véus dos saberes constituídos tem como solo a experiência com tais saberes que vão desde os mais usuais até aqueles mais específicos. Esse olhar voltado para a suspensão investigativa ao mesmo tempo que adentra os modelos prévios e constituídos, tanto da lógica geométrica quanto da álgebra, também busca tirar deles o que mais importa; a possibilidade de encontro com a verdade. Há um coup de force desse Eu que, não encontrando a clareza e a distinção nos saberes comuns, utiliza-os ao que convém à sua finalidade. A posição do Eu — um sujeito que emerge da relação do conhecimento — é, portanto, a de evidenciar os melhores caminhos para essa finalidade.

Será essa conclusão de Descartes o seu secreto riso de superioridade sobre si? Podemos pensar que essa postura é um pouco ingênua para em seguida concluir que a realidade jamais se colocará em concordância com o sujeito? Sim, esta é basicamente a posição da filosofia, mas a ideia de uma desalienação geral e vulgarizada, que veio depois, presume o contrário: a capacidade da multiplicidade do mundo ser capturada pelo esforço racional do sujeito. A possibilidade de corte no real e suspensão dos saberes realizados converteu-se de maneira vulgar em uma ideia de que o real se dobra ao sujeito. Pobre Descartes! Sabendo, melhor que nós, da impossibilidade de reduzir o infinito à finitude assenta sua certeza em Deus contra o gênio maligno.

Encontrada a melhor forma de refletir sobre o objeto que se busca conhecer, o método de se guiar retamente pela razão, cabe o enfrentamento contra os próprios pré-conceitos e a tormenta de suspensão dos juízos obtidos no seio da comunidade. A trama tecida por Descartes aponta para a emergência do sujeito, a sua formação, na relação com o objeto, impõe um grau de generalidade à razão; um universalismo no qual a sensatez e o exame passam a ser vistos como obra do gênero humano. Há também a construção da alteridade. Aqui há algo radical: a grande questão de apreensão do método está na própria forma pela qual o sujeito, antes de esforçar-se no desnudamento da verdade, irá dela se aproximar, ou seja, cabe ao sujeito, na sua relação com Outro/Mundo, pensar na melhor pergunta que deve ser feita. Algumas condições já estão dadas e já implicam a posição referencial do sujeito que examina: “embora haja talvez entre os persas e os chineses, pareceu-me mais útil me orientar por aqueles entre os quais teria que viver, e para saber a verdade de suas opiniões, eu deveria observar mais o que praticavam do que o que diziam”.[15]

Assim, sujeito/objeto formam uma unidade correlacional de tensão na tarefa-verdade cartesiana, não no sentido de uma unidade estanque e fechada, mas no de uma abertura investigativa que pressupõe a suspensão dos saberes e o equilíbrio da relação. A prática fundamenta os limites da empreitada, por isso a importância da observação. O fechamento e o fim da tensão não se realizam. No Discurso, a posição referencial do sujeito atravessa os diversos momentos da argumentação; a obediência aos costumes (princípio da identidade) se aproxima das opiniões que esse sujeito julga serem as mais verdadeiras (princípio da investigação) e diante das paixões se reflete sobre o controle dos desejos (princípio da organização). Estes passos constitutivos do sujeito cartesiano, porém, denotam algo central: a formação dessa ideia de Eu cartesiana embora submeta a investigação a partir da comunidade, faz isso para ultrapassá-la.

É esse exame radical, ou esse desejo pela verdade, que culmina na emergência do sujeito cartesiano. A suposição de ser falso tudo aquilo que pudesse conter a menor dúvida[16] leva a rejeição da verdade baseada em princípios gerais na ordem cotidiana. A suspensão cartesiana, entretanto, não se dá por satisfeita. Radicalizando sua dúvida até mesmo às sensações e correlatos imediatos ao objeto, chega às raias da afirmação da falsidade de tudo ao ponto de sequer distinguir o estado de vigília do onírico. É, portanto, diante da dúvida radical que uma certeza surge. Certeza formulada em uma curta sentença que se entronará como o estandarte da filosofia moderna e sua posição de uma singularidade atuante do pensar: “enquanto eu pensava que tudo era falso, convinha necessariamente que eu pensava alguma coisa”[17] e assim Descartes concluiu a célebre afirmação da estrutura do sujeito moderno: “je pense, donc je suis” (eu penso, portanto, eu sou — mais comumente traduzido por existo).[18]

Sendo esta uma verdade inexorável proposta por Descartes — uma certeza primeira da qual decorrem todas as demais —, o Eu é imediatamente substância cujo eidos (o permanente) reside no pensar. O pensar é o método cartesiano. Por isso, há uma grande virada que mudará a história da filosofia e da ciência: se o ser cartesiano elimina a necessidade da união entre a matéria e o corpo, a matéria poderá ser refletida, examinada, analisada, no interior de um corte feito para análise em que a experiência por meio da prática se dará. Pressupostos que serão posteriormente reduzidos à experiência; uma modelação teórica prévia com graus de previsão sobre seus resultados. Abre-se então o caminho para a noção de ciência moderna.

Se Descartes pensa a decomposição como forma de encontrar a estrutura geral e os motivos causais que resultam na totalidade de um objeto, nem por isso deixa de buscar as causas primeiras. O quinto livro do discurso é a cabal demonstração desse movimento que faz saltar um elemento intrigante na decomposição da analítica cartesiana; a posição do Eu diante das relações complexas que medeiam a unidade desse objeto. Nesse sentido, estabelece-se um programa de conhecimento que constitui seu objeto na medida que reconstitui a posição do sujeito reconhecível nessa experiência particular e redefine, pelo exame, o referencial espaço-temporal válido impondo seus resultados como algo verdadeiro.

A análise cartesiana culmina na necessária posição do sujeito frente ao objeto, mas o que sustenta essa posição? Não há um vazio, algo Outro que organiza essa relação? Descartes precisa se subtrair à questão e pôr nas mãos de Deus a parada; a causa primeira é independente das relações de análise feita pelo sujeito. Parece coisa menor isso, parece que não levamos em consideração os riscos práticos que Descartes teria se afirmasse o contrário: o vazio próprio que é constitutivo à experiência do saber em conjunto com a materialidade da relação histórica — provavelmente terminaria nas garras do Santo Ofício como seu contemporâneo Galileu — mas, não se trata disso. Essa ida até Deus desnuda o caráter inacabado da reflexão graças ao negativo da infinitude do real.

A alma racional passa, portanto, a ser algo destacado da concretude de sua relação: “eu havia descrito a alma racional”, diz Descartes[19], “e havia mostrado que ela não pode ser tirada da matéria […] mas que deve ter sido especialmente criada”, ora duas conclusões importantes ressaltam disso: a) a possibilidade de suspensão das verdades ordinárias executadas pelo sujeito para o exame e busca da verdade; b) a determinação do próprio Eu que pensa hipostasiada pela metafísica. Lacan vai chamar atenção para isso; a impossibilidade de um fechamento na relação repõe não só a histeria da investigação, que é incessante, como ainda trata-se da reposição da alienação na relação sujeito/objeto. Se essas limitações forjam a mistificação da própria ciência com os desdobramentos de sua produção no interior do regime da mercadoria e capital, por outro lado, ressalta-se a posição do sujeito no desnudamento de tais relações.

Hegel levou essa questão até as últimas consequências. Para enxergá-la em sua filosofia deve-se, porém, perder de vista aquela noção da busca de uma reconciliação na qual o fracasso e o vazio da experiência sejam preenchidos pela vitória da totalidade fechada e da completude do Ser. Aquilo que supostamente levaria perenidade à ordem então constituída.[20] Noutras palavras, deve-se abandonar a ideia de uma desalienação totalizante própria à experiência da consciência. A filosofia hegeliana, pelo contrário, é a demonstração que o fracasso é constitutivo do caminho; somente errando se encontra a verdade. Igualmente, nossa verdade deve ser subordinada a um exame radical que não raras vezes demonstra a puerilidade de nossa posição. E, de novo, recomeçamos nossa busca. Fracassar sempre, mas, fracassar melhor é a palavra de ordem desse empenho cujo sentido nos penetra. Vemos que a posição do sujeito em Hegel se dá na base da modernidade, mas, o seu passo decisivo é demonstrar as limitações de pensar a posição de sua fundamentação (do sujeito) fora das relações particulares constituídas na concretude.

Na intenção de se ver livre da perspectiva romântica de sua época, que buscava no passado o mundo ideal e perdido, Hegel mostra como na antiga vida grega o indivíduo, apesar de atuar sob à luz de seu papel social e ter correspondência em suas ações com o todo da comunidade, era impedido de qualquer noção de individualidade. Esse impedimento fazia com que o indivíduo não pudesse aspirar à dúvida e nem chegar numa noção ética para além dos limites impostos pelo solo. A convicção prevalecia e a comunidade subsistia graças às realizações e aos sacrifícios. Por isso, na qualidade de apresentação social indissociável à formação da individualidade, a inquietação com os limites sociais é aquilo que diferencia a subjetividade na modernidade que já tinha em Sócrates ou Antígona precursores.

Naquela suposta harmonia existente na Grécia antiga o que se via era algo limitado. Hegel na transição para a maturidade percebeu, com sua peculiar argúcia, que a vida grega era na verdade eivada de contradições. Contradições estas que foram plenamente articuladas quando surgiu a grande tragédia de Antígona escrita por Sófocles.[21] É como se Sófocles colocasse, pela primeira vez, a posição da individualidade no seu esforço e desempenho ético que ia contra as convicções da polis. Sócrates e Antígona mereciam morrer porque o sacrifício de ambos era também o sacrifício da comunidade.

Tal como uma personagem inesperada que invade o palco, inútil como o esplendor corado de vergonha ante uma atitude desastrada, a individualidade evidencia que na colisão de posições diferentes das suas, nada há de sólido senão o reconhecimento das diferenças que, quando reconhecidas, se tornam indiferentes. A tarefa-verdade reside na negatividade aos saberes constituídos, o que por sua vez demanda a subjetivação do indivíduo sustentado pelo desejo da verdade. O que fica acentuado nesse palco trágico é a lacuna, aquilo que nos separa e nos distancia da unidade de si consigo mesmo; o caminho atravessado pela busca da verdade. Portanto, a negação daquilo que somos nos constitui como um ser-para-outro. E para nos projetarmos como um Si nessa negação é preciso negar aquilo que nos nega, ou seja, tornar indiferente as diferenças que nos separam do outro.

Um pequeno exemplo disso pode ser vislumbrado em um dos movimentos críticos realizados por Judith Butler em seu A vida psíquica do poder quando demonstra que a identidade heterossexual se funda na alteridade radical da homossexualidade[22]. Quer dizer, a heterossexualidade é caracterizada e fortalecida pelo repúdio performático aquilo que a nega, que está fora dela, só que essa negação, paradoxalmente, é aquilo que a caracteriza. Há algo de teatral que integra a criação de identidades de gênero, ou de outra espécie, que se constrói pela perda e pela exclusão do que não somos, e a proposta de Butler é igualmente apontar a possibilidade das indiferenças nesse quadro de identificações.

Por isso, o tema muito conhecido, mas pouco compreendido, a respeito da negação da negação hegeliana não repousa na afirmação de uma suposta realidade superior, afirmativa, totalmente desalienada, mas numa condição que guia à possibilidade aquilo que era até então impossível a partir da identificação dessa alienação entre nós e a realidade e ainda entre o Eu e o Outro. Contemplar a alienação, a abertura que nos cinge como sujeitos, é identificar os limites daquilo que somos. É a descoberta, o conhecimento sobre as diferenças, que possibilita a abertura naquilo que aparecia como uma sucessão fechada porque desnuda a limitação de nossa identidade, mas também a limitação de se estar preso as fronteiras de dada comunidade. É a revelação dos limites impostos que permite aos caminhos serem franqueados pela subjetividade. Oportunidade, em todo caso, efetivada a partir da capacidade de interpretar tais limites — esforço filosófico/analítico — e ultrapassá-los.

A capacidade de dúvida do sujeito, seu desejo de conhecer-se a si, é o que dá movimento à relação. O passo decisivo na trajetória da consciência que chega à filosofia é sua aceitação da contingência, ou seja, a alienação frente ao mundo e aos acasos frente ao Outro como pressuposto recolocado e indispensável da experiência. Hegel demonstra que a noção de sujeito nada tinham em comum com aquele controle absoluto sobre si e sobre a natureza. O sujeito já é por Hegel considerado uma experiência carente de conteúdo. A noção de subjetividade advém da posição singular que suspende os saberes do todo constituído. O que se estampa na filosofia hegeliana é a demonstração de que o componente da identidade imediata com o mundo é dissoluto em seu processo, e o sujeito, quando se implica na reflexividade crítica, traduz o vazio das verdades postas imediatamente no terreno da vida. O sujeito é um efeito, um resultado, próprio à singularidade que passa a investigar as limitações daquilo que é imediatamente conhecido pela comunidade. É também aquele que descobre que a identidade buscada, na sua relação com o Outro/mundo, no nível de organização simbólica, na linguagem, que lhe permite identificar um lugar na ordem geral, apesar de defini-lo em uma situação dada não pode determiná-lo no contínuo processo de sua experiência. Isso acompanha as grandes feridas narcísicas desferidas pelo advento da psicanálise: um sujeito é sujeito da falta. É um tornar-se algo, um esforço para além do que se é, uma franja, um excremento, algo que escapa.

Lacan

A psicanálise definitivamente colocou a questão do sujeito e do Ser noutro patamar. Desde a Interpretação dos sonhos de Freud, em que os sonhos se tornaram o passaporte para uma viagem ao inconsciente, a ideia de sujeito sofreu o abalo sísmico da perda de sua integralidade e do total controle sobre o Si. Atualmente, fora meia dúzia de bocós, ninguém mais acredita no total controle do sujeito sobre seus impulsos ou sequer na sua capacidade de uma memória totalizadora sobre seu dia. Desejo, inconsciente e até mesmo as pulsões foram categorias que se popularizaram. Foi a psicanálise freudiana sobretudo quem demonstrou que a alienação, no nível de formação da subjetividade, é constitutiva do sujeito. O sujeito só é porque é sujeito negado pelo outro, só o é porque as identificações, que utiliza para saber o que é, se transformam. E ninguém vai melhor mostrar-nos a exuberância dessa descoberta do que Lacan.

Na análise que Lacan faz de Freud, mediada por diversas vozes dentre as quais Barthes e Saussure — mas também e de maneira gritante Hegel —, se despontará um quadro inédito do inconsciente guiado pela organização topológica da linguagem. Na escola que participa Lacan precisamos recordar que “o inconsciente está no centro do paradigma estruturalista e não somente pelo substancial progresso registrado pela prática terapêutica que é a psicanálise; vimo-lo em ação na antropologia preconizada por Lévi-Strauss e na distinção entre linguagem e fala por Saussure.”[23] Se nem sempre recordar é viver, senão reviver, pensar a topologia e os significados dos conceitos que se estruturam no texto lacaniano orienta o leitor, não acomodado ao seu dialeto, a descobrir possíveis traduções.

Um exemplo; o significante, que é central na topologia lacaniana, já era para Saussure um mediador: se a relação concreta lhe é necessária (necessária ao significante) nem por isso lhe é inteiramente suficiente, ele realiza um corte na mensagem “infinita” depositada na coisa para dar sentido e organizar o seu significado. Na linguística estruturalista precisamos saber que a significação é um processo que une o significante e o significado tendo como resultado final o signo. Entretanto, para Lacan, diferente da representação saussuriana, “o significante (S) é global, constituído por uma cadeia de níveis múltiplos (cadeia metafórica): significante e significado estão numa ligação flutuante.”[24]

A lacuna que separa significante e significado, a barra que os divide na topologia S/s, adquire um valor que não tinha em Saussure, ela ilustra o recalcamento e a não objetividade do significado. O significante organiza a camada de acesso ao inconsciente, por isso, a chamada hiância. Se não podemos ir por esse caminho para não perder de vista nosso objeto precisamos dizer: isso é fundamental para pensar o que significa a linguagem em Lacan. Permitam-nos afirmar, caros leitores, que quando Lacan pensa o inconsciente como estruturado pela linguagem, ele realiza com isso uma topografia do próprio inconsciente. O efeito, não de todo previsível, é a realização de uma topologia linguística que dá constituição ao sujeito à medida que se constitui enquanto linguagem. “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”[25] e a profundidade e implicação dessa conclusão nos é central.

Na estrutura própria da linguagem há uma repartição que organiza dois campos em oposição: o sujeito e o Outro. O Outro situa a cadeia dos significantes, ele organiza e comanda aquilo que nós chamamos sujeito. É por meio dele que, para Lacan, se manifesta a pulsão e se estrutura a subjetividade. Há um grau de alteridade radical na configuração de sentido organizado pelo significante, quando pensamos isso juntamente com as pulsões passamos a perceber que elas não são integrais. Para Lacan toda pulsão é parcial e no psiquismo “não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea.”[26] Ser do macho ou ser da fêmea só são representados pela atividade manifesta na pulsão e na passividade. A própria divisão homem e mulher é abandonada no campo do Outro. As pulsões assumem acessoriamente a tarefa de orientação de sentido e há um grau de abertura radical já que aquilo que será entendido como o fazer do homem ou da mulher é apreendido vagarosamente através do Outro. Exatamente por isso a sexualidade com sua pulsão parcial, com pouco de cor e representações empalidecidas, se organiza na psique por outro meio que não o da redução biológica: “a sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta.”[27]

São duas faltas que organizam a topologia da subjetividade: a primeira, a dependência causada ao sujeito, tendo em vista que o significante se estrutura primeiro no campo do Outro; a segunda, a falta real que está ligada ao próprio sexo como reprodução biológica e a cisão provocada por ela. À essa segunda falta se dirigem formas mitificadas de completude; o outro se torna uma metade sexual que é procurada pelo amor como complemento do Eu. A experiência analítica substitui essa mitificação demonstrando como a falta se organiza em verdade pela parte sempre perdida desse Eu que se descobre como alguém sexuado e mortal. A sexualidade se compõe pela falta e pela indeterminação não reduzida à biologia. Por isso, “a pulsão parcial é fundamentalmente a pulsão de morte, e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado.”[28]

Numa curiosa maneira de pensar a organização do psiquismo, Lacan pensa a libido como um órgão e não como relação de força. Para ele, a libido é um órgão irreal articulado com o real de um modo inapreensível. Nessa dialética entre real e irreal, entre a busca da completude e a reestruturação da unidade perdida, há a naturalização do movimento encarnado numa função erótica. O resultado é que o movimento da pulsão se torna fundamental. Ao se considerar essa atividade geral da pulsão, é preciso observar que esse movimento, que busca a realização da unidade de si consigo mesmo, ruma para o alvo, felizmente, jamais atingido de maneira satisfatória. O movimento ocorre na mesma medida em que possa retornar ao sujeito: a unidade não se efetiva senão num átimo de gozo que reorganiza a falta e repõe a ação do sujeito. É assim que se sobe por caminhos perigosos e Lacan nos alerta que a possibilidade de recuperação da unidade, a equivalência entre a função de sujeito e o desejo que governa essa função, só pode ocorrer na perversão porque ela ignora os limites do Outro. O perverso é aquele que realiza essa unidade porque tem sucesso no seu golpe, ele integra a função de sujeito à existência do desejo desconsiderando a mediação necessária à realização e reposição do desejo. Disso podemos tirar muitas conclusões sobre o anseio de recuperação da unidade que governa a política hoje…

Importante dizer que tudo é organizado a partir da estrutura do significante; a função do corte no real funda a função topológica da borda, quer dizer, há algo que realiza os contornos e que impõe a negatividade no interior dos próprios significados. Mutatis mutandis; parece-nos a mesma apreensão elaborada sobre o conceito: o conceito que se modela por uma aproximação à realidade, só por um salto, por uma passagem ao limite, se realiza. Ou seja, o conceito também se realiza por aquilo que o nega.[29]

É através da mesma perspectiva que a relação do sujeito com o Outro se organiza por processos sobredeterminados que precisam ser observados para além da relação imediata e visualizada em si; ou seja, na relação com o inconsciente. Na relação com o significante, os processos são articulados como circulares no contato que vai do sujeito ao Outro. Há, portanto, uma convocação do sujeito ao Outro; o sujeito como reflexo de si no campo do Outro e o Outro que aparece nesse campo. A discussão na linguagem apresentada por Lacan serve assim para demonstrar que nos signos se escapa algo, há algo para além da representação categorial, e aqui pensemos no Hegel que abre este ensaio…

De novo: o recuo na relação Eu/Outro realizado por Lacan serve para demonstrar que a afinidade significante/significado que organiza o signo se estrutura pela lacuna que os separa. Por isso o signo se estrutura através da partilha entre significantes e não entre sujeitos: “um significante representa um sujeito para um outro significante.”[30] Noutras palavras, é um significante produzindo-se no campo do Outro que faz surgir o sujeito da significação. O importante é a produção da linguagem que se faz entre consciente e inconsciente. O sujeito é, portanto, a atribuição de significados a esse significante. O Outro é tornado significante e a constituição do sujeito lida essa construção simbólica na linguagem, ou seja, é o significante que desenvolve as redes, as cadeias e a história desse sujeito.

Há sempre um desdobramento que implica um significante no outro. Porém, a primeira operação que funda o sujeito é irrecuperável; trata-se de uma alienação constitutiva da organização subjetiva do sujeito. Para Lacan, a alienação consiste nessa condenação do sujeito que aparece de um lado como sentido (ou como um organizado de sentido pelo significante de Outro); de outro, como afânise (medo da perda do desejo). Portanto, a alienação para Lacan trata-se, no sentido aqui inventariado, da perda que organiza o sentido e o sujeito que se esforça por organizá-lo. Na escolha que o sujeito faz, a alienação, que ele tenta superar pela busca da unidade consigo mesmo, acaba por impor o desdobramento da lacuna. Esse desdobramento da lacuna, da cisão que separa Eu/Outro, se impõe pela escolha, pela ruptura que ela causa: o nem um, nem outro. Quer dizer, qualquer escolha se faz pela exclusão, pela negação à outra. A escolha de um acaba fazendo desaparecer o outro. Na escolha de ser do sujeito, quando escolhemos o ser, ele, o sujeito, desaparece e se escolhemos o sentido, ele, o sentido, só subsiste pelo inconsciente como um corte que organiza o sujeito. É por isso que a interpretação da psicanálise significa uma partilha de alienações, não a reconstituição de uma unidade senão a demonstração daquilo que imprime o sentido de busca por essa unidade. Agora vislumbrada e abalizada pelos significantes na sua relação inconsciente e no seu não-senso. Claro, na análise trata-se de uma partilha necessária para que se possa reencontrar os determinantes possíveis da conduta do sujeito.

Assim a posição da alienação é a do “Ou”. A novidade, frente à angústia pensada no sentido kierkegaardiano[31], é que esse “Ou” existe e está na linguagem, organiza o campo da linguagem e dá sentido à ação do sujeito. “A bolsa ou a vida!”, nos interrompe Lacan e continua: “Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada.”[32] A relação do Ou que é uma relação de perda, o Ou isso, ou aquilo, se traduz na reprodução incessante do desejo e da reposição da falta que condiciona o sentido para-além da alienação. Esse Ou isso, ou aquilo implica finalmente uma organização de sentido. É nessa operação que se regula a separação que se recobre por duas faltas; a primeira, é promovida pelo discurso do Outro em que o desejo do Outro é apreendido pelo sujeito por meio da incompletude própria desse discurso; a segunda, é a percepção do que não é respondido diretamente pelo discurso; “uma falta recobre o Outro. Daí a dialética dos objetos do desejo, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro.”[33]

Desejar é desejar o desejo do Outro e o esquema da alienação permanece ligado ao exemplo não há algo… sem outra coisa. A alienação, e Lacan evoca Hegel para falar dela, tem algo pelo qual se determina o jogo de significantes baseadas na relação de vida e morte. Na famosa dialética do senhor e do escravo — agora pensada numa chave interessante por Lacan, diga-se de passagem: ex-aluno de Kojeve — para o escravo não há liberdade sem vida, ao mesmo tempo que para ele não há vida com liberdade. Há uma condição necessária que provoca a perda da exigência original. No caso do escravo, a perda da exigência original é a da vida diante da insubmissão.

Ora, já dissemos que na alienação o sujeito aparece primeiro no Outro; o significante aparece primeiro no Outro reorganizando os sentidos e a sua representação como um outro significante. Novamente a lógica circular da pulsão está posta. Na separação — sujeito/Outro ou S/O — o sujeito encontra a via de retorno à alienação e é nela que ele encontra a articulação do significante realizado através da mediação que repõe o movimento do desejo. Na mediação entre os dois significantes S/S se organiza o desejo do sujeito na experimentação do discurso do Outro — inclusive do primeiro Outro que o sujeito tem que lidar; a mãe. Lacan, com seu olhar freudiano, nos lembra que é na troca com a mãe que se organiza o sentido e a falta que constitui o desejo do sujeito. Nesse processo o sujeito retorna ao ponto inicial que é o da falta enquanto tal, o ponto da afânise.

Ocorre, porém, que o passo fundamental é a tentativa de libertação por parte do sujeito do efeito afânisico: o medo de perder o desejo é o que configura sentido à ação. Noutros termos: a busca pela unidade perdida supostamente alcançada pela realização do desejo é o que governa e estrutura a ação do sujeito. Contemplar a alienação, no esforço analítico, não só nos ensina a amar o desejo, mas saber o porquê desejamos esse desejo. Sendo assim, em se tratando de alienação, as figuras centrais permanecem sendo as da dialética do senhor e do escravo. Para o escravo a vida resta amputada da liberdade, porém, a alienação do senhor é de uma mesma estrutura. Quer dizer, por fazer a escolha da morte, o senhor também constitui em si uma alienação fundamental. O limite da liberdade do senhor é a morte: “a revelação da essência do senhor se manifesta no momento do terror, quando é a ele que se diz a liberdade ou a morte e quando ele só tem evidentemente a morte a escolher para ter a liberdade.”[34] Aqui há a renúncia do senhor ao seu próprio ser porque ele se marca agora pelo predicativo de senhor. Portanto, há uma alienação radical da liberdade no próprio senhor.

É assim que podemos afirmar que para Lacan não há sujeito sem a determinação de uma falta que estrutura sua ação e sua busca. Melhor dito para nosso assunto; a alienação é constitutiva ao desejo que governa a ação do sujeito. A abertura causada pela alienação é central para instituição de sentido. Não há realização do desejo que se ultime numa identidade perene entre sujeito/objeto ou sujeito/Outro. Mesmo na sua proximidade com um Hegel marcadamente francês[35], isso não impossibilitou que Lacan observasse que não há sínteses sucessivas de unidade perene capaz de interromper a abertura hiante no coração do sujeito. É a via do desejo, e a análise daquilo que o constitui, o que possibilita a visualização da alienação. Com a análise se explicita a constituição de um sentido que só pode ser estruturado pela falta da presença daquilo que governa o desejo. O que temos por fim é um sentido que reconstitui a alienação ao mesmo tempo em que organiza uma tentativa sísifica de superá-la.

Sabemos então, caro leitor, uma alienação por si não é gostosa, mas a partilha dela talvez, a socialização das alienações que nos permitam pensar outro devir talvez também, deixemos Beckett encerrar:

VLADIMIR (magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?

ESTRAGON Numa vala.

VLADIMIR (espantado) Numa vala! Onde?

ESTRAGON (sem indicar) Logo ali.

VLADIMIR E eles não bateram em você?

ESTRAGON Bateram, mas não demais.

VLADIMIR Os mesmos de sempre?

ESTRAGON Os de sempre? Não sei. Silêncio.

VLADIMIR Quando paro para pensar… estes anos todos… não fosse eu… o que teria sido de você…? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida.

ESTRAGON (ofendido) E daí?

VLADIMIR (melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que eu sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.[36]

REFERÊNCIAS

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BECKETT, Samuel (1952) Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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SOFOCLÉS. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: L&PM, 2000.


* Douglas Rodrigues Barros é escritor, ensaísta, editor do Lavra Palavra e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp. Militante do movimento negro e da Resistência, escreveu o livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial.



[1] MARX, Karl (1890) O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.

[2] Devo esse comentário a Natan Luís da Silva Oliveira. Quem agradeço imensamente.

[3] PÊCHEUX, Michel (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2014.

[4] LUKÁCS, György (1923) História e consciência de classe. Trad. Rodnei do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[5] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1807) Fenomenologia do espirito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

[6] FREUD, Sigmund (1900) A interpretação dos sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

[7] GIRARD, RENÉ (1972) A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990

[8] GOLDMAN, Wendy (2007) Terror e democracia nos tempos de Stálin. Trad. Marcelo Bamonte Seone. São Paulo: Lavrapalavra, 2021

[9] DEBORD, Guy. (1967) A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[10] SARTRE, Jean-Paul (1957) Questão de método. Trad. Bento Prado Junior. São Paulo: Abril cultural, 1973 (“Os pensadores”).

[11] MINOIS, Georges (2002) As origens do mal: uma história do pecado original. Trad. Nicia Adan Bonatti. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

[12] ADORNO, Theodor (1966) Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro, Zahar, 2001, pp 32.

[13] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny, 1943.

[14] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny,1943, p. 79

[15] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny,1943, p.98-99

[16] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny,1943, p.114

[17] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny,1943, p. 115

[18] Mantemos uma tradução ao pé da letra, por assim dizer, para demonstrar como a epistemologia acompanha na modernidade uma ontologia.

[19] DESCARTES, René (1673) Discours de la méthode; pour bien conduire as raison et chercher la vérite das les sciences. Paris: Éditions de Cluny,1943, p. 148

[20] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1807) Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Belo Horizonte: Editora Vozes, 2014

[21] SOFOCLÉS. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: L&PM, 2000.

[22] BUTLER, Judith (1997) A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: editora Autêntica, 2017

[23] DOSSE, FRANÇOIS (1991). História do estruturalismo: o campo do signo, 1945-1966 – volume I. trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Unesp, 2018, pp. 151.

[24] BARTHES, ROLAND (1964) Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2012, pp. 63

[25] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp-29.

[26] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp.200

[27] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp 201

[28] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp.201

[29] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp 18

[30] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp 203

[31] A respeito do significado de angústia do “ou… ou” o livro de Kierkegaard é fundamental. Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye (1844). O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado originário. Trad. Alvaro Luiz Montenegro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

[32] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp. 207

[33] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp p.210

[34] LACAN, Jacques (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 pp. 215

[35] Sobre a recepção de Hegel na França o livro de Sinnerbrink é fundamental. Cf. SINNERBRINK, Robert (2006). Hegelianismo. Trad. Fábio Creder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

[36] BECKETT, Samuel (1952) Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2007.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | RODRIGUES BARROS, Douglas (2021) Ai, como é gostosa essa tal alienação! Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n.-12, p. 8, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-08/>.