Xuxa e a criança queer

por Diego Semerene

A pornografia é um sintoma frequente após uma revolução. Em suas múltiplas formas e fórmulas, ela é até mesmo um catalizador de revoluções, como demonstra a historiadora Lynn Hunt em seu trabalho sobre a Revolução Francesa[1].

A França pós-68 também dá vazão a um olhar pornográfico, no sentido menos moralista do termo, no que diz respeito a relação entre menores e maiores de idade. Um pensamento crítico à própria régua que distingue uma criança de um adulto, e regula os possíveis encontros entre um e outro de maneira puritana e essencialista, emerge. Ao imaginar uma criança que não precisa ser salva, nem reduzida à garota propaganda de um “futurismo reprodutivo,” certas proteções infantis são julgadas antiquadas por muitos intelectuais.[2] Em janeiro de 1977, por exemplo, o jornal Le Monde publicou uma petição contra uma lei de atentado ao pudor sem violência contra menores de quinze anos assinada por Roland Barthes, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Philippe Sollers, Louis Aragon, Guy Hocquenghem e a psicanalista Françoise Dolto. A petição foi escrita por Gabriel Matzneff, como foi revelado posteriormente. Matzneff é o agressor no caso de pedofilia envolvendo Vanessa Springora, que só se transformou em escândalo na imprensa francesa três décadas depois, quando a vítima escreveu um livro denunciando sua longa relação com Maznaeff, que começou quando ela tinha 14 anos e ele quase 50.[3]

Aparentemente, Marguerite Duras, Hélène Cixous e Michel Foucault foram uns dos poucos a se recusarem a assinar a carta aberta no Le Monde. No entanto, a filósofa Amy Adler lembra que cerca de uma década antes Foucault havia publicado junto com outras figuras da “elite intelectual parisiense,” uma edição especial da revista acadêmica Recherches celebrando encontros sexuais entre gerações e sexo consensual entre adultos e crianças.[4]

O lema “uma criança não tem recursos para consentir” hoje em dia ganha status de truísmo, exceto quando a presunção de consentimento é naturalizada: Crianças jovens demais para transicionarem mas maduras o suficiente para serem cis e heterosexualizadas desde o útero – e até antes dele. Durante sua última gravidez, a influencer bolsonarista Antônia Fontenelle postou uma imagem comparando o rosto do então marido, Jonathan Costa, com o rosto do bebê, Salvatore visto pelo ultrasom, e utilizou a hashtag #salvatorepirocudo.

Aberturas sociais brasileiras são também terreno fértil para fantasias pornográficas se manifestarem. Para o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, a morte de Glauber Rocha marca o fim da ditadura no Brasil e da necessidade de encarar a fome e outras inconveniências estéticas do então chamado terceiro mundo. Nessa época, Vasconcellos considera que a elite intelectual brasileira estava disposta a fazer qualquer negócio para não parecer moralista. É nesse contexto que surge o mega-fenômeno Xuxa. Segundo Vasconcellos, Xuxa foi encarregada a fazer com que a infância no Brasil durasse o mínimo possível para que as crianças logo virassem consumidores.[5]

Mas o que essas crianças, tantas ainda tomadas pela figura de Xuxa como uma força sobrenatural reparadora décadas depois, estavam realmente consumindo para além do olhar adulto?

O mito Xuxa sempre foi acompanhado de narrativas detratoras que reiteravam uma visão homogênea da criança, cis-hetero-normativa, e as associava não só a um capitalismo licencioso capaz de reduzir a duração da infância e de “sexualizar” crianças, como se não fossem sexuais por si só (e nas mãos — e palavras — de seus próprios pais), mas a práticas satânicas e pedófilas.[6]

A peça fundamental nesses discursos repletos de projeção e misoginia, dos mais esdrúxulos aos mais racionais, é uma incapacidade de imaginar, muito menos levar a sério, os diferentes prazeres — complexos, contraditórios — que Xuxa tornou possível.[7]

Particularmente para crianças queer, cujas infâncias muitas vezes teriam sido ainda mais inviáveis sem o excesso — sim — pornográfico de feminilidade que jorrava da tela seis vezes por semana, cinco horas por dia nos anos 80 e 90. Para Amelia Simpson, a mito de Xuxa não pode ser divorciado do de Pelé em sua origem. E foi essa relação com a miscigenação que serviu inicialmente de uma espécie “de prova de imunidade contra o racismo” para Xuxa, que então obtém uma licença simbólica, segundo Simpson, para “explorar o apetite pela loirice e olhos azuis de um país com a maior população negra fora da África.”[8]

“Sobreviveremos a essa década mortal,” canta Xuxa na última música do último Xou da Xuxa, em 1992. “E só mesmo o amor vai nos libertar. Nem que tenhamos que viver, em uma nave espacial…” No mundo de Xuxa o mundo é habitável porque podemos escapar dele, mesmo que o custo do bilhete para ir embora seja muitas vezes fantasias ideologicamente duvidosas, como elas tendem a ser.

Xuxa vendia a feminilidade aos que já a tinham como demanda desde o primeiro ultrassom, mas também permitia a crianças para as quais a feminilidade era impetuosamente proibida. Pelas bordas, por procuração, pelo excesso camp que respingava em corpos infantis de qualquer gênero, adocicava a agudez das palavras (não; bola; ele; bicha; AIDS; AIDS; AIDS) e concedia horizonte a um futuro sem perspectiva de êxtase. O sonho clandestino promovido por Xuxa de se transformar de objeto abjeto a objeto do desejo, com todas as amarras que lhe possa ser inerente, se contrapõe ao “sonho público da extirpação de corpos gays promovido pela AIDS,” e pela homofobia avassaladora que funda e refunda o sujeito heterossexual brasileiro.[9]

Em outra canção, “Profecias (Fim do Mundo),” Xuxa denuncia os que anunciam o fim dos tempos, mas destroem “tudo agora” e declara: “Desculpe Nostradamus, mas nós vamos sobreviver.”

Xuxa forneceu um espaço seguro, uma lacuna orgásmica, para certas crianças se desidentificarem com o universo masculino num contexto onde fazê-lo em público, fora de seu planeta, seria letal.

Os prazeres facilitados por Xuxa não eram inocentes ou politicamente sadios como os prazeres infantis devem ser e raramente são. Eram prazeres múltiplos, ambíguos, simultaneamente libertadores e opressivos, normativos e transgressores, prazeres racistas e não-capazcentristas. Prazeres que celebravam a lourice e a viadice, a feminilidade sem limites e a binaridade (menino contra menina!), prazeres que celebravam o comprometimento ecológico e o consumismo. Prazeres indecentes, viscerais, irresistíveis. Prazeres de sujeitos produzidos por tudo isso que está aí. Sujeitos com papilas e poros que respondem às mais inconvenientes das verdades. Para Jacques-Alain Miller podemos ser uma “feminista perfeitamente autêntica e então, no divã, confessar que temos prazer em pensar” nas práticas mais violentas como sendo prazerosas. “Estes são dois planos diferentes de ser.”[10]

Havia algo fundamentalmente camp no universo de Xuxa. Camp, no argumento canônico de Susan Sontag, é o antinatural, o artifício, o exagero. Um esteticismo que normalmente se prende à roupa, à decoração, à textura, às superfícies. Estilo em detrimento do conteúdo.

Camp, para Sontag, vê tudo entre aspas. Não é uma mulher, mas uma “mulher”. Perceber o camp “é entender o Ser-Enquanto-Jogando-um-Papel”, como fez Xuxa, ou melhor, “Xuxa”. Isso fica evidente quando ela se separa de Marlene Mattos no início dos anos 2000, corta o cabelo curto (sua marca registrada, em torno do qual todo o seu mito foi construído, como Sansão!), e declara a Ana Maria Braga que não quer ser mais uma Barbie viva usando jeans no Mais Você. Camp é extravagante. Camp apaga a natureza. Camp é queer.

Planeta Xuxa era um programa onde Xuxa aparecia basicamente fazendo drag de si mesma. “Camp é uma mulher andando por aí com um vestido feito de três milhões de penas,” diz Sontag. Mas camp também é uma “tentativa de fazer algo extraordinário.” Camp, como Xuxa e sua mise-em-scène literalmente profunda (a estrela no centro, rodeada de crianças, pais, paquitas, brinquedos, You Can Dance, Bombom, pompoms, Praga, Dengue, sol, nave espacial com porta vaginal e até o Cristo Redentor), é muitas coisas ao mesmo tempo.

Camp é a fantasia, remédio necessário para crianças que sofrem e não podem gritar.

Camp permite identificar-se com “estados extremos de sentimento.” Encarna uma vitória da estética sobre a moral, “da ironia sobre a tragédia”. “O objetivo do camp é destronar o sério.” Não é que o gosto camp seja o gosto gay, embora muitas vezes eles se sobreponham, porque, junto com os judeus, Sontag afirma, os gays são “criadores de sensibilidades”: gays através do esteticismo, judeus através da seriedade moral. “O acampamento é um solvente de moralidade. Neutraliza a indignação moral.”[11]

Sim, Xuxa era “pornográfica”: despertava o desejo de sermos altas, loiras, e ricas, de sermos mulheres, de sermos fantásticas, de sermos o centro das atenções, de sermos imunes. O que para algumas de nós, que sabíamos poder esperar do futuro somente a morte, por paulada ou pelo vírus, era o único gozo possível. Xuxa aliviava a agonia inadministrável de ser criança queer numa sociedade cujo o refrão “antes filho morto que filho gay” é tão familiar quanto pão-de-queijo. Principalmente se esse filho for “o abjeto que assombra” a psicanálise, “extremamente e cronicamente afeminado.”[12]

O predador é sempre o outro. A sociedade precisa eleger culpados para as malaises que suas próprias estruturas estão programadas para produzir. Essa é a conclusão que costura todo o trabalho de Amy Adler sobre sexo, infância e o que os pânicos morais revelam sobre os adultos que são tão comprometidos a eles. Mudam-se as figuras — o judeu, o negro, o homossexual, a mulher trans. A fantasia é que alguém, um estranho, está arruinando a criança que, na realidade, eu mesma arruinei. Quando Xuxa sai de cena, por exemplo, e as imagens se dissipam da televisão para as mídias sociais, para onde se direcionam os olhares, e os corpos, das crianças?

A criança brinca de ser a protagonista do mundo. Com as redes sociais ela pode ser. Com o colapso da fantasia e a coisa em si sobra muito pouco, ou nenhum espaço, para reflexão, meditação e para que fantasias sejam construídas na passividade ativa, e fértil, do tédio, por exemplo.

Se Xuxa sai de cena, o olhar “sexualizante” continua a nos acompanhar. Quem o encena numa era onde crianças podem ser estrelas elas mesmas, consumir e habitar suas próprias telas? O que fazemos delas? A que função elas se emprestam? E quem culpamos se somos nós mesmos que as convidamos para o espetáculo pedo-pornográfico que celebra “menores,” “novinhas” e a capacidade incansável do corpo masculino de “macetar,” “pega[r] bolado,” e “convoca[r] as amiga pra piar também”?

O Instagram de fofocas @Rainhamatos declara: “O auge que é a Morena, filha da @rebecca, dançando @luisasonza.” Um leitmotif dentro de um leitmotif. Em outra postagem a criança reaparece como símbolo de fofura – e, ousariamos dizer, sensualidade? Ousaríamos porque apenas constatamos, ou ao menos traduzimos, o que a pose da menina nos diz, o que a música que envelopa a imagem repete. E o que a legenda da foto literaliza para que não haja qualquer dúvida. “Olha só que linda a Morena, filha da cantora @rebecca, dançando a música da @anitta que se tornou trend na rede vizinha.”

Aqui a relação orgiástica de marketing digital se travestindo de mera “notícia” de (sub)celebridade se confunde. A (sub)estrela (quem é @rebecca?) é re-posta em evidência (ad infinito) e nasce uma nova (mini-)estrela — mais nova e performer de movimentos tão genéricos quanto as que a precede num fundo achatado. Aqui a mise-en-scène é sempre chata, em contraste com o excesso multi-dimensional de Xuxa. Com Xuxa podemos falar sobre superficies que formam mundos, com dancinhas falamos sobre superfícies rasas, ou planas, como a terra de 2022. Se o olhar quiser viajar, não há para onde ele ir. Não é de surpreender que coreografias definam o campo de visão sem profundidade das redes sociais: poses iguais, movimentos iguais, músicas iguais, ideologias iguais: bundas que empinam, quadris que penetram, mãos que gesticulam como se engatilhassem fuzis (“Balança a glock bb”). Olhares que se repetem, olhares sem agência.

Corpos fazendo o trabalho sujo do algoritmo automaticamente. O usuário ideal das redes – sociais ou de serviços de streaming, para Stephane Delorme é aquele que é tão imergido nelas que não consegue exercitar sua própria singularidade, o seu próprio desejo.[13]

Usuário-engrenagem, usuário-oco, usuário-corpo, usuário-zumbi. O usuário ideal das redes é o sujeito desprovido de desejo. É o sujeito que repete sem pensar o circuito de excitação perene e o orgasmo perenemente deferido. No lugar da dinâmica pornográfica clássica (excitação – excitação – gozo) o gozo jamais chega, só a mímica dele.

Nessa dinâmica o olhar pedofílico nunca está muito longe. Na realidade, ele parece sempre ocupar o centro. Nele percebemos a obsessão brasileira de flertar com a pedofilia a qualquer custo: ou como o agente dela ou como suposta testemunha do desejo pedofílico do outro, o fictício outro. Ambos modos de re-colocar a figura da criança numa posição onde sua erotização é não só imaginável mas imaginada.

O discurso direitista de “deixem nossas crianças em paz” vem para negar essa verdadeira paixão pelo infantil como objeto de desejo que nutre a cultura heterossexual brasileira, mas não só ela. A obra de Adler é devotada à uma dinâmica muito similar nos Estados Unidos, onde a erotização da criança está sempre em pauta, mesmo que, e especialmente quando, mascarada de um vigilantismo virtuoso.

O influencer Richard Gomes, por exemplo, alterna dancinhas do Tiktok com sketches cômicas e caixas de perguntas. Muitas vezes essas perguntas que ele escolhe responder questionam se ele “pegaria” menores idade, por exemplo, “mina de 14.” A resposta parece sempre ser sim. Recentemente Gomes postou uma confissão de um de seus seguidores após pedir para eles contarem um segredo que nunca contaram pra ninguém: “Primeira vez que mamei um menino com 13 anos kkk até hoje minha mãe pensa que sou santa.” Numa enquete nos Stories do Instagram vemos que 69% de seus seguidores que responderam teem menos de 16 anos.

A influencer e ex-BBB Bianca Andrade, conhecida como Boca Rosa, recentemente viralizou no Instagram ao se filmar arranhando o corpo semi-nu de seu bebê. Prova da pobreza de conteúdo das contas de “notícias” fofocalizantes — sempre as mesmas (sub-)celebridades e controvérsias sintéticas. Rainha Matos postou uma série de prints de Stories de Boca Rosa acariciando a barriga nua do bebê e escreveu: “Ver a @bianca acariciar o Cris já é meu passatempo favorito na internet.”

Um tweet da humorista Tatá Werneck viralizou subsequentemente nas mesmas páginas de fofoca do Instagram, no qual Werneck diz estar com uma insónia que só a Boca Rosa “com aquelas unhas grandes fazendo carinho nas costas, resolveria..” Werneck continua: “Vi ela fazendo nas costas do filho. Passei a invejar crianças.”

No post da apresentadora Ticiane Pinheiro, a incorporação da diferença sexual homem falomulher buraco disponível também é uma performance em família: Ticiane e outras sete pessoas participam da coreografia viral com a música “Desenrola Bate Joga de Ladin,” do rapper L7NNON e Os Hawaianos, incluindo sua mãe e garota de Ipanema Helo Pinheiro e sua filha Raffaela Pinheiro Justus.

Em outro vídeo Pinheiro se junta à filha Rafaella, de 12 anos, e uma outra criança que aparenta ter por volta de quatro anos para dançar a mesma coreografia, que culmina com a criança menor subindo no colo de Rafaella e acidentalmente exibindo sua calcinha. A coreografia literaliza as letras da canção. Uma espécie de ode à capacidade do ser humano de gingar o quadril e exibir suas nádegas para a câmera, ou para um outro brutalmente penetrador (“Hawaianos ‘tá lançando, essa é a braba pros menorzin’”), culminando no rebolar sugestivo da bunda se exibindo para a câmera numa espécie de pose banal para corpos femininos e algo como uma concessão convidativa para corpos masculinos, que sugerem do que são capazes em um ato sexual. Em uma cultura onde o homem deve ser tão rígido, tão imóvel, o menor movimento causa uma comoção.

A apresentadora Angélica fez uma coreografia similar com a mesma música (“No pique da antiga Vem que, vem que, vem quicando”) ao lado da filha Eva. Grazi Massafera também participou da dancinha viral, desenrolando, batendo e jogando de ladin com sua filha Sofia, de 10 anos (vídeo prontamente repostado pelo Instagram oficial da revista Caras Brasil).

Coreografias que celebram a destreza e irresistibilidade de corpos masculinos que todos acabam emulando — pra fazer o falo finalmente aparecer… Mas apenas por alguns segundos, no tempo de três simples passos (desenrola, bate, e joga de ladin), pois nenhum avatar dele sobreviveria uma inspeção contínua ou minuciosa. O falo só é registrado como tendo estado ali se tiver se materializado como uma breve aparição. Um flerte. A garota de Ipanema decididamente não seria mais que um poema nem faria o mundo sorrir se passasse na frente do poeta em forma de terra (plana) e coreografada. Seria apenas mais uma iteração insossa na timeline de Tom e Vinícius. Nesse sentido, o falo é compatível com a temporalidade das redes sociais.

Uma das estórias mais escabrosas que o surfista Pedro Scooby contou no Big Brother Brasil foi um episódio no qual ele deu um tapa na boca de seu filho Dom após o menino responder o pai de maneira supostamente afrontosa: “[…] minha mão só fez assim, na cara dele. Irmão, o beiço já ficou igual do Patolino [risos]. Nunca mais ele me respondeu na vida,” disse Scooby, “[…] tem que tomar um susto para ter o respeito”. Uma das primeiras coisas que o surfista fez após sair do programa foi uma dancinha coreografada com seus três filhos ao som de “Sei que Tu Gosta,” de L7NNON e DJ Biel do Furduncinho. Scooby e sua esposa, Cinthia Decker, acompanham as crianças ao som de versos como: “Ela gosta dos que maceta, pega bolado,” e “Convoca as amiga pra piar também De sainha, ela vem.”

Em uma das muitas dancinhas que Giovanna Ewbank posta com sua filha Tite, elas aparecem emulando o ato sexual de estocar o quadril para frente como se penetrasse alguém e o de se curvar e empinar o bumbum como se estivesse sendo penetrada. Esse é o script-mor desse fenômeno pedo-pornográfico. A música que serve de tema para a coreografia é “Que Rabão,” de Anitta, com feats de Mr. Catra e MC Kevin O Chris e versos como: “Para, empina, joga o cabelo/Deslizando Rebolando daquele jeito/Que eu tô gostando,” e “Rebolei, delícia, ui! Tô acesa Eu sou sua rainha, mas gosto de safadeza.”

A influncer Luara Fonseca, 17 anos, dança em um Reels no Instagram com Anitta e um menino de aparentemente três anos ao som de “No Chão Novinha,” de Pedro Sampaio e Anitta, com os seguintes versos: “No chão, novinha, novinha, novinha Joga a bunda pra trás Pra trás, pra trás, pra trás,” “Vou jogar na tua cara De quatro, sei que tu gosta (joga, vai!),” e “Quero ver se tu aguenta Sequência de love, love Sequência de senta, senta.”

Em um vídeo que a influencer e auto-intitulada analista comportamental Maira Cardi, a marqueteira-mor do emagrecimento de (sub-)celebridades filma uma cena em que ela pergunta pra filha Sofia, de 3 anos, o que vai acontecer quando seu pai, Arthur Aguiar, chegar em casa do Big Brother Brasil. A menininha responde, claramente adestrada pela mãe, com a letra de uma música de Aguiar: “Vai ter casa revirada!,” numa alusão ao sexo selvagem que a música do pai faz. Depois mãe e filha cantam juntas: “E quando a gente se encontrar Vai ter de tudo, vai ter beijo com pegada Vai ter carinho, vai ter casa revirada…”

Em um Reels do influencer Willian Guimarães uma criança de dois anos ou três é literalmente utilizada como apêndice peniano ao Guimarães carregá-la com uma mão na altura do quadril ao fazer os movimentos penetrativos da coreografia. “Ai mds não aguentei Kka tive que postar…,” diz a legenda.

O cantor Zé Felipe diz que perdeu a virgindade “com uma biscate” aos 12 anos, levado por um dos seguranças de seu pai[14] e compartilha um Reels de sua mulher Virgínia utilizando a filha como objeto de cena para dançar sua nova música, “Toma Toma Vapo Vapo”: “Que amorzinho safado Deu um chá de cama bem dado Brota na minha casa, eu vou te dar um chá bem dado.” Em outro video Virgínia aparece “ensinando” a bebé a coreografia utilizando seus bracinhos como um ventríloco.

O influencer mirim João Lucas Veras, de seis anos, devota boa parte da sua página no Instagram para vídeos com dancinhas cujas coreografias encarnam as letras sexuais de músicas como “Dançarina – Doida Pra Sentar,” de Pedro Sampaio (feat. Mc Pedrinho): “Mina gostosa, no beat ela encosta […] Eu vou provocar, vou descer Vou instigar […] Essa menina é o puro talento descendo Joga a mãozinha pro alto quem tá enlouquecendo […] Ah, ah-ah-ah, ah-ah-ah, doida pra sentar.”

É o membro da família ou sua entourage, que usa, sempre e já, a criança eroticamente. Não “Xuxa.” A repetição dos tiktokers deixam isso mais evidente. Para Adler o gozo do adulto anti-“pedofilia” está no uso e no assistir outros adultos usarem as crianças eroticamente, desde que protegidos por discursos moralistas que mascara o gozo do sujeito com o gozo do outro. O outro, o verdadeiro “pedófilo.”

Algo incestuoso sempre está acontecendo. Se Xuxa era uma espécie de aliciamento da passividade, da brancura, da loira sedutora vendendo um capitalismo infanto-juvenil, ela também permitia um certo chafurdar delicioso na feminilidade. Agora temos uma infinita simulação do coito como um ato necessariamente, e deliciosamente, violento e nunca completamente consensual. É esse o leitmotiv das coreografias que movem nossas redes sociais. Seu gozo, imitado por meninos e meninas, encenado como a ostentação necessariamente masculina de ter obtido mais prazer do corpo do outro, feminino ou feminizado, do que o sujeito desse corpo jamais poderia ter ou ter consentido. O papel da criança na mídia hoje se ancora no imitar essa dinâmica essencialmente heterosexual e heterosexualizante (a verdadeira “ideologia de gênero” se encontra aqui), em encenar esse roteiro como autômatos, apêndices e adereços.

Em um dos poucos textos acadêmicos sobre Xuxa, Gilberto Vasconcellos a descreve em 1991 como uma tempestade perfeita para a família tradicional brasileira, servindo de objeto sexual para o pai e de modelo de feminilidade e branquitude para a filha. Essa é a família fantasmaticamente tradicional, porém não a original. Vasconcellos nos lembra que a família original brasileira se trata de uma mãe indígena, um pai Europeu estuprador e o primeiro brasileiro que nasce do estupro.[15]

Xuxa é quase uma Dora, servindo de moeda de troca entre pais e filhas. Obviamente, há aqui uma aura — senão um centro — pedofílico no desejo do pai (e filho), visto que Xuxa é uma espécie de mulher-criança que se veste aliás como sua própria filha. É claro, nessa lógica fica de fora a mãe e a criança queer — por exemplo, o exército de meninos e meninas que se revelariam gays e trans eventualmente. Na época, como diz a filósofa Kathryn Bond Stockton, ainda não havia espaço para que crianças crescessem “para os lados,” ao invés de normativamente “para cima.” Ao passo que hoje várias crianças não precisam esperar se tornarem adultas para se saberem e se declararem gays, trans ou não-binárias (o que Stockton chama de “latência manifesta”).[16]

Essas crianças, porém, estavam sempre entre nós. E como estavam! Xuxa talvez tenha sido a única babá eletrônica a não ter medo da criança queer. Do seu jeito gauche, foi repositório e palco para todas as toxidades da época — e que persistem. Mas, de muitas formas, deu espaço para crianças queer: das com síndrome de down às mais pintosas. Xuxa ainda permitiu aos meninos mais normativos que experienciassem algo queer, os prazeres do feminino, do exagero, sem sofrer as consequências letais.

Apesar desse menino não poder participar dos prazeres sartoriais de Xuxa diretamente, ele pôde sim se deleitar em prazeres mais escopofílicos sem se comprometer. Foi exatamente assim que, de acordo com vários historiadores da moda, o homem conseguiu desmamar dos prazeres das vestimentas espalhafatosas a partir do século 18, quando o vestir-se começa a se tornar tarefa e fardo para as mulheres. O homem não diz adeus aos prazeres sartoriais, ele apenas tira proveito deles de formas menos óbvias e comprometedoras, se travestindo na homogeneidade sóbria do terno, por exemplo. Esse menino era desculpado por assistir um espetáculo tão feminino, pois Xuxa ocupava praticamente todo o espaço da TV, de 8 da manhã à 1 da tarde, de segunda à sábado. Xuxa, então, serve de modelo para esses meninos que tiveram que perder as delícias do corpo da mãe: não só seus seios, mas seus brincos, seu algodão, seu tricô, seu perfume. Xuxa oferece algo para tipos de olhares distintos, suprindo simultaneamente fantasias racistas hétero-normativas e emancipatórias queer. Para usar um termo de Winnicott, as crianças então usurpam desse excesso fabuloso de significantes que Xuxa produz algo que lhes aliviam a dor: a dor da latência queer que só pode se liberar num futuro que jamais chega exceto como sua aniquilação.[17]

É essencial lembrar que no discurso estabelecido que Xuxa erotizou uma geração inteira de crianças apagamos a capacidade de agência da criança. Insistir na banalidade de que Xuxa foi um fenômeno normativizante racista centrado em ideais eugênicos que sexualizou crianças é re-objetificar essas crianças ao invés de escutá-las, ou se perguntar o que elas fizeram com tudo isso. Quais crianças foram erotizadas e quais outras conseguiram utilizar Xuxa para deixar suas condições de abjeto e imaginarem-se livres, felizes e, sim, desejáveis?

O mundo de Xuxa, como argumenta Simpson, vendia a fantasia de um Brasil aliviado de suas fissuras raciais, mas também aliviava de facto fissuras menos imediatamente visíveis que assolavam certas crianças. Narrativas redutivas vêm de pessoas que, por exemplo, jamais escutaram as letras das músicas de Xuxa. O argumento parece ridículo por ser infantil, por ser feminino, por ser televisivo, e popular, mas as letras das músicas de Xuxa alcançavam a rara façanha de serem incrivelmente divertidas e conscientes.

Regimes essencialmente pedofílicos, como o heterossexual, se definem pelos objetos infantis a serem deglutidos de forma inconspícua que produzem — enquanto elegem certas figuras como sendo as reais responsáveis pelos desejos pelo infantil que move o regime em geral.

O Xou da Xuxa flertava com o abandono do começo ao fim. Xuxa, intocável e inacessível como Michael, Madonna ou Hepburn, chegava vagarosamente da nave rosa para a histeria das crianças maioritariamente negras e pardas que a aguardavam no palco (e suas mães na plateia), muitas vezes com músicas melancólicas. As despedidas no fim do programa eram tão longas quanto as entradas, e produzidas como se jamais fosse vermos Xuxa de volta. Mesmo que em menos de 24 horas ela estivesse de novo ali. Xuxa lê cartazes que proferem a devoção de crianças para com ela, recebe presentes, e muitas vezes implora para que a diretora, Marlene Mattos, deixe ela ficar mais um pouco. As partidas eram como encenações estrambólicas das grandes perdas que introduzem uma criança ao mundo.

Era um programa de excessos não só estéticos, mas afetivos. Brincavam com as emoções das crianças, manipulando-as ao extremo. O Xou da Xuxa era um melodrama.

Xuxa como operação queer não é muito diferente do trabalho de drag, ou de superfícies em geral, que podem forjar um espaço de habitabilidade onde, como Jillian Hernandez afirma em relação a certas mulheres latinas nos EUA, “tudo o que precisamos fazer é brincar com maquiagem e posar” e tudo vai ficar bem. Hernandez explica a profundidade potencial das superfícies, particularmente superfícies exageradas. O investimento das superfícies sendo uma estratégia de sobrevivência para muitas populações minoritárias: das joias e pincéis de maquiagem das avós de Hernandez à contemporânea chonga girl da Flórida, com suas unhas de acrílico, brincos de argola e atitude dita agressiva. As coisas são “rematerializadas através […] do trabalho de superfície.” Uma potencialidade transformadora, e até mesmo transexual, de superfícies que Hernandez chama de “trabalho de cura”, e até mesmo um “curanderismo cosmético.”[18]

Barbara Vinken descreve a moda como uma forma de travestismo. A moda, para Vinken, representa a impossibilidade “de não usar máscara.” Isso é particularmente verdade no mundo de Xuxa, onde tanto a feminilidade quanto a brancura não aparecem como uma realidade, mas como um “fantasma” — uma encenação — de proporções caricaturais.[19] O sublime e o ridículo se apoiam no mundo de Xuxa e proporcionam às crianças a experiência única do êxtase emocional. Isso fica claro no último episódio do Xou da Xuxa onde o pai de Xuxa é levado ao palco de surpresa, sendo que Xuxa havia cortado relações com ele por vários anos após uma traição familial, e ela se acaba em lágrimas junto com o público. Xuxa vira criança com seu vestido de gala sem alças nos braços de seu pai-capitão mas se recusa a abraça-lo.

O excesso, o melodrama, o camp abriu espaço para a imaginação. Para os significados não serem fixos. Xuxa deveria ensinar as meninas a serem meninas e acontece que uma geração de meninos também aprendeu. Uma Barbie viva, de fato, mas tão grandiosa que seus efeitos foram muito além da normatividade que a moldou. As “crianças gays fantasmagóricas” de Stockton seguras em suas mãos. Expressando sua latência anos depois, crianças gays fantasmagóricas agora de carne e osso. Assistir ao espetáculo de Xuxa, como menino ou menina, ou quem quer que seja, era, necessariamente, estar “se tardando no nível do feminino.”[20]

REFERÊNCIAS

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VINKEN, Barbara (1999) Transvesty-Travesty: Fashion and Gender. Fashion Theory, Volume 3, Edição 1, p. 41.


* Diego Semerene, PhD em Cinema pela Universidade do Sul da Califórnia,  é professor assistente de Estudos Queer e Trans no departamento de Media Studies da Universidade de Amsterdam (Holanda). @diegosemerene



[1] HUNT, Lynn (1993) “Pornography and the French Revolution” In: HUNT, Lynn (org.) The Invention of Pornography. New York: Zone Books, pp. 300-339.

[2] LELIÈVRE, Marie-Dominique (2020) Vanessa Springora: Enlève ta Mainmise. Le Nouveau Magazine Littéraire, n. 25.

[3] SPRINGORA, Vanessa (2020) Le Consentement . Paris: Grasset, p. 63,.

[4] ADLER, Amy (2001) The Perverse Law of Child Pornography. Columbia Law Review, n. 2, vol. 101, p. 268.

[5] VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto (1993) Eu & a Xuxa: Sociologia do Cabaré Infantil. Editora Leia Mais.

[6] Ironicamente, a mulher que havia sido acusada de ser pedófila — em um filme de ficção, como personagem — “sexualizando crianças” foi quem foi vítima de abuso sexual quando criança, como Xuxa revelou no programa Fantástico, em 2012.

[7] A grande função da celebridade é, para Richard Dyer, sublimar as tensões sociais em uma única imagem. Amelia Simpson vê na figura de Xuxa a encarnação do marketing supremacista branco brasileiro, uma espécie de ápice da negação do racismo no Brasil.

[8] SIMPSON, Amelia (1998) Representing Racial Difference: Brazil’s Xuxa at the Televisual Border. Studies in Latin American Popular Culture, n. 17, p. 32.

[9] SEDGWICK, Eve Kosofsky (1991) “How to Bring Your Kids up Gay Author” In: Social Text, n. 29, pp. 20-26.

[10] MILLER, Jacques-Alain (2013) Christine Angot – Rencontre avec Jacques-Alain Miller, October 21.

[11] SONTAG, Susan (1964) Notes on Camp. London: Penguin Modern, 2018.

[12] SEDGWICK, Eve Kosofsky (1991) “How to Bring Your Kids up Gay Author” In: Social Text, n. 29, p. 26.

[13] DELORME, Stéphane, Business Model. Cahiers du Cinéma, n. 758, p. 5, 2019.

[14] Zé Felipe certamente não está sozinho. Guilherme Fontes revelou no podcast Papagaio Falante, de Sergio Mallandro, que perdeu a virgindade antes mesmo de conseguir ejacular, aos 12 anos com a empregada doméstica de sua casa: “Eu saia da sala da minha mãe, dava a volta e entrava…atrás…encontrar com a moça que trabalhava lá em casa.”

[15] VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto (1993) Eu & a Xuxa: Sociologia do Cabaré Infantil. Editora Leia Mais.

[16] STOCKTON, Kathryn Bond (2015) The Queer Child Now and its Paradoxical Global Effects. GLQ, vol. 22, n. 4.

[17] Winnicott, D. W. (1971) Playing and Reality. London: Routledge, 1990.

[18] HERNANDEZ, Jillian (2018) Beauty Marks: The Latinx surfaces of loving, becoming, and mourning. Women & Performance: a journal of feminist theory, vol. 28, n. 1, p. 72.

[19] VINKEN, Barbara (1999) Transvesty-Travesty: Fashion and Gender. Fashion Theory, vol. 3, n. 1, p. 41.

[20] FREUD, Sigmund. (1919) A Child is Being Beaten. Yale University Press, p. 202, 1997.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | SEMERENE, Diego (2022) Xuxa e a criança queer. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 4, 2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/07/26/n-13-04/>.