Uma leitura psicanalítica da emancipação e seus impasses: desamparo, transformação e desracialização

por Vitoria Cruz CardosoTiago Iwasawa Neves

Introdução

A noção psicanalítica de desamparo — a qual não se reduz a demanda por amparo, mas faz referência ao desabamento dos fantasmas que apelam a um poder soberano — quando tomada como afeto político central implica consequências transformadoras e emancipatórias. Dessa maneira a experiência de estar desamparado significa em larga medida atravessar o fantasma da demanda de amparo pelo Outro; estar desamparado, lembrando uma fórmula feliz de Lacan sobre o real, é sustentar uma ação política como ação que força o impossível de não cessar de não se inscrever na situação. Considerar isso, a princípio, é defender a possibilidade de outro tipo de laço social que possa se configurar pela assunção de uma outra forma de sermos afetados enquanto indivíduo e sociedade. À vista disso, sucintamente, este trabalho visa contemplar a relação entre o conceito psicanalítico de desamparo e as implicações deste no campo da política.

A relação entre desamparo e as formas hegemônicas de configuração subjetiva e grupal do laço social, ou seja, questões centrais para a política, foi uma discussão muito cara à Sigmund Freud. A partir do retorno à alguns textos freudianos que tratam desta temática, podemos perceber como a psicanálise para além de uma clínica individual, também, está implicada em reconhecer como algo que é da ordem da “economia libidinal”[1] atua sobre os vínculos sócio-políticos. Freud, nestes trabalhos, aponta que a forma como os laços sociais são estabelecidos, por uma via de apelo por proteção e por segurança, sustenta uma “fantasmagoria de autoridade” [2]. Essa maneira de constituir os laços sociais, também, está relacionada à circulação do medo como afeto que produz uma insegurança social, o que gera nos indivíduos o medo da desintegração dos vínculos. Por isso a crença em verdades fictícias, as quais determinam as formas para se relacionar uns com os outros, baseadas nessa demanda por proteção para com figuras que encarnam a autoridade, fortalecendo, assim, as visões religiosas de mundo.

Desse modo, fica evidente que há um aprisionamento nessa demanda por amparo, o que faz com que o desamparo não tenha sua dimensão emancipatória reconhecida e com que ocorra uma fixação nesse modo de estabelecer vínculos sócio-políticos. A partir disso, manifesta-se o questionamento: poderia ser o conceito psicanalítico de desamparo o afeto correlato da dissolução da estabilidade dos lugares que constituem mundos com sua segurança ontológica? Seria o desamparo o afeto central para uma verdadeira emancipação política? Diante disso, lembremos que a compreensão do desamparo é tomada aqui por uma via em que este afeto está relacionado à possibilidade de ocasionar rupturas para com as determinações normativas e de desativar os fantasmas que sustentam o apelo ao amparo pelo Outro.

Para além de considerar as implicações das “fantasmagorias de autoridade” na forma como os vínculos sócio-políticos são estabelecidos, aponta-se a urgência de levar em consideração as “fantasmagorias coloniais” e os discursos eurocêntricos, os quais também vão interferir na estruturação da modernidade e no modo como os laços sociais vão ser constituídos. Nesse sentido, explora-se como tais núcleos fantasmáticos fortalecem uma racionalidade que sustenta uma violenta estrutura econômico-política-ideológica e psíquica, a qual determina lugares sociais fixos, ou melhor, estabelece o “não-lugar” social para os territórios colonizados e, consequentemente, para os indivíduos racializados. Dessa maneira, partindo da noção de que a experiência do desamparo, em seu sentido radical, faz emergir a potencialidade daqueles que estão fixados no “não-lugar”, proporcionando, assim, transformações significativas na estrutura social e na forma como os vínculos sócio-políticos são estabelecidos, questiona-se: seria o desamparo afeto político capaz de ocasionar a travessia das fantasmagorias coloniais?

Desamparo em Freud

A análise de Totem e Tabu [3], primeiro texto freudiano com forte preocupação em determinar o modo como o laço social se constitui, permite perceber como Freud inicia uma articulação sobre como os conflitos pulsionais estão estritamente interligados a forma como se fundam as estruturas de organização social e as maneiras como as sociedades se estabelecem. Neste escrito, fica evidente como Freud já aponta um direcionamento para sistematização de uma teoria que demonstra como algo que é da ordem da “economia libidinal” atua na forma como os indivíduos constituem os vínculos sociopolíticos e como é necessário pautar isso para que se possa pensar em transformações sociais radicais.

A partir da análise da noção de totem, de totemismo e de animismo, Freud faz uma investigação que vai desembocar na teorização de como se deu a construção e solidificação de uma ordem social, a qual está vinculada a algo relacionado aos conflitos pulsionais e a uma “fantasmagoria de autoridade” enfatizada, a saber, em estudos feitos por Safatle[4] acerca dos textos freudianos. Com base na ideia de um “Pai primevo” e o mito do assassinato desse Pai, é ressaltado como o surgimento do “sentimento de culpabilidade” — pelo assassinato do Pai e pelo desejo, dos irmãos da horda primeva, de ocupar o lugar desse Pai — proporciona a sustentação de uma representação imaginária de uma figura de soberania[5], a qual vai cumprir a função autoritária e determinante que era exercida pelo Pai. Dessa forma, esse “sentimento de culpabilidade” vai orientar a maneira como vão se estabelecer os laços sociais e como os dispositivos de poder vão se organizar na modernidade, por isso, Safatle evidencia que “a culpabilidade não é consequência da consciência da moralidade, ela é a condição para o aparecimento da moralidade”.

Tal conservação da representação imaginária de soberania, fortalecida pelo sentimento de culpabilidade, orienta a estruturação do social, determina as formas de socialização e, ainda, é reforçado por meio, por exemplo, do totemismo, do tabu, da religião, da moral, da arte, etc., que são maneiras de se defender desse sentimento de culpa e de dar um lugar, mesmo que no plano das ideias, a esse Pai primevo dentro da organização social. O mito do assassinato do pai primevo é o modo freudiano de dizer que “em relações sociais atuais, os sujeitos agem como quem carrega o peso do desejo do assassinato de um pai que nada mais é do que a encarnação de representações fantasmáticas de autoridade soberana.”[6]. Diante disso, pode-se notar como o sujeito moderno, ao submeter-se ao processo de socialização, internaliza a “fantasmagoria de autoridade” e o sentimento de culpabilidade para ser reconhecido no vínculo social, impossibilitando, assim, que a experiência de estar desamparado tenha espaço na sociedade moderna, a qual está fixada nessa fantasia de apelo a um soberano que, aparentemente, é capaz de amparar as angústias dos indivíduos. Daí pode-se perceber como a Lei cumpre a função de determinar a estruturação da dimensão simbólica.

As consequências disso são expostas e aprofundadas por Freud no texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”[7], no qual, entre outras considerações, é investigado como o processo de formação do Eu e a estruturação dos vínculos mútuos entre os sujeitos na formação da massa, e destes para com figuras de autoridade são importantes para se compreender a dinâmica política na sociedade moderna. Freud parte da análise das pesquisas da psicologia social de sua época, relacionadas a maneira como se dá a formação das massas e de como os indivíduos agem no interior dessas, partindo, principalmente, dos estudos de Le Bon e McDougall. A partir disso, Freud evidencia como que nos indivíduos imersos na massa parece ocorrer uma regressão para um modo de vida psíquico, semelhante ao do neurótico, ao da criança e ao do primitivo[8], em que há uma demanda fantasmática por amor e proteção para com figuras de soberania, as quais, aparentemente, garantem a estabilidade de uma “unidade social”. Por isso, ele enfatiza a necessidade de se considerar o processo de constituição do Eu para que se possa compreender o comportamento sócio-político dos indivíduos na massa. Desse modo, Freud demonstra como o processo de identificação — o qual é tomado como, na psicanálise, “a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa.”— além de ser fundamental para a constituição do Eu como uma instância psíquica, também funciona como um mecanismo que possibilita o estabelecimento dos laços mútuos presentes nos indivíduos de um grupo e na ligação desses a uma figura de autoridade.

Nessa perspectiva, é exposto como a constituição dos vínculos sociais estão articulados a algo que é da ordem dos vínculos afetivos, ou seja, os vínculos das massas só podem ser compreendidos se partimos da forma como os investimentos libidinais são estabelecidos. Assim, a ligação mútua entre os indivíduos da massa é estabelecida por causa da identificação desses a um líder, o qual é colocado no lugar do Ideal do Eu; por isso, esses indivíduos investem libidinalmente nesse objeto. Diante disso, há uma mobilização de afetos em direção a uma figura soberana responsável pela manutenção da unidade social e que impede o desabamento dessa estrutura social. Isso, proporciona o fortalecimento de um discurso sócio-político em que as instituições de poder se colocam sempre como aquilo que garante proteção, segurança e amparo, capaz de manter esse núcleo fantasmático da unidade como uma maneira de tentar se defender contra o desamparo.

Em “O futuro de uma ilusão”[9] Freud dá continuidade a suas investigações sobre as teorias de que existe algo da dimensão da satisfação pulsional que interfere na forma como os vínculos sociais são estabelecidos. Esse texto aponta que para se viver coletivamente é necessário renunciar às satisfações pulsionais individuais; dessa forma, os membros da civilização ao mesmo tempo em que fazem uma renúncia em nome da vida em coletividade, também se voltam contra essa cultura, a qual os faz recalcar seus desejos. No decorrer deste texto, Freud, mostra como a cultura é incapaz de dominar a natureza que, apesar de possuir uma capacidade de dominação tecnológica sobre essa, existe algo que escapa e pode surpreender. E, na tentativa de fugir disso, os indivíduos apelam a figuras religiosas, como uma busca infantil por proteção e segurança para sanar o incômodo de viver com medo da emergência, a qualquer momento, de algo que possa destruir a natureza humana ou de algo que ocasione a desintegração dos laços sociais.

Por sua vez, o medo, como demonstra Safatle em “O Circuito dos afetos” (2015/2018), é tomado como um afeto político em circulação que estrutura a fantasia social de um perigo iminente de desintegração dos vínculos sociais e que proporciona a adesão dos indivíduos modernos às normas sociais (ou seja, o medo como uma ferramenta de controle e gestão social). Outra função do medo é a sustentação de uma fantasmagoria de defesa contra um possível “perigo externo”, ou seja, a defesa contra a alteridade para que não se afete as formas de se estabelecer os laços sociais em determinados grupos, como Mbembe aponta na obra “Crítica da Razão Negra” (MBEMBE, 2013/2014)[10]. À luz disso, percebe-se a circulação do medo como uma ameaça contínua à segurança do indivíduo e a desintegração de uma suposta unidade social, provocando o fortalecimento de uma demanda por amparo e segurança social, o que só será garantido pela representação política do Estado. Desse modo, o Estado, nessa racionalidade fundada no medo como afeto político central, aparece como força máxima de regulação social que garantirá: proteção e unidade social.

Nesse sentido, essa demanda por amparo e proteção faz com que o desamparo seja tomado, apenas, no sentido simplista de solicitação de proteção a uma figura que desempenha a função da Lei, fortalecendo uma paralisação na forma de constituir os vínculos sócio-políticos. Tal situação, impede o desamparo de ser apreendido em sua potencialidade de ruptura e de fazer surgir o novo. É a partir disso, desse apelo à proteção, que as religiões são colocadas como vias mais tranquilas e seguras para lidar com a realidade, por isso, Freud, afirma que a religião é uma ilusão — ilusão aqui visto como algo que é movido pelos desejos (FREUD, 1927/2014) — e que diante da iminência de um perigo os indivíduos clamam por proteção a essa.

Em “O mal-estar na civilização” (FREUD,1930/2011)[11] Freud reafirma a religião como uma via que evita o confronto com a dimensão do real e do sofrimento, evitando que o indivíduo sofra, ou seja, como um substitutivo que fornece respostas e ameniza os sentimentos de sofrimentos ocasionados pelo mundo externo. Em consequência, a religião faz com que os indivíduos permaneçam em um “infantilismo psíquico“, no qual prevalece uma demanda por amparo a uma figura que parece estar no controle de tudo e é inatingível. Assim, a religião é tomada como um modo neurótico de defesa contra o desamparo. Lacan, em “ O triunfo da religião”[12], radicaliza o já posto por Freud e aponta a religião como algo que garante o conforto e dá sentido aos acontecimentos do mundo, porém, bloqueia o acesso ao real; daí que as “visões religiosas de mundo” asseguram uma conformação com a realidade e impedem o confronto com o que está na ordem do indeterminado, ou seja, com o que escapa ao determinado.

Dando continuidade às suas investigações, em “O mal-estar na civilização (FREUD,1930/2011), Freud especula, de início, como a constituição do Eu — que aparentemente é “autônomo, unitário e bem demarcado” (FREUD,1930/2011,p.9) — está articulada à sua relação com o mundo externo, com o outro e com o Isso. Dessa forma, é evidenciado como a constituição do Eu é atravessada pela estruturação e pelas determinações do social e, por isso, as renúncias pulsionais impostas pelas normas/Lei, as quais visam a manutenção de uma unidade social, acabam por ocasionar mal-estar nos indivíduos modernos. Tais sofrimentos são um modo de participação social, no qual há uma busca por reconhecimento dentro do vínculo social e um apelo por amparo, fortalecendo os núcleos fantasmáticos de demanda por proteção e segurança social.

Em síntese, parece que Freud aponta, em suas investigações sociológicas, que a experiência de estar desamparado — a qual tem a potencialidade de proporcionar o atravessamento da fantasmagoria de autoridade e de possibilitar a visualização de outras formas de se estabelecer vínculos sociopolíticos — não aparenta ter lugar nas sociedades modernas desde a gênese da formação dos vínculos sociais que se deu por uma via paralisante de demanda por proteção e segurança. Além disso, é indicado, em alguns textos freudianos, como apenas no nascimento é que parece que a experiência do desamparo é vivenciada. Entretanto, desde muito cedo o bebê adota vias alucinatórias privilegiadas para lidar com a realidade, o que demonstra como isso impede o confronto com o real e, também, não dá lugar ao desamparo em seu sentido de proporcionar abertura para outras possibilidades. Em boa parte de suas pesquisas sociais, Freud, traz essa questão mesmo que de maneira indireta, evidenciando que o desamparo é sempre evitado e os vínculos sociopolíticos são estabelecidos por um viés que obedece a um núcleo fantasmático de soberania e, no qual, as visões religiosas de mundo dão sentido à realidade.

Diante disso, percebe-se que, na visão freudiana, o principal obstáculo político a ser superado é a demanda pela soberania, ou ainda, nesse contexto, a demanda por amparo, o que é sustentado pela circulação de afetos, como o medo, os quais asseguram a adesão social e a manutenção de uma unidade social. Para além disso, pode-se acrescentar a visão lacaniana acerca desse problema político, como enfatiza Safatle:

“[…] Essa é a maneira lacaniana de dizer que o verdadeiro problema político com o qual devemos lidar é a recrudescência da dimensão teológico-política do poder. Sendo a religião uma forma de sustentar vínculos sociais através da redução da dimensão política das demandas à demanda de amparo, de constituição de autoridade através de figuras do poder pastoral, afirmar que o sentido é sempre religioso significa dizer que a psicanálise deve ser capaz de fazer emergir o que não se ampara por não ser pensável no interior de relações de necessidade, de confirmação do originário, do destino teleológico, da unidade substancial da redenção.”[13]

Nessa perspectiva, é proposto pautar a produção de outros circuitos afetivos, em que o desamparo seja tomado como afeto político central (SAFATLE, 2015/2018), os quais proporcionem rupturas para com os núcleos fantasmáticos que demandam uma força soberana para, dessa forma, possibilitar transformações sociais radicais e a emancipação dos sujeitos. A luz disso, pode-se perceber uma aproximação entre a experiência de estar desamparado e o processo analítico — no sentido lacaniano — no qual o final de análise é marcado pela travessia dos núcleos fantasmáticos do sujeito e por proporcionar a esse mudanças em sua estrutura de reconhecimento. Dessa maneira, pensando a análise como um processo que possibilita uma destituição do saber e uma transformação nas estruturas dos significantes, pode-se evidenciar a noção de “final da transferência” que proporciona uma janela para o real e, com isso, a decomposição da segurança que os núcleos fantasmáticos fornecem (SAFATLE, 2017)[14]. Nesse sentido, a liquidação da transferência forneceria uma abertura do sujeito para com a possibilidade de emergência de outras formas de vínculos sociais que não fossem orientados por relações de dominação e de apelo por amparo.

Portanto, podemos dizer que, em linhas gerais, a clínica psicanalítica é a realização de uma experiência que pode abalar a estrutura pela qual os sujeitos se submetem ao poder. Talvez esteja aí a principal contribuição que a psicanálise possa fornecer ao debate político atual: o entendimento de que o poder não é somente uma força de coerção externa que age sobre nós, mas aquilo que participa intimamente na estruturação de nossa vida psíquica. A defesa contra o desamparo, por exemplo, participa de forma significativa na estruturação do eu. Levando em conta essas considerações, a aposta deste trabalho é que o sentido desta experiência de desabamento das expectativas individuais e coletivas de amparo e segurança se destaca com o reconhecimento de que o desamparo é a principal condição para nossa efetiva emancipação.

Modernidade, Eurocentrismo, Capitalismo, Colonialismo

Considerar o desamparo como afeto político central é apostar no desabamento das demandas fantasmáticas por soberania, ainda mais, é acreditar na possibilidade de ruptura para com as determinações e na abertura para a construção de outras formas de vínculos sociopolíticos, os quais não se orientem mais pelo medo da desintegração de uma suposta unidade social. É romper com a busca por um reconhecimento hegemônico — pautado em predicativos e em identidades fixas — e considerar o reconhecimento por uma via que não produza identidades, ou seja, por uma via anti-predicativa (SAFATLE, 2020)[15], o que, tal qual a experiência de final de análise, proporciona o desabamento dos núcleos fantasmáticos e a abertura para o novo.

A partir disso, quando propõe-se pensar o desamparo como afeto político capaz de ocasionar transformações significativas na estrutura social e na forma como os laços sociais são estabelecidos é urgente, também, considerar os núcleos fantasmáticos fomentados por fenômenos como o eurocentrismo, o capitalismo, a racialização e o colonialismo, ou seja, é importante considerar essas racionalidades que forjam o mundo moderno. Pode-se, assim, compreender que tais fenômenos engendram as formas de organização e de estruturação dos dispositivos sociais, as maneiras como os vínculos sócio-políticos são estabelecidos e como vão se constituir os modos de subjetivação. Tendo isso em vista, é interessante, nesse momento, pautar a noção de Eurocentrismo que, de acordo com Samir Amin (1988/2021)[16], é uma “visão global de mundo” (Weltanschauung), a qual responde às demandas de um modo de produção específico e determina o que pertence ao centro e a periferia desse sistema.

É, então, o eurocentrismo um instrumento fundamental na constituição de um discurso ideológico dominante que estrutura o mundo capitalista moderno. Ideológico, considerado aqui na perspectiva proposta por Fisher, como aquilo que está no nível de uma fantasia (inconsciente), a qual estrutura a realidade (FISHER, 2020)[17] e é responsável pela naturalização de determinados discursos. Assim, a ideologia, no mundo moderno, aparece como uma necessidade genuína e não enquanto um ideal a ser seguido, dessa forma, esta oculta a verdadeira face histórica da lógica que estrutura o mundo moderno. Nesse sentido, os discursos fundamentados no eurocentrismo atuam na constituição do imaginário do mundo moderno, o qual naturaliza a ideia de que o “modo europeu” de organização social e de estruturação dos laços sociais são a única possibilidade de forma de vida possível. Dessa forma os discursos alicerçados em uma perspectiva eurocêntrica atuam aliados ao modo de produção capitalista, o que proporciona a sustentação e estruturação de uma forma de vida baseada na dominação e exploração de determinados grupos. Diante disso, a gramática responsável por determinar: centro/periferia; povo civilizado/povo não civilizado; raça superior/raça inferior; Ocidente/Oriente etc, é uma gramática fincada nos ideais eurocêntricos e no modo de produção capitalista. Como afirma Douglas Barros:

“E é aqui que a ideia de Ocidente, de Oriente e de raça se cruzam: a manutenção de um ideário que organiza e justifica a nova dinâmica da vida social baseada no lucro e na exploração. O eurocentrismo, em termos grosseiros, é a tentativa de consolidação de uma diferença irredutível e absoluta que de maneira a priori circunscreve os indivíduos em uma genealogia e uma determinação de origem imutável. Justifica assim as desigualdades existentes e necessárias para o equilíbrio do capitalismo como um sistema que se mundializa. Trata-se, portanto, do credo necessário para naturalizar os seus aspectos contraditórios. É o eurocentrismo, como visão de mundo, que justifica a construção de um lugar para os indivíduos que são racializados, para países atrasados e para os assim chamados povos primitivos no interior da lógica sistêmica.” (BARROS, 2021, online.)[18]

A partir da compreensão do eurocentrismo como uma “visão globalizada de mundo” que estrutura a modernidade pode-se entender os processos de racialização e colonização como ferramentas utilizadas para sustentar o “imaginário Eurocêntrico” e justificar o modo de produção econômico e político fundado na exploração e dominação. Em consequência têm-se a colonização e a racialização como processos violentos que sustentam a exploração e a opressão para com determinados grupos marcados pelos significantes raça e Negro (MBEMBE, 2014)[19], o que estrutura uma ordem social alicerçada no eurocentrismo e em discursos ideológicos hegemônicos — os quais colocam o homem branco europeu no topo de uma espécie de pirâmide social — que regulamentam tanto a dimensão da produção e reprodução material da vida quanto da constituição da subjetividade[20]. Entende-se que os processos de racialização e de colonização além de estarem associados a um modo de organização social e de controle do poder, também, estão relacionados às maneiras como são estabelecidos os investimentos libidinais (economia libidinal). Visto que a organização libidinal vai ocorrer em torno de um modo de sociabilidade fincado em um horizonte social determinado por uma visão de mundo eurocêntrica, patriarcal e capitalista.

Nesse sentido, além de pautar as fantasmagorias de autoridade, aponta-se a urgência de se considerar a existência de núcleos fantasmáticos de racialização ou fanstamagorias coloniais (sustentados pelos significantes “raça” e “Negro”), determinados por pressupostos eurocentricos e coloniais, os quais não podem ser desconsiderados quando nos propomos a analisar as bases para pensar as estruturas que forjam a modernidade e determinam lugares sociais. A partir disso, é relevante pontuar que os significantes “raça” e “Negro” são determinados por discursos eurocentricos e por uma linguagem colonial, os quais são construidos para justificar os processos de expansão territorial via a colonização/neocolonização e para produzir corpos de exploração (MBEMBE, 2014)[21], os quais, deliberadamente, são corpos negros. O significante raça, não podemos deixar de enfatizar, está mais relacionado a construção de discursos para justificar a exploração e a dominação de determinados indivíduos do que associado a uma questão biológica.

Raça foi um conceito que se materializou para consolidar os discursos eurocêntricos, os quais defendem a ideia da existência de uma raça superior, civilizada e racional (o ideal Europeu) em relação a uma outra raça inferior, não civilizada, irracional e sub-humana, estabelecendo que a “raça inferior” deveria se submeter às imposições violentas da civilização Europeia. Desta forma, o significante raça foi usado para: justificar a violência colonial/neocolonial; determinar lugares sociais para os grupos racializados; e, como Mbembe (2014) evidencia, inventar a “condição Negra”, negar a humanidade[22] aos corpos racializados e reduzir a subjetividade do racializado a um corpo de exploração. Sendo assim, a ideia de raça se materializa na modernidade associada a técnicas de dominação e aliada a lógica de mercado capitalista, proporcionando, a instauração de uma forma de controle dos corpos. Diante disso, o significante raça é utilizado tanto para sustentar o processo de colonização como para fortalecer e impulsionar o modo de produção capitalista (MOURA, 1994)[23]. Em síntese raça é compreendida aqui, da mesma maneira que Neusa Santos entende, como: “uma noção ideológica, engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes” (SANTOS, 1990)[24], ou seja, raça é um discurso ideológico utilizado para determinar lugares fixos dentro da estrutura social capitalista .

A partir disso, frente a uma modernidade fundada em cima de discursos coloniais, sustentada pelo significante racial, surge o significante Negro, o qual vai marcar os corpos negros como uma “moeda de troca”, um “corpo-objeto, “objeto-corpo” (MBEMBE, 2014), assim, o negro é reduzido a um corpo de exploração. Consequências disso, é a construção, a partir de discursos eurocêntricos, de uma noção acerca do negro (e dos racializados como um todo), em que estes são colocados no lugar do não-humano, aprisionando, assim, o corpo racializado — e chamamos atenção para o corpo negro marcado pela epiderme — em determinações e identidades fixas que vão reduzir este a um corpo de exploração e, ainda, vão atuar na dimensão psiquica, forjando a ideia que estes têm sobre seu Si (FANON via BARROS, online, 2020)[25]. Nesse sentido, como analisa Neusa Santos (1990), diante dessa violenta estrutura econômica-política-ideológica e psíquica se estabelece o “mito[26] negro” como um discurso constituido por “imagos fantasmáticas” (SANTOS,1990/2020) que oculta o real da história e fortalece a ideologia dominante, colocando o racializado/o não branco sempre no lugar de objeto, do animalesco, do não-humano. Como afirma Deivison Faustino:

“É esta a raiz da figuração do colonizado como um ser enclausurado em seu corpo, tido quase sempre como bruto, rústico e emocionalmente instável, em contraposição ao europeu, apresentado sempre como expressão universal das qualidades úteis ao controle do mundo. Tanto a pretensa europeização da razão ou do sujeito, quanto a objetificação reificada do negro – ou não branco/ocidental/europeu –, são expressões deste mesmo processo de racialização. O segundo e não menos importante aspecto da racialização – já que sem ele todo o restante não seria possível – é a interiorização subjetiva, tanto por parte do colonizador quanto por parte do colonizado, desta epidermização. É o momento em que os indivíduos deixam de se reconhecer mutuamente como reciprocamente humanos para ver a si e ao outro por meio da lente distorcida do colonialismo. A fantasmagórica e hierárquica contraposição binária entre Branco x Negro é assumida por ambos como identidades fixas e essenciais, moldando de forma empobrecedora a percepção de si e do mundo. Embora o branco goze de privilégios de toda ordem, não está isento às reificações racializadas, pois ao atribuir ao “Outro” elementos humanos que também são seus, aliena-se da própria humanidade. O “complexo de inferioridade” infringido ao negro é proporcionalmente acompanhado por um “complexo de superioridade” por parte do branco, mas este complexo é marcado por um sentimento de castração (FANON, 2008). Este “Outro”, amaldiçoado e inferiorizado, assombra e atrai, com seus atributos “sobre-humanos”– exatamente àqueles que o Branco deixa de ver em si –, exageradamente mistificados e animalizados.” ( FAUSTINO, 2018)[27]

Por sua vez, esse mesmo discurso ideológico dominante que fixa o racializado no lugar do não humano atribui ao “significante Branco Europeu” o ideal de ser humano. Estabelece que o branco europeu ocupa o lugar central na estrutura social e reconhece a humanidade, majoritariamente, como algo que está relacionado ao branco. O significante branco (europeu) ocupa o lugar da razão, do belo, do civilizado, diante disso, a noção de sujeito universal fica presa a esse predicativo. Dessa maneira, ao significante branco é determinado o lugar da referência, no qual passa a ser o “ideal de humano” a ser alcançado para que se possa ser reconhecido no laço social. Além de representar uma figura que está sempre na posição de dominador e de autoridade, nesse sentido, como aponta Neusa Santos:

“É a autoridade da estética branca quem define o belo e sua contraparte, o feio, nesta nossa sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: ‘o negro é o outro do belo’. É esta mesma autoridade quem conquista, de negros e brancos, o consenso legitimador dos padrões ideológicos que discriminam um em detrimento de outros.” (SANTOS, N. 19, grifo nosso)

À luz disso, pode-se perceber que frente a “visão global de mundo” alicerçada em discursos eurocêntricos e em um modo de produção capitalista os indivíduos modernos se inscrevem na ordem social e são reconhecidos no laço social de forma alienada a partir dos significantes: branco e não branco/racializado (negro). Assumir tais predicativos é assumir posições sociais pré-determinadas e agir conforme uma perspectiva que impede a emergência das singularidades de cada sujeito. Essas formas alienadas de se inscrever na estrutura social moderna, na qual ao branco é destinado o lugar da humanidade enquanto ao não branco (ao racializado) é determinado o lugar do não-humano/sub-humano, demonstra a face violenta imposta por essa visão eurocêntrica-colonial-racial. Mbembe, em Crítica da Razão Negra (2014), — a partir da leitura que o autor faz de Fanon — pontua que a violência colonial deve ser pautada como um ponto de encontro de múltiplas violências, as quais são vividas pela população racializada e colonizada tanto na dimensão “mental” como nos músculos e no sangue, além do mais, expõe como essa violência é naturalizada e se apresenta de forma normalizada na realidade social contemporânea.

À exemplo da normalização dessa violência colonial pode-se mencionar como as instituições de ensino, especificamente no caso do Brasil, sustentam e naturalizam essas ideologias dominantes a partir de uma forma romantizada que se referem ao processo de colonização por meio de discursos como: “a descoberta das américas”; “a conquista dos países da américa latina”; “conquista de um povo superior sobre outros povos inferiores”; “a catequização dos povos nativos”; “o escambo como moeda de troca amigável”; além, das visões idealizadas do processo de abolição da escravatura, a saber, a ideia de que “a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando os escravos”. Tais narrativas difundidas pelo sistema educacional e propostas nos materiais didáticos ocultam a face violenta da colonização e, como diz Lélia Gonzalez[28], recalca a potencialidade dos movimentos de resistência indígenas e negras na formação social do Brasil. Nessa perspectiva, a partir dessa naturalização e ocultação da violência colonial tem-se o fortalecimento do “mito negro” e dos predicativos que aprisionam o racializado e o branco em identidades fixas. Dessa forma ocorre a sustentação de uma gramática colonial-racial, a qual forja a estruturação do imaginário e do simbólico, fortalecida pelas “fantasmagorias de racialização” e pelos discursos eurocêntricos.

Portanto, mais do que nunca, torna-se urgente pautar os discursos ideológicos fundados no eurocentrismo e as, consequentes, “fantasmagorias de racialização” ou “fantasmagorias coloniais” quando nos propomos a pensar o desamparo como afeto político capaz de ocasionar a queda dos núcleos fantasmáticos e de proporcionar transformações sociais significativas. Pensar a noção psicanalítica de desamparo como uma experiência que possibilita o desabamento dos núcleos fantasmáticos que estruturam o mundo moderno seria, também, pensar uma outra forma de estabelecer os vínculos sociopolíticos que não demande apelo a figuras de autoridade e, além disso, seria uma possibilidade de estabelecer laços sociais por uma via desracializada? Seria o desamparo um afeto capaz de proporcionar a desestabilidade dos lugares e das identidades fixas alicerçadas em discursos: eurocêntrico, capitalista e racializado? É possível pensar em uma outra forma de vida que não seja estruturada pelo eurocentrismo, pela racialização, pelo capitalismo/neoliberalismo?

Considerações finais

Apostar no desamparo como afeto político central é, também, acreditar que existem outras formas de vida para além dos modos determinados pela “visão global de mundo”, a qual estrutura a modernidade e limita as possibilidades de existências. O desamparo como um afeto político é capaz de tensionar os modos como os vínculos sócio-políticos são estabelecidos e, ainda, é um afeto com potencial de ocasionar a travessia, ou melhor, a superação das fantasias individuais e coletivas de demanda por amparo e, além disso, das expectativas por uma unidade. Por outro lado, como Freud demonstra em seus estudos sociológicos, o que já foi apontado anteriormente, a experiência de estar desamparado é impedida de ter um lugar nas sociedades modernas desde a origem dessa forma de sociabilidade, a qual se deu por uma via paralisante — sustentada pela circulação do medo como afeto político central — de apelo por proteção e segurança. Tendo isso em vista, aponta-se como o potencial do desamparo, tomado em seu viés político radical, pode ocasionar transformações sociais significativas e proporcionar a visualização de outras possibilidades de se estabelecer laços sociais, os quais não mais sejam por essa via paralisante, mas que aponte para um horizonte no qual a afirmação do desamparo tenha lugar, proporcionando, assim, a travessia dos núcleos fantasmáticos — inclusive, e com certa urgência, as fantasmagorias coloniais — que estruturam a modernidade.

REFERÊNCIAS

AMIN, Samir (1988). O Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. Trad. Barradas, A. São Paulo: Lavrapalavra, 2021.

BARROS, Douglas. Curso “Frantz Fanon: entre a psicanálise e a crítica radical”. online, 2020

BARROS, Douglas. O que é Eurocentrismo? Blog da Boitempo, 2021. Disponível em: <blogdaboitempo.com.br/2021/06/16/o-que-e-eurocentrismo/ > . Acesso em: 18/06/2021.

FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: capitalismo, racismo e a sociogênese do colonialismo. SER Social, [S. l.], vol. 20, n. 42, pp. 148–163, 2018. Disponível em: < https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14288. >Acesso em: 6 set. 2021.

FISHER, Mark (2009). Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Trad. Rodrigo Gonsalves et al. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

FREUD, Sigmund (1927). O futuro de uma ilusão. (Vol. 17). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

FREUD, Sigmund (1930). O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund (1921). Psicologia das massas e análise do eu. (Vol. 15). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund (1913).Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. Tad. Paulo César de Souza. São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 2013.

FROSH, Stephen. Assombrações: psicanálise e transmissões fantasmagóricas. Trad. Cristiane Izumi Nakagawa. São Paulo: Benjamin Editorial, 2018.

LACAN, Jacques (1960). O triunfo da religião precedido de Discurso aos católicos. Trad. Andre Teles. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs. Rios, Flávia & Lima, Márcia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MBEMBE, Achille (2013). Crítica da Razão Negra. (2a ed.). Lisboa: Antígona, 2014.

MOURA, Clóvis. O racismo como Arma Ideológica de Dominação. Revista Princípios, n.34. Agosto/Outubro de 1994.

SAFATLE, Vladimir. Curso Integral – Freud como teórico da modernidade. Online, 2009.

SAFATLE, V. Freud como teórico da modernidade bloqueada. A Peste, vol. 1, pp.355-374, 2009. Disponível em: <revistas.pucsp.br/index.php/apeste%20/article/viewFile/6288/4622>. Acesso em 09/11/2020.

SAFATLE, Vladimir. Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo de emancipação política. Estudos Avançados, vol.31, n. 91, pp. 211-227, 2017. Disponível em: <doi.org/10.1590/s0103-40142017.3191016 >.

SAFATLE, Vladimir. Maneiras de transformar mundos : Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

SAFATLE, Vladimir (2015). O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

SAFATLE, Vladimir. Por uma crítica da economia libidinal. Ide, vol. 31, n.146, pp. 16 – 26, 2008. Disponível em: <pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062008000100004&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em 20/01/2021.

SANTOS, Neusa (1990). Torna-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileito em ascensão social. Brasília (DF): Edições Kisimbi, 2020.


* Vitória da Cruz Cardoso é estudante de Psicologia na Universidade Federal de Campina Grande. Colaboradora no Laboratório de Psicanálise de Orientação Lacaniana (LAPSO/UFCG), na linha de pesquisa Psicanálise, Clínica e Política. (e-mail: vitoriaccardosos96@gmail.com ou vitoria.cruz@estudante.ufcg.edu.br

* Tiago Iwasawa Neves é professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de Campina Grande. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisador do Laboratório de Psicanálise de Orientação Lacaniana (LAPSO/UFCG). (e-mail: tiagoiwasawa@yahoo.com.br)


[1] Economia libidinal relacionada aos modos de gozo do sujeito, ou seja, a forma como os sujeitos investem libidinalmente nos vínculos sociais, mobilizando, assim, representações imaginárias e expectativas de satisfações (SAFATLE, 2008). O patriarcado, por exemplo, é uma forma de economia libidinal, no qual, como afirma Safatle, “[…] é uma forma de gozo que implica todos os sujeitos, independentemente de sua orientação de gênero. Nesse sentido, o capitalismo precisa do patriarcado, precisa do primado do seu gozo fálico para submeter os sujeitos a uma forma de paralisia em relação à plasticidade do desejo em sua força de produção de outras formas de relação social. Ele precisa do patriarcado para domesticar os sujeitos sob uma forma política e fantasmática de dominação.”(SAFATLE, 2020, p. 74-75).

[2] SAFATLE, V. Curso Integral – Freud como teórico da modernidade. Online, 2009.

[3] FREUD, S. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 1913/2013.

[4] Ver, por exemplo, o curso “Freud como teórico da modernidade” (2009) e o artigo “Freud como teórico da modernização bloqueada” (2009).

[5] SAFATLE, V. Curso Integral – Freud como teórico da modernidade. Online, 2009. Pág. 54.

[6] SAFATLE,V. O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica, 2015/2018. Pág. 86.

[7] FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. (Vol. 15). São Paulo: Cia das Letras, 1921/2011.

[8] Chamamos atenção aqui para o fato da própria psicanálise — desde sua origem e, também, em função da sua localização histórico-cultural-econômica e territorial — ser “assombrada” por discursos hegemônicos/eurocêntricos, os quais colocam outras formas de sociabilidade no lugar do “primitivos”, do “arcaico”, do “selvagem”. Como afirma Stephen Frosh (2018): “[…] Para Freud, havia os “selvagens” e sua forma de pensar e sua forma de pensar era contrastada com a mentalidade “civilizada”; podia-se aprender com eles porque suas mentes eram como as “nossas” em tempos remotos.” (FROSH, 2018, p.17). Isso reflete, por exemplo, a interferência e a naturalização dos discursos eurocêntricos e coloniais — o que será discutido detalhadamente mais à frente — na estruturação da modernidade e na legitimação de formas de vida específicas como superiores/civilizadas, enquanto, outras formas de vidas são determinadas como inferiores/não civilizadas/selvagens.

[9] FREUD, S. O futuro de uma ilusão. (Vol. 17). São Paulo: Cia das Letras,1927/2014.

[10] MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. (2a ed.). Lisboa: Antígona, 2013/2014.

[11] FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 1930/2011.

[12] LACAN, J. O triunfo da religião precedido de Discurso aos católicos. Tradução de Andre Teles. Revisão técnica de Ram Mandil. Rio de Janeiro: Zahar, 1960-1974/2005.

[13] SAFATLE, V. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. Pág. 135.

[14] SAFATLE, V. Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo de emancipação política. Estudos Avançados, 31(91), 211-227, 2017. Recuperado: https://doi.org/10.1590/s0103-40142017.3191016.

[15] SAFATLE, V. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

[16] AMIN, S. O Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. São Paulo: Lavrapalavra, 1988/2021. (Trad. Barradas, A.)

[17] FISHER, M. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

[18] BARROS, D. O que é Eurocentrismo? Blog da Boitempo, 2021. Recuperado de: < https://blogdaboitempo.com.br/2021/06/16/o-que-e-eurocentrismo/ > .

[19] MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. (2a ed.). Lisboa: Antígona, 2013/2014.

[20] A noção de subjetividade, aqui, considera as implicações do capitalismo, do eurocentrismo e do colonialismo sobre a constituição da “vida psíquica” dos sujeitos inscritos na modernidade. Com intuito de enfatizar que o colonialismo/neocolonialismo atuam diretamente, de forma violenta, na constituição da estrutura psíquica do indivíduo moderno. Para informações mais aprofundadas sobre: ver Mbembe em “Crítica da Razão Negra”; ver Lélia Gonzalez “A categoria político-cultural de amefricanidade”, “Racismo e sexismo na cultura brasileira” etc; Ver, também, Fanon “Pele Negra, Máscaras Brancas”; ver Samir Amin “O Eurocentrismo”; ver, também, Neusa Santos Souza “Torna-se negro”.

[21] MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. (2a ed.). Lisboa: Antígona, 2013/2014.

[22] Em relação a determinação dessa condição Negra, a qual nega a humanidade ao racializado e o reduz a um corpo de exploração, é válido mencionar que esta foi expandida para além dos territórios colonizados, como afirma Deivison Faustino a partir de uma perspectiva fanoniana: “A posição de Fanon permite perceber o quanto essa prática de negação da humanidade não apenas se restringiu aos territórios colonialmente ocupados, mas também se configurou como eixo estruturante da própria modernidade, como enfatiza: ‘Sim! A civilização europeia e seus representantes mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial. (FANON, 2008, p. 88-89)’” (FAUSTINO, 2018, p. 153).

[23] MOURA, C. O racismo como Arma Ideológica de Dominação. Revista Princípios, n.34. Agosto/Outubro de 1994.

[24] SANTOS, N. Torna-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileito em ascensão social. Brasília (DF): Edições Kisimbi, 1990/2020. Pág.34.

[25] BARROS, D. Curso “Frantz Fanon: entre a psicanálise e a crítica radical. online, 2020.

[26] Neusa Santos compreende a noção de mito como: “O mito é uma fala, um discurso – verbal ou visual – uma forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação ou pessoa. Mas o mito não é uma fala qualquer. É uma fala que objetiva escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história, transformá – la em “natureza”. Instrumento formal da ideologia, o mito é um efeito social que pode entender -se como resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas. Enquanto produto econômico-político-ideológico, o mito é um conjunto de representações que expressa e oculta uma ordem de produção de bens de dominação e doutrinação.” (SANTOS, 1990, p. 41, grifos nossos.)

[27] FAUSTINO, D. M. Frantz Fanon: capitalismo, racismo e a sociogênese do colonialismo. SER Social, [S. l.], v. 20, n. 42, p. 148–163, 2018. DOI: 10.26512/ser_social.v20i42.14288. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14288. Acesso em: 6 set. 2021. Pág.154.

[28] GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs. Rios, Flávia & Lima, Márcia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | Cardoso, Vitoria Cruz; Neves, Tiago Iwasawa (2022) Uma leitura psicanlítica da emancipação e seus impasses: desamparo, transformação e desracialização. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 7, 2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/08/10/n-13-07/>.