A contratransferência e a resposta do paciente a ela

[ Counter-transference and the patient’s response to it ]

por Margaret Little

Tradução | William Zeytounlian

 

Artigo apresentado em um encontro da Sociedade Britânica de Psicanálise (BPS) em 7 de junho de 1950 e publicado posteriormente no International Journal of Psycho-Analysis, vol. XXXII, 1951, pp. 32-34.

[Advertência do tradutor ao leitor: Além de ser um dos artigos mais influentes da psicanálise dos anos 1950, o texto de Little tem um interesse especial para os estudantes do campo lacaniano. Durante o Seminário 1Os escritos técnicos de Freud, Lacan dedicou boa parte da aula de 27 de janeiro de 1954 ao comentário deste artigo. No entanto, nem a edição estabelecida por Jacques-Alain Miller (aula “A resistência e as defesas”), nem a versão Staferla (p. 37) indicam em nota um lapso de Lacan: ele diz comentar um texto de Annie Reich quando, na verdade, está analisando um artigo de Margaret Little. Para que os colegas não perpetuem este equívoco, possam se situar melhor, e no sentido de ajudar na “desleitura” do Seminário 1, aqui vai o artigo de fato em questão].

I.

Vou começar com uma estória.

Um paciente cuja mãe tinha morrido há pouco tempo tinha que ministrar uma palestra por rádio acerca de um assunto que sabia ser do interesse de seu analista; ele lhe deu o script em primeira mão e o analista teve a oportunidade de escutar a transmissão. O paciente estava indisposto a fazer sua fala naquele momento, tendo em vista a morte da mãe, mas não tinha como mudar o combinado. No dia seguinte à transmissão, chegou para a análise em um estado de angústia [anxiety] e confusão.

O analista (que era um homem bastante experiente) interpretou o sofrimento [distress] do paciente como decorrente do medo de que ele, o analista, pudesse ficar com inveja do que tinha claramente sido um sucesso e quisesse privá-lo de tal êxito e seus resultados. A interpretação foi aceita, o sofrimento passou rapidamente e a análise prosseguiu.

Dois anos depois (tendo a análise terminado no meio-tempo), o paciente estava em uma festa que percebeu não ser capaz de desfrutar e se deu conta de que se tratava da semana seguinte ao aniversário de morte de sua mãe. Repentinamente, ocorreu-lhe que aquilo que o havia incomodado na época da transmissão tinha sido um fato bastante simples e óbvio: a tristeza por sua mãe não estar lá para desfrutar de seu sucesso (ou tão somente saber dele) e a culpa por ele mesmo tê-lo desfrutado estando ela morta haviam estragado tudo para ele. Ao invés de poder se enlutar por ela (cancelando a transmissão), teve que agir como se lhe negasse a morte quase de forma maníaca. Ele reconheceu que a interpretação dada — que poderia estar substancialmente correta — havia de fato sido correta naquele momento para o analista, que realmente sentia inveja dele, e que havia sido a culpa inconsciente do analista que o levara à comunicação da interpretação inadequada. A aceitação da interpretação ocorreu pelo reconhecimento inconsciente do paciente quanto à sua justeza para o analista e por sua identificação com ele. Ele podia agora aceitá-la como verdadeira para si de maneira completamente diferente, em outro plano, a saber: o de sua inveja do sucesso do pai junto à mãe e da culpa por ter tido, ele mesmo, um sucesso que representava sucesso junto à mãe — sucesso do qual o pai sentiria inveja e ia querer privá-lo. O comportamento do analista ao dar tal interpretação deve ser atribuído à contratransferência.

 

II.

Supreendentemente pouco foi escrito sobre a contratransferência, fora os livros e artigos sobre a técnica escritos sobretudo para estudantes em formação. Todos esses autores enfatizam os dois mesmos pontos: a importância e o perigo potencial da contratransferência, e a necessidade de uma minuciosa análise de analistas. Escreveu-se bem mais sobre a transferência, muito do qual bastante se aplicaria igualmente à contratransferência. Eu me peguei perguntando o porquê disso, bem como por que tantas pessoas diferentes utilizam o termo “contratransferência” para significar coisas diferentes.

O termo é usado para denotar quaisquer ou todas opções abaixo:

  1. a atitude inconsciente do analista em relação ao paciente;
  2. elementos reprimidos, não analisados até aquele momento, no próprio analista que se ligam ao paciente da mesma forma que o paciente “transfere” ao analista afetos etc. pertencentes a seus pais ou objetos de sua infância — isto é, o analista encara seu paciente (temporária ou intermitentemente) como encara seus próprios pais;
  3. alguma atitude ou mecanismo específico com o qual o analista vai ao encontro da transferência do paciente;
  4. o conjunto de atitudes e comportamentos do analista em relação a seu paciente. Isso inclui todas as demais atitudes, inclusive as conscientes.

A questão é saber por que a contratransferência é tão indefinida e indefinível. Será que um isolamento verdadeiro da contratransferência é impossível ao passo que dela uma ideia abrangente é grosseira e impraticável? Encontrei quatro motivos para isso:

  1. Eu diria que a contratransferência inconsciente é algo que não pode ser observado diretamente enquanto tal, mas apenas por seus efeitos; podemos comparar essa dificuldade à dos físicos que tentam descrever ou observar uma força que se manifesta como ondas leves, gravidade etc., mas que não pode ser detectava ou observada diretamente.
  2. Acho que parte da dificuldade vem do fato de que, considerando-a metapsicologicamente, a atitude total do analista envolve seu psiquismo por completo — o id, quaisquer restos do superego, bem como o ego — sendo que ele também está envolvido com todas estas instâncias no paciente, não havendo fronteiras claras diferenciando-as.
  3. Qualquer análise, mesmo uma autoanálise, postula tanto um analisando quanto um analista; em certo sentido, eles são inseparáveis. De forma semelhante, transferência e contratransferência são inseparáveis, o que é sugerido pelo fato de que algo que se escreve sobre uma pode ser aplicado à outra.
  4. Mais importante do que qualquer uma das anteriores, acho que há uma atitude em relação à contratransferência, isto é, em relação aos sentimentos e ideais de alguém, que é bastante paranoica ou fóbica, especialmente quando tais sentimentos são ou podem ser subjetivos.

Em um de seus artigos sobre a técnica, Freud ressaltou que o progresso da psicanálise foi atrasado em mais de dez anos por medo de interpretar a transferência; a atitude dos psicoterapeutas de outras escolas, até os dias de hoje, consiste em encará-la como altamente perigosa, evitando-a. A atitude da maioria dos analistas em relação à contratransferência é exatamente a mesma, isto é, tratam-na como um fenômeno conhecido e reconhecido, mas que é desnecessário e até perigoso de ser interpretado. Em todo caso, o que é inconsciente não pode ser facilmente conhecido (se é que chega a tanto), e tentar observar e interpretar algo inconsciente em si mesmo é como tentar ver a própria nuca: é bem mais fácil enxergar a nuca de outra pessoa. A própria transferência do paciente se presta facilmente à evitação por projeção e racionalização — ambos mecanismos característicos da paranoia — e o mito do analista impessoal que não demonstra sentimentos, quase inumano, é coerente com essa atitude. Pergunto-me se o fracasso em fazer uso da contratransferência não pode estar produzindo exatamente os mesmos efeitos sobre os progressos da psicanálise do que aqueles por se ter ignorado e negligenciado a transferência. Se pudermos fazer um uso correto da contratransferência, não poderemos descobrir que dispomos de outra ferramenta extremamente valiosa, se não indispensável?

Ao escrever este artigo, achei muito difícil saber qual dos significados do termo “contratransferência” eu estava usando; descobri que eu tendia a deslizar de um para outro, ainda que no início pretendesse limitá-lo aos sentimentos reprimidos, infantis e irracionais, alguns deles prazerosos, outros dolorosos, que pertenciam à segunda definição das que arrisquei. Esta costuma ser a contratransferência que é vista como fonte de dificuldades e perigos.

Os elementos inconscientes, no entanto, podem ser tanto normais como patológicos, e nem toda repressão é patológica, do mesmo modo que nem todos os elementos conscientes são “normais”. A relação paciente-analista inclui, como um todo e em diferentes proporções, o “normal” e o patológico, o consciente e o inconsciente, transferência e contratransferência; ela sempre incluirá algo que é específico a ambos, o indivíduo paciente e o indivíduo analista. Ou seja, toda contratransferência é diferente de outra, do mesmo modo que toda transferência é diferente, variando entre si de dia para dia, de acordo com as variações no paciente, no analista e no mundo externo.

A contratransferência reprimida é produto da parte inconsciente do ego do analista, aquela parte que é mais próxima e mais intimamente ligada ao id, em menor contato com a realidade. Conclui-se disso que a compulsão à repetição é prontamente levada a se escorar nela; mas outras atividades do ego além da repressão têm um papel em seu desenvolvimento, dentre as quais a atividade de síntese ou integrativa é a mais importante. A meu ver, a contratransferência é uma daquelas formações de compromisso em cuja criação o ego demonstra habilidade bastante surpreendente; ela é essencialmente, neste quesito, da mesma ordem que um sintoma neurótico, uma perversão ou uma sublimação. Nela, a satisfação libidinal é em parte proibida, em parte aceita; um elemento de agressividade é entrelaçado a ambas, satisfação e proibição, e a distribuição da agressividade define as proporções relativas de cada uma. Como, da mesma forma que a transferência, a contratransferência concerne a outra pessoa, os mecanismos de projeção e introjeção têm importância especial nela.

Quando há paranoia ligada à contratransferência, o tema a debater fica gigantesco, e falar sobre a resposta do paciente pode não fazer nenhum sentido, a não ser que encontremos uma maneira simples de abordá-la. Muitas de nossas dificuldades, infelizmente, me parecem vir das tentativas exageradas de simplificação e da tentativa quase compulsiva de separar o consciente do inconsciente, o inconsciente reprimido do que é inconsciente mas não reprimido, ignorando frequentemente os aspectos dinâmicos da coisa. Por isso, uma vez mais, eu gostaria de dizer aqui que, apesar de estar falando principalmente de elementos reprimidos na contratransferência, não estou me limitando estritamente a eles, permitindo-me pairar sobre outros elementos que a eles se relacionam completamente. Sob o risco de ficar desconjuntada, minha “abordagem simples” pretende sobretudo versar sobre algumas poucas coisas para, em seguida, relacioná-las ao tema principal.

Falar sobre os aspectos dinâmicos nos leva à pergunta: qual é a força motriz em uma análise? O que incita o paciente a ficar bem? A resposta seguramente é que são as ânsias combinadas do id de ambos, paciente e analista; ânsias que, no caso do analista, foram modificadas e integradas como produto de sua própria análise, tendo se tornado mais direcionadas e efetivas. Uma combinação bem-sucedida dessas ânsias me parece depender de um tipo especial de identificação do analista com o paciente.

 

III.

Conscientemente — e, com certeza, em grande parte inconscientemente também —, todos nós queremos que nossos pacientes fiquem bem e podemos nos identificar prontamente com eles no desejo de melhorar, isto é, com o ego deles. Inconscientemente, porém, tendemos a nos identificar também com o superego e o id do paciente e, por conseguinte, com qualquer proibição de melhorar, com seu desejo de permanecer doente e dependente; ao fazermos isso, podemos desacelerar sua recuperação. Inconscientemente, podemos tirar partido da doença do paciente para nossos próprios fins, tanto libidinais como agressivos, ao que ele responderá rapidamente.

Um paciente que está em análise há um período de tempo considerável normalmente se torna objeto de amor de seu analista: ele é a pessoa a quem o analista deseja fazer reparação. Tais impulsos reparadores, mesmo quando conscientes, podem fazer uma repressão parcial se produzir sob a influência da compulsão à repetição, de modo que se torna necessário fazer o mesmo paciente melhorar sem parar — o que, com efeito, implica fazê-lo adoecer sem parar, de modo a curá-lo.

Usado corretamente, este processo repetitivo pode ser progressivo. O “tornar doente”, nesse sentido, assume a forma de uma necessária e eficiente desobstrução das angústias que podem ser interpretadas e elaboradas. Isto, porém, implica um grau de disposição inconsciente da parte do analista em permitir que o paciente melhore, se torne independente e o deixe. De forma geral, podemos concordar que tudo isso é aceitável para qualquer analista. No entanto, falhas no timing da interpretação, como a que descrevi, falhas na compreensão ou qualquer interferência na elaboração influirão no medo do paciente de melhorar, em tudo que isso implica a perda do analista, e não poderão ser corrigidas até que o próprio paciente esteja pronto para que a oportunidade ocorra. Aqui, a compulsão à repetição é aliada do analista, caso o analista esteja pronto para não repetir seu erro anterior fortalecendo, mais uma vez, as resistências do paciente.

A disposição inconsciente da parte do analista em deixar que seu paciente o deixe pode assumir, por vezes, formas bastante sutis, nas quais a própria análise pode ser usada como racionalização. A exigência para que o paciente não “atue” em situações fora da análise pode dificultar a formação daquelas relações extra-analíticas que participam de sua recuperação e que são indício de seu crescimento e do desenvolvimento egoico. Transferências com pessoas fora da análise não precisam ser empecilhos ao trabalho analítico, caso o analista esteja disposto a usá-las. Inconscientemente, porém, ele pode se comportar como aqueles pais que, “para o bem dos próprios filhos”, interferem em seu desenvolvimento não permitindo que estes amem outra pessoa. É claro que o paciente precisa dessas outras pessoas da mesma forma que a criança precisa formar identificações com pessoas de fora de seu lar e círculo de parentes.

Tais situações são tão insidiosas que nossa percepção delas se forma lentamente. Em nossa resistência a elas, aliamo-nos ao superego do paciente com nosso próprio superego. Ao mesmo tempo, mostramos nossa própria inabilidade de tolerar uma cisão, tanto em algo do paciente como no próprio processo terapêutico. Exigimos ser a única causa da melhora do paciente.

Um paciente cuja análise é interminável, assim, talvez possa ser vítima do narcisismo (primário) de seu analista tanto quanto de seu próprio, e uma reação terapêutica negativa pode ser o produto de uma contratransferência do tipo que indiquei em minha estória.

Todos nós sabemos que somente algumas poucas das muitas interpretações possíveis são as de fato importantes e dinâmicas em certa altura da análise, mas, em minha estória, a interpretação adequada para o paciente pode ser justamente aquela que, por motivos de contratransferência e contrarresistência, é a menos acessível ao analista naquele momento; se a interpretação dada é a mais adequada para o próprio analista, o paciente pode, por medo, submissão etc., aceitá-la exatamente da mesma maneira que aceitaria a “correta”, com efeitos benéficos imediatos. Só depois fica evidente que o efeito obtido não era o almejado; que a resistência do paciente foi desse modo fortalecida e a análise, prolongada.

 

IV.

Já foi dito que é fatal para um analista identificar-se com seu paciente e que empatia (distinta da simpatia) e desapego são essenciais para o êxito na análise. No entanto, o fundamento para a empatia — bem como para a simpatia — é a identificação, e é o desapego o que diferencia ambas. O desapego ocorre, ao menos em parte, pelo uso da função do ego de prova da realidade aliada à introdução de fatores de tempo e distância. O analista necessariamente se identifica com o paciente, mas, para ele, há um intervalo de tempo entre ele mesmo e a experiência que, para o paciente, tem a qualidade de imediatismo — o analista sabe disso por sua experiência prévia, enquanto, para o paciente, trata-se de uma experiência presente. Isto a torna, naquele momento, uma experiência do paciente, não dele; e se o analista a estiver vivenciando como algo presente, estará interferindo no crescimento e desenvolvimento do paciente. Quando uma experiência é do próprio paciente, e não do analista, também um intervalo de distância é introduzido automaticamente e é da preservação destes intervalos de tempo e distância que um uso bem-sucedido da contratransferência pode depender. A identificação do analista com as necessidades do paciente é, evidentemente, introjetiva, não projetiva.

Quando esse intervalo de tempo é introduzido, o paciente pode sentir sua experiência em seu imediatismo, livre de interferência, e deixá-la se tornar passado para si mesmo também, de modo que uma identificação renovada possa ser feita com seu analista. Quando o intervalo de distância é introduzido, a experiência se torna apenas do paciente, ao que ele pode se separar psiquicamente do analista. O crescimento depende de um ritmo alternado de identificação e separação ocasionado por experiências vivenciadas e conhecidas pela própria pessoa, em um enquadramento apropriado.

Para voltar à estória com a qual comecei, o que aconteceu foi que o analista sentiu a inveja inconsciente reprimida do paciente como se fosse sua própria experiência imediata, ao invés de uma experiência passada, recordada. O paciente estava imediatamente aflito com a morte da mãe; ele sentiu a necessidade de fazer a transmissão de rádio naquele momento como uma interferência em seu processo de luto e o prazer associado à experiência se transformou em um prazer maníaco, como se negasse a morte da mãe. Somente mais tarde, depois da interpretação, com seu luto transferido ao analista e tornado passado, ele pôde experimentar a situação invejosa como imediata; só então reconheceu (como algo passado e recordado) a reação contratransferencial de seu analista. Sua reação imediata à inveja do analista foi fóbica — deslocamento por identificação (introjetiva) e re-repressão.

Falhas do timing como essa — ou falhas em reconhecer referencias transferenciais — são falhas da função egoica de reconhecimento de tempo e distância. A mente inconsciente é atemporal e irracional: “o que é seu é meu e o que é meu é meu” e “o que é seu é metade meu e a outra metade é metade minha, então é tudo meu” são formas infantis de pensamento usadas tanto em relação a sentimentos e experiências como em relação a coisas. A contratransferência se torna um empecilho ao crescimento do paciente quando o analista faz uso delas. O analista vira um cego guiando um cego, pois não dispõe do uso das duas dimensões necessárias para saber onde está em determinado momento. Quando, porém, o analista é capaz de manter tais intervalos em sua identificação com o paciente, é possível que o paciente recue o passo necessário para eliminá-las outra vez, podendo avançar para a próxima experiência em que o processo de estabelecimento do intervalo deve ser repetido.

Esta é uma das maiores dificuldades do estudante em formação ou do analista submetido a uma análise mais aprofundada: ele precisa lidar com os elementos da análise de seus pacientes que ainda têm a qualidade de presenticidade ou de imediatismo para ele mesmo, ao invés daquela preteridade que é tão importante. Em tais circunstâncias, pode ser impossível que o analista mantenha sempre esse intervalo de tempo; ele terá que adiar o desfecho pleno da análise que, de outra maneira, o paciente atingiria, enquanto leva a sua própria análise adiante e espera que ocorra uma repetição do material.

V.

A discussão recente aqui sobre o trabalho do Dr. Rosen trouxe o assunto da contratransferência à tona com o novo desafio, para nós, de detectar e compreender mais claramente o que estamos fazendo. Ouvimos como, no espaço de poucos dias ou semanas, pacientes que por anos estiveram completamente inacessíveis demonstraram mudanças significativas que, ao menos sob algumas perspectivas, devem ser vistas como melhoras. Entretanto, e isso não estava no acordo, tais pacientes parecem ter continuado permanentemente dependentes ou ligados ao terapeuta em questão. A descrição da forma como os pacientes foram tratados, bem como dos resultados, provocou e incomodou profundamente a maior parte de nós, levantando, pelo visto, uma boa quantidade de culpa entre nós, pois vários membros, em suas contribuições à discussão, bateram no peito e gritaram mea culpa.

Tentei entender de onde vinha tanta culpa e me pareceu que a única explicação possível para isso devia repousar na indisposição inconsciente a largar os pacientes. Muitos pacientes gravemente doentes, especialmente psicóticos, não são capazes — seja por razões internas (psicológicas), seja por razões externas (financeiras, por exemplo) — de fazer uma análise completa e chegar ao que consideramos uma conclusão satisfatória, a saber, obter um desenvolvimento suficiente do ego para poderem viver de forma bem-sucedida em real independência do analista. Em tais casos, uma relação superficial de dependência é mantida (e mantida corretamente) de forma indefinida por meio de sessões de “manutenção” ocasionais — contato deliberadamente preservado pelo analista. Podemos manter sem culpa as coisas assim com esses pacientes. Parece-me que a alta proporção de êxitos no tratamento desses pacientes pode muito bem depender da própria libertação de sentimentos de culpa.

Mas, para além disso, talvez haja uma tendência geral em se identificar particularmente com o id em casos de pacientes psicóticos; na verdade, por vezes é difícil encontrar o ego com o qual se identificar! Irá se tratar de uma identificação narcisista no nível do amor-ódio primários o que, não obstante, presta-se facilmente à transformação em amor objetal. O poderoso estímulo da personalidade extensivamente desintegrada toca os pontos perigosos mais profundamente reprimidos e cuidadosamente defendidos do analista ao que, por conseguinte, seus mecanismos de defesa mais primitivos (e, por sinal, menos eficientes) são convocados à ação. Ao mesmo tempo, no entanto, uma pequena parcela do ego despedaçado do paciente pode se identificar com o ego do terapeuta (ao que a compreensão que o terapeuta tem dos medos do paciente lhe é filtrada, de modo que o paciente pode introjetar o ego do terapeuta como um bom objeto); assim, o paciente poderá fazer contato com a realidade através do contato que o terapeuta tem com ela. De início, esse contato é frágil e facilmente rompido, mas pode ser fortalecido e estendido por um processo de crescente introjeção e re-projeção do mundo externo, com um investimento cada vez maior nele por meio da libido originalmente proveniente do terapeuta.

Esse contato pode nunca se tornar sustentável para o paciente sozinho. Nesse caso, é essencial um contato contínuo com o terapeuta, contato que precisará variar em frequência de acordo com a condição e situação cambiantes do paciente. Eu compararia a posição do paciente à de um homem que está se afogando, é conduzido a um barco e, sem ser tirado da água, tem sua mão levada à borda da embarcação, onde o socorrista o mantém até que ele possa seguir por conta própria.

Disso talvez se conclua — verdade já reconhecida — que quanto mais desintegrado está o paciente, maior é a necessidade de que o analista esteja bem integrado.

Pode ser que, no caso de pacientes psicóticos que não respondam à situação analítica usual de forma comum — desenvolvendo uma transferência que possa ser interpretada e resolvida —, a contratransferência tenha que fazer todo o trabalho e que, de modo a encontrar algo no paciente com que fazer contato, o terapeuta tenha que permitir que suas ideias e gratificações libidinais oriundas do trabalho retornem em grau bastante extraordinário. (Podemos nos perguntar, por exemplo, acerca do prazer que um analista extrai do cochilo de seus pacientes durante as sessões de análise com ele!). Já foi dito que os maiores resultados terapêuticos são obtidos quando um paciente está tão transtornado que faz o terapeuta experimentar sentimentos intensos e perturbações profundas. O mecanismo subjacente a isso deve ser a identificação com o id do paciente.

Estes resultados excepcionais são encontrados no trabalho de dois tipos de analistas. Um deles são os iniciantes que não têm medo de conceder um grau considerável de liberdade a seus impulsos inconscientes pois, pela falta de experiência, como crianças, não sabem ou não compreendem os perigos e não são capazes de reconhecê-los. O resultado é bom em grande proporção dos casos, pois os sentimentos positivos são preponderantes. Onde não são preponderantes, esses resultados, em sua maioria, não são vistos ou divulgados — podem até ser reprimidos. Todos nós temos os nossos próprios cemitérios e nem todo túmulo traz uma lápide.

O outro tipo de analista consiste naqueles analistas experientes que atravessaram o estágio de cautela excessiva e atingiram um ponto no qual podem não somente confiar diretamente em seus impulsos inconscientes enquanto tais (por conta das modificações resultantes de suas próprias análises), mas conseguem também, em qualquer momento, trazer a contratransferência à consciência tal qual ela se apresenta, para entenderem ao menos se estão avançando ou atrasando a recuperação do paciente. Em outras palavras, trazem-na à consciência para superar a resistência de contratransferência.

Por vezes, o próprio paciente irá ajudar nisso, pois transferência e contratransferência não são apenas sínteses feitas pelo paciente e pelo analista agindo separadamente, mas sim, como o trabalho analítico como um todo, resultado de um empenho conjunto. Ouvimos dizer com frequência do espelho que o analista apresenta para paciente, mas o paciente também representa um espelho para o analista; há toda uma série de reflexos em cada um deles, reflexos de tipo repetitivo e reflexos sujeitos a modificações contínuas. O espelho, em cada caso, deve se tornar progressivamente mais nítido conforme o analista avança, pois paciente e analista respondem um ao outro de maneira reverberativa, de modo que o aumento da nitidez de um dos espelhos irá evocar a necessidade de uma nitidez correspondente no outro.

A ambivalência do paciente o conduz tanto para a tentativa de quebrar as contrarresistências do analista (o que pode ser algo assustador de fazer) como para a identificação com o analista a partir dessas contrarresistências, para usá-las como se fossem suas próprias. Vendo as coisas deste ponto de vista, dar uma interpretação “correta” é questão de considerável importância.

VI.

Quando algo do tipo acontece, tal como citei na estória, neutralizar os efeitos obstrutores de uma interpretação inoportuna ou equivocadamente enfatizada, oferecendo a interpretação “correta” quando a surgir a ocasião, pode não bastar. O erro não somente deve ser admitido — e o paciente tem o direito de não só demonstrar sua raiva, mas também de expressar alguma medida de pesar do analista pela ocorrência, bem como pela ocorrência do erro às suas custas ou durante o tempo de sua sessão —, como também sua origem na contratransferência inconsciente deve ser explicada, a não ser que haja alguma contraindicação concreta em fazê-lo, caso em que deve ser adiada até que surja um momento oportuno (como certamente irá). Esta explicação pode ser essencial para o progresso futuro da análise e trará apenas resultados benéficos, aumentando a confiança do paciente na honestidade e boa-fé do analista, revelando-o humano o bastante para cometer erros e explicitando a universalidade do fenômeno da transferência nas formas como ela pode emergir em qualquer relação. Sonegar uma interpretação dessas só pode causar danos.

Permitam-me esclarecer que não acho que interpretações da contratransferência devam ser despejadas sobre a cabeça de nossos pobres pacientes sem qualquer critério ou consideração, tal como as interpretações da transferência são dadas hoje em dia de forma irrefletida. O que quero dizer é que elas não devem ser nem decididamente evitadas, nem, quem sabe, restritas a sentimentos justificados ou objetivos, como aqueles aos quais o Dr. Winnicott faz referência em seu artigo “Hate in the Counter-Transference” [O ódio na contratransferência].[1] (E, é claro, elas não podem ser dadas até que algo da contratransferência tenha se tornado consciente). A subjetividade dos sentimentos precisa ser mostrada ao paciente, ainda que sua origem verdadeira não precise ser esmiuçada (não deve haver “confissões”); deve bastar que seja indicada a necessidade do próprio analista de analisá-las; mas, acima de tudo, o mais importante é que elas sejam reconhecidas por ambos, analista e paciente.

A meu ver, no curso de todas as análises, chega um momento em que é essencial que o paciente reconheça a existência não somente dos sentimentos objetivos ou justificados do analista, mas também de seus sentimentos subjetivos. Isto é, que reconheça que o analista deve desenvolver, e de fato desenvolve, uma contratransferência inconsciente com a qual ele é, não obstante, capaz de lidar de maneira a não a deixar interferir seriamente nos interesses do paciente, em especial no progresso de sua cura. É claro que o ponto em que tal reconhecimento ocorre varia em cada análise individual, mas é um momento que pertence mais aos estágios avançados da análise do que aos iniciais. Às vezes, erros de técnica ou erros de atribuição etc. tornam necessária a referência a processos mentais inconscientes no analista (isto é, à contratransferência) mais cedo do que ele gostaria, mas esta referência pode ser discreta, apenas suficiente para aliviar a angústia imediata. O excesso de insistência nela em estágio inicial pode elevar a angústia do paciente a níveis realmente perigosos.

É dada tanta ênfase às fantasias inconscientes dos pacientes sobre seus analistas que, com muita frequência, não é levado em consideração o quanto lhes ocorre, aos pacientes, saber a verdade acerca dos terapeutas — verdade efetiva e psíquica. Em todo caso, esse conhecimento não pode ser evitado, por desejável que isso fosse, mas os pacientes não sabem que o detêm. Parte da tarefa do analista é trazê-lo à consciência, fato contra o qual ele mesmo opõe a maior das resistências. Inconscientemente, os analistas muitas vezes agem exatamente como os pais que lançam uma cortina de fumaça e ludibriam seus filhos, tentando-os a ver exatamente aquilo que proíbem que vejam; não fazer menção à contratransferência é equivalente a negar sua existência ou impedir que dela o paciente saiba ou fale.

A sempre citada solução para as dificuldades contratransferenciais — uma análise mais aprofundada e cautelosa do analista — pode, na melhor das hipóteses, ser apenas incompleta, pois deve permanecer alguma tendência a desenvolver contratransferências infantis inconscientes. Uma análise não é capaz de atingir a totalidade do id inconsciente, basta recordarmos que mesmo a pessoa mais minuciosamente analisada continua sonhando. A máxima de Freud “Onde era id, há de ser ego” é um ideal e, como a maioria dos ideais, não é completamente realizável. Tudo o que podemos buscar é atingir um ponto em que a atitude do analista em relação a seus próprios impulsos do id não seja mais de tipo paranoide — ficando resguardada das perspectivas de seus pacientes — e recordar que, além disso, isto ainda irá variar de dia para dia, de acordo com as pressões e tensões às quais ele está exposto.

A meu ver, é uma atitude paranoica ou fóbica em relação aos sentimentos do próprio analista que constitui o maior perigo e dificuldade na contratransferência. É o medo real de ser inundado de sentimentos de qualquer tipo — raiva, angústia, amor etc. — em relação a um paciente e de se tornar passivo a ele, ficando à sua mercê, que leva a uma evitação ou negação inconsciente. Um reconhecimento honesto desse sentimento é essencial para o processo analítico; o analisando é naturalmente sensível a qualquer insinceridade de seu analista e inevitavelmente irá responder a isso com hostilidade. Nisso ele irá se identificar (por introjeção) com o analista como forma de negar seus próprios sentimentos, o que irá explorar de todas as formas possíveis em detrimento da própria análise.

Mostrei acima que a contratransferência inconsciente (e não interpretada) pode ser responsável pelo prolongamento da análise. Pode também ser responsável por um final prematuro; por isso, novamente, sinto que é nos estágios finais que é preciso mais cuidado para evitar esses eventos. Analistas que escrevem sobre os estágios finais da análise e seu término falam sem parar da maneira como os pacientes atingem certo ponto e, em seguida, escapam e interrompem a análise no exato momento em que continuar é vital para o êxito absoluto, ou então deslizam de volta para outra de suas repetições intermináveis, ao invés de analisar as situações angustiantes. A contratransferência talvez seja o fator decisivo neste ponto e a disposição do analista a lidar com ela pode ser o elemento crucial.

Eu talvez deva acrescentar que estou segura de que valiosas contratransferências inconscientes podem ser, com muita frequência, responsáveis pela conclusão bem-sucedida de uma análise que, em seus estágios iniciais, parecia conduzir-se a um fracasso inevitável, bem como de muitas elaborações pós-analíticas realizadas por pacientes cujas análises foram encerradas prematuramente.

Assim, nos estágios avançados da análise, quando a capacidade de objetividade do paciente já foi incrementada, o analista precisa sobretudo ficar à espreita de manifestações de contratransferência e de chances de interpretá-la, direta ou indiretamente, tão logo o paciente a revele a ele. Sem isso, os pacientes podem fracassar em reconhecer objetivamente o montante de comportamento parental irracional que foi um fator tão poderoso no desenvolvimento da neurose, pois é ali onde um analista se comporta como os pais, escondendo o fato contratransferencial, que está o ponto onde é inevitável a repressão contínua de algo que, de outra forma, poderia ser reconhecido. Traz grande alívio ao paciente descobrir que o comportamento irracional da parte de seus pais não era endereçado pessoalmente a ele, mas havia sido transferido por seus pais. Descobrir seu analista fazendo o mesmo tipo de transferência em menores proporções pode lhe fornecer a certeza necessária ao entendimento, tornando mais do que qualquer outro fator o processo tolerável. É claro que em toda análise haverá fantasias sobre os sentimentos do analista em relação a seu paciente — sabemos disso de antemão — e que elas precisam ser interpretadas como qualquer outra fantasia, mas, para além delas, um paciente pode muito bem dar-se conta dos sentimentos reais de seu analista antes mesmo que ele, o analista, deles tome consciência. Pode haver uma grande luta contra a aceitação da ideia de que o analista possui sentimentos contratransferenciais inconscientes, mas uma vez que o ego do paciente tenha aceitado isso, certas ideias e memórias que permaneceram inacessíveis até aquele momento poderão vir à consciência — elementos que, de outra forma, teriam continuado reprimidos.

Falei sobre o paciente revelar a contratransferência ao analista, e digo isso de forma bastante literal, por mais que soe um pouco como o esporte sangrento de “analisar o analista”. A “regra analítica”, tal como formulada em nossos dias, nos é mais prestativa do que em sua forma original. Nós não “requeremos” mais que nossos pacientes nos digam tudo o que lhes ocorre à mente. Pelo contrário, nós lhes damos permissão para que o façam; o que sobrevém daí pode ocasionalmente servir ao analista como peça de interpretação da verdadeira contratransferência. Caso ele não esteja disposto a aceitá-la, segue-se uma re-repressão com resistência fortalecida e, consequentemente, a interrupção ou prolongamento da análise. Junto com esta formulação diferenciada da regra analítica vem uma forma diferente de dar interpretações ou fazer comentários: antigamente, os analistas, como pais, diziam o que queriam quando queriam, como que por direito, e os pacientes tinham que aceitar. Hoje em dia, em retribuição à permissão de falar ou reter livremente, pedimos permissão a nossos pacientes para podermos dizer algumas coisas e lhes concedemos permissão para as recusar ou aceitar. Isto amplia a liberdade de escolher o momento para dar interpretações, bem como a forma como devem ser dadas, diminuindo a atitude didática ou autoritária.

Além disso, boa parte das interpretações da transferência comumente dadas podem ser estendidas no sentido de demonstrar a possibilidade de contratransferência, por exemplo: “Você acha que estou bravo igual sua mãe quando…” pode incluir “Até onde sei, não estou bravo, mas terei que descobrir se estou e, caso esteja, terei que descobrir o motivo, pois não há motivo real para isso”. É claro que tais coisas são ditas com frequência, mas nem sempre são encaradas como interpretações da contratransferência. Elas o são de fato, a meu ver, e seu uso pode ser concebido conscientemente como meio de liberar as contratransferências e torná-las mais diretamente disponíveis ao uso.

Em seu artigo apresentado no Congresso de Zurique,[2] a Dra. Heimann fez referência ao aparecimento de alguma medida de sentimentos contratransferenciais como um tipo de sinal comparável ao desenvolvimento da angústia enquanto alerta para a aproximação da situação traumática. Se eu a entendi corretamente, a perturbação por ela descrita de fato se trata de angústia, mas de uma angústia secundária justificada e objetiva, e que gera um estado de alerta e atenção maior para o que está acontecendo. Ela afirma especificamente que, em sua opinião, é melhor evitar interpretações da contratransferência. A angústia, porém, antes de mais nada, serve a outro propósito: ela essencialmente é um método para lidar com um trauma verdadeiro, por mais ineficiente que seja sua capacidade para isso. Pode acontecer que esta angústia secundária — com o estado de atenção e vigilância que gera — mascare de forma bastante eficiente uma outra angústia, de tipo mais primitivo. Abaixo do nível da consciência, analista e paciente podem estar sensíveis aos medos paranoicos e sentimentos persecutórios um do outro, e a tal ponto de falarem neles de forma sincronizada (ou “em fase”), de modo que a própria análise pode ser usada como defesa por ambos: o analista pode oscilar de uma identificação introjetiva com o paciente para uma identificação projetiva — com perda dos intervalos de tempo e distância dos quais falei anteriormente — enquanto o paciente pode se defender por uma identificação introjetiva com o analista, ao invés de conseguir projetar sobre ele os objetos persecutórios.

A resolução desta situação pode ser obtida pelo reconhecimento consciente da contratransferência por qualquer um dos dois, analista ou paciente. O fracasso em reconhecê-la pode levar tanto à interrupção prematura da análise como a seu prolongamento; em ambos os casos haverá uma re-repressão daquilo que, de outra forma, teria se tornado consciente, bem como um fortalecimento das resistências. Tanto quanto seu prolongamento, a interrupção prematura não é necessariamente fatal para que uma análise seja bem-sucedida, pois a presença de um entendimento suficiente e de alguma medida de contratransferência valiosa pode viabilizar progressos futuros mesmo depois do encerramento, por virtude de outras introjeções já realizadas.

É claro que o analista ideal existe apenas na imaginação (do paciente ou do analista) e só pode vir à realidade em raros momentos. Mas, se o analista for capaz de confiar em seus próprios impulsos modificados do id, em suas próprias repressões de tipo valioso, bem como em algo positivo da parte de seu paciente (presumivelmente algo que, de início, o ajudou a decidir realizar a análise), então poderá prover o suficiente daquilo que faltava no ambiente primitivo do paciente, e de que ele tanto precisava: uma pessoa capaz de permitir ao paciente crescer sem interferência ou excesso de estimulação. Assim, irá se formar na relação analítica um círculo virtuoso, o qual o paciente poderá usar para desenvolver seus próprios padrões rítmicos básicos, que por sua vez serão utilizados para criar os ritmos mais complexos necessários para lidar com o mundo da realidade externa e seu próprio mundo interno em crescimento contínuo.

 

VII.

Tentei mostrar como os pacientes respondem a contratransferências inconscientes de seus analistas e, em especial, a importância de qualquer atitude paranoica do analista para a formação da própria contratransferência. A contratransferência é um mecanismo de defesa de tipo sintético, suscitado pelo ego inconsciente do analista e facilmente subordinado ao controle da compulsão à repetição. Transferência e contratransferência são formas ainda mais avançadas de síntese, em que pese serem produtos do trabalho inconsciente do paciente e do analista. Elas dependem de condições que são em parte internas e em parte externas à relação analítica, variando de semana a semana, dia a dia e mesmo de momento a momento sob as rápidas mudanças intra e extrapsíquicas. Ambas são fundamentais para a psicanálise: a contratransferência não deve ser mais temida ou evitada que a transferência. Na verdade, ela não pode ser evitada: ela só pode ser buscada, em alguma medida controlada e, quem sabe, usada.

Entretanto, é somente com a condição de que a análise seja uma verdadeira sublimação para o analista — e não uma perversão ou um vício (como acho que pode por vezes ser) — que podemos evitar a neurose de contratransferência. Remendos de neurose de contratransferência transitória podem aparecer de tempos em tempos mesmo nos analistas mais habilidosos, experientes e bem analisados; remendos esses que podem ser usados de maneira positiva no sentido de ajudar na recuperação dos pacientes, graças às suas próprias transferências. Conforme a atitude do analista em relação à contratransferência (que nada mais é do que sua atitude em relação a seus próprios impulsos do id e sentimentos) seja de angústia paranoica, negação, condenação ou aceitação — bem como sua disposição em permitir que ela se torne consciente para o paciente e para si mesmo —, o paciente será estimulado a responder a ela seja explorando-a repetitivamente, seja usando-a progressivamente para um bom propósito.

Nas linhas do que tentei indicar, a interpretação da contratransferência colocaria sobre o analista exigências muito mais pesadas do que antes; no entanto, foi o mesmo que se deu com a interpretação da transferência na época em que começou a ser usada. Hoje em dia, é algo dado como certo: descobriu-se que a interpretação da transferência tem suas compensações, pois os impulsos libidinais do analista, bem como seus desejos criativos e reparadores, encontram gratificação efetiva no sucesso e no poder aumentado de seu trabalho. Acredito que resultados semelhantes podem surgir de um maior uso da contratransferência, caso encontremos modos de fazê-lo, ainda que eu deva confessar minha hesitação em expor tais ideias.


* Margaret Isabel Little nasceu em Bedford, na Inglaterra central, em 1901 e morreu aos 93 anos, em 1994, no condado de Kent. Formou-se em medicina pelo St. Mary’s Hospital de Londres em 1927 e, na década seguinte, atuou na clínica geral em Edgware. Sua trajetória como psicoterapeuta começou em 1936, como assistente médica na Tavistock Clinic. Após um breve período de análise jungiana (1936-1938), iniciou sua segunda análise, esta sim “didática” com Ella Sharpe (entre 1940 e 1947). Tornou-se membro associado da Sociedade Britânica de Psicanálise (BPS) em 1945 e full member em 1946. Por conta de restos de suas duas análises anteriores, iniciou um terceiro percurso, desta vez com Winnicott, entre 1949 e 1955, com retomada em 1957. Especula-se se o caso clínico aqui narrado não seria justamente o dela… Era um dos expoentes do middle group. Além de psicanalista, era pintora e poeta: em 1981, já aposentada, publicou um volume que conjugava sua produção teórica, textos ensaísticos, reflexões e um poemário [Transference Neurosis and Transference Psychosis. Toward Basic Unity, Nova York: Jason Aronson, 1981].


** William Zeytounlian é mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo onde desenvolveu pesquisa sobre as práticas de silêncio nos salões literários e nas obras de filósofos moralistas da França seiscentista, em especial François de La Rochefoucauld. Como tradutor, publicou Pomares, de Rainer Maria Rilke, e algumas das Contemplações, de Victor Hugo, na coletânea Lira Argenta. Contribui em diversas plataformas online como Estado da Arte, Le Monde Diplomatique e Nexo. Como psicanalista, tem percurso de estudos nos institutos Sedes Sapientiae e D’Alma, onde atualmente coordena o Núcleo Arriscado.



[1] WINNICOTT, Donald W. (1947) “Hate in the Counter-Transference”. In International Journal of Psycho-Analysis, vol. 30, 1949, pp. 69-74. [Em português brasileiro: “O ódio na contratransferência” In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000, pp. 277-287].

[2] HEINMANN, Paula (1950) “On Counter-Transference”. In International Journal of Psycho-Analysis, vol. 31, pp. 81-84.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | LITTLE, Margaret (1951) A contratransferência e a resposta do paciente a ela [Trad. W. Zeytounlian]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 06, 2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/03/16/n-13-06/>.