uma entrevista com Jean Wyllys
LACUNA | Pedro Ambra (entrevistador)
Dono de uma trajetória surpreendente, Jean Wyllys é formado em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Letras e Linguística, professor, escritor, pesquisador e um dos políticos que mais se destaca no cenário político brasileiro.

Sua militância social começou quando, ainda adolescente, atuou no movimento estudantil e nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. Ao ingressar na universidade, Jean deu início à sua aproximação com os movimentos em defesa dos direitos humanos em Salvador, participando ativamente do Grupo Gay da Bahia e do Movimento Negro Unificado, tendo se tornado nacionalmente conhecido ao vencer o Big Brother Brasil, dando luz à sua luta a favor das minorias.
Em 2010, Jean é eleito deputado federal pelo PSOL-RJ para a legislatura 2011-2015 e não demorou para tornar-se um dos parlamentares mais combativos e reconhecidos do Congresso Nacional. Seu mandato foi marcado por ações e intervenções importantes contra a homofobia, a intolerância e o fundamentalismo religioso, a discriminação ao povo de santo, o trabalho escravo, a exploração sexual de crianças e adolescentes e a violência contra a mulher. Em 2014, foi reeleito para seu segundo mandato e, no ano seguinte, figurou — junto de Barack Obama, Hillary Clinton, Malala Yousufzai, Dalai Lama e Angelina Jolie — na lista das 50 personalidades que mais defendem a diversidade no mundo pela European Diversity Awards.
Pouco mais de um ano após a reeleição de Dilma Rousseff, a perda de popularidade e apoio no congresso deflagram uma crise política que culminaria na instauração do processo de impeachment. Nas ruas, episódios de violência testemunham uma crescente tensão entre manifestantes pró e contra tal processo. Em um dos momentos mais graves da crise, logo após a condução coercitiva do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva para depoimento à Polícia Federal, Jean — em intervenção na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), no dia 24 de março de 2016, em Paris —, posiciona-se contra o impeachment, sublinhando para a comunidade internacional as forças em jogo no cenário político brasileiro.
É nesse contexto de efervescência que a Lacuna entrevista o Deputado Federal Jean Wyllys.
LACUNA | Deputado, o Brasil enfrenta hoje uma das mais graves crises de sua história recente, na qual não apenas a classe política, mas a população brasileira se vê implicada. Muitas pessoas chegaram a comparar o momento atual ao do Brasil de 1964 pré-golpe. Você concorda com essa análise?
JW | Esse tipo de comparação é complicada e não me parece que seja muito útil. Diferentemente de 1964, não há uma insurreição militar, o governo eleito não está sendo derrocado pela força e o governo “de facto” que surgirá do impeachment não será uma ditadura, com o Congresso fechado, a imprensa censurada e pessoas sendo assassinadas, torturadas ou perseguidas pelo regime. Nesse sentido, é uma situação absolutamente diferente e não podemos banalizar essas diferenças, que se medem em liberdades civis, em vidas perdidas, em sangue derramado. Mas há um elemento em comum, que é a ruptura das regras de jogo da democracia. Eu não compararia com o Brasil de 1964, mas sim com o que aconteceu no Paraguai em 2012, quando o ex-presidente Fernando Lugo foi derrubado por uma conspiração que usou de forma ilegítima a figura do impeachment no parlamento. Há uma presidenta democraticamente eleita com 54 milhões de votos que está sendo tirada do cargo por uma conspiração entre um vice-presidente traidor, um réu da justiça que até semana passada presidia a Câmara dos Deputados (e que foi afastado por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal) e uma oposição de direita que não aceitou o resultado das últimas eleições. Todo o processo de impeachment foi feito de forma ilegítima, sem fundamento legal, sem que a Presidenta tenha cometido crime de responsabilidade, e foi conduzido por um gângster que procurava vingança contra ela, o réu Eduardo Cunha. E o resultado disso será que um cidadão que, se fosse candidato a Presidente, não obteria mais de 2% dos votos (as pesquisas mostram isso), será colocado na presidência pelo Congresso e formará seu governo com ministros do partido que perdeu as últimas quatro eleições presidenciais, para aplicar um programa de governo que foi derrotado nas urnas. Não preciso falar de 1964 para mostrar o quanto isso é ilegítimo, antidemocrático e condenável.
LACUNA | Qual é sua avaliação sobre o lugar que os afetos têm ocupado na sociedade, em um momento no qual se redescobre o poder das ruas e das massas?
JW | Os afetos têm ocupado um lugar de destaque e especial, sobretudo na política. Podemos até falar numa política de afetos, que alguns preferem chamar de política identitária. É a partir dos afetos que a juventude tem sido interpelada politicamente. E isso está claro nos movimentos de ruas e de redes sociais no Brasil. A comunidade de gays e lésbicas, a princípio estimuladas pelas minhas ações legislativas e políticas no parlamento e nas redes sociais, empreendeu uma linda campanha chamada “Nossa família existe” em contraponto ao famigerado Estatuto da Família, proposto pela bancada de fundamentalistas religiosos e que pretende excluir as famílias homoafetivas da cidadania e da segurança jurídica. Foram centenas de milhares de fotos de famílias não tradicionais em momento de intimidade doméstica compartilhadas nas redes e nos atos de rua. Também as mulheres, sobretudo as mais jovens, decidiram reagir ao assédio sexual a que estão submetidas em casa, na escola e no trabalho com a campanha “Meu primeiro assédio”, que saiu das redes sociais para as ruas e se tornou a principal contestação a Eduardo Cunha (presidente da Câmara Federal agora afastado por corrupção) quando este se recusou a pautar a legalização do aborto seguro. Elas também conseguiram por um mês substituir todos os homens em tribunas na imprensa por meio da campanha “Agora é que são elas”. Os negros e negras da periferia, diante do extermínio da juventude pobre em curso no Brasil sob a desculpa de “guerra às drogas”, ocuparam as ruas e as redes com a campanha “Juventude Negra Viva”. Ou seja, vê-se que a nova esquerda não se orienta mais tão somente pela luta de classes. A política de afetos tem dado o norte nesses novos tempos.
LACUNA | Após as jornadas de junho de 2013, parece ter se tornado cada vez mais comum a aproximação entre política e violência, seja aquela da Polícia Militar que repreendeu violentamente manifestantes e jornalistas, seja a dos atuais relatos de agressão contra pessoas vestidas de vermelho, ciclistas etc. Como você enxerga esse quadro? Trata-se de uma mudança social e política significativa ou apenas da explicitação de uma violência que sempre esteve aí?
JW | A violência das polícias sempre esteve aí. O que aconteceu em 2013 é que as polícias reprimiram brutalmente manifestantes urbanos de classe média nas principais avenidas das principais cidades do país e isso foi filmado e assistido por milhões de pessoas pelas redes sociais e por alguns veículos de comunicação tradicional; mas a polícia reprime com muito mais brutalidade nas favelas e nas periferias todos os dias do ano, da mesma forma que os indígenas e os habitantes das regiões mais pobres do meio rural são reprimidos e têm seus direitos fundamentais violados de forma sistemática. Ainda temos uma polícia militar que atua com a lógica da ditadura, porque os sucessivos governos não reformaram as políticas de segurança pública e a formação das próprias polícias e continuam usando essas polícias para conter os conflitos sociais e criminalizar a pobreza e a juventude. É uma dívida da democracia. O outro elemento que você menciona é diferente: houve, sim, produto da polarização política e da proliferação de discursos de ódio, de retórica fascista, um aumento da violência que se expressa nesse tipo de situações que você menciona, como os ataques a pessoas vestidas de vermelho, mas também se expressou em linchamentos, no caso do menino negro que foi acorrentado a um poste, ou da mulher que foi assassinada por um grupo de mal chamados justiceiros, entre outros, ou das inúmeras agressões e os crimes de ódio contra pessoas LGBT. Isso é muito preocupante, mas infelizmente uma parte expressiva da classe política e da mídia promove esses discursos de ódio — seja os discursos de ódio contra minorias, como o caso dos LGBTs; a retórica fascista sobre segurança urbana, com a famosa frase “bandido bom é bandido morto”, ou a desumanização dos adversários políticos ou dos movimentos sociais — e tudo isso contribui a aumentar a violência social. É uma irresponsabilidade enorme.
LACUNA | Em psicanálise, frequentemente liga-se agressividade a identificações imaginárias recalcadas: ataco no outro algo que também me constitui, mas que não suporto assumir. O que teria o Brasil recalcado para que tanta agressividade, nas palavras, atos e relações tenha vindo à tona?
JW | Difícil responder essa questão e a minha resposta não a exaure. O Brasil é um país formado sob o signo da violência: a princípio de colonos portugueses e espanhóis contra os povos originários; depois contra os povos da África subsaariana trazidos pra cá como escravos e contra seus descendentes; depois contra os movimentos republicanos, democráticos e abolicionistas que contestaram a monarquia portuguesa, os imperadores brasileiros e os coronéis da velha república; depois contra os movimentos anarquista e comunista durante o Estado Novo; depois contra a esquerda e a contracultura nos mais de 20 anos de ditadura militar… E toda essa violência real e simbólica concebida, perpetrada e estimulada por setores hegemônicos da aristocracia, das oligarquias políticas, da plutocracia e da burguesia, em nome de seus privilégios e das riquezas das quais se apropriaram, toda essa violência foi recalcada por uma relação casa-grande-e-senzala, em que o algoz é ao mesmo tempo o bem-feitor e “protetor”, e por um discurso público que nos apresenta — inclusive a nós mesmos — como “povo cordial”, pacífico, alegre e miscigenado.
Não que não sejamos também, mas a paz que reinou entre nós era uma paz em que só um dos lados em conflito podia falar e a outra se calava de medo daquela; em que a alegria era e é mais uma reposta à dor, à opressão, à privação, mais um ato de resistência do que uma celebração — os oprimidos dessa terra, quando podem cantar, cantam de dor — e em que a miscigenação, nascida sobretudo da violência sexual contra mulheres negras e indígenas ou do uso que estas fizeram do sexo como estratégia de defesa e mobilidade social, disfarça relações eivadas pelo racismo. Ora, isso tudo mais o débito histórico do Estado-nação em relação a um sistema de educação formal de qualidade, capaz de construir uma maioria solidária, empática e crítica e autocrítica, e as experiências traumáticas ou histórias de vida individuais levaram a maioria a recalcar identificações imaginárias, como você diz, ou, como prefiro, a conservar preconceitos e ressentimentos que, em tempos de crise econômica e queda do poder de compra numa sociedade que associa felicidade e prazer ao poder comprar mercadorias combinados com o estímulo de uma mídia de massa desonesta intelectualmente e com acesso da maioria às novas tecnologias da comunicação que permitem a associação em redes e o anonimato, esses preconceitos e ressentimentos arraigados e naturalizados expressaram-se em discursos de ódio e atos agressivos contra quem contraria de alguma forma esse status quo, essa ordem tecida historicamente. E é óbvio que as vítimas de agressão, pela mesma combinação de fatores, mas como uma reação, não ficaram nem ficarão passivas. Os que produziram historicamente esse estado de coisas mais uma vez vêm a público falar em “união”, em “superação das diferenças”, quando são eles os responsáveis pela desigualdade, pela separação, pela discriminação negativa, pela exclusão, pela fenda ou abismo que nos separam. Só que agora, em pleno século XXI, essa demagogia não está colando mais, não está surtindo efeito. E não é só aqui no Brasil.
LACUNA | O acirramento das diferenças em dois polos muito marcados se dá após uma década de conquistas sociais importantes, na qual grupos historicamente minoritários no Brasil passaram a ter acesso a bens, serviços e lugares que antes lhes eram negados. Seria o crescimento da “nova direita” brasileira uma reação às conquistas ou, ao contrário, aos limites do lulismo?
JW | Ambas as coisas. Há, por um lado, um rancor de classe, um ódio mal disfarçado das elites que sempre foram donas desse país e ficam revoltadas com o fato de uma doméstica, um jovem negro ou um morador de uma favela poderem estudar na universidade ou viajar de avião. E há, também, uma crise que é produto dos próprios limites do projeto neodesenvolvimentista da era Lula. Se por um lado houve inegáveis avanços sociais, pessoas que saíram da pobreza extrema, camadas da população antes totalmente excluídas que começaram a consumir e a desfrutar de bens e serviços que antes eram privativos de outra classe social, esses avanços não foram acompanhados por reformas estruturais. Aumentou o consumo das classes populares num período em que a economia internacional ajudava e o Estado tinha recursos, mas não houve uma reforma impositiva, não houve uma reforma política, não houve uma mudança de fundo na educação, na saúde, no acesso à cultura e ao letramento, então, as pessoas mais pobres passaram a consumir mais, sim, mas as relações estruturais da economia e do sistema político não mudaram. E a crise internacional, que finalmente repercutiu na nossa economia, acabou desfazendo muitos desses avanços, porque eles não eram sólidos. Tudo isso com um sistema político que não mudou, porque o PT garantiu a governabilidade pela via da conciliação de classes, do pacto com as elites e da coalizão com a velha política (o PMDB, os partidos fisiologistas, os coronéis, os pastores evangélicos fundamentalistas etc.) e, quando a crise começou e o povo começou a sentir seus efeitos no bolso, o governo começou a perder popularidade, a elite começou a pedir mais ajuste econômico e menos direitos sociais e os aliados políticos começaram a conspirar contra o governo.
LACUNA | O Brasil possui números alarmantes de violência contra a população LGBT. Uma parte dessa comunidade defende a criminalização da homofobia como forma de coibir tais atos. Criminalizar a homofobia é a melhor forma de combatê-la?
JW | Eu não acho que seja. A homofobia é um problema profundo que tem que ser enfrentado atacando suas causas e não apenas suas consequências. A criminalização chega quando os atos homofóbicos já foram cometidos, não os impede, não soluciona o problema. A solução vem pela via da educação, do acesso à cultura, à informação, à vida com pensamento, como dizia Hannah Arendt. A solução vem pela afirmação de direitos, pela celebração da diversidade, pela construção de uma sociedade onde as pessoas LGBT não sejam mais marginalizadas, excluídas, destituídas de direitos civis e de dignidade humana. É claro que isso leva tempo, não há uma solução mágica, e o problema com os discursos punitivistas é que eles sempre se apresentam como soluções mágicas, instantâneas, mas sempre fracassam. O sistema penal é seletivo: o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, depois da China, dos EUA e da Rússia, e a maioria dos presos é jovem (52% têm entre 18 e 29 anos), negro ou pardo (58%) e pobre. Então, o que vai acontecer se a gente legislar impondo penas de prisão para a injúria ou o insulto homofóbico? Quem será preso vai ser o jovem negro e pobre, morador de uma favela ou da periferia, que não teve acesso a uma educação de qualidade e não tem dinheiro para pagar um bom advogado, e chamar de “viado” um gay branco de classe média que mora na zona sul. Porque é assim que o sistema penal funciona. E isso não vai resolver nada. É claro que os crimes de ódio — o assassinato, a agressão física, o estupro etc. — devem ser punidos, da mesma forma que deve ser punida a apologia ao crime e a incitação à violência, muitas vezes praticada por políticos e líderes religiosos; e eles de fato já estão previstos na lei, o problema é que a lei não se aplica.
O que a gente pode fazer é agravar a pena quando a motivação do crime for homofobia, como já existe essa previsão no caso dos crimes de ódio racial ou da violência de gênero. Eu não acho que o aumento de penas nesses casos tenha uma grande utilidade, mas entendo e acho plausível o argumento de muitos ativistas LGBT, que dizem que se esse aumento de penas vale para o crime motivado por racismo, deve valer para o crime motivado por homofobia, porque no caso contrário estaríamos hierarquizando essas duas formas de preconceito. Contudo, a ideia de criminalizar a ofensa, a injúria, o insulto, isso sim eu acho totalmente equivocado. Sou contra o aumento do estado penal, que acaba tomando como alvo os mais pobres. Quero que a gente combata a homofobia de outra forma: garantindo todos e cada um dos direitos civis (por isso apresentei os projetos de lei de casamento igualitário e identidade de gênero); educando para a diversidade, com programas contra o bullying LGBTfóbico nas escolas; desenvolvendo projetos de inclusão social para os setores mais vulnerabilizados da comunidade LGBT, como a população trans; fazendo campanhas de conscientização contra o preconceito e celebração da diversidade nos meios de comunicação etc.. Não quero mandar homofóbicos para a cadeia, mas educar os jovens para que não sejam homofóbicos e convencer os adultos que são homofóbicos de que estão equivocados. Quero mudar a sociedade, e não prender pessoas!
LACUNA | Você pode ser enquadrado como parte de uma esquerda “pós-marxista”, que considera outras formas de dominação que não aquela de classe. No entanto, no momento mais agudo da crise, a questão da luta de classes parece ter voltado à cena e pautado alguns discursos sobre polarização política. Qual o papel da comunidade LGBT, os feminismos, os movimentos negros e da luta por moradia nesse momento, posto que muitos desses grupos há algum tempo criticam o PT por sua falta de comprometimento junto a pautas que lhes são caras?
JW | Eu sempre digo que pertenço a uma esquerda de “quarta geração”, que entende que não podemos abrir mão do conceito de “luta de classes” (e por isso ainda precisamos evocar os espectros de Marx), mas não basta com isso: a esquerda, hoje, tem que ser também feminista, tem que defender os direitos LGBT, tem que lutar contra o racismo, o sexismo, a xenofobia, tem que reivindicar os direitos ambientais, denunciar as causas das mudanças climáticas, defender um ambiente saudável, participar das lutas pela moradia, pelo direito à terra, pelos direitos dos povos indígenas, entre outras. Meu partido, o PSOL, que não por acaso reúne o socialismo e a liberdade no seu nome, tem sido o refúgio e o espaço de construção, de identidade, de luta e de protagonismo de muitos ativistas LGBTs, mulheres, negros e negras e de outros coletivos que organizam setores oprimidos da sociedade cuja “libertação” não dependerá apenas da luta de classes, mas precisará, também, de muitas outras. E por isso ele é, hoje, sem dúvidas, o partido que melhor representa as lutas desses coletivos, que outros partidos abandonaram ou nunca assumiram como próprias. Contudo, apesar disso, ainda tem, no seu interior, muitas resistências. Alguns companheiros ainda não entenderam. Já não falam da homossexualidade como desvio burguês, mas ainda dizem que a luta pelos direitos dos e das LGBT “só interessa à classe média”, que é uma forma politicamente menos incorreta de dizer a mesma coisa. Já não mandam as mulheres lavarem a louça enquanto os homens conduzem o partido, mas acham que a legalização do aborto pode ser tratada como um tema de “liberdade de consciência” e que a auto-organização das mulheres é perigosa. Já não cantam “não somos veados, não somos maconheiros”, mas acham que falar em legalização da maconha é desnecessário e excessivamente polêmico. E eu acredito que devemos, fraternalmente e sem medo, encarar esses problemas. Toda essa discussão tem, em alguns casos, um pano de fundo teórico (a ressaca da velha ortodoxia marxista, a contradição principal, “dentro da revolução tudo; fora da revolução nada” et caterva), que poderíamos resumir na ideia de que a função de um partido de esquerda é organizar a luta de classes (entendida como no século XIX, com poucos updates) e tudo aquilo que possa nos distrair desse objetivo pode ser secundário ou até mesmo prejudicial. Contudo, às vezes também há hipocrisia: um uso utilitário da teoria para mascarar fins bem mais pragmáticos e imediatistas. A ideia de que devemos crescer a qualquer custo, inclusive para a disputa interna, somando lideranças ou tentando atrair setores do eleitorado que são refratários a pautas como o aborto, os direitos LGBT ou a legalização da maconha, sem qualquer vocação pedagógica ou de disputa de consciências, simplesmente escondendo ou flexibilizando nossas posições — como fizeram o PT e outros partidos que já ocuparam o espaço político que nós disputamos hoje; pretérito muito imperfeito. E a justificativa para isso é que são secundárias, ou que “só interessam à classe média”. E, por favor, isso é absolutamente falso, porque as mulheres que morrem por abortos clandestinos são as mais pobres, da mesma forma que são pobres (e em sua grande maioria negros) os que morrem assassinados ou acabam apodrecendo nos presídios pela criminalização das drogas; e da mesma forma que são pobres (e em sua grande maioria das periferias) os gays, as lésbicas e, sobretudo, as travestis (o segmento mais econômica e socialmente mais precarizado entre os LGBT) que morrem vítima dos crimes de ódio, apanham na escola ou são expulsos do lar familiar. E, mesmo que não fosse assim, num mundo imaginário em que não houvesse bichas pobres ou mulheres pobres que abortam ou pobres que usam ou vendem maconha, a ausência de uma forma de opressão (muito [r]estritamente a de classe) não invalida as outras, e nós lutamos contra todas as formas de opressão.
LACUNA | Ainda sobre esses grupos, como levar a cabo suas lutas e reivindicações sem que se recorra a uma “pureza identitária” ou a uma “hierarquização de exclusões”, que acaba por sectarizar e cindir movimentos — sintomas tão característicos da esquerda?
JW | A hierarquização das exclusões e das opressões é uma burrice, porque elas na verdade se misturam, se inter-relacionam, se potenciam mutuamente. Por isso uma mulher trabalhadora, além de sofrer machismo, sobre uma opressão de classe maior, porque é mulher; e se for negra, sofre mais machismo e mais opressão de classe que uma mulher branca ou que um homem; e se for lésbica ou transexual, mais ainda. A esquerda tradicional erra quando reduz tudo à luta de classes, como se acabar com as diferenças de classe bastasse para construir uma sociedade sem opressões, e da mesma maneira erram os grupos identitários que reduzem toda a luta ao que lhes é específico ou que constroem um gueto e “racham”, confundindo diferença com dicotomia ou inimizade. Eu sou gay, mas os heterossexuais não são meus inimigos. Meus inimigos são os homofóbicos! Os heterossexuais que são contra a homofobia e defendem os direitos LGBT são meus aliados. Eu não quero viver num gueto, quero viver numa sociedade plural, diversa, humana! Uma sociedade onde todos e todas sejamos iguais perante a lei e respeitados na nossa diversidade, e onde essa diversidade seja celebrada, e não usada para oprimir ou excluir. E quero construir essa sociedade com todas as pessoas que acreditem nisso e queiram construí-la comigo: homens, mulheres, cisgenêro e transexuais, heterossexuais e gays, brancos e negros. E quero lutar pelos direitos de todos os que precisam da minha solidariedade, porque todas as formas de opressão têm que ser combatidas.
LACUNA | Você concordaria com o diagnóstico de que há uma certa patologização do outro enquanto estratégia política de desqualificação? Por exemplo: o que era mais claramente visto na população LGBT, estende-se agora à denominação “esquerdopata”, e chega mesmo à comparação feita pela revista ISTOÉ da Presidenta da República com “Maria, a Louca”. O que significa trazer a patologia para a política?
JW | Isso não é novo. Chamar as mulheres de loucas para desqualificá-las, ou chamar os gays de doentes, ou de anormais, como até pouco tempo atrás fomos considerados e como ainda são consideradas as pessoas transexuais em boa parte do mundo, tendo sua identidade de gênero classificada como “disforia”, é tão velho como o velho racismo que considerava que os negros eram genética e biologicamente inferiores e o velho machismo que achava que as mulheres eram incapazes de raciocinar porque os hormônios femininos ou a “histeria” as impediam disso. Esses discursos são velhos, mas ainda hoje afloram, às vezes dissimuladamente, no discurso político. Claro que isso não significa que devamos cair no patrulhamento extremo: existem pessoas que têm patologias, existem psicóticos na política, homens e mulheres, gays e heterossexuais, mas sempre é bom desconfiar quando a patologia é evocada para desqualificar, na ausência de outros argumentos.
LACUNA | Há uma ideia — cada vez mais difícil de se sustentar — de que o Brasil seria um país no qual direita e esquerda não existem. O psicanalista Jacques Lacan baseou sua teoria psicanalítica a partir da ideia de que os significantes não têm um sentido único, idêntico a si mesmo e igualmente partilhado, mas que devem ser compreendidas a partir de sua relação com outros significantes. Nesse sentido, qual o contexto a partir do qual se pode enunciar o significante “esquerda” no Brasil? O que significa “esquerda” para a população atualmente? O que pode vir a significar no futuro político do País?
JW | Não posso dizer com segurança o que significa “esquerda” para a população. Não tenho controle sobre os sentidos que toda ela produz a partir desse significante. Posso dizer seguramente que indivíduos e grupos de extrema-direita e fascistas com dinheiro e poder — todos com formação intelectual precária, estreitíssimo repertório cultural, sem apreço pelas artes vivas e com desejos reprimidos por dogmas religiosos e falso-moralismo — tentam construir a esquerda como um mal, recorrendo à mentira e a teorias conspiratórias que encontram terreno fértil numa sociedade ainda com milhões de analfabetos, analfabetos funcionais, analfabetos políticos e em que mais da metade da população não lê livros. Num país que é uma fenda, a esquerda sempre esteve do lado dos despossuídos, dos oprimidos, dos excluídos, dos humilhados, dos discriminados e dos injustiçados, embora estes nem sempre ou muito pouco reconheçam isso (que a esquerda está de seu lado) e, como escravos que se acostumam com as correntes que lhes aprisionam a ponto de amá-las ou que invejam profundamente os privilégios dos seus senhores, estes quase sempre se identificam com seus opressores e os valores destes.
Conforme expliquei anteriormente, eu costumo dizer que eu sou de uma esquerda 4G, de quarta geração. E o que isso significa? Que lutamos por justiça social, sim, mas sem flexibilidade das liberdades e igualdade políticas; não pensamos em termos de base social classista, mas de minorias políticas e de proteção de direitos dos grupos mais vulneráveis; admitimos capitalismo e lucro, mas achamos que tudo tem que ser guiado por valores relacionados à igualdade política e à justiça social; somos mais iluministas (não conservadores, cosmopolitas e sensíveis a direitos) que socialistas, embora nunca deixemos de ser socialistas; temos mais interesse na igualdade de oportunidades do que na distribuição igualitária de bens; defendemos simultaneamente a igualdade de direitos e dignidade política e a liberdade das diferenças humanas: diferença não pode significar desigualdade; a igualdade é fundamento do respeito às diferenças.♦
* Jean Wyllys é Deputado federal do estado do Rio de Janeiro pelo PSOL, tendo uma trajetória marcada pela luta contra a homofobia, a intolerância e o fundamentalismo religioso, o trabalho escravo, a exploração sexual, a violência contra a mulher, entre outras. Wyllys é também escritor, jornalista com mestrado em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de Cultura Brasileira e de Teoria da Comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e na Universidade Veiga de Almeida. Seu site é http://www.jeanwyllys.com.br/
** Pedro Ambra é psicanalista, doutorando em Psicologia Social pela USP e em Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris 7 – Diderot. Autor de artigos e livros que versam sobre as relações entre psicanálise e gênero, é pesquisador do LATESFIP – Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise – e do grupo Margens Clínicas, que oferece escuta psicanalítica a vítimas e familiares de vítimas de violência policial. É um dos editores da Lacuna.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | AMBRA, Pedro (2016) Ódio e política no Brasil: uma entrevista com Jean Wyllys. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -1, p. 12, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/05/22/odio-e-politica-no-brasil-entrevista-com-jean-wyllys/>.