por Tales Ab’Sáber & Emília Estivalet Broide
Senhoras e senhores,
a Lacuna convidou dois psicanalistas para um debate sobre a emergência das clínicas públicas de psicanálise, suas viabilidades e condições de possibilidade. Em um texto argumentativo, uma réplica e uma tréplica, o debate é desenvolvido com rigor e leveza nessa nossa seção que procura colocar os autores para trabalhar sobre posições e temáticas controversas intitulada “Telecatch”. Esperamos que gostem!
* Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, professor de filosofia da psicanálise na Unifesp, autor de, entre outros, O Sonhar Restaurado (Editora 34, 2005), A Música do Tempo Infinito (Cosac Naify, 2011) e Self Cultural (egalaxia, 2016).
** Emília Estivalet Broide é formada em psicologia pela PUC-RS; é psicanalista com 30 anos de atividade clínica, membro da Associação Psicanalítica da Porto Alegre – APPOA. Doutora pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP. Mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FSPUSP. É consultora na área da saúde e assistência social. Supervisora de equipes dos Núcleos de Apoio à Estratégia Saúde da Família; dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Consultórios na Rua em cidades como São Bernardo do Campo/SP, Campinas/SP; Londrina/PR, Piracicaba/SP, Santos/SP, Guarulhos/SP, Porto Alegre/RS e Barueri/SP. Trabalhou durante 10 anos no Grupo Hospitalar Conceição; consultora no Ministério da Saúde e ponto focal da OPAS/OMS.
PROPOSIÇÃO | Clínica Pública de Psicanálise: dinheiro, pra que dinheiro? | Tales Ab’Sáber
A clínica pública de psicanálise é fundada a partir de uma decisão primeira daqueles que a ela se dedicam. Antes de tudo, ela é fruto de um desejo, de um entendimento dos arquivos vivos e do potencial de criação de nossa disciplina e também de um posicionamento concreto a favor da esfera pública na cidade, e na cidade da psicanálise.
Compromisso, militância ou engajamento, conforme olhemos daqui ou dali — valores de sentido ético políticos das coisas — a clínica pública é fundamentalmente uma oferta de experiência psicanalítica que, na sua raiz, apenas questiona a centralidade do dinheiro na estruturação dos parâmetros clínicos que constituem o setting psicanalítico e, deste modo, busca franquear a experiência da psicanálise a qualquer um que dela necessite, oriundo de qualquer classe, de modo universal em nossa cidade e cultura. Além disso, ela necessariamente implica no fato teórico novo, relevante e excitante historicamente, e que está ocorrendo em vários lugares do mundo psicanalítico e da cidade simultaneamente, dos psicanalistas entenderem seu trabalho como ação coletiva de clínica e de pensamento.
A clínica que elaboramos, e propomos como objeto de ação social e como modelo que pode ser replicado, é fruto do desenvolvimento teórico da psicanálise ao longo de seu século, com elementos novos derivados de formulações e realizações psicanalíticas anteriores tanto de Bion — o trabalho radical de estranhamento frente à realidade psíquica, que implica a suspensão de desejo e de memória como momentos essências do próprio método psicanalítico — quanto de René Kaës — o trabalho de elaboração inconsciente grupal, onírico, de uma matéria psíquica que serve e se articula a um indivíduo membro do grupo analítico — quanto, para não nos esquecermos de sua contemporaneidade, do próprio Freud — a radicalidade do trabalho do deslocamento inconsciente, e sua “transmissão de inconsciente para inconsciente” de elementos significantes relevantes, um fenômeno evidentemente não controlável por parâmetros eminentemente egoicos, ou por qualquer coisa ou função diretamente consciente.
De todo modo o campo psicanalítico que permite a elaboração de uma estrutura de recebimento que possa ultrapassar a mediação interna tradicional da clínica pelo dinheiro, como busca a clinica pública, é aquele que diz que o inconsciente vivo, em trabalho, não é contido no âmbito de uma relação dual, mas circula amplamente também por zonas de identificação coletiva, por mais que o índice estético individual e pessoal tenham imenso valor no trabalho analítico. Esta zona de identificação coletiva é sensível ao trabalho do sonho de um grupo, o trabalho clínico como função onírica grupal, ofertada ao paciente, membro especial a quem o grupo analítico se dedica.
O formato da estrutura de atendimento clínico se torna, como diziam Deleuze e Guattari, um n+1, que consiste de fato no grupo n de analistas mais o paciente singularmente sonhado por ele. Deste nosso ponto de vista o inconsciente transborda amplamente o vínculo do tipo dupla analítica assimétrica, por ser estruturado e receber elementos significantes que vem do todo, ou seja do mais amplo agrupamento humano que é o momento simbólico da vida social, nosso self cultural ou dialético, e também por desejar fazer marca neste todo, no grupo e na vida social, uma natureza de objeto psíquico ampliado também vital à vida humana. Estas dimensões do psiquismo podem ser perfeitamente observadas, por exemplo, no trilhamento social e histórico muito marcado dos sonhos de Freud em A interpretação dos sonhos, para rememorarmos sua presença já em um momento originário da própria disciplina.
De fato, nesta direção, os estágios avançados contemporâneos de alteração subjetiva desde as práticas coletivas de massa diante do sistema geral de textos de mercado, e desde as tecnologias de comunicação avançadas e virtuais do presente, deixam claro o que podemos pensar como o vínculo inconsciente pessoal com o todo: estes dispositivos e agenciamentos sociais práticos invadem, relacionam e produzem vida subjetiva, desenham algo mesmo de seus sujeitos, como um verdadeiro inconsciente que vem de fora, e são também plenos objetos coletivos, sobretudo mais continentes do que objetos, vazios de índice individual especial.
Deste ponto de vista, temos uma cadeia de significantes inconscientes disponíveis para o engajamento onde houver trabalho psíquico onírico, como método clínico fundamental da psicanálise, seja na transferência individual dual do setting clássico, seja na transferência sobredeterminada grupal, seja na transferência social e na força ideológica do desejo onírico, já dizia Walter Benjamin, que vem do todo.
Um grupo de psicanálise conta efetivamente com cada paciente participante enquanto indivíduo e como força de sentido para cada um outro paciente participante do grupo, conta com o trabalho circulante e ampliado do próprio grupo que se sonha e sonha a cada um e conta com um analista, igualmente parte, ainda diferenciada, do próprio grupo, que funciona como o trabalho articulado de um terceiro e outro inconsciente. Estas múltiplas instâncias de presença e afetação humanas, que criam desenhos de objetos e relações psíquicas representadas no trabalho quase infinitas, mostraram-se extremamente potentes na produção de sentido e de forças de vida, desde que se possa acompanhar as limitações e expansões de sentido que o trabalho simbólico desde o inconsciente produz sobre o pano de fundo do método analítico.
Nossa clínica pública de psicanálise, realizada em espaços públicos da cidade de São Paulo, como o centro cultural Vila Itororó Canteiro Aberto, ou a Casa do Povo no Bom Retiro, é, a princípio, uma clínica grupal, na qual, de modo inverso de um grupo analítico tradicional, um paciente é recebido e pensado por um grupo de analistas. De fato, ampliamos assim o potencial clínico deste grupo analítico expandido já nosso velho conhecido que é o do trabalho da supervisão psicanalítica tradicional. Do grupo de transmissão inconsciente 1+1+1, próprio do trabalho da supervisão psicanalítica tradicional, chegamos ao grupo 1+n+1, do formato analítico que torna viável, e efetivamente livre da mediação pelo dinheiro, a clínica pública de psicanálise. Este desenho novo grupo/paciente, permite com liberdade de gestão e leveza prática e social o rodízio de analistas frente ao paciente, analistas sempre ligados por dispositivos de transmissão de imagens e marcas simbólicas singulares dos pacientes — da supervisão grupal aos retratos psíquicos e das sessões partilhadas via grupo de internet. Tal concepção nos dá liberdade de investimento individual de trabalho no dispositivo, que permite incluir a crítica do lugar essencializado do dinheiro no trabalho clínico psicanalítico.
Como podemos oferecer e doar nosso trabalho, porque a clínica se tornou leve, socialmente produtiva, erótica e politicamente desejada, de modo a entrarmos no regime da dádiva e sua outra ordem simbólica, com sua própria natureza e complexidade, podemos olhar com olhos livres o trabalho psicanalítico por fora da coisa do dinheiro, desnaturalizando-o e lembrando o velho dado marxista: que o dinheiro é um representante, vedado ao saber, de uma relação social e de poder que é histórica. E é assim que ele efetivamente funciona na psicanálise, em que aparece disfarçado de duplo real da dívida simbólica do paciente.
Saímos do campo da troca significante e onírica mediada e engajada pelo valor de troca das sociedades totalmente monetizadas e entramos no campo, a ser trabalhado como modalidade de desejo e defesa própria, da dádiva. Elidimos deste modo a dívida simbólica da existência humana — que se representa em uma análise — como dívida ética que se represente no jogo antiético do dinheiro em sociedades de exclusão, acumulação e poder desproporcional de mercado, antidemocráticas na raiz, como é sobretudo a nossa. Deste modo, pessoas que jamais poderiam fazer uma análise, pelo movimento ascensional da disciplina na régua social do dinheiro, seu alto custo e a real busca de distinção burguesa própria a muitos analistas, podem, por fim, ter pleno acesso a ela. E neste momento são de fato circuitos simbólicos possíveis de práticas sociais pós-capitalistas que estão em jogo em nosso trabalho, de psicanalistas na cidade pública desejada criada.
Voltando ao ponto inicial, (a) uma disposição interna orientada o mais amplamente para o outro e para a crítica social das barreiras e desenhos de mercado da psicanálise, bem como uma disposição do corpo do analista na cidade pública e coletiva e não na exclusiva forma consultório, da venda de serviços do profissional liberal psicanalista, da mercadoria psicanálise; (b) em conjunto com a criação do dispositivo, o setting clínico n+1, do grupo de analistas em rodízio para um paciente, que deve performar aspectos inconscientes não conhecidos dos modos tradicionais de praticar a psicanálise; e (c) a crítica da articulação de toda dívida simbólica humana à exclusiva dívida social com o sistema do dinheiro e do mercado, que sabe nos endividar sempre mais e mais, são os vértices que movem em profundidade o desejo de uma clínica social pública de psicanálise entre nós e hoje.
RÉPLICA | Clínica psicanalítica é desejo de analista nos interstícios da cidade | Emília Estivalet Broide
Tales, é uma honra e um prazer receber o convite da Lacuna para debater e conversar contigo, pois partilhamos a inquietação freudiana da criação teórica e clínica de uma psicanálise que, se tem seu fundamento e transmissão na relação analista analisante, não se fecha à transmissibilidade somente entre os pares. É nos interstícios da cidade, nas tramas sociais, nas políticas públicas que buscamos escutar a singularidade do sujeito e, com isso, presentificar a psicanálise no mundo.
A ideia de uma Clínica Pública de Psicanálise não é propriamente uma novidade. Freud por ocasião do Congresso de Budapeste em 1918, já expressava o desejo de tornar acessível o tratamento psicanalítico a um maior número de pessoas e àquelas mais carentes. Em 1920, a ideia se efetiva com a criação da Policlínica de Berlim ligada ao Instituto de Berlim que tinha como objetivo formar jovens médicos interessados na psicanálise. Inaugura-se a experiência da associação de um modelo clínico de atendimento na formação psicanalítica que, ao mesmo tempo, tornava acessível o tratamento à população empobrecida que sofria as consequências do pós-guerra na Europa e, principalmente, na Alemanha.
A práxis clínica herdada de Freud, portanto, em qualquer contexto no qual ela se desenvolva não passa imune ao momento histórico, social, político e econômico que a determina. No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e o processo de extinção dos manicômios criaram políticas públicas de saúde que alteraram de modo significativo o atendimento ao sofrimento psíquico e a atenção à área da saúde mental.
Uma série de trabalhadores com formação em psicanálise passou a realizar atendimentos em instituições substitutivas ao modelo asilar, nos programas de atenção básica de saúde, nas instituições hospitalares. Também a educação e as políticas de assistência social receberam as contribuições do exercício psicanalítico para além do setting tradicional. Produziu-se teoricamente. Inúmeras publicações surgiram, a partir da extensão da psicanálise e da criação de dispositivos de intervenção inovadores de atendimento, dando mostras do vigor do saber insabido que a psicanálise coloca em causa.
Nessa perspectiva, o atendimento público, na cidade, sem a centralidade do dinheiro já é uma realidade. Também nas clínicas escolas que funcionam junto às universidades como campo de estágio para alunos de diversas formações. Penso que nenhuma clínica é “sem dinheiro”. Quando o pagamento de uma sessão não é feito diretamente por aquele que consulta, sempre existe uma mediação que pode ser a do Estado, da Universidade, da iniciativa privada ou do terceiro setor.
A questão que interessa, e me parece que o teu trabalho aponta, é como podemos tomar o dinheiro como um significante e não em sua materialidade concreta no registro da falta. Pois, se o registro da falta ficar preso exclusivamente à carência do indivíduo que não possui dinheiro para pagar a sua sessão, não será possível operar a torção que possibilita que a falta trabalhe no sujeito como causa de desejo.
A centralidade da clínica psicanalítica é a dimensão inconsciente. Importante situar que ao considerar os aspectos inconscientes estamos falando de uma clínica que se institui na e pela experiência, não existindo experiência psicanalítica antes que ela aconteça.
Freud pôde escutar as histéricas e com isso deu relevo à sexualidade na etiologia das neuroses. Dessa forma, aquilo que se apresentava fora do padrão e das normas, foi tomado por ele como enigma a ser desvendado. Ao escutar os romances narrados pelas histéricas, Freud ressignificou as manifestações somáticas e corporais incapacitantes, teatralizadas e descabidas vividas por elas, e que as conduziam à loucura e a exclusão social, e reconectou os sintomas aos enigmas da sexualidade feminina.
Penso que se o desejo de analista faz operar uma ética que movimenta o discurso dominante em prol do discurso analítico, não é por oposição ou enfrentamento, militância ou doação. Ou seja, o desejo de analista não é intencionado (nem bem nem mal intencionado), ele é posicionado. Que ele seja posicionado implica que ele leva em consideração a transferência e o inconsciente como direção do trabalho clínico. A clínica pode ser um grupo, o individuo, o consultório, a rua, as supervisões, o trabalho em rede junto a profissionais de outros campos do saber.
Para que a transmissão da psicanálise ocorra é necessário rasgar as camadas do discurso estrito da disciplina e navegar por mares de outros campos do saber como a literatura, o urbanismo, a geografia, a antropologia, a história, etc. não somente para nossa erudição intelectual, mas para melhor ouvir aquele que demanda a nossa presença.
Freud já nos alertava que a psicanálise não é uma forma de ver o mundo, não é uma cosmovisão. Desse modo, a política da falta-a-ser, intrínseca à posição do analista, e que sustenta a ética da sua práxis, é assumida na psicanálise que se abre e se estende na escuta das singularidades e das histórias das pessoas comuns que habitam as cidades articulando-se aos discursos vigentes, indagando os limites da clínica e da teoria, apresentando a dimensão não toda do saber.
Usufruir outros saberes, transversalizando-os com a psicanálise nos permite ouvir música e poesia na voz do usuário dos serviços e perceber o território, a periferia, o centro das grandes cidades contido em sua fala. Nessa perspectiva a clínica que você propõe Tales contribui para que, mais do que respostas e receitas, encontremos o desejo em causa na aventura paradoxal de colocar o não saber em questão e cernir o impossível de dizer.
Uma prática que surpreenda e que não apresente desafios se torna previsível e maçante. O surpreender-se e o desafiar-se mantém o analista – como amante, erastés – na douta ignorância lacaniana, usufruindo do insabido como interrogante que possibilita a expansão dos limites do dizível. Arriscar-se é o oposto de precaver-se. Nesse sentido, não há gerenciamento dos riscos, mas propulsão a eles.
TRÉPLICA | nossos barracos são castelos… | Tales Ab’Saber
Quando Hélio Oiticia desenvolveu os seus interessantes, esquisitos e enigmáticos Bólides, no início dos anos de 1960, ele dava início a uma jornada que deslocaria o lugar da arte para um outro reino humano: aquele da proximidade e articulação com a vida e com o plano imanente de experiência do expectador sujeito. A indefinição estética e o registro muito novo de entidade artística, que fazia com que um Bólide de Hélio estivesse situado entre ser arte e ser de fato uma coisa qualquer existente no mundo, preparava o terreno simbólico para as suas obras experiências futuras, dos Penetráveis, dos Ninhos, dos grandes ambientes e dos Parangolés . Mas o dado teórico interessante da constituição dos Bólides era o fato de que eles rearranjavam, como em um sistema de bricolagem próprio do pensamento índio, por exemplo, os próprios fundamentos da arte moderna na qual Hélio se inscrevera por tradição e na qual se formara.
Eram os elementos essenciais da purificação simbólica da arte, tal qual a modernidade plástica avançada do século XX realizara, os seus fundamentos de princípio que há muito ocuparam o centro da forma estética, rompendo com toda a ideia de representação, que Hélio re-situava radicalmente naquelas suas novas quase coisas, que diminuíam muito a distância entre as esferas estéticas e do mundo, da experiência e da vida: de fato os Bólides eram uma solução nova e surpreendente, que aproximava a arte da coisa comum da vida, porém mantendo o seu registro de enigma, para os velhos e conhecidos problemas modernos da cor, da matéria, do material, do volume e da colagem. Eles eram formas que, de modo imanente à sua própria tradição estética teorética, davam um salto real em uma esfera de existência estética ontológica, e política, de outra natureza.
É algo um pouco semelhante, como ação de bricolagem com a essência do desenvolvimento teórico da psicanálise do século, ação articulada a um desejo e a uma imaginação política específicas, que realizamos com o setting da clínica aberta pública de psicanálise. Esta clínica é a articulação forte, e sintética, dos elementos contemporâneos próprios do desenvolvimento e da história da psicanalise, como, por exemplo, (a) o problema real, interessantíssimo, bem reconhecido desde Freud, da transmissão de valores de sentido de inconsciente para inconsciente no trabalho humano sob o método psicanalítico, (b) a radicalização conceitual do método, pela contribuição de Bion advinda do seu trabalho com psicóticos, da crítica e do valor da suspensão das funções de desejo e de memória no trabalho, (c) o real potencial de densidade analítica das sessões únicas, presente nas incríveis consultas terapêuticas de Winnicott, e (d) as formulações advindas da experiência psicanalítica com grupos, de Bion, Anzieu, e sobretudo René Kaës, que demonstram a articulação onírica real existente entre um grupo sujeito e um indivíduo que lhe pertence. Ao mesmo tempo do rearranjo destes elementos presentes na psicanálise contemporânea na forma da clínica pública, emerge também a atenção crítica aos movimentos simbólicos e políticos da própria cultura, que implicam o sujeito psicanalítico, o sintoma e o desejo de política próprio de cada um de nós, nessa nossa clínica bólide, aberta, político social.
Exatamente como os movimentos sociais de ocupações de moradia contemporâneos – sintetizados com força em Era o hotel Cambridge, de Eliane Café – só podem se dar por desconsiderarem na raiz o valor simbólico do direito à propriedade como superior ao direito social por moradia e vida – de fato um direito conservador, que é na raiz política, um gesto de poder social – também esta clínica coletiva aberta de psicanálise, que recebe qualquer um, de qualquer classe e sem qualquer renda, para a produção de uma experiência com o próprio inconsciente, só pode existir como um real espaço extra mercado porque desconsideramos na raiz o valor de real psíquico do dinheiro – que é de fato, em sociedades de grande exclusão, um real valor político, uma relação social implícita, apenas um gesto de poder. Como o direito à moradia em confronto real com o direito à propriedade é a configuração de uma ação política concreta e imediata contemporânea, a clínica aberta de direito à psicanalise é ação prática e teórica de confronto à ideia do direito do dinheiro como sendo a medida universal de todo e qualquer trabalho humano, e do trabalho analítico. É ação política e de produção de diferença, em um quadro simbólico de interesses e de reprodução de poder.
De fato, a psicanálise que encontrou guarida original na ascensão do mercado de serviços na cultura da expansão da economia liberal nos séculos XIX e XX europeu, no qual o psicanalista precisava cobrar o preço da sua hora para poder viver em um mundo já totalmente monetarizado, mantendo-se de modo fixo, e não variável, neste lugar social, jamais poderia chegar, por exemplo, a atender e a servir à experiência social e humana da massa da escravaria brasileira do século XIX, vida humana totalmente apartada, por direito, de qualquer renda social, mesmo que constituída pelo seu próprio trabalho…
Nestas condições históricas de cisão social radical, e de exclusão perversa da renda social, como, com oscilações, costuma ser a brasileira, fica claro que a opção pelo trabalho vinculado estruturalmente ao dinheiro é de fato uma opção de valor político social, uma opção de economia política da psicanálise, que fixa a ideia do dinheiro como constitutivo universal do sujeito para evitar o trabalho de pensar a psicanálise, e tudo o mais, como sendo o verdadeiro direito universal do sujeito.
E felizmente, como foi bem dito pela Emília, o movimento psicanalítico também buscou reagir a esta posição de economia política da psicanálise com seu outro movimento das clínicas sociais, articuladas praticamente ao horizonte de uma possível ordem histórica socialdemocrata ou socialista. E, no entanto, como também ocorre com o entendimento do trabalho psicanalítico com grupos, tais problemas de vida social, de poder e de política da situação da psicanálise no mundo, também sempre foram entendidos como não sendo imanentes e centrais ao próprio desenvolvimento da experiência psicanalítica no mundo.
O bronze do social não correspondia inteiramente ao verdadeiro ouro da análise, já ouvimos falar há muito… Não pensamos assim: o ouro falso da vida da psicanálise e seus sujeitos sob o consultório particular é que não corresponde inteiramente à joia das possibilidades amplas contemporâneas da psicanálise, e seus sujeitos, na vida social. ♦
COMO CITAR ESTE ARTIGO | BROIDE, Emília Estivalet; AB’SÁBER, Tales (2017) Clínicas públicas de psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 2, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-02/>.