Uma menina de 9 anos inicia sua análise. Ela se utiliza de novelos de fios coloridos para construir o que nomeia “cama de gato”. O espaço da sala transforma-se: ela amarra a ponta de um fio no pé da escrivaninha e vai desenrolando o novelo, o fio passa ao redor do espaldar da poltrona da analista, segue baixo pelo rodapé rente a parede para então subir até o topo de um armário e se enrolar no trinco da porta para novamente descer quase ao chão e seguir assim, se enrolando e se abrindo por entre os móveis, paredes, janela, porta até preencher todo o espaço com fios coloridos que se atam uns aos outros… Os fios recortam o espaço e criam um outro espaço, sustentado nas frestas que se abrem entre eles. Ela, com seu corpo de menina, passa sem dificuldade por entre as frestas e convida a analista a acompanhá-la. A construção desse espaço aberto no qual o corpo desliza por entre as frestas sustentado na leveza da descontinuidade simbólica contrapõe-se ao espaço asfixiante do corpo amarrado, imobilizado que a menina mostra à mãe ao desfazer a cama de gato e envolver seu corpo todo com os fios. Ela vai até a sala de espera e mostra-se assim, toda enrolada, para a mãe que a aguarda. Os fios servem à essa menina para situar um impasse que a leva à análise: a saída do corpo da cena simbólica especular e seu aparecimento em uma outra cena onde, o corpo tal qual outro objeto inanimado qualquer, passa a obedecer a lei da queda dos corpos.
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Depois de quase três anos voltei à praia na qual havia passado quarenta dias durante o verão de 2014. Foi logo depois, nesse mesmo verão, que meu pai faleceu. De volta, lembrei desse tempo em que a morte do pai, embora tão próxima, ainda não existia. Lembrei também da leitura que fizera nesse verão, O jogo da amarelinha de Júlio Cortázar. Peguei o livro na casa de meus pais um pouco antes da viagem. Era uma edição de 1982, a mesma que na adolescência vira meu pai ler, intrigada com o mistério de um livro que se deixava ler como um tabuleiro, um jogo… O que intrigava era justamente a dimensão espacial que se abria no livro tomado como tabuleiro, como jogo de amarelinha em que é preciso atravessar com o corpo o espaço sustentado nas linhas. Linhas que muitas vezes risquei no chão duro com giz ou pedras, ou com os dedos que faziam nascer o tabuleiro do jogo no chão macio de areia da praia.
Ao final da leitura corrente do livro, o jogo da amarelinha faz sua aparição. Mas também é possível ler ali referências ao jogo da cama de gato, jogo infantil, em que as crianças usam um fio de barbante sustentado pelos dedos das mãos para fazer surgir um espaço instável que se transforma sucessivamente através de pequenos movimentos.
No capítulo que encerra a leitura corrente, Oliveira entrincheirado em seu quarto em uma clínica para doentes mentais, utiliza-se de fios para tecer uma barricada, uma defesa contra a invasão de seu duplo Traveler. Ele divaga sobre a natureza dos fios e a atração que exercem sobre ele:
Não sabia de onde lhe viera o costume de andar sempre com barbantes nos bolsos, de juntar fios coloridos e metê-los entre as páginas dos livros, de fabricar todo tipo de figuras com essas coisas […] Oliveira considerava os fios como o único material indispensável para as suas invenções e só de vez em quando, se o encontrasse na rua, dispunha-se a usar um pedaço de arame ou uma mola. Agradava-lhe que tudo o que fizesse estivesse o mais possível cheio de espaço livre e que o ar entrasse e saísse, particularmente que saísse; coisas semelhantes lhe ocorriam com os livros, as mulheres e as obrigações.[1]
Os fios, os livros, as mulheres… a invenção desse espaço livre por onde o ar entra e sai…, mas os fios também servem a Oliveira para sustentar a derradeira defesa contra a ameaça da aparição do duplo. Visando se proteger, ele constrói com os fios um espaço minado, escuro, fechado…
Começou a enrolar uma linha preta na maçaneta da porta. Em seguida, estendeu a linha até a escrivaninha e amarrou–a nas costas da cadeira; colocando a cadeira sobre duas pernas, apoiada de canto na beira da escrivaninha era suficiente que alguém tentasse abrir a porta para que a cadeira caísse no chão […]. As três e meia, Oliveira acabou de colocar os fios. Numa escuridão quase completa, pois tapara o abajur com um pulôver verde, que estava queimando aos poucos, era estranho bancar a aranha indo de um lado para o outro com os fios, da cama para a porta, do banheiro para o armário, estendendo de cada vez cinco ou seis fios e retrocedendo com muito cuidado […]. No final, ia ficar encurralado entre a janela, um lado da escrivaninha e a cama.[2]
Enfim, Traveler entra pela porta no quarto na penumbra, mas não pode avançar no espaço tomado pelo emaranhado de fios. Traveler detido na porta não avança, Oliveira encurralado próximo à janela aberta ameaça cair. Os dois conversam nesse espaço minado onde o mínimo movimento, seja de avanço ou recuo, pode ser mortal. Oliveira compara a imobilidade da posição simétrica na qual os dois estão encurralados ao movimento de um balanço: “Somos como duas crianças que brincam num balanço, um sobe o outro desce, ou simplesmente como qualquer pessoa diante do espelho. Você não tinha notado isso, doppelganger?”[3]. Traveler compara o duplo a uma vontade de cata vento, que tudo quer catar nesse espaço não euclidiano que se abre entre o eu e seu duplo estranho:
O verdadeiro doppelganger é você, pois se encontra desencarnado; você é uma vontade em forma de cata vento, lá em cima. Quero isto, quero aquilo, quero o norte e o sul, tudo ao mesmo tempo. Tudo pelo simples fato de você misturar as realidades e as recordações de um modo sumamente não euclidiano.[4]
A topologia sustenta lugares na descontinuidade simbólica e na continuidade moebiana entre íntimo e exterior e propõe um espaço que se opõe ao espaço euclidiano. As figuras topológicas, em sua maioria, são superfícies de uma só face, ou seja, não dividem o espaço em dois. Existe então uma continuidade entre o dentro e o fora como aquela que podemos visualizar na banda de Moebius. Assim, nesse espaço semelhante a um labirinto, Freud[5] se perde nas ruas da pequena cidade italiana voltando sempre ao mesmo lugar, e do qual tem tanta pressa em sair. Lugar no qual é olhado pelas mulheres de má reputação penduradas em suas janelas, janelas que se abrem como um corte que deixa aparecer o inesperado, o hóspede.
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Interrogar essa estranha espacialidade que se sustenta no uso dos fios. Espacialidade que denuncia a instabilidade da forma do Eu e dos limites do corpo. Corpo que pode se sustentar nos fios da descontinuidade simbólica e se movimentar livremente como o ar que entra e sai, mas que também pode cair, perder todo o movimento ao ceder e se desfazer sob o peso do real. Os fios que serviram à menina de nove anos para sustentar sua entrada em análise, os fios que serviram a Oliveira para sustentar sua defesa contra a ameaça de desaparecimento do Eu… Fios que me servem agora para sustentar o espaço/passo da escrita.
Um sonho anunciava o passo da escrita:
Chegava ao consultório da analista e, na sala de espera, notava que a porta estava entreaberta. Meio sem jeito, abria sem fazer ruído e entrava. Na sala algumas cadeiras semelhantes às usadas nas escolas e pessoas compenetradas escrevendo. Eu sentava e logo vinha a analista, que me entregava uma folha de papel. Embora fosse apenas uma folha avulsa, era um manual de orientação para publicação.
O relato do sonho em análise fez advir um convite para participar de um cartel do passe. O convite ficou em aberto, mas restou o desejo de passagem ao público que o sonho fez figurar. Como fazer passar ao público o que passou durante uma experiência de análise? Talvez escrevendo como se estivesse tecendo com fios essa cama de gato que pode ser o espaço da escrita, espaço que faz passar um corpo por entre as frestas, espaço que faz passar o ar…. Espaço sumamente não euclidiano. Assim como Oliveira eu sentia-me atraída pelos fios….
Em Infância em Berlim[6] Walter Benjamim nos fala da caixa de costura. Trata-se de um jogo de papel oferecido às crianças como exercício preliminar à prática da escrita. Benjamim aponta que a criança não borda o papel apenas para ver os desenhos que vão surgindo em sua superfície, e que o verdadeiro encanto está no lado do avesso do papel, no qual se escreve um labirinto de fios, traços emaranhados que revelam a dimensão oculta do desejo humano.
O que traçam os fios que tecem o espaço/tempo da escrita? Escrever para tornar legível o que atravessa; na oscilação do corpo como a criança que joga a cama de gato ou o jogo da amarelinha. Escrever para circunscrever o que resta do que passou; no risco de perder-se como a criança que brinca de escrever com a caixa de costura…Fios que tecem a perda e bordam o que resta.
Do que restou do sonho que fez figurar o desejo de passagem ao público anunciando o passo da escrita: mãos à obra em torno da folha avulsa.
Do que atravessa: Quando meu pai morreu a analista interrogou; o que você perdeu? Logo lembrei da voz de meu pai dizendo filhinha…. Dizia assim, mesmo agora, quando ha muito tempo eu já não era mais menina, mas agora não dizia mais… Fi linha; Linha…O que traça essa linha? Ir e vir com os fios, ir e vir com o corpo atravessando, enlaçando e desenlaçando as linhas que traçam esse espaço vazado, espaço que sustenta uma prática de escrita. Prática de escrita que sustenta o passo da escrita em torno desse ponto de perda que fi linha borda…
Questões gramaticais
Lydia Davis
Agora que ele está morrendo, será que posso dizer, “É aqui que ele vive”?
Se me perguntarem, “Onde ele está vivendo agora?”, será que eu deveria responder, “A verdade é que ele não está vivendo, está morrendo”?
Se me perguntarem, “Onde ele vive agora?”, posso responder, “Ele vive em Vernon Hall”? Ou devo dizer, “Ele morre em Vernon Hall”?
Quando ele morrer, tudo relacionado a ele virá com o verbo no passado. Ou melhor, a frase “Ele está morto” estará no presente, e também perguntas como “Para onde o estão levando?” ou “Onde ele está agora?”.
Mas não saberei se as palavras “ele” e “dele” estão corretas, no tempo presente. Uma vez morto, ele ainda é “ele”? E, em caso afirmativo, por quanto tempo ainda será “ele”?
As pessoas podem dizer “o corpo” e depois chamar de “isto”. Eu não vou conseguir dizer “o corpo” me referindo a ele porque para mim ele ainda não é algo que se possa chamar de “corpo”.
As pessoas podem dizer “o corpo dele”, mas também não me parece correto. O corpo não é mais “dele” porque ele não é o dono do corpo, uma vez que não está ativo e não pode mais ser dono de nada.
Não sei se há um “ele”, mesmo que todos digam, “Ele está morto”. Não parece correto dizer “ele está morto”. Esta pode ser a última vez em que ele será “ele”, no presente. Ou então não, porque eu direi, “Ele está no caixão”. Não direi, nem ninguém dirá, “Isto está no caixão”, ou “Isto está dentro do caixão”.
Vou continuar a dizer “meu pai” me referindo a ele, quando ele morrer, mas será que empregarei o verbo só no passado, ou também no presente?
Ele será colocado numa caixa, não num caixão. E quando estiver na caixa, será que eu direi, “Este, na caixa, é o meu pai”, ou “Este, na caixa, era o meu pai”, ou ainda “Isto, na caixa, era o meu pai”?
Continuarei a dizer “meu pai”, mas talvez só enquanto ele lembrar o meu pai, ou lembrar vagamente o meu pai. Depois, quando ele se transformar em cinzas, será que vou apontar para as cinzas e dizer, “Aquilo é o meu pai”? Ou será que direi, “Aquilo era o meu pai”? Ou “Aquelas cinzas eram o meu pai”? Ou “Aquelas cinzas são o que foi o meu pai”?
Quando for ao cemitério, será que vou apontar e dizer, “Meu pai está enterrado ali”, ou será que direi, “As cinzas do meu pai estão enterradas ali”? Mas as cinzas não pertencem ao meu pai, ele não será dono delas. Elas serão “as cinzas que foram o meu pai”.[7]
Como conjugar a morte? Qual pronome usar? Qual tempo de verbo? Qual sujeito? Qual objeto? Como formar uma frase cuja gramática satisfaça a morte? Questões suscitadas pela escrita de Lydia Davis que se fazem em torno das dificuldades de designação: como referir-se ao morto, que ainda não o é? Como situar-se nesse curto-circuito temporal onde o vir a ser não é da ordem do dizível?
Foi com meu pai que aprendi os nomes das árvores; Acássia, Sibipiruna, Pau de flor, Jacarandá, Pau Brasil… Nomes para nomear o que estava lá, fazer existir o que estava lá antes do nome. Nomear é o que faz um pai para uma filha. Nome dele; meu nome.
O corpo de meu pai; meu pai; o que foi um dia meu pai, o que é agora o corpo de meu pai, o que restou… foi cremado em um domingo de verão. O cemitério estava localizado em uma antiga fazenda com muitos hectares de terra e uma grande floresta nativa que foi preservada. Algum tempo depois recebi de um amigo pintor algo sobre aquele domingo:
Esta série nasceu no dia da cremação do pai de um amigo. Saí para caminhar nos jardins do cemitério, em meio às árvores e à vegetação, e tentei compreender a significação daquele momento — um corpo seria calcinado. Procurava algo que poderia representar visualmente a relação que senti. Encontrar nos desenhos, nas texturas, nos musgos e em nós as diferentes árvores, breves significações. (Ayao Okamoto[8])
A série do amigo pintor me tocou profundamente; os desenhos, as texturas que faziam aparição nos troncos das árvores que um dia meu pai fez existir para mim. Um punhado das cinzas em que se transformou o corpo calcinado de meu pai foi usado para plantar em meu jardim uma muda de Sibipiruna que recebi no cemitério no domingo de sua cremação. O restante foi jogado no mar tempos depois em uma praia da cidade que escolheu para viver os últimos anos de sua vida.
Na antiguidade as cascas da árvore de Bétula eram usadas como suporte para a escrita. Na modernidade as mesmas árvores de Bétulas serviram para nomear um campo de extermínio nazista: Birkenau. Bétulas de Birkenau; Bétulas é Birken; bosque de bétulas é Birkenwald. O filosofo Didi-Huberman visita o museu de Auschwitz–Birkenau:
Cheguei ao complexo de Auschwitz–Birkenau num domingo de manhã, bem cedo. As catracas metálicas, idênticas às do metrô, ainda estavam abertas. Transpus a porta do antigo inferno, tão calmo e silencioso nessa manhã de domingo. Subi à guarita principal. Fotografei a janela que dá para a rampa de triagem. Meu amigo Henri que me acompanhava me contou ter me ouvido dizer: Isso é inimaginável. Foi o que eu disse, claro, como todo mundo. Mas, se devo continuar a escrever, ajustar o foco, fotografar, montar minhas imagens e pensar isso tudo, é precisamente para tornar uma frase desse tipo incompleta. Cumpriria dizer: Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo… [9]
Como atravessar os impasses da imaginação sem ceder ao pior? Como atravessar o luto sem ceder à melancolia? Devo imaginá-lo apesar de tudo… Didi-Huberman dá outro destino às cascas de Bétula que escreveram o nome do campo de concentração nazista. Ele faz das cascas o suporte para uma escrita; a escrita de uma carta que permite atravessar o inimaginável do extermínio nazista.
Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei, julgando que o olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito. Olhei as três lascas como uma escrita prévia a qualquer alfabeto. Ou talvez, como o início de uma carta a ser escrita, mas para quem? Percebo que as dispus sobre o papel branco involuntariamente na mesma direção que segue minha língua escrita: toda carta começa à esquerda, ali onde enfiei minhas unhas no tronco da árvore para arrancar a casca. Três lascas de tempo. Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente, aqui sob meus olhos, sobre a página branca, um pedaço de desejo, a carta a ser escrita, mas para quem?[10]
Cascas, lascas; essa coisa não escrita, o que resta da linguagem, o que resiste à língua, mas, mesmo assim, o que faz apelo à leitura. Cascas, lascas de tempo, lascas de desejo que permitem atravessar o que faz impasse, impossibilidade quando os recursos da língua não nos servem, quando as imagens nos faltam. Restos do corpo das árvores que permitem fazer operar uma borda, borda que circunscreve um real que não mais remete aos impensáveis, inimagináveis, mas permite uma travessia dando lugar à invenção ou à criação ali onde havia impasse, impossibilidade….
A pintura de Ayao e a carta de Didi-Huberman me fizeram voltar às imagens feitas em uma viagem à parte sul da floresta Amazônica. O ano era 2010 e as imagens foram feitas com a câmera Nikon que acabara de comprar. Quem me ensinou a fotografar foi meu pai, foi dele a máquina que usei durante muitos anos para fazer imagens, também uma Nikon, mas essa não funciona mais…
Olhando novamente para essas imagens que permaneceram guardadas, percebo que muitas delas criam volumes na floresta, volumes criados a partir de contornos; raízes que se elevam no ar fazendo buracos no interior espesso da floresta. Enlaces: raízes que se contornam, se abraçam, se envolvem fazendo surgir uma estranha geometria nascida em meio à matéria orgânica que nutre o solo da floresta. Buracos que se abrem rasgando a superfície demasiado sólida das árvores imensas para dar lugar a um outro espaço; espaço sustentado nas bordas, nos orifícios pulsantes do corpo sempre em movimento da floresta amazônica.
É essa pulsação que meu olhar de férias fez ressoar no interior da floresta e que agora me permite fazer ressoar as bordas que contornam a desaparição de meu pai. FotoGrafar… FiLinha….
Alguns meses depois da morte de meu pai, recebi de minha mãe uma coleção de selos. Talvez não se tratasse propriamente de uma coleção, mas de uma tentativa de fazer daquele amontoado de selos uma coleção, uma tentativa de dar aos pequenos fragmentos de tempo, contidos nos selos esparços, uma lineariedade. Eram dezenas de pequenos envelopes feitos de papel de seda, muito finos e ligeiramente transparentes. Amarelados pelo tempo que neles se acumulara tinham perdido parte da transparência original, agora eram quase opacos, quase… Apesar de muito antigos, estavam surpreendentemente conservados dada a fragilidade do material do qual eram feitos. Os envelopes estavam guardados em uma caixa, junto com alguns álbuns, cartões postais, cartas e selos mais recentes. O destinatário dessa coleção foi meu filho. Meu pai costumava guardar os selos da correspondência que recebia e dá-los ao neto, repetindo um gesto que um dia fora endereçado a mim quando menina. Meu pai recebeu a coleção de selos quando meu avô paterno morreu e agora meu filho a recebia. Mas essa transmissão tomou ares de aventura quando minha mãe anunciou que ali, no meio daquele amontoado de milhares de selos, poderia ser encontrado um selo raro cujo valor seria muito alto. Instigados pelo que se anunciava como uma caça ao tesouro, eu e meu filho nos debruçamos sobre o amontoado dispostos a escavar, munidos de lupas e pinças.
Espalhei o conteúdo da caixa sobre a mesa de jantar e com auxílio de informações que fui recolhendo na Internete, mergulhei no mundo desconhecido da filatelia. Eu e meu filho éramos amadores e a tarefa de separar e catalogar os selos foi se revelando complexa e cansativa até que o filho perdeu o interesse, frustrado pela demora em achar um selo raro. Mas eu fui me envolvendo com aquela busca, que ja não era mais a busca por um selo de valor, era algo que não conseguia parar de fazer. Era um fazer que perdera o sentido original, um fazer sem sentido definido, que me absorvia completamente naquele espaço silencioso e solitário que se abria nas brechas do fazer do dia a dia.
Era eu quem agora repetia o gesto que um dia fora realizado pelo pai; separar e catalogar os selos herdados, gesto que fora interrompido por ele e permanecera em estado de espera anunciando o devir de uma coleção. Passados alguns meses naquele fazer amador tambem perdi o interesse e o devir da coleção permaneceu em aberto. Os selos continuaram em sua condição instável de fragmentos ressistindo mais uma vez a sedução do todo anunciada na promessa da coleção. Desse fazer que me absorveu durante alguns meses logo após a morte de meu pai, restou um tesouro não encontrado, uma coleção interrompida, fragmentos amontoados de tempo espalhados nos selos sem valor.
Restou ainda o prazer de um fazer amador que fez laço entre o luto e o amor. Laço experimentado a cada toque macio e escorregadio com o papel delicado dos envelopes que envolviam os selos, como uma pele quase transparente, uma pele à beira do desaparecimento. Laço experimentado no gosto estranho e amargo a cada lambida dos restos de cola seca ainda grudados nas costas dos selos muito antigos.
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As linhas, as cascas, os selos… Elementos que me ajudaram a sustentar o passo da escrita em torno da perda de Filinha e atravessá-la ao fazer ressoar FiLinha… ♦
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. “Infância em Berlim” [Trad., José Carlos Martins Barbosa]. In: Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009; pp. 73-142.
CORTÁZAR, Julio (1968) O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
DAVIS, Lydia. “Questões gramaticais” In: Tipos de perturbação: ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
DIDI HUBERMAN, Georges (2011) Cascas [Trad. André Telles]. In: Revista Serrote Rio de Janeiro, n. 13, pp. 99-133. 2013, IMS.
FREUD, Sigmund (1919) “Lo siniestro”[Trad. Luís Lopez-Ballesteros y de Torres]. In: Obras Completas, tomo III. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981; pp. 2483-2505.
OKAMOTO, Ayao. Disponível em: <www.loeildelaphotographie.com>. Consultado em 28 de janeiro de 2015.
* Andrea Menezes Masagão é psicanalista com pós-doutorado em Linguística pela Universidade de Campinas. Autora do livro Habitats (2012), no qual interroga o inabitável em três casas diferentes. Diretora dos documentários O zero não é vazio (2005) e Habitats (2011), roteirista do filme Otávio e as letras (2008). Atualmente realiza pós-doutorado em Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que interroga a escrita como possibilidade de passar o que ata e desata entre o luto e o amor. Tem dois cachorros chamados Dúvida e Culpa.
[1] CORTÁZAR, Julio (1968) O jogo da amarelinha. Trad. F. C. Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; p. 287.
[2] CORTÁZAR, Julio (1968) O jogo da amarelinha. Trad. F. C. Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; pp. 291-292.
[3] CORTÁZAR, Julio (1968) O jogo da amarelinha. Trad. F. C. Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; p. 296.
[4] CORTÁZAR, Julio (1968) O jogo da amarelinha. Trad. F. C. Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982; p. 297.
[5] FREUD, Sigmund (1919) “Lo siniestro” [Trad. L. Lopez-Ballesteros y de Torres]. In: Obras Completas, tomo III. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981; pp. 2483-2505.
[6] BENJAMIN, Walter “Infância em Berlim” [Trad. J. C. M. Barbosa]. In: Rua de mão única. Trad. R. R. Torres Filho; J. C. M. Barbosa. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009; pp. 73-142.
[7] DAVIS, Lydia. “Questões gramaticais” In: Tipos de perturbação: ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[8] OKAMOTO, Ayao. Disponível em: <www.loeildelaphotographie.com>. Consultado em 28 de janeiro de 2015.
[9] DIDI HUBERMAN, Georges (2011) Cascas [Trad. A. Telles]. Revista Serrote, Rio de Janeiro, n. 13, 2013; p. 111.
[10] DIDI HUBERMAN, Georges (2011) Cascas [Trad. A. Telles]. Revista Serrote, Rio de Janeiro, n. 13, 2013; p. 99.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | MASAGÃO, Andrea Menezes (2017) O passo da escrita. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 4, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-04/>.