Parto[1] de uma afirmação para situar os motivos pelos quais sou levada a redigir este artigo: certas experiências de leitura exigem do leitor um fazer que o leva a escrever.
Em sua crônica “Como é que se escreve?”, publicada no Jornal do Brasil em 30 de novembro de 1968, Clarice Lispector reitera o lugar de onde enunciava, do qual provinha a sua matéria prima. Na borda do simbólico, ela escrevia de mãos dadas com o não-saber, num além que ultrapassa a ordem significante, sempre relutante em se reconhecer como escritora profissional, sempre a reafirmar o seu distanciamento em relação a uma tradição literária existente.
Ao escutarmos a pergunta que Clarice nos dirige no título com o qual nomeia a sua crônica (a nós, seus leitores), imediatamente indagamo-nos não exatamente sobre o “Como é que se escreve?” e sim a respeito daquilo que jamais se escreveu ou escreverá, isto é, o real em face ao qual a escrita de alguns textos se esforça por bordejar. Textos não totalmente permeáveis ao sentido comum designado pelas palavras. Textos que levam o leitor a um impossível de se escutar; a um indizível, a um sulco de silêncio no justo ponto em que o sentido se apaga.
Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve? Por que, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? e como é que se começa? e que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranquilo? Sei que a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever. Será que escrever é um ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve.[2]
Sem domínio sobre o seu método de escrita, Clarice considerava-se incapaz de desempenhá-lo de modo totalmente voluntário, muitas vezes sendo conduzida a escrever por genuínas epifanias, num exercício com a linguagem em que pouco parecia se importar em transmitir uma mensagem, um enredo ou uma ideia coesa ou linear. Franca era a sua posição antiliteratura, posição a partir da qual seu texto atinge o estatuto daquilo que Lacan nomeou como Lituraterra.[3]
Não sei bem o que é um conto. No entanto, apesar de nebulosamente, sei o que é um anticonto. Nebulosamente. Talvez eu entenda mais o anticonto porque sou antiescritora. Acho que uma pessoa é escritora se escreve quando resolve escrever: quando se propõe um tema ou lhe propõem um enredo. Ou mesmo quando apenas lhe propõem escrever. E eu não sei me comandar. Escrevo só quando “a coisa vem”. Estou doida para poder escrever um conto.[4]
Diante do repertório de possíveis experiências e sensações a partir das quais era levada a escrever, Clarice Lispector considerava que seus livros não eram, de forma alguma, “superlotados de fatos”, e sim “da repercussão dos fatos nos indivíduos”, depoimento cujo eco reverbera o seguinte testemunho: “o que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim […] Procuro uma verdade que me ultrapassa”[5]. Sim, escrever se trata de uma ultrapassagem, de uma passagem entre registros, afirmação que aqui assumimos também enquanto leitores de Jacques Lacan.
Na lição de 20 de dezembro de 1961 do Seminário 9 (1961-1962) – A identificação, Lacan sublinhou que a escrita é o isolamento do traço significante, uma vez que, em relação ao que se escreve textualmente, “o que representa o surgimento da escrita é que algo já estava escrito, se considerarmos que a característica da escrita é o isolamento do traço significante que, ao ser nomeado, serve de suporte ao som”[6].
Todavia, o próprio Lacan retomará essas premissas quando, cerca de dez anos mais tarde, empreende no Seminário 20 (1972-1973) – Mais, ainda uma importante revisão sobre a temática do UM. Nesse momento, ele se debruça sobre o estatuto da leitura na psicanálise, o que lhe permitiu indicar que a fala e a escrita são os dois principais efeitos decorrentes do ingresso no campo da linguagem. Esse campo sobre o qual Clarice Lispector testemunha, em sua experiência de passagem.
Como consequência, a interpretação e a identificação podem ser tomadas como operações que implicam a leitura de um traço escrito, o que, por sua vez, possibilita que não se leia o sentido comum designado pela palavra. Lê-se, ao invés disso, um impossível de se escutar; um indizível, um sulco de silêncio no justo ponto em que o sentido se apaga. Trata-se de uma leitura que não se deve ao som e sim a designação do significante funcionando como um objeto, tal como Lacan se posiciona no Seminário 9 a respeito do Nome próprio[7].
No Seminário 20, Lacan também afirmou que a escrita é “um traço onde se lê um efeito de linguagem”[8]. O efeito proporcionado nessa operação? O sujeito subsumido em sua marca, lido como traço, como Einziger Zug. Esse efeito de linguagem é tributário da leitura de um traço que opera na mais completa solidão, porque se encontra isolado, excluído da bateria significante. É porque há uma verdade que ultrapassa o simbólico que Clarice escrevia partindo de um não-saber. Ela seguia uma estranha linha fatal, esse era o seu verdadeiro destino: o reiterado exercício de escrever a não escrita da relação sexual.
Destinada ao trabalho que se opera com a letra, foi o seu amor pela língua portuguesa que lhe permitiu alcançar os limites da palavra, radicalmente. Por isso ela escrevia com o corpo, ao enunciar de um lugar que é originário, quando se forma a matriz simbólica pela qual um traço de escrita se deposita no corpo, então liturado pelos aluviões de lalangue.
Clarice Lispector testemunha o ato que inscreve o ser falante na linguagem, que dá acesso ao nascimento da fala e da escrita textual. Por isso é que, para ela, escrever era uma maldição que a salvava. Às voltas com o gozo e na borda do saber, o seu ato de escrita evoca um discurso sem palavras, o que situa o seu texto em um patamar que vai além do discurso literário.
Nesse ponto recuperamos Maurice Blanchot, quando fala de um tempo mítico em que passado, presente e futuro se condensam, simultaneamente. A narrativa nasce pouco a pouco, brotando de um lugar vazio que coincide com o tempo puro do espaço infinito. A textualidade da obra é tecida na intimidade do silêncio que o escritor impõe à fala — sacrificando em si a fala que lhe é própria, proveniente do seu “Eu” — para dar voz ao universal. Quando o ato de escrever corresponde a descobrir o interminável, o escritor entra nessa zona indeterminada em que o tempo e o espaço estão subvertidos. O escritor, que aí se lança, não ruma a um mundo mais seguro; tampouco vai na direção de uma linguagem mais bela. Segundo Blanchot, nesse instante o escritor é simplesmente “falado” por uma voz que o guia, numa errância quase alucinada, em decorrência do simples fato de ele estar sob a égide de uma dessubjetivação. Assim, pelos desvãos que a sua palavra gradativamente contorna, o escritor positiva o silêncio que faz a obra ser o que ela é. Assim nos diz, mostra Clarice.
Para Maurice Blanchot[9] o ato de escrever fixa um ponto de basta no deslizamento metonímico, que se quer infinito, uma vez que a palavra não dá conta de exprimir o real que a causa. O escrever promove, nesse viés, uma ruptura que faz vibrar um hiato na narrativa, tocando num impossível de ser dito. Daí denota-se a potência poética desse ato, uma vez que, através dos artifícios de linguagem que utiliza, o escritor consegue impor o silêncio à palavra que, em seu limite, já quase não diz mais nada, tocando no imponderável, fomentando um eco que se propaga no vazio opaco no qual a significação fracassa e o sentido se limita.
Escrever é fazer com que aquilo que não cessa de falar se transforme num eco, e, por esse motivo, para que se transforme em eco, eu devo de alguma maneira impor-lhe o silêncio. Eu forneço a essa palavra incessante a decisão, a autoridade do meu próprio silêncio. Eu torno sensível, por meio de minha mediação silenciosa, a afirmação ininterrupta, o murmúrio gigante sobre o qual a linguagem, ao se abrir, torna-se imagem, torna-se imaginário, profundeza falante, plenitude indistinta que está vazia. Esse silêncio tem a sua força no apagamento ao qual aquele que escreve é convidado. Aí onde eu estou só, o dia nada mais é do que a perda de permanência, a intimidade com o exterior sem lugar nem repouso. A vinda faz aqui com que aquele que vem pertença à dispersão, à fissura em que o exterior é a intrusão que sufoca, é a nudez, é o frio daquilo em que se permanece a descoberto, onde o espaço é a vertigem do espaçamento. Reina então o fascínio[10].
Essa passagem de Blanchot nos indica uma importante relação entre a escrita e os objetos voz e olhar. A voz implícita no silêncio — e nos cacos fônicos que restaram de lalangue — e o olhar enquanto o objeto relacionado ao instante de ver, quando um traço de escrita se inscreve no corpo, contemporaneamente à fascinação do infans diante do Outro. Instante de fulgor absoluto quando o tempo cessa, tornando-se momentaneamente eterno.
O ato de escrever provoca assim uma escavação, um esburacamento no sentido, abrindo o espaço através do qual o escritor será conduzido ao longo da travessia do vazio absoluto de onde ele cria. Uma operação que ocorre na temporalidade do Agora, por meio de uma suspensão temporal que faz cessar tanto o passado quanto o futuro. Quando a “coisa-é”, parafraseando Clarice Lispector em Água viva.
Mas a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É.
Estou no seu âmago.
Ainda estou.
Estou no centro vivo e mole,
Ainda.
(…)
Este instante é.
Você que me lê é.[11]
♦
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice (1955) L’espace littéraire. Paris: Éditions Gallimard, 2009.
BRANDÃO CARREIRA, Luciana (2014) Os tempos da escrita na Obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud.
BORELLI, Olga (1981) Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
CASTELLO BRANCO, Lucia (2011) Chão de Letras. Belo Horizonte: Editora UFMG.
LACAN, Jacques (1961-62) O Seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de estudos Freudianos do Recife, 2003a. Publicação para circulação interna.
_____. (1971) O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse do semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
_____. (1971) “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b; p.15-25.
_____. (1972-73) O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LISPECTOR, Clarice (1977) A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.
_____. (1973) Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.
_____. (1968) A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.
* Luciana Brandão Carreira é escritora, psicanalista e psiquiatra. Doutora em Psicanálise pela UERJ com doutorado sanduíche na Université Paris XIII. Pesquisadora da rede internacional de pesquisa Escritas da Experiência. Professora adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Pós-doutoranda em Estudos literários no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) na Universidade Nova de Lisboa. Autora dos livros Entre (Verve, 2014) e Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise (Cia de Freud, 2014). Faz parte do núcleo editorial da Revista de Literatura Polichinello.
[1] Parte deste trabalho pode ser reencontrado no livro Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise, de Luciana Brandão Carreira (Cia. de Freud, 2014).
[2] LISPECTOR, Clarice (1968) A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a; pp. 156-157.
[3] LACAN, Jacques (1971) “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b; pp. 15-25.
[4] BORELLI, Olga (1981) Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; p. 69.
[5] LISPECTOR, Clarice (1977) A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a; pp. 20-21.
[6] LACAN, Jacques (1961-62) O Seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de estudos Freudianos do Recife, 2003a; p. 93.
[7] LACAN, Jacques (1961-62) O Seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de estudos Freudianos do Recife, 2003a.
[8] LACAN, Jacques (1972-73) O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985; p. 50.
[9] BLANCHOT, Maurice (1955) L’espace littéraire. Paris: Éditions Gallimard, 2009.
[10] “Écrire, c’est faire l’écho de ce qui ne peut cesser de parler, – et, à cause de cela, pour en devenir l’écho, je dois d’une certaine manière lui imposer silence. J’apporte à cette parole incessante la décision, l’autorité de mon silence propre. Je rends sensible, par ma médiation silencieuse, l’affirmation ininterrompue, le murmure géant sur lequel le langage en s’ouvrant déviant image, déviant imaginaire, profondeur parlante, indistincte plénitude qui est vide. Ce silence a sa source dans l’effacement auquel celui qui écrit est invite […] Là où je suis seule, le jour n’est plus que la perte séjour, l’intimité avec le dehors sans lieu et sans repos. La venue ici fait que celui qui vient appartient à la dispersion, à la fissure ou l’extérieur est l’intrusion qui étouffe, est la nudité, est le froid de ce en quoi l’on demeure à découvert, ou l’espace est le vertige de l’espacement. Alors règne la fascination” (BLANCHOT, Maurice [1955] L’espace littéraire. Paris: Éditions Gallimard, 2009; pp. 22-28).
[11] LISPECTOR, Clarice (1973) Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b; pp. 16-18.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | CARREIRA, Luciana Brandão (2017) “Como é que se escreve?” – pergunta Clarice Lispector, a antiescritora. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 5, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-05/>.