MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. de Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017.
Partindo da ideia de que ninguém melhor para ensinar os clínicos a respeito de seu funcionamento do que o próprio sujeito, Jean-Claude Maleval, em seu livro O autista e a sua voz[1], conduz seu leitor mais uma vez com maestria pelos caminhos da clínica com os autistas.
O autor, que inicia essa obra retomando a história do autismo desde as primeiras descrições psiquiátricas de Bleuler no início do século XX, nas quais o termo autismo era utilizado para se referir ao retraimento de sujeitos em um mundo interior autoerótico, passa, cuidadosamente, pelos trabalhos longitudinais de Kanner e Asperger, que envolveram sujeitos autistas na década de 40, e culmina ainda em tom introdutório dessa obra na pergunta que perpassa todos os pontos chaves de seu texto: o que acontece com as crianças autistas depois que se tornam adultos?
Ao perceber que o uso do termo e, consequentemente, do diagnóstico de autismo desaparece em indivíduos adultos, Maleval defende que isso não quer dizer que eles deixam de existir, e se interessa em investigar o que se modifica nessa condição que justifique esse fenômeno. Para que essa investigação faça sentido, é preciso lembrar que Maleval faz parte dos psicanalistas que preconizam o autismo como uma das formas de estruturação psíquica e não como um estado dentro de uma estrutura psicótica, e tampouco compartilha da noção de Transtorno do Neurodesenvolvimento. Esse posicionamento em relação à patologia traz consigo uma possibilidade de leitura diagnóstica e direção terapêutica diferentes dessas últimas propostas e, portanto, merece ser entendido com bastante cuidado.
A noção de Transtorno do Neurodeselvolvimento estaria associada à ideia de prejuízos que podem ser detectados precocemente no funcionamento pessoal, social, acadêmico ou profissional[2]. Nos casos de pessoas com autismo, se caracterizaria especificamente por déficits persistentes na comunicação e na interação social em múltiplos contextos, o que incluiria a reciprocidade e a compreensão dos comportamentos não verbais utilizados para a manutenção de relacionamentos sociais[3]; já a noção de autismo como um estado psíquico de uma estrutura psicótica estaria associada à forma de estruturação não operante via recalque e sim através do mecanismo da negação que lhe é particular. Ao se posicionar contrariamente à essas leituras, Maleval valoriza a importância de entendermos o autismo como uma maneira de ser ao mesmo tempo que reitera a importância dos efeitos desse entendimento aos próprios autistas.
Há pelo menos 20 anos, autistas de alto funcionamento vêm escrevendo livros autobiográficos que relatam desde particularidades de seu funcionamento psíquico até suas opiniões a respeito dos diversos tipos de tratamentos aos quais já foram submetidos. Com suas palavras e à sua maneira, podem ensinar com bastantes detalhes aos clínicos sobre o que lhes têm, ou não, servido de recurso para se reposicionarem subjetivamente e conseguirem dar outro destino à sua forma de mal-estar. Seus dois sintomas principais, a solidão e a imutabilidade, podem ser grandemente modificados quando há condições favoráveis para tal.
No entanto, atualmente, tempo de apelo às imediatices, fica cada vez mais difícil apostar na opção psicodinâmica de tratamento. Muito embora os geneticistas mais ortodoxos ainda não tenham encontrado os genes responsáveis pelo autismo, e a indústria farmacêutica não tenha encontrado drogas que os “curariam”, a busca pelo desaparecimento — um dos significados possíveis do verbo curar — do autismo segue cega e afoita. Enquanto não resolvem esse enigma, o autismo segue interpretado por grande parte dos profissionais do campo da saúde e da educação como uma deficiência que pode ser tratada exclusivamente pela via do comportamento. Dessa forma, bastaria educá-los.
Autistas são confrontados com técnicas de reeducação, como assim são chamadas, que ignoram seus receios e suas angústias e que têm o objetivo precário de fazê-los obedecer. Seria esse o melhor que se pode fazer nos processos de inclusão ou nos consultórios das diversas especialidades? Com certeza não. Há instituições[4] que vêm mostrando há muitos anos como incluir em escolas um trabalho que é orientado por aquilo que escapa à ciência: a subjetividade.
Na clínica psicanalítica pela qual Maleval se orienta, esse posicionamento não é diferente. Deixar “desabrochar as capacidades de autorreparação da existência”[5] é a direção do tratamento.
O destino do sujeito autista não está selado no seu corpo: seu entorno tem um papel importante no seu devir. Porém, umas das maiores conclusões do nosso trabalho reside no fato de que o educacional não basta para tratar o autista. É preciso algo mais, que não se programe, mas que pode ser entravado. […] É, em última análise, apenas por intermédio de uma escolha decisiva e dolorosa de abandonar as satisfações do seu mundo assegurado que certos autistas chegam a uma atividade de alto funcionamento. Essa escolha pode ser favorecida, assim como pode ser interditada. […] É preciso ainda que tenha encontrado as condições favoráveis que lhes permitam tornar-se um sujeito capaz de ultrapassar as restrições da imutabilidade para fazer escolhas pessoais. O funcionamento autístico mais exímio não é o de uma criança obediente, mas o de um sujeito capaz de assumir determinados atos importantes (escolhas profissionais, sentimentais, a decisão de escrever um livro etc.), sem que estes lhes tenham sido ditados por aqueles que estão à sua volta. Decerto uma minoria bem pequena chega a isso, mas os testemunhos deles são essenciais para orientar os clínicos e educadores no mundo tão difícil de penetrar dos autistas de Kanner.[6]
Antes de nos contar como isso seria possível, Maleval rememora a história das abordagens psicanalíticas do autismo. Traz para seu texto as perspectivas teórico-clínicas de Margaret Mahler, psicanalista formada em Viena e que devido ao seu interesse pela esquizofrenia infantil em 1950 tem acesso ao estudo de Kanner que tenta integrar o autismo a uma teoria geral do desenvolvimento da criança; de Bruno Bettelheim, com o atendimento de Joey, conhecido como “o menino mecânico”; o caso Dick de Melanie Klein e posteriormente alguns dos comentários de Jacques Lacan a seu respeito; de Donald Meltzer, psicanalista de orientação kleiniana; de Frances Tustin, psicanalista formada por Bion, que faz as primeiras considerações acerca da noção de objeto autístico e, finalmente, do casal Lefort, com seu caso Marie-Françoise, uma bebê de 30 meses. Esta revisão bibliográfica serve para nos mostrar que, apesar das divergências que existem entre eles, há um ponto em comum entre as quatro principais abordagens psicanalíticas clássicas do autismo infantil: a hipótese de que se trata da patologia mais arcaica de todas.
Depois desse passeio pelas hipóteses teóricas, o autor entra nos testemunhos de emergência do autismo. Trata-se de um gênero literário que surge a partir da década de 1970, no qual autistas de alto funcionamento demonstram que métodos educativos improvisados pela família podem impetrar melhoras espetaculares na condição autística[7]. O entrelaçamento de trechos desses autores a seu próprio texto demonstra a ética clínica que Maleval traz consigo.
Sustentar o valor heurístico dessa categoria literária para clínica psicanalítica com autistas é um passo muito importante. Como nos diz o autor, fazer frente à ideia de que a angústia se reduziria a um mero problema de raciocínio no caso do autismo e escutar — mesmo que pela via da leitura — o que eles têm a nos dizer é equivalente ao que Freud e Lacan fizeram com a obra de Schreber quando tentavam pensar a psicose.
Defendendo a diferença entre a estrutura autística e a psicótica, o autor dedica um capítulo todo de seu livro ao aprofundamento da lógica da alucinação. “Eles ouvem bastante coisa, mas será que são alucinados?” é a pergunta que ao mesmo tempo em que dá nome, irá nortear esse capítulo. Nele é desenvolvido o conceito de alucinação e seu papel em ambas as estruturas, conduzindo seus leitores à compreensão das especificidades funcionais em cada uma delas. A da alucinação do autista pode ser afastada da alucinação do psicótico porque pode ser entendida como uma das formas do Duplo autístico.
Se nesse momento de sua obra está inequívoca a existência da estrutura autística é porque o autor fornece dois pontos cardeais que a inscreve como tal: a retenção do objeto do gozo vocal e o retorno do gozo na borda. A sequência que desenvolve essas informações vem na forma de um verdadeiro presente com os dois últimos capítulos, Qual o tratamento para o sujeito autista? e A aprendizagem não basta, nos quais encontramos o melhor do posicionamento do autor.
Maleval explica, em tom mais conclusivo, o que falou em quase duzentas páginas anteriores: como o Duplo, o Outro de síntese e as Ilhas de competências estão relacionadas ao objeto autístico e como são pontos que, quando fazem parte da direção do tratamento dos autistas, podem auxiliá-los a sustentar um modo de vida interessante, diferentemente do que proporcionam as técnicas de aprendizagem. Essa ideia é desenvolvida com auxílio das palavras de Donna Williams[8] sobre os dois tipos de tratamentos, o do Duplo e o da síntese do Outro, dos quais ela fora paciente.
O final dessa leitura hipnótica vem com a aposta de que “quando o objeto autístico é elevado ao mais alto grau, descola-se do duplo para se articular de maneira estreita ao Outro de síntese — ele próprio desenvolvendo as ilhas de competência”, de modo que há casos de autistas que podem “encontrar nesse objeto o fundamento da inserção profissional e social deles”[9]; e com o retorno à ideia de que “uma aprendizagem autêntica se distingue de uma montagem, pois ela acrescenta à aquisição de um comportamento a assimilação, pelo sujeito, do seu sentido”, ou seja, a aprendizagem não bastaria como forma de tratamento, porque a “autonomia resulta de uma escolha que não se ensina”[10], mas que pode aparecer dependendo dos recursos que lhes forem oferecidos como destino.
Certamente um livro imprescindível pelo que a questão do autismo vem mobilizando atualmente, boa leitura! ♦
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th. Ed. Washington: American Psychiatric Association, 2015.
MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. Paulo Sérgio de Souza Jr. São Paulo: Blucher, 2017.
* Natalie Andrade Mas é psicanalista, AT de crianças e adolescentes, bacharel em Psicologia pela PUC-SP, mestranda do Departamento de Psicologia Clínica do IP-USP com a pesquisa A Política de Tratamento do Autismo no Brasil, co-coordenadora da Rede Clínica do Laboratório Jacques Lacan no IP-USP.
[1] Tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr.
[2] AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2015. p.31
[3] AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2015. p.31
[4] Por exemplo, o Centro Terapêutico e de Pesquisa de Nonette (Clermont-Ferrand), Antenne 110 (Bruxelles), Courtil (Leers, na Bélgica)e o Lugar de vida espaço terapêutico no Brasil.
[5] MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017. p. 34.
[6] MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017. p. 35-36.
[7] MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017. p. 67
[8] Uma das autoras autistas de alto funcionamento a quem Jean-Claude Maleval recorre para pensar a clínica com autistas.
[9] MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017. p.210
[10] MALEVAL, Jean-Claude (2009) O autista e a sua voz. Trad. P. S. Souza Jr.. São Paulo: Blucher, 2017. p.224
COMO CITAR ESTE ARTIGO | MAS, Natalie Andrade (2017) Resenha: O autista e a sua voz (Maleval, 2017). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 12, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-12/>.