REIS, Maria Letícia de Oliveira. Infância e memória: histórias de psicanálise com crianças. Curitiba: CRV, 2016.
Memória, a morada da infância
Através da retomada da discussão freudiana sobre memória, lembranças e esquecimento, Maria Letícia de Oliveira Reis desembaraça confusões teóricas e subestimações técnicas acerca da experiência de análise. Seu livro Infância e memória: histórias de psicanálise com crianças parte de um questionamento tão pertinente quanto perspicaz: as crianças que passaram por uma análise, o que lembram desta experiência quando adultos? A pertinência de tal investigação delineia-se através da constante consternação dos psicanalistas em reconhecer que ultimamente outras abordagens psicoterápicas — que não a psicanálise — têm figurado como mais “efetivas” no tratamento de crianças. Este tipo de consideração opera diretamente na escolha dos pais ou cuidadores na hora de optar por um ou outro tipo de tratamento para seus filhos. Ao investigar sobre a memória que tais adultos teriam sobre suas análises durante a infância, a problemática da “efetividade” no campo psicanalítico retorna com questionamentos interessantíssimos para a própria clínica psicanalítica.
O que significa que um adulto lembre com estranha nitidez das sessões, do analista, da sala onde ocorriam os atendimentos e dos motivos que o acabaram levando-o para a análise? E o oposto? Por exemplo, se ele ou ela não se lembra de nada, nem do analista, muito menos de como eram as sessões, nem o porque foi parar lá? A criança que não tem nenhuma memória do sofrimento pelo qual passou, muito menos do tratamento a que foi submetida, pode ser considerada curada? Ou é o contrário, isto é, espera-se que a análise sempre seja um evento que marque a memória de quem vive essa experiência?
Infância e Memória responde através da teoria psicanalítica tecida com casos clínicos clássicos da psicanálise com crianças, somando-se à entrevistas com pessoas que foram analisadas quando pequenos. A própria autora faz seu testemunho, de alguém que passou por duas análises em momentos diferentes da vida, compondo os relatos apresentados de maneira rigorosa.
Ao investigar sobre a infância, através da memória, Maria Letícia está em diálogo direto com o poderoso ensaio de Giorgio Agamben sobre a destruição da experiência, chamado Infância e história[1]. Se o filósofo italiano em seu ensaio buscava localizar a possibilidade da existência de uma experiência anterior e independente da linguagem na infância, Maria Letícia adiciona a questão a problemática da memória enquanto morada da infância, ou seja, um espaço discursivo de tensionamento atual entre um traço de um passado e a sombra de um futuro. Aqui, Letícia está em constante diálogo com Walter Benjamin e suas considerações sobre a História e Narrativa[2]. Acessar traços e rastros da memória e poder organizá-los e reorganizá-los através de uma cadeia de imagens e significantes que construam uma narrativa sobre uma história já em si o que Freud denominou por diversas vezes de “trabalho”. Há no processo de rememoração e transmissão talvez à grande potência da prática psicanalítica, o elo entre clínica e sociedade, que muitas vezes, paradoxalmente é esquecido.
O livro apresenta o lugar da memória na teoria psicanalítica apresentada por Freud. Para além de uma simples recapitulação, o leitor encontrará um estudo crítico sobre a metapsicologia psicanalítica no que tange a organização tópica e dinâmica da memória, incluída no aparelho psíquico. Também encontrará os caso do “pequeno Hans”, o “caso Richard” e o “caso Dick”, sob um novo recorte, que os tensiona com novos fatos extra clínicos colhidos acerca dos atendimentos e de relatos destes sobre a experiência de terem conhecido e sido analisados por Freud ou Melanie Klein.
A formulação metapsicológica da memória no campo teórico psicanalítico e o destaque da mesma não poderia ter outro efeito que não estirar o saber técnico psicanalítico questionando-o sobre qual o lugar da memória dentro da direção da cura no tratamento em psicanálise. Infância e memória está aí para lembrar os analistas de que o processo de rememoração já está incluindo dentro da ideia de cura psicanalítica.
Ao nos lembrar sobre as diversas modificações que a técnica psicanalítica sofreu ao longo de sua história, Freud[3] não se esquece de localizar a importância do ato de recordar para a terapêutica analítica. Se as noções de ab-reação, lembranças encobridoras, associação livre, trauma e resistência tem íntima relação com a memória, nos diz Freud que a própria transferência é um fragmento da repetição de um passado esquecido, um fragmento da vida real. Assim sendo, nosso trabalho terapêutico consiste em remontar o passado à partir de tais fragmentos. Se temos com Freud a importância do recordar dentro da tríade “recordar, repetir e elaborar”, temos com Maria Letícia o reconhecimento de que o ato de lembrar, assim como o de esquecer já são indícios de trabalho analítico operando, sinalizações de um tratamento. Freud chama a atenção para o fato de que a elaboração leva tempo[4], mas enquanto isso, escutemos o que os pacientes narram lembrar e esquecer.
Com frequência podemos esquecer que alguns dos aspectos mais fundamentais do psicanalisar são espantosamente muito simples, mesmo que seus efeitos sejam de grande amplitude e complexidade. O aprofundamento do estudo da teoria e da técnica psicanalítica pode funcionar como uma espécie areia movediça, na qual a frustração corresponde ao esforço que se faz para evitar o sufocamento. Nem precisamos apelar para segunda ou terceira geração de psicanalistas freudianos, pois algumas das próprias formulações freudianas podem nos embaraçar durante um ou outro atendimento. Remetem-se a isso aqueles momentos em que os dizeres da tradição teórica relampejam mais alto na cabeça do analista, do que o manejo transferencial, ou até mesmo do que a própria escuta. Livros como Infância e memória: histórias de psicanálise com crianças funcionam como aquela raiz ou galho sobressalente na qual dá para se agarrar e puxar-se para fora da areia movediça dos dizeres psicanalíticos. ♦
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio (1979) Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BENJAMIN, Walter (2012) Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, vol. 1), 8ª ed.. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
FREUD, Sigmund (1914) “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 159-171.
REIS, Maria Letícia de Oliveira (2016) Infância e Memória: Histórias de psicanálise com crianças. Curitiba: CRV.
* Diego Amaral Penha é Psicólogo e Psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL – USP | PUC-SP). Editor da revista digital Lacuna: uma revista de psicanálise (<revistalacuna.com>). Crítico e colunista de cinema e quadrinhos para os site Mob Ground (<mobground.net>).
[1] AGAMBEN, Giorgio (1979) Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
[2] BENJAMIN, Walter (2012) Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, vol. 1), 8ª ed.. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
[3] FREUD, Sigmund (1914) “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996; pp. 159-171.
[4] FREUD, Sigmund (1914) “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 170.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | PENHA, Diego Amaral (2017) Memória, morada da infância. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 13, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-13/>.