Muitas lembrancinhas fazem uma memória? — sobre o excesso de objetos na infância, a transmissão da falta e o lugar à invenção.[1]
Freud, no texto “Escritores criativos e devaneio”[2], afirma que as crianças precisam apoiar seu fantasiar em objetos concretos para constituir o brincar. Mas o que ocorre quando o brinquedo, em lugar de ser o objeto de apoio para um fantasiar, fica em excesso? Quando, em lugar de possibilitar uma passagem à atividade, ele apassiva a criança, tornando-a espectadora do movimento descrito pelo objeto ou imitadora de uma sua trama preestabelecida?
Brincar pode dar lugar a que a criança elabore questões da sua vida e, mais do que isso, que invente saídas diante dos impasses colocados na relação com seu Outro familiar, social e escolar, indo além da repetição fantasmática em que se busca completar ou ser completado pelo Outro (em uma montagem do Gozo do Outro).
Certamente tem um lugar importante na infância, brincar da reversão de lugares passivo-ativo, tal como Freud adverte no texto “Além do princípio do prazer”[3], ao marcar que o fato de que uma criança que tomou uma injeção brinque de dá-la em um boneco ou um irmão menor implica uma virada subjetiva na qual ela se apropria da cena que antes padeceu. Essa reversão de lugares também ocorre ao brincar de ser devorado ou devorador (como na trama do conto da Chapeuzinho Vermelho, ora sendo Chapeuzinho, lobo, vovó ou caçador).
Mas além dessa reversão de lugares em torno de uma mesma montagem, há brincares que possibilitam uma subversão do sujeito diante da sobredeterminação simbólica que lhe coube em sorte ao se servir da linguagem e poder brincar nela e com ela (tal como faz a Chapeuzinho Amarelo, no conto homônimo de Chico Buarque, ao transformar o lo-bo em bo-lo diante do qual prefere não comê-lo, fazendo objeção à pura reversão, pois gosta mesmo é de bolo de chocolate). Aí não está apenas em jogo uma reversão de lugares na montagem de quem goza de quem, mas uma produção suplementar que não busca completar ninguém e ao invés disso, se serve da falta para inventar[4].
O brincar, portanto, não é simplesmente uma colocação em cena da representação que a criança faz do mundo, brincar é a própria possibilidade de que a criança produza as suas representações, de que ela crie, de que ela invente servindo-se, diante das contingências da vida, do material simbólico que tem disponível, mas que, nem por isso, tem previamente todas as saídas escritas ou calculadas — pois a criança (em sua condição de sujeito em constituição) pode fazer arte, pode dar suas tiradas inventivas e espirituosas.
No entanto isso não está garantido, pois depende radicalmente do modo em que o objeto e a palavra forem postos a circular na relação com o Outro para que, dele, a criança possa se servir.
Esta questão que trazemos a debate, longe de ser uma especulação, é efeito de uma experiência clínica que nos leva a considerar como as questões relativas ao brincar advertidas por Freud se apresentam, cem anos depois, na clínica com crianças.
Não se trata de apressar-nos no sentido de considerar que o que estaria em jogo seria outra coisa completamente nova, pois com isso podemos desincumbir-nos do trabalho que é ler o que insiste como repetição, tarefa fundamental do clínico. Por outro lado, tampouco se trata de procurarmos fazer encaixar de uma maneira saudosista as produções de nossos pacientes às de outro tempo; a rua não é a mesma, as configurações familiares não são as mesmas, a escola não é a mesma, a transmissão com TV e internet tampouco é a mesma, então por que o brincar o seria?
O brincar é sintoma constituinte do sujeito na infância; E o fort-da, os precursores diretos do fort-da, os que denominamos de jogos de litoral como primeiro modo do brincar sustentado na relação mãe-bebê, assim como, posteriormente, os jogos transicionais, o ritual lúdico, o brincar de faz de conta, os jogos de regras, são pedras angulares da constituição psíquica.
Além do brincar, a mentira, o “por quê”, o desenho, as narrativas fantasiosas, as teorias sexuais infantis são também sintomas constituintes do sujeito na infância. Portanto, as produções advertidas por Freud e outros psicanalistas nesse sentido continuam revelando seu caráter estrutural na medida em que passar por elas é decisivo para a constituição do sujeito psíquico.
Por outro lado, também aprendemos com Freud que as crianças produzem seus sintomas a partir do material simbólico disponível pela transmissão de sua família e cultura, revelando com seus sintomas o retorno do recalcado do ideal civilizatório da época em que vivem.
Então, se bem com a invenção da infância, os adultos tendam a regozijar-se na ilusão de que estariam protegendo as crianças, com discursos que versam sobre os seus direitos, as crianças, como a infantaria de um exército, em certa medida, costumam ficar inevitavelmente expostas na linha de frente dando a ver em seus sintomas um rompimento daquilo que o discurso social busca recobrir com sua criança e infância ideal.
Diante das crianças de seu tempo, Freud formula a esperança de que uma educação menos repressora possa dar lugar a adultos menos neuróticos. Assim, escutando as crianças do seu tempo permite que a psicanálise possa revelar o avesso de um discurso social sustentado em uma moral vitoriana e em uma consequente educação que imprimia culpa diante da satisfação sexual (tornando ilegítimos os singulares modos de gozo), que inibia as investigações infantis (podendo aniquilar o desejo de saber) e que desconsiderava a palavra da criança como se fosse algo menor (destituindo-lhe seu valor de verdade).
Revelar o tecido do discurso social pelo avesso é fundamental para que o sintoma não fique na dimensão de pura inadequação ou rompimento. Reconhecer que o sintoma sustenta uma verdade que se apresenta em falso possibilita que o paciente possa produzir um saber fazer ali com isso, articulando um saber que o implica em seu singular modo de gozo.
Então é no maior rigor da transmissão freudiana que nos perguntamos: é da mesma infância de cem anos atrás que falamos? Pode o sujeito apresentar-se do mesmo modo em uma infância transcorrida durante e após a primeira guerra mundial e na hipermodernidade? Se o sintoma é uma resposta singular do sujeito, cabe perguntar desde onde ele é interpelado no seu tempo. E ainda, se não é desde o mesmo lugar que as crianças se veem interpeladas pelo social, isso, como clínicos também nos concerne: que avesso do discurso social se revela nos sintomas das crianças de nosso tempo?
Norberto é um menino, para dizê-lo de algum modo, bastante corpulento para seus quase sete anos de idade. Ao recebê-lo pela primeira vez, abro a porta e ele entra. Mal me cumprimenta, passa por mim e abre o armário.
Apontando os diferentes brinquedos e jogos presentes, afirma:
— Eu tenho, eu tenho, eu tenho, eu tenho…
— Ah, então você tem tudo?
— Eu tenho tudo e o que eu não tenho minha mãe ou minha avó compram.
— Com tanta coisa então só pode te faltar uma….
Nessa hora e pela primeira vez, me olha pra valer.
— O quê?
— Lugar para brincar — aí ele riu.
Assim começou seu tratamento. Até então, Norberto, que vinha de um fracasso escolar no primeiro ano do fundamental, deixava todas as folhas da escola completamente em branco, não conseguia nem ler, nem escrever. Ao mesmo tempo em que afirmava que na internet tinha tudo, não conseguia desenhar ou modelar nada porque nunca ficava igual ao que podia ser comprado. Norberto só comia nuggets, pois a mãe, que se submetia periodicamente a regimes de desintoxicação em SPA, não conseguia — apesar de seu indicador de obesidade — barrar as ilimitadas satisfações de gulodices propiciadas pela avó. Por sua vez, a madrasta nutricionista procurava convencê-lo a mudar de hábitos falando-lhe sobre as vitaminas proteínas e carboidratos dos alimentos, evidentemente sem efeito algum. Ele só comia nuggets de frango, arroz, macarrão, batata frita, bolachas ou salgadinhos.
Norberto frequentava uma escola em turno integral. Seus pais separados diziam não ter tempo para ficar durante a semana com ele, apesar de ambos terem empregos públicos de alto escalão com horários flexíveis. Vinha ao tratamento com um motorista. No fim de semana, o passeio era shopping, compras, lanches e principalmente lanches acompanhados de lembrancinhas.
— Ele tem uma quantidade de brinquedos impressionante — diz a mãe —, mas não brinca. Por isso de tempos em tempos doamos para caridade (assim se abria lugar para a próxima leva quando no depósito do prédio não cabia mais).
A mãe afirmava achar importante isso como uma prática do desapego, mas lhe perguntei se antes disso, em algum momento ele se apegou a algum objeto, se teve que abrir mão ou esperar pela satisfação de obter algo. Ela, surpresa, afirma que de fato não, tudo dava na mesma.
Norberto tinha os brinquedos, mas não sabia jogar. Chegava do shopping, abria e colocava na estante, e depois vinham outros.
No consultório sentamos para jogar juntos. Ele percorreu os jogos, mas, depois de um tempo, acabaram. Pelo menos acabaram, se não podia produzir-se uma retomada do mesmo em outra posição, se não havia o relançamento do “de novo” — repetição tão importante advertida por Freud na esfera do brincar.
Comparece aí uma série: sempre quer ter outro, outro, outro e outro. Nessa série metonímica, sem lugar para a retomada e a reedição do mesmo em outra posição, permanentemente elide-se a falta, não há lugar para a articulação presença-ausência e retorno do objeto em outro lugar da série que permita uma ressignificação. Essa série metonímica mantém a ilusão de que sempre há outro objeto por vir em uma infindável sequência do comprável que preenche a falta na ordem do ter.
— Mas já joguei todos! Você não comprou outro? — me interpelava Norberto, depois de algumas sessões e rodadas pelos jogos disponíveis.
— Não, não comprei outro. São esses.
— Mas o que vou fazer agora?
— Bom, vamos ter que pensar: podemos fazer de novo um que você tenha gostado, ou podemos inventar alguma coisa. Vamos ter que pensar.
Ele então passa a trazer seus brinquedos impactantes para me mostrar o que ele tem: em geral são bonecos-robôs de todos os tipos, que se mexem em todas as direções com controles remotos, que brilham no escuro e que reproduzem frases que a gente diz. O espetáculo dura um tempo e depois voltamos a certo vazio, perde a graça ficar como espectador. O vazio relança uma interrogação: o que fazer?
A série se interrompeu e ficamos sentados na mesa vazia. Grande novidade esta que se apresenta: tempo e espaço diante da falta, sem objeto a mais que a preencha.
Surge uma ideia: inventar um jogo de percurso. Levou algumas sessões, pois era um projeto grandioso de quatro fases: uma subterrânea, uma na floresta, uma na água e outra no deserto. Tivemos que colar várias folhas. Dava muito trabalho fazer os números e também os desenhos, além do mais ter que pensar bem as regras dos atalhos e das armadilhas para que se tornasse um jogo interessante. Era tão longo fazer tudo isso que deu vontade de jogar, antes de que ficasse perfeito, e fomos jogando e testando e mudando de lápis para canetinha o que dava mais ou menos certo. “Deu trabalho, mas foi divertido”, como o próprio Norberto disse. Nunca concluímos o grandioso projeto, mas nos servimos dele e passamos a outra coisa. Por conta de uma meleca que fizemos com a massinha e água começamos a falar de águas-vivas; as diferentes águas-vivas que ele quis pesquisar; as que queimam, as que não; as anêmonas; as caravelas portuguesas; as mães-d’água… Norberto passou a ir perguntando sobre isso para as pessoas e, pela primeira vez, tinha uma série de histórias interessantes para contar sobre um assunto.
Apresentou sua pesquisa na escola em uma feira de ciências, mas quis fazer sozinho o cartaz, porque seu pai queria por palavras muito complicadas — segundo afirmou, chorando. Precisei ajudá-lo com isso e dizer para o pai que o deixasse usar as palavras que ele escolhesse, e não as da Wikipedia. A professora apoiou. No dia da apresentação providencialmente esqueceu em casa um saco de águas-vivas “fofinhas” que fizeram para que desse de lembrancinhas para os amigos. “Onde já se viu água-viva fofa” — afirmou
No consultório não trouxe a pesquisa, nem eu pedi; mas ele, vendo os quadros pintados por outras crianças, também quis pintar um com suas águas-vivas, “porque foi importante”.
Depois, acabou o quadro e a pesquisa já tinha acabado. Passou a reclamar que não queria ficar tanto tempo na escola, disse que queria ter tempo para brincar. O horário no consultório era tarde, depois do dia inteiro na escola, e esse dia ele me disse que voltaria na outra vez, mas não esse dia; disse que ele estava cansado demais e que os pais não o escutavam. Disse-lhe que tinha razão e que ia ajudá-lo com isso porque agora ele sabia e queria brincar, e que, às vezes, mesmo sabendo, a gente pode não querer. Combinamos que voltaria outro dia, só desceu do carro para tomar uma água. Foi então que reparou em uma flor estranha posta em um copo de plástico em meu consultório (que me havia sido entregue por outra criança).
— Parece uma planta extraterrestre — ele disse.
O cansaço passou e quis começar outra pesquisa naquele mesmo dia sobre a flor. Resulta que ela era uma tal de “buchinha”, flor símbolo do cerrado, onde efetivamente muitas plantas parecem de outro planeta. Pesquisamos sobre flores do cerrado e rimos muito com uma flor redonda e peluda chamada “saco de velho”.
Entramos em férias e o pai o levou ao neurologista que diagnosticou, em uma consulta, déficit de atenção e hiperatividade, prescrevendo-lhe Ritalina.
O pai me comunica o grau de hiperatividade.
— E se fosse no começo? — pergunto-lhe.
— Certamente seria umas três vezes esse grau — afirma.
— Então, não são só os remédios que modificam nossos neurotransmissores. Já pensou como fazer as coisas de outro modo, brincar, conversar, pesquisar, desenhar ao longo desse tempo também podem ter alterado o funcionamento cerebral? — lhe pergunto.
O pai então afirma surpreso que nunca tinha pensado as coisas nessa direção.
Norberto pela primeira vez pôde ir a um passeio de 3 dias da escola. Na hora da partida, com o ônibus em começo de movimento, o pai correu atrás para entregar o blister de medicação para a professora. No entanto, ao fim do passeio a cartela foi devolvida intacta junto com a afirmação da coordenadora de que não havia sido necessária, segundo o pai me contou, seguindo o relato da reflexão: “acho que somos nós que não aguentamos a energia dele”.
Ele passou a querer fazer judô e futebol na escola, mas não quis mais o turno integral. Intervim para que fosse levado a sério: como pedir-lhe responsabilidade por seus atos se os efeitos de seus esforços não serviam para atender seu legítimo pedido de ter tempo para brincar? Não era só dele o trabalho que era preciso passar.
Na escola ia bem de forma geral, mas em matemática e desenho era ótimo. Negou-se a participar da apresentação da festa junina por achar a quadrilha ridícula — o pai ficou uma fera, mas não teve jeito, foi na festa sem quadrilha e sem bigode.
A essa altura a mãe diz que faz de tudo para que ele seja um leitor e pede minha ajuda para isso, pois ele não tem gosto pela leitura como ela. Primeiro ela pensou que fosse algo da vista, e mandou fazer óculos, uns 5 de uma vez para que ele trocasse e gostasse de usar. Depois pensou em uma psicopedagoga, que contraindiquei para esse caso; e, nesse momento, afirmando que não ter gosto por algo não é o mesmo que uma dificuldade, ele afirma: “não é por causa dos óculos. Eu faço o que tem que fazer na escola, mas eu não gosto de ler. No fim de semana eu prefiro inventar coisas.”
De fato, ele vinha inventando objetos no consultório: paraquedistas com sacos, vasos de plantas que pareciam troncos de argila. Fizemos poções mágicas, melecas e também engenhocas com os objetos de decoração: por exemplo, uma boneca russa que andava de bicicleta (presa por muitas fitas adesivas).
O pai e a madrasta marcaram uma sessão. Diziam-se impressionados com todas as melhoras, mas contam que permanecia um problema: ele continuava só comendo nuggets. Depois de escutar o longo discurso nutricional me perguntam o que penso: digo-lhes que comer nutrientes é tão triste quanto comer nuggets.
Pela primeira vez fazem um silêncio e me interrogam:
— Como assim?
— Nenhum dos dois tem história; não dizem nada da gente; não são feitos para nós: são sempre iguais e para todos.
Entre o politicamente incorreto e o politicamente correto não há lugar para singularidade alguma. Eles ficaram pensativos.
Algum tempo depois, Norberto me conta um acontecimento: tinha ido a um restaurante italiano com o pai e não sabia o que comer. Dessa vez, em lugar de insistir em que provasse, o pai lembrou de uma história familiar, que conta para Norberto. O avô dele era um importante homem de negócios. Certo dia estava todo elegante, com um terno cinza claro, para participar de um almoço de negócios em um restaurante italiano. Assim que seu nhoque ao sugo chegou, espetou o nhoque, que inadvertidamente saiu rolando e deixando uma listra vermelha de cima a baixo no terno. O avô teve passar o dia com listra vermelha — conta-me Norberto às gargalhadas, e sem que eu pergunte nada acrescenta — desse nhoque ao sugo eu provei e gostei!
No consultório traz sua “coleção” de peões Beyblades, tem mais de cinquenta nessa série interminável, porque sempre é lançado mais um no mercado sem o qual a coleção fica incompleta. A mãe compra. Mas no meio disso ele encontra uma exceção: apelidou o antigo peão grande de latão do consultório:
— Sabe esse? Esse é o avô dos Beyblades — não o disse em tom de desprezo, e sim de atribuição de valor histórico.
Uma coleção não é o mesmo que uma série de objetos compráveis que já vem pronta e é igual para todos.
Paro o relato clínico por aqui para considerar o que inicialmente se dá a ver na produção de Norberto, assim como a de várias outras crianças da atualidade:
– Em lugar do relançar do de novo! como repetição própria do brincar, em que um mesmo objeto é relançado uma e outra vez, produzindo uma série em que ocupa diferentes posições e pode, ao longo desse deslocamento vir a assumir metaforicamente diferentes significações, advertimos um modo de lidar com o objeto-brinquedo que elide metonimicamente a falta, trazendo sempre outro e outro objeto comprável a mais.
– Em lugar da passagem da passividade à atividade encontramos a criança como espectadora de brinquedos que se brincam sozinhos.
– Em lugar do tempo de desdobrar um brincar, deparamos-nos com crianças impacientes com o tempo que leva fazer algo, com o fato de que dá muito trabalho inventar e que o feito não é instantâneo e não fica perfeito como aquele que vem pronto.
O brinquedo é um objeto fundamental para a criança. Desde os primórdios da cultura encontramos o brinquedo como um objeto produzido que não entra nem no rol de utensílio, nem de ferramenta, nem do ritual religioso. Trata-se de um objeto interessante na medida em que não está nem na esfera do útil, nem na esfera do sagrado. Ele é acima de tudo usufruível; seu valor não é o da troca, e sim o de uso (que o digam as pequenas criancinhas com seus insubstituíveis, desgrenhados e fedorentos objetos transicionais).
Muitas crianças chegam ao consultório com objetos-brinquedos que não estão no lugar de suporte para a invenção, e sim no lugar de objetos fetichizados, na medida em que “tê-los” cumpre a função de recobrir a falta: fetichizados pelos comerciais dirigidos a crianças que buscam convencê-las de que o que lhes falta pode ser comprado; e fetichizados, mais ainda, por pais que dizem “não é que eu queira trabalhar, mas preciso para poder comprar as suas coisinhas”. Em tal afirmação, o trabalho tem aí apagado o seu valor simbólico no estabelecimento do laço social e também sua dimensão de criação do sujeito, sendo achatado sobre o puro valor de troca para obter um objeto. Coloca-se a criança diante de uma miragem: não é que o adulto deseja algo além dela e que pode vir a realizar em seu trabalho. Em lugar da falta, apresenta-se um engodo: os pais se ausentariam sim, mas apenas para que nada falte à criança, e apenas para que a mesma seja restituída dessa ausência dos pais com mercancias supostamente lúdicas. Os pais fazem aí também a sua troca preferindo eximir-se de fazer objeção à satisfação consumista, identificados demais que estão em um narcisismo ilimitado suposto aos filhos.
As crianças, por sua vez, são tantas vezes tomadas elas mesmas como objetos da série fálica na ordem do ter e os clínicos como aqueles que seriam convocados a “concertar” os estragos quando o narcisismo que os pais buscam resgatar na satisfação ilimitada aos filhos não fecha o seu circuito.
Tenho encontrado crianças com muitas lembrancinhas e poucas memórias. Memórias como isso que, ao ser transmitido, permite representar o que nos afeta compartilhando uma experiência memorável. Assim, fazer uma poção mágica de meleca, arrancar uma flor “extraterrestre” do jardim do vizinho e, até mesmo, um único “nhoque fugitivo” podem ser memoráveis. O mais insignificante que ganha significância pela experiência compartilhada e tornada transmissível para além do arrebatamento do objeto.
O que fazer diante de crianças emaranhadas no circuito de consumo, que chegam entuchadas de objetos, tomadas no curto circuito capitalista que afirma a cada comercial que o que falta pode ser comprado pronto? Crianças, é duro dizê-lo, que tantas vezes são elas mesmas trazidas a tratamento como objetos inadequados acerca dos quais nos fazem encomendas.
Freud, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”[5], adverte que não só as crianças reprimidas padecem, também o fazem as crianças excessivamente satisfeitas. Portanto, não falamos de algo absolutamente inédito; porém, sim, mudou o lugar desde o qual a criança é predominantemente interpelada. Não é por acaso que tem sobrado tanto para os clínicos a tarefa de ter que dizer: “isso não”, “assim não”, “menos”, “nem tudo”, “é mesmo não tem”, “entendi o que você quer, mas não”. A falta não precisa ser recheada, com ela podemos inventar.
Por trás dessas crianças que andam pelo espaço perdendo a direção e transbordando as bordas de seu corpo encontramos um excesso de objetos colocados por um outro que não quer saber de ter que dizer que não (deixando a criança chafurdar em um gozo perverso polimorfo aquém da castração); encontramos crianças para as quais se disponibiliza um saber total e anônimo do “Dr. Google”, mas sem ter com quem singularizar seu percurso de investigação (sem poder construir um saber); crianças que têm os seus corpos submetidos a um saber técnico-científico que achata a verdade sobre o real reduzindo a comida a nutrientes e nossas respostas à falta ou excesso de substâncias (a verdade está mais do que nunca na coisa, e não na palavra).
Creio que nesses casos a intervenção consiste em abrir um lugar, uma brecha, desde o qual elas possam profanar[6], fazer seu uso inventivo de alguns objetos tornando-os aí sim brinquedos, em lugar de movimentar objetos fetiche de acordo ao modo prescrito em suas embalagens cheias de instruções nas quais se exalta o poder do objeto.
Parece ser essa uma torção necessária na intervenção clínica com crianças, pelo menos para aquelas capturadas na série infindável de objetos compráveis que impera em nossos tempos.
No final desse atendimento a mãe vai para análise, ele vai morar com o pai. Deixa o quadro e diz que ali evoluiu muito. Deixa o objeto e leva a experiência na memória. ♦
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio (1978) Infancia e história. S. Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2011.
BUARQUE DE HOLANDA, Francisco (1979) Chapeuzinho amarelo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
FREUD, Sigmund (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1977, pp. 123-152.
______. (1908) “Escritores criativos e devaneio”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 9, pp. 147-158.
______. (1914) “Introducción del narcisismo”. In: Obras completas, v. 14. Buenos Aires: Amorrortu, 1993, pp. 65-98.
______. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1977, pp. 11-85.
JERUSALINSKY, Julieta (2002) Enquanto o futuro não vem — a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador: Ágalma.
______. (2011) A criação da criança: brincar gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador: Ágalma.
______. (2014) “A era da palmatória química: responsabilidade social e medicalização da infância”. In: Blog criança em desenvolvimento, estadão on-line. Disponível em: <http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/crianca-em- desenvolvimento/a-era-da-palmatoria-quimica-responsabilidade-social-e-medicalizacao-da-infancia/>
______. (2015) “Detecção precoce de sofrimento e psicopatologia na primeira infância: a desobediência dos bebês aos critérios nosográficos deve ser considerada”. In: KAMERS, Michele (Org.) Por uma (nova) psicopatologia da infância. São Paulo: Escuta, 2015, pp. 103-115.
KANDEL, Eric; SHUARTZ, J.H.; JESSEL, T.M. (1995) Essentials of neural science and behavior. London: Appeton & Lange.
LACAN, Jacques (1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
______. (1971) O seminário, livro 18: De un discurso que no seria del semblante. Edición electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
______. (1972-73) O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
* Julieta Jerusalinsky clinica em São Paulo. É psicóloga (UFRGS, 1993), especialista em Estimulação Precoce (Fundación Para el Estudio de los Problemas de la Infancia F.E.P.I- Argentina, 2000); mestre (2003) e doutora (2009) em psicologia clínica (PUC-SP); psicanalista membro da APPOA (Associação psicanalítica de Porto Alegre), da Clínica Interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento Infantil Centro Lydia Coriat POA/RS e da Clínica Prof. Dr. Mauro Spinelli/SP; professora do Cogeae/PUC-SP na especialização em “Teoria Psicanalítica” e do Centro Lydia Coriat nas especializações em “Estimulação Precoce: clínica interdisciplinar com bebês”, “Psicomotricidade” e “Clínica interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil”; autora dos livros Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês (Ágalma, 2002); A criação da criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê (Ágalma, 2011) e organizadora de Travessias e travessuras no acompanhamento terapêutico (Ágalma, 2017). e-mail: julietajerusalinsky@gmail.com.
[1] Artigo elaborado a partir de trabalho apresentado no Congresso de Psicopatologia Fundamental, Fortaleza, setembro de 2012.
[2] FREUD, Sigmund (1908) “Escritores criativos e devaneio”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1977, pp. 147-158.
[3] FREUD, Sigmund (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1977, pp. 11-85.
[4] JERUSALINSKY, Julieta (2011) Criação da criança: brincar gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador: Ágalma.
[5] FREUD, Sigmund (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1977, pp. 123-152.
[6] AGAMBEN, Georgio (1978) Infancia e história. Trad. S. Mattoni. Adriana Hidalgo Editora, Buenos Aires, 2011.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | JERUSALINSKY, Julieta (2017) Muitas lembrancinhas fazem uma memória? – sobre o excesso de objetos na infância, a transmissão da falta e o lugar à invenção. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -4, p. 2, 2017. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/11/20/n4-02/>.