Sobre lobos e psicanalistas: solidão, pertencimento e inovação em psicanálise

por Wilson Franco & Daniel Kupermann

Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário; compreendeu que o outro era ele.

*

Jorge Luis Borges, “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz”

APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA *

Criada inicialmente a partir das investigações de Freud, a psicanálise organizou-se rapidamente em torno de um grupo (a partir de 1902, a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras) e posteriormente em Associação (a partir de 1910, a Associação Internacional de Psicanálise). A Associação, hoje conhecida mundialmente como IPA, sustentou por algum período o controle em torno do que é ou não é psicanálise, mas a partir dos anos 50 outras instituições não vinculadas à IPA passaram a se declarar instituições de formação de psicanalistas, de forma que hoje encontramos uma série de instituições heterogêneas propondo-se a formar psicanalistas.

Além disso, existe uma quantidade crescente de pessoas que, sem ter passado por um processo de formação em alguma instituição, denominam-se psicanalistas por compreenderem que cumpriram todas as condições necessárias para tal[1]. Pode-se supor que a história da institucionalidade psicanalítica é uma história conturbada em função de inúmeros fatores, mas no presente artigo pretendemos debruçar-nos sobre um aspecto específico: o papel peculiar que a solidão e o isolamento ocupam na psicanálise. Para isso pretendemos cotejar a forma como os psicanalistas lançam mão da ideia de estarem sós ou isolados e do papel que isso cumpre no contexto de sua relação à comunidade psicanalítica.

INTRODUÇÃO

Freud repisa o argumento inúmeras vezes: está e sempre esteve sozinho em nome da psicanálise, criação sua e pela qual se responsabiliza; inúmeras vezes dá notícia de como sente-se só, como lhe pesa o fardo de ser ele o único a responder pela criação da psicanálise[2]; frequentemente relembra como a psicanálise nasceu em anos de “isolamento esplêndido”[3]. Sabe-se o quanto desse discurso é sintomático, em Freud – a historiografia é suficientemente rica para tornar claro que Freud sustentava o discurso e a condição de solidão. Essa solidão, na verdade, parece fundamental na experiência de fundação da psicanálise. E não é por acaso que Lacan, o Lacan do “retorno a Freud”, situará seus gestos institucionalizantes como emanando de sua solidão (“tão sozinho como sempre estive diante da causa analítica…”[4]); afinal, é sozinho que Lacan será freudiano, é a solidão de Lacan que faz dele um freudiano – o freudiano – o herdeiro de Freud: “Cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim sou freudiano”[5]. Trata-se de um corte a risca de faca: do lado de lá, a solidão, honra e glória dos portadores da psicanálise, do lado de cá a adesão gregária e o pertencimento à sombra dos olhos vigilantes do mestre solitário.

Toda instituição é marcada por ambiguidades, e todo pertencimento institucional comporta uma dimensão de ambiguidade da parte dos seus: sabemos que o discurso de “vestir a camisa” tão cultuado nas empresas é muito mais performático do que espontâneo e genuíno (o que não o impede de ser efetivo); sabemos que não há instituição homogênea, em que todos seus membros sentem-se unos e plenamente representados. Ainda assim, considerando essa característica compartilhada pelas instituições de forma geral, a psicanálise parece impor às suas instituições e à institucionalidade que propõe peculiaridades — as instituições psicanalíticas são marcadas pela peculiaridade da “coisa” analítica. Uma série de aspectos contribui, a nosso ver, para essa peculiaridade: o fato de a psicanálise ser marcada pela experiência do inconsciente, que torna mais complexa a relação da instituição com o saber e o controle; as peculiaridades da filiação à instituição psicanalítica, marcada pelo tripé analítico e pelos dispositivos institucionais (passe, análise didática e outros); as peculiaridades de filiação teórica aos autores de referência, cruzadas pelas filiações ao analista pessoal, ao supervisor e aos pares; essas e certamente outras tantas peculiaridades da institucionalidade psicanalítica fazem com que a relação dos psicanalistas com suas instituições seja bastante complexa e multifacetada.

Há muitos estudos e linhas de investigação a respeito deste vasto campo[6]; no presente estudo interessa-nos um recorte bastante específico desta ampla problemática: aquele das instituições, e da institucionalidade psicanalítica em sentido largo, com os psicanalistas “às margens” — os selvagens, os independentes, os dissidentes, os não-pertencentes. O estudo dessa problemática parece-nos digno de nota na medida em que vemos que a psicanálise impõe a essa relação peculiaridades próprias a si: se em instituições “tradicionais” (empresas, clubes…) a relação da instituição com seus “marginais” é relativamente simples, no caso da psicanálise ela certamente não o é: parece-nos, inclusive, que na psicanálise a própria ideia de que os marginais estejam à margem não opera tão claramente.

UMA DEFINIÇÃO DE “LOBO SOLITÁRIO”

Em 1978 Anna Freud tornava público seu entendimento quanto à “trajetória caracterológica” dos psicanalistas ao longo de suas primeiras gerações:

Quando examinamos as personalidades daqueles que por auto-seleção constituíram a primeira geração de analistas, suas características deixam pouca dúvida: eram não-conformistas, questionadores, do tipo que não se satisfazia com os limites impostos ao conhecimento. Entre eles se encontravam sonhadores e outros que conheciam o sofrimento por tê-lo vivido. Esse tipo de recrutamento transformou-se radicalmente desde que a formação psicanalítica foi institucionalizada, […] a auto-seleção cedeu lugar a um minucioso exame dos candidatos – donde a exclusão daqueles que são suspeitos de alterações mentais, dos excêntricos, dos autodidatas, dos grandes imaginativos, em vantagem daqueles que, bem acomodados e bem preparados, são trabalhadores o bastante para ambicionar maior eficácia profissional[7].

Há de se fazer notar, de partida, que o julgamento de Anna Freud parece dotado de uma boa dose de esquematismo: ainda que reconheçamos a figura maior de sua leitura — a primeira geração de psicanalistas ser composta basicamente de “excêntricos” e “grandes imaginativos” na comunidade médico-intelectual da época e, algumas décadas depois, as instituições psicanalíticas serem povoadas basicamente de “acomodados” ou “trabalhadores” — podemos reconhecer também entre os membros da primeira geração uma boa dose de submissão e subserviência, ao mesmo tempo em que encontramos, à época em que Anna Freud escreve, psicanalistas inventivos, questionadores e não-conformistas. Para essa esquematização parece haver uma explicação simples: à época da composição da primeira geração os “não-conformistas” uniam-se contra o conformismo que estaria representado pelo não reconhecimento ou não aceitação da psicanálise, ao passo que na geração a que Anna Freud se refere o jogo entre conformismo e não conformismo mostrava-se complicado pelo fato de haver no seio da psicanálise um conformismo paralisante à disposição e agindo sobre a formação e sobre os psicanalistas.

Em busca de maior clareza diante desse aspecto, vale a pena lembrarmos-nos de um grande tratado do inconformismo: O lobo da estepe, de Hermann Hesse[8]. Desde sua publicação o livro inspirou gerações que viram no lobo da estepe o representante da liberdade, da confrontação à moral burguesa, e no livro um libelo contra o conformismo e a adaptativa eficácia profissional; Hesse narra as aventuras de um homem em conflito, dividido internamente: “com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos seres mistos”[9]. Harry, o homem da estepe, era um burguês[10], mas não queria sê-lo, e sentia que em seu íntimo de fato não o era, reconhecendo em si o rosnado de um lobo da estepe sempre a desafiá-lo (enquanto burguês) e a cativá-lo (enquanto lobo). O lobo aspira à libertação, à destruição mesmo de toda sombra de conformismo e adaptação, supondo que aí realizaria sua natureza íntima[11]; o homem, por outro lado, representa a adaptação à moral e aos bons costumes, os prazeres miúdos conferidos por nossa sociedade burguesa, a segurança e a previsibilidade. Temos aí, portanto, o conflito entre a covarde adequação ao velho em conflito com a busca desejosa, renovadora e libertadora do novo, e um necessariamente suprimiria o outro. Algo semelhante opera no diagnóstico caracterológico de Anna Freud: a primeira geração corajosa de psicanalistas-lobos da estepe teria cedido lugar aos homens burgueses carregadores de ofícios; se Anna Freud critica os submissos psicanalistas de sua geração, por outro lado deve-se lembrar que ela representa o establishment e, por isso, é provável que sua leitura quanto à covardia dos psicanalistas aponte para um conflito, posto que ela certamente não desejaria o ataque de lobos solitários destruindo a IPA ou a estabilidade das práticas clínicas e institucionais da psicanálise consolidada. Pode-se sentir no subterrâneo da leitura da “herdeira do trono” o embate íntimo: manter a ordem e manter o conforto e as garantias e a segurança ou buscar a liberdade e a renovação e resgatar o valor íntimo da natureza mesma que se busca?

É claro que não precisamos recorrer a Anna Freud para encontrarmos esse tipo de leitura dicotômica — grosso modo, inclusive, é dela que se trata no “isolamento esplêndido” de Freud e na “solidão em que sempre se esteve” de Lacan. A primeira geração de psicanalistas, não-conformistas e questionadores, pode mesmo ter visto na psicanálise a estepe em que seu lado lobo poderia vicejar e uivar à lua; porém, a história do movimento psicanalítico revela que, se eles faziam isso por vezes, em diversas ocasiões trataram de balir como ovelhas e organizar-se em rebanho. Cumpre, por outro lado, reconhecer que a psicanálise enquanto gesto cultural teve seu lado estepe – a que Freud se referia como “ferida narcísica” imposta à humanidade[12], a que Lacan se referia como “peste” — mantendo-se em vista que o horizonte revolucionário da psicanálise não confere aos psicanalistas o estatuto de revolucionários (longe disso)[13].

Curiosamente, no entanto, o livro de Hesse trata com bastante clareza a respeito da simplificação mistificadora e da falácia deste tipo de polarização (homem burguês bem adaptado versus lobo da estepe): “Harry [o nome do lobo da estepe] compõe-se não de dois, mas de cem ou de mil seres. Sua vida (como a vida de cada um dos homens) não oscila simplesmente entre dois polos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis polos”[14]. Não precisamos subscrever à psicologia mística de Hesse para concordarmos com ele em que a polaridade “burguês adaptado versus lobo livre e selvagem” é esquemática demais. Assim vemos que a primeira geração de psicanalistas a que se refere Anna Freud, bem como o próprio Freud ou Lacan tinham seus pendores adaptativos e normativos, seus pendores inconformistas e questionadores e diversos outros pendores compondo uma práxis que cumpre a nós avaliar como pudermos. É claro que, posta nesses termos, a questão a respeito do lobo da estepe e/ou do lobo solitário pode se dissolver no relativismo: “no fundo todo mundo é lobo e todo mundo é burguês…”. Bem, não é disso, em absoluto, que se trata aqui. Trata-se, outrossim, da premissa de que gestos culturais com um pendor revolucionário não garantem a seus aderentes um caráter revolucionário, ao passo que a resistência a esse gesto também não confere ao resistente o caráter de conservador (como Freud insinuava a respeito dos que não aderiam ou não concordavam com a psicanálise). Isso, por outro lado, não nega a percepção de que o homem social tende a se apropriar do tesouro cultural de seu tempo de forma que confiram à singularidade de sua práxis um estatuto mais crítico, não conformista, conservador, reacionário ou outros tantos matizes, e sua práxis pode assumir matizes distintos com o passar do tempo ou em estratos distintos de sua ação social. Lembremos, por exemplo, de Freud: se a criação da psicanálise e sua defesa conferiam a ele o estatuto de uma espécie de líder revolucionário, suas estratégias em vista da sustentação do movimento psicanalítico e suas posições enquanto cidadão de seu tempo certamente ostentavam um pendor mais conservador. Deixemos para trás, portanto, as pretensões totalizantes: nenhum psicanalista foi ou será lobo da estepe – no máximo poderá dar maior vazão a seus pendores revolucionários, não-conformistas e destrutivos que a outros aspectos de sua práxis[15].

A cena, no entanto, não ganha contornos claros, instrutivos e edificantes a partir dessa assunção de não-totalidade; além da confusão que resta é necessário, inclusive, adicionar outra: cada gesto com pendor libertário ou não-conformista produzirá reverberações (práxis sob sua sombra) que, se sustentam a imagem do gesto libertário inaugural, em sua efetiva inscrição cultural operam como business ou como tramitação burguesa ordinária. É como aponta Hesse, em 1961, a respeito da apropriação cultural de sua obra:

Parece-me que, de todas minhas obras, O lobo da estepe é a que vem sendo mais frequente e violentamente incompreendida […] tenho encontrado com frequência leitores que — embora bem impressionados com o livro — só percebem estranhamente apenas parte do que pretendi. Tais leitores, ao que me parece, reconheceram-se no Lobo da estepe, identificaram-se com ele, sofreram suas dores e sonharam seus sonhos[16].

Há de se pensar se a “estranha” apropriação a que ele se refere não o seria no sentido da concepção freudiana do Unheimliche — não se esperava encontrá-lo, mas é familiar, talvez familiar demais[17]. E isso porque a incompreensão a que Hesse se refere não é em absoluto surpreendente. É claro que a obra apresenta minúcias e complexidades que transcendem o esquematismo “homem-burguês versus lobo da estepe”, é justamente disso que se trata; mas, no entanto, o fascínio da obra reside justamente nessa oposição, e na forma como essa oposição progride, escala, infla e, num ápice de tensão, explode. Do ponto de vista da psicologia de Hesse, trata-se da superação e, portanto, do abandono da dicotomia, e o lobo deixa de ser a questão, com o que deixaríamos a dicotomia para trás. Mas essa explosão derradeira não expulsa da cena o fato de que é ela que, de partida, organiza o livro, de forma que sua superação final não implica em sua superação absoluta ou retrospectiva – e o fato de o livro chamar-se “Lobo da estepe” ratifica essa leitura, dando inclusive a impressão de que Hesse poderia tê-lo previsto.

Pois bem, pode-se supor que, no que tange à psicanálise, passa-se algo semelhante. A descoberta de Freud ostenta um pendor revolucionário frente ao Zeitgeist da época, o que organiza um primeiro movimento de adesão identitária totalizante e acrítica, que já é em si marcada por ambiguidade: adesão submissa à revolução[18] do mestre. Com a institucionalização da psicanálise há um redobramento desse fenômeno, na medida em que passa a haver um “conformismo burguês de dentro” (dirigido à institucionalidade e às regras institucionais) e um “conformismo burguês de fora” (dirigido ao esquecimento da radicalidade da descoberta freudiana ou à diluição da radicalidade da práxis prescrita por ela). Existiria, imiscuído entre esses conformismos, como um fugaz ponto de fuga, sempre em movimento, a possibilidade de um engajamento efetivamente não-conformista, que desejasse o movimento, a mudança, a libertação – mas essa possibilidade implica em um movimento desejante e em uma espécie de batalha pela liberdade de desejo por parte de quem o desejasse, entre outros motivos porque todo psicanalista é, em alguma medida, burguês.

Podemos pensar que a psicanálise produz entre os seus esse embate entre o conformismo e o não-conformismo, de forma que a figura do lobo solitário acabe se apresentando ali, no consultório, na sala de estar. Compreendemos esse embate (entre o psicanalista-burguês e o psicanalista-lobo) como uma manifestação da própria “coisa” psicanalítica, em sua dimensão teórica (consciente versus inconsciente, ego versus id versus superego), em sua dimensão formativa (eu versus meu analista didata, meu estilo clínico versus meu supervisor, meus pendores criativos versus a ortodoxia da instituição em que circulo) e mesmo em sua dimensão política (psicanálise versus psicoterapias de “engenharia do comportamento”, psicanálise versus farmacoterapias, psicanálise versus “tempos líquidos”). Todas essas são manifestações em que “o lobo” mostra seus dentes, e que remontam ao “isolamento esplêndido” de Freud, Freud-lobo solitário.

Em vista desse panorama, nosso desafio seria superarmos a montagem relativista e conformista que daí deriva, em busca de indicações quanto ao estatuto do pertencimento e das condições de engajamento institucionais que não sejam nem tão lobo, nem tão cordeiro.

QUEM TEM MEDO DO LOBO SOLITÁRIO?

Pretendemos agora extrair da discussão acima suas consequências diretamente referidas ao jogo de filiações identitárias e ao papel do “inovador” na psicanálise.

A solidão parece um aspecto inevitável e ambiguamente cultivado pelos psicanalistas ilustres (Freud, Ferenczi, Lacan, Winnicott, cada um com a solidão que merecia), mas ela não é tratada por eles como “estepe” — longe disso. A solidão associada a eles parece corolário de seus pendores renovadores do movimento, e o movimento aqui necessariamente envolve a comunidade psicanalítica de seus tempos; as obras desses homens são famosas porque eles trabalharam duro para terem suas opiniões, suas propostas e inovações compreendidos e disseminados entre seus contemporâneos (e em direção à posteridade). A solidão em que eles se vêem envolvidos, portanto, pode ser mais diretamente associada ao desejo de liderança[19], e todo líder de matilha é em alguma medida um membro isolado em relação ao grupo — por isso dizemos não tratar-se de estepe: porque a estepe diz respeito ao isolamento para uma marginalidade absoluta, ao passo que a solidão dos grandes nomes em psicanálise não diz respeito a seu isolamento e sim à sua excepcionalidade.

Essa solidão, claro está, não os põe fora do circuito, eles não falam “desde fora”; segundo Freud, quem falasse de psicanálise (ou à psicanálise) a partir de uma exterioridade tal seria “selvagem” ou resistente, e a esses, Freud deixa claro, não se deve dar crédito[20]. Há nesse contexto um caso notável, atípico: Georg Groddeck.

Georg Groddeck (1866-1934) foi médico, diretor do Sanatório de Baden Baden e, a partir de 1917, interlocutor de Freud e psicanalista. Em sua primeira carta enviada ao mestre vienense não foi sem ironia que perguntou: “posso, então, denominar-me psicanalista?”; na carta Groddeck dizia que tinha travado contato com os escritos de Freud há pouco tempo e descobrira, não sem surpresa, que Freud lançava mão de ideia e conceitos que ele também usava — a pergunta de Groddeck, assim, é marcada pelo contexto “posto que descobri as mesmas coisas que você, posso chamar o que faço como você chama?”. Freud “permitiu” e a partir daí Groddeck passou a denominar-se “psicanalista selvagem”, de forma bastante coerente, posto que, como dizia Freud, psicanalista selvagem seria aquele que “não partilhe do ponto de vista da psicossexualidade” e que, por isso, “não tem o direito de expor teses psicanalíticas”[21] e Groddeck de fato não subscrevia aspectos importantes a respeito da teoria freudiana[22].

Groddeck faz parte da história da psicanálise, mas atua desde a borda, pouco participou das reuniões comunitárias ou das políticas institucionais, e seu nome é muito menos conhecido no contexto da teoria psicanalítica do que os de Ferenczi, Klein, Winnicott, Lacan; foi, como vimos, um “psicanalista selvagem” que assumia o título com orgulho — isso, é bom frisar, não o põe acima ou abaixo de nenhum outro psicanalista, mas ajuda a compreender como a “solidão” ou a “inovação” dos psicanalistas ilustres opera. Os trabalhos de renovação conceitual, clínica ou institucional propostos pelos grandes nomes da história psicanalítica operam na tensão entre o trabalho de lobo e o trabalho de ovelha, e o movimento tensional decorrente afere aos afetados a condição de matilha e de rebanho. Há ruptura? Sem dúvida — quando Lacan reage à comissão da IPA que limitou sua operação enquanto didata (processo que nomeou, pouco precisamente, como “excomunhão”[23]), seu gesto é de ruptura — e, no entanto, seriam incompreensíveis sem referência ao seu grupo de origem, e suas inovações são a um só tempo criação de um espírito de “rebanho” (em que ele é líder), espírito de “matilha” (ladrando e mordendo o fantasma da IPA e das práxis que lá operam) e criação de uma nova superfície de conflito (de onde sairão gerações de novos lobos, eventualmente atacando Lacan como “pastor burguês”).

Resumindo, o que propomos aqui é que se deve prestar menos atenção às bravatas articuladas em torno dos autores ou de suas inovações como insígnias do novo ou do velho enquanto valor estanque. Freud foi lobo e ovelha, foi líder revolucionário e pastor, bem como o foram Ferenczi (um pouco a posteriori, dada sua proscrição de décadas por Jones — hoje, no entanto, posta em pauta sua circulação enquanto líder, o mesmo se passa) e Klein e Winnicott e Lacan. Deve-se, pelo contrário, prestar mais atenção à circulação que decorre da práxis dos agentes de uma dada comunidade psicanalítica; supomos que com essa atenção percebe-se quantos teorizadores afeitos ao discurso da “peste” e da revolução operam como líderes de rebanho ou candidatos a pastor, ao passo que diversos outros psicanalistas circulam e trabalham intimamente conectados à estepe e (não por acaso) desligados do frisson da crítica e/ou revolução política/cultural/institucional.

E assim vemos certa inversão do cenário publicitariamente sugerido — a observância aos textos e à figura de um psicanalista “crítico”, por exemplo, não garante espírito crítico. Isso não significa, em absoluto, que vincular-se a tal “tipo” de psicanalista significa ser conservador ou ser ovelha de rebanho; significa, simplesmente, que não temos garantias: invertemos a lógica usual para demonstrar o valor da suspeita, não para estabilizarmos nosso vôo no entendimento de que o avesso é hoje a face.

CONSIDERAÇÕES

Não pretendemos aqui esgotar nenhuma questão específica — o que nos garante maior chance de sucesso no pouco que pretendemos: propor que retomemos o estranhamento diante das bravatas em torno de uma psicanálise “subversiva” ou bravatas que afirmam que a psicanálise decorre da sustentação de tal ou qual gesto, trejeito ou código de conduta. Atuamos no presente texto, assim, tentando “explodir” a questão em torno do pertencimento e da “alteridade” no contexto da psicanálise.

Todo psicanalista, apresente ele ou não uma postura crítica e subversiva, tem um cotidiano mais ou menos burguês: Freud o tinha, Lacan o tinha, Ferenczi o tinha, nós temos. Isso não invalida a assertiva de que os grandes nomes da psicanálise promoveram subversões, porque eles obviamente as promoveram; é necessário, no entanto, lembrar que elas foram eventualmente absorvidas e incorporadas pelas máquinas de fazer cotidiano. Algo do que o psicanalista faz é da ordem da peste, sem dúvida, mas isso não opera lá onde o psicanalista enche o peito para dizê-lo.

Se pudermos resumir todo nosso argumento em uma imagem, talvez possa ser essa: entre o burguês e o lobo insinuam-se outras formas, e na apatia aparente do burguês dissimula-se a coragem e a vergonha e a audácia, assim como na selvageria aparente do lobo dissimulam-se a ironia, a falta de jeito, a vergonha, o sorriso de palhaço; não sustentamos, como Hesse não sustentava, uma busca pelo lobo da estepe como a realização de alguma potência prometida, mas acreditamos no aspecto frutífero e revelador da busca pelo potente e pelo virtual. Ou seja: sem medo do lobo mau, sem idealização do lobo da estepe e, inversamente, sem medo da instituição castradora e sem idealização da instituição verdadeira.

Coerentemente com nossa proposta, não fizemos aqui o elogio nem a condenação das instituições, nem de uma ou outra instituição específica. Parece-nos que a condição solitária, bem como a condição gregária, não tem relação direta com a posição do psicanalista diante das instituições (ser ou não ser membro, ser ou não ser “importante”); parece-nos, por outro lado, que o “tensionamento” da trama institucional muitas vezes concorre em benefício da instituição em causa, ou em benefício da riqueza e potência do pensamento psicanalítico na época. O próprio François Roustang afirmou em uma visita ao Brasil que era grato às instituições psicanalíticas (essas mesmas que ele estuda de forma crítica em publicações suas)[24] na medida em que elas existem, são acessíveis a estudo e passíveis de crítica.

Cabe-nos frisar, nesse contexto, que parece crucial à nossa compreensão que não haja intervenções legisladoras com pendor totalitário (seja da parte de uma ou outra instituição, seja por parte do Estado) como condição de possibilidade desse processo institucional e de suas repercussões sobre a teoria, a técnica e a circulação institucional. Nessa medida somos levados a crer que a riqueza institucional em psicanálise opera em grande medida incluindo esses tensionamentos, que podem ser compreendidos como críticos no sentido mais forte do termo; se isso é verdade, a figura do isolamento no contexto das instituições psicanalíticas pode ser compreendida como um elemento necessário para a composição de marginalidades, de dissidências, de disputas e de inovações. Em contrapeso a essa hipótese levantaríamos outra: as instituições psicanalíticas sufocariam esse processo na medida em que pasteurizam ou homogeneízam a circulação de seus membros, na medida mesma em que a pasteurização tolhe os processos selvagens. Isso não significa que as instituições se enriquecem tanto mais quanto mais “liberais” elas são: significa apenas que a marginalidade e a subversão precisam poder sobreviver às regras – não nos parece que isso implique algum “elogio da subversão” ou convite à liberalidade nas práticas, implica apenas que o pensamento totalitário na psicanálise (como em qualquer outro lugar) será empobrecedor. 

REFERÊNCIAS

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* Wilson Franco é psicólogo e psicanalista, doutorando em Psicologia Clínica, autor dos livros Autorização e angústia de influência em Winnicott (Casa do Psicólogo, 2014) e Gente só (Chiado, 2013). E-mail: wilsondeacfranco@gmail.com


** Daniel Kupermann é professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, psicanalista membro da Formação Freudiana (RJ), autor de vários artigos publicados em revistas especializadas nacionais e estrangeiras e dos livros Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático (Zagodoni), Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (Escuta), Ousar rir: humor, criação e psicanálise, e Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, ambos publicados pela editora Civilização Brasileira. E-mail: danielkupermann@gmail.com



* Artigo derivado de pesquisa contemplada por bolsa Fapesp, processo número 2015/02520-7.

[1] Diversos autores discutem temas vinculados à constituição da IPA, dos quais destacamos Grosskurth, 1990, e Gay, 1988. Sobre as instituições que promovem rupturas em relação à IPA sugerimos Roudinesco, 2008, e, no caso do Brasil, Russo, 2002.

[2] Malgrado a afirmação, repetida mais de uma vez, de que a responsabilidade pela criação da psicanálise caberia a Breuer e não a ele mesmo; parece-nos, no entanto, que se Freud é rápido em transmitir a Breuer a responsabilidade pela descoberta inaugural, sente-se ainda assim sozinho no que diz respeito a “assumir a criança”, coisa que Breuer de fato nunca fez. Quanto à relação de Freud com a solidão, conferir os argumentos de Ellenberger em “The Discovery of the unconscious” (1990) e nas páginas 88-90 do livro “Genealogias”, de Roudinesco (1995)

[3] FREUD, Sigmund (1914) “A história do movimento psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[4] LACAN, Jacques (2001). “Ata de Fundação”. In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

[5] LACAN, Jacques (1986) “Séminaire de Caracas”. In: Almanach de la dissolution. Navarin, Paris, p. 86.

[6] Em Transferências cruzadas – uma história da psicanálise e suas instituições (Kupermann, 2014) são apresentados alguns elementos históricos e boa parte da bibliografia dedicada ao tema. Alguns dossiês também trataram do assunto, como o dossiê a respeito das instituições psicanalíticas publicado no primeiro volume da primeira edição do Anuário Brasileiro de Psicanálise, em 1991, e o dossiê sobre formação em psicanálise publicado pela Revista Percurso em 2010.

[7] FREUD, Anna (1978) Difficultés survenant sur le chemin de la psychanalyse. Nouvelle Revue de Psychanalyse, Paris, n. 10.

[8] HESSE, Hermann (1927) O lobo da estepe. Trad. I. Barroso. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015.

[9] HESSE, Hermann (1927) O lobo da estepe. Trad. I. Barroso. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015, p. 54.

[10] O livro de Hesse organiza a trama em torno da dicotomia “lobo da estepe versus homem burguês”. Sempre que falarmos em “burguês” no presente texto estaremos nos referindo a essa dicotomia, inscrita nessa problemática.

[11] Como sugere a famosa música “Born to be wild”, da banda… Steppenwolf (“Lobo da estepe”, no original alemão).

[12] FREUD, Sigmund (1917) Uma dificuldade no caminho da psicanálise, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[13] Nesse contexto, no entanto, é provável que a primeira geração de psicanalistas tenha sido mais “selvagem” ao buscar a psicanálise, que era naquele momento efetivamente contra-cultura, que as gerações posteriores que buscam uma psicanálise já assimilada e institucionalizada (cf. Gitelson, 1954) — crédito seja dado a Anna Freud por essa percepção.

[14] HESSE, Hermann (1927) O lobo da estepe. Trad. I. Barroso. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015, p. 87.

[15] Não poderemos analisar esse aspecto em maior detalhe, mas é importante ressaltar que essa discussão se liga àquela quanto à natureza da contribuição dos psicanalistas à psicanálise enquanto patrimônio cultural: a clínica “lobo da estepe” de Ferenczi, a teorização “lobo da estepe” de Freud, a atuação institucional “lobo da estepe” lacaniana e winnicottiana (de formas distintas) — talvez, nesse sentido, para além da “transmissão das resistências” a que se refere Zygouris (2011), exista uma “transmissão das insistências” ou “transmissão dos não-conformismos”.

[16] HESSE, Hermann (1927) “Posfácio”. In: O lobo da estepe. Trad. I. Barroso. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015.

[17] FREUD, Sigmund (1919) “O estranho”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[18] O termo “revolução”, como aconteceu com “burguês”, aparece aqui referido ao imaginário promovido por Hesse para a problemática ora em causa — sabemos que muito do que acontece em instituições é reforma, e não revolução.

[19] Não nos compete julgar ou valorar tal desejo de liderança, evidentemente, e nessa medida não estamos tratando dele como algo em si bom ou ruim.

[20] O texto em que Freud trata diretamente desse tema foi traduzido na Edição Standard da Editora Imago como “Psicanálise silvestre” (Freud, 1910); o título em alemão, “Über ‘wilde’ psychanalyse”, comporta essa tradução bem como “Psicanálise selvagem” — parece-nos, no entanto, que o termo “selvagem” comporta associações mais próximas ao campo de problematização que Freud põe em causa, na medida em que o “silvestre” é algo indomado e bravio mas também algo que “cresce espontaneamente” e “peculiar a uma área ou região” e na medida em que o termo “silvestre” tira do título sua referência a algo violento e não submetido aos pactos civilizados.

[21] FREUD, Sigmund (1910) “Psicanálise silvestre”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[22] Para mais informações sobre a trajetória de Groddeck no contexto da psicanálise, referimos o leitor a Nasio (1995) e Ávila (1999).

[23] Uma discussão a respeito de elementos em causa no termo escolhido pode ser encontrada em Roudinesco (1988). Lacan refere-se ao processo como “excomunhão” no Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964).

[24] ROUSTANG, François (1976) Um destino tão funesto. Trad. J. Bastos. Rio de Janeiro: Timbre-Taurus.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | FRANCO, Wilson; KUPERMANN, Daniel (2018) Sobre lobos e psicanalistas: solidão, pertencimento e inovação em psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 5, p. 6, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/06/04/n05-06/>.