Do gozo e seus tratamentos
As perguntas que Clarissa Metzger coloca em seu recém-lançado A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo, cuja publicação é fruto de seu percurso pelo doutorado em Psicologia Clínica realizado no IP-USP, são, primordialmente, a de uma pesquisadora incansável: “desde o ensino de Lacan”, indaga logo de saída, quais efeitos teria “a sublimação no sujeito?”, e, além disso, que consequências seriam essas no que tange especificamente ao gozo?, uma vez que gozo e prazer não são categorias equivalentes, bem o contrário. “Sim”, continua, “porque uma vez que a sublimação seja definida como um destino da pulsão, mas também como elevação do objeto à dignidade da Coisa” — definição que se tornou princeps em Lacan, como se sabe, e com a qual a autora concorda —, não estará implícito, nessa operação, algum tratamento de gozo, um novo destino para a pulsão?”.[1]
A crítica a uma certa visada do conceito de sublimação tem ganhado cada vez mais força na reflexão psicanalítica contemporânea, de modo que não é à toa que no Brasil estejam pululando textos recentes que investem neste aspecto de fundamental importância na revisão da teoria (inacabada, é sempre bom lembrar); é, com efeito, salutar esse movimento porque o tom um tanto idealizado do conceito, que surgiu no seio do dualismo pulsional e é acusado por estas leituras, pode mesmo ser verificado no próprio Freud. Parece-me, ademais, que essa nuança pode ser associada especialmente ao caráter social que seria exigido do que vem a ser o produto da sublimação, visão com a qual Freud flertou por diversas vezes e que Metzger não deixou de cutucar.[2] Assim, “sublimar não estaria no lado da adaptação” mas da criação, evidentemente, e que pode ser inclusive partilhada. Mas não só: recuperando a teorização de Lacan, a autora propõe que “o objeto da sublimação precisa ser um objeto comum que evidencie algo do vazio de das Ding”,[3] condição sine qua non para a elevação do objeto. O que permite recuperar, também em Lacan, as diferentes maneiras de fazê-lo, ou seja, evidenciá-lo, uma vez que “nenhum objeto pode ser das Ding, ocupar seu lugar, mas apenas tangenciá-lo, aludi-lo”.[4] Cada uma dessas modalidades se aproxima da incidência da negação da Coisa ou de uma “castração dela decorrente” cujo resultado será histeria, neurose obsessiva ou paranoia, sendo que cada uma delas se articula, respectivamente, à arte, à religião e à ciência.
Não obstante, é possível que a expressão “elevar à dignidade da Coisa” talvez se refira ela mesma a uma tentativa de alusão ao vazio, embora de modo excessivamente lateral — aliás, esse é um aspecto pouco explorado nesta discussão que envolve a chamada estética psicanalítica —, algo já realizado historicamente por boa parte da fortuna crítica lacaniana que se debruçou sobre o conceito. O que resta de interessante a observar, a meu ver, é que até hoje ninguém sublinhou o dignidade que está aí na definição lacaniana, e eu apostaria minhas fichas em um certo kantismo que nela sobreviveu, já que isso se refere não apenas ao caráter metapsicológico no interior de seu arsenal de conceitos (ou seja, de um tipo de pensamento que supõe a “consistência” de uma coisa-em-si, tal como se apresenta a dimensão do real e em todos os consequentes avatares desta definição em Lacan), mas também e sobretudo à própria estética kantiana, tão implicada com a dignidade dos objetos de arte.
De qualquer modo, o mais significativo nesse contexto fica sendo a torção realizada por Lacan, quer dizer, o fato de que a sublimação não exija como condição necessária que seu produto se encaixe nos valores vigentes, mas crie valor — como Metzger faz questão de ressaltar em vários momentos de seu texto. Assim, trata-se mais de um certo reposicionamento dos objetos que chega a evidenciar ou a aludir ao vazio da Coisa, fazendo com que o próprio objeto saia da figura e passe ao fundo da teoria: “o que realmente importa”, conclui, seria “o tratamento que é dispensado a ele”.[5] Em outras palavras, é possível considerar que a própria situação da análise consistiria em uma tentativa de tratar o gozo no limite de conduzir o sujeito até um determinado limiar; entretanto, não se pode realiza-la a termo sem ao menos visar a ultrapassagem deste limiar, ou seja, alcançar uma travessia do fantasma, o que toca necessariamente no fim de uma análise. Fim de análise e sublimação estão portanto intimamente ligados.
Como se vê, a definição de tratamento é extremamente importante aqui: “quando nos referimos a um tratamento do gozo”, lê-se, “estamos considerando principalmente o manejo, o cuidado que se pode dispensar ao gozo, os cuidados com que se empreende uma cura, assim como a definição que inclui tratamento como um ‘modo de operar sobre certas matérias que se deseja transformar’”. A sublimação poderia ser entendida como tratamento na exata medida em que “implica um fazer com o vazio na condição de presença real”. Além disso, tratar o gozo não “significa eliminá-lo ou prevenir-se do real”, a autora adverte; consiste, todavia, em “dar a ela um destino diferente da imersão passiva”,[6] fazer algo com o vazio por ele cavilhado na substância psíquica para com isso evitar, se assim podemos dizê-lo, as vicissitudes paralisantes do sintoma, esse “aparelhamento de gozo” que tanto atrapalha. Metzger faz valer, assim, a pergunta insistente de Freud: em vez de produzir um sintoma, por que diabos não fazemos um sonho, um chiste, ou, com sorte, uma obra de arte?
Avançando em seu texto, segue-se toda uma discussão, de crucial importância, a respeito de uma famigerada dessexualização que ocorreria à pulsão no que tange ao sublimatório. Neste contexto, e tendo em vista os progressos que a autora faz, ocorreu-me acrescentar uma questão: dar por certo, como faz crer Garcia-Roza, que se trata de uma dessexualização do objeto e não do sujeito (já que o caráter sexual da pulsão é com efeito um irredutível), isto seria suficiente para resolver o problema? Em caso afirmativo, poderíamos então concordar que um fetiche seja entendido como obra de arte – não que um fetiche não teria condições de vir a sê-lo, isso é evidente, mas certamente não o seria de antemão. Ora, se se considera que a sublimação é uma “projeção desse gozo para além”, então ela talvez não seja tão diferente do fetiche em relação àquilo que se almeja da Coisa. Ainda assim, é preciso considerar que, pelo sim e pelo não, eles certamente se diferenciam no pertencimento de cada um na ordem metapsicológica lacaniana, isto é: enquanto a obra de arte mira o simbólico, ambiciona-o, o fetiche se restringiria aos prazeres do imaginário.[7]
Mantendo-se fiel à Lacan, a reflexão de Metzger se depara com a necessidade de enfrentar uma possível fricção entre a sublimação e a pulsão de morte, decorrente do seminário sobre a ética (VII), no qual Lacan as enunciou como sendo sinônimos. Porém, para “situar essa afirmação, que a princípio pode soar um tanto enigmática”, ressalta a autora, “precisamos entender a característica silenciosa e insidiosa da pulsão de morte como sendo da ordem da sublimação na medida em que permite que algo se crie a partir da destruição operada por essa pulsão”. Com efeito, a sublimação consiste numa operação que incide sobre a pulsão de morte “como possibilidade de criação a partir do nada”;[8] trata-se, contudo, de uma criação que “alude ao vazio em vez de buscar encobri-lo”.[9] A linha entre uma coisa e outra é de fato tênue porque “a pulsão de morte que pode criar o novo é a mesma que satisfaz o gozo” — o que faz com que a pulsão de morte seja “o ponto articulador entre gozo e sublimação”.[10] A autora mostra, assim, que há uma solidariedade insuspeitada entre os conceitos.
No entanto, não basta simplesmente enunciar esta possibilidade de se tratar o gozo: é preciso especificar, afinal, de que gozo se trata, uma vez que o percurso no ensino de Lacan permite colecionar, acerca dele, ao menos quatro categorias, tal como averiguamos junto a essa pesquisa: o gozo do Outro, o gozo fálico, o mais-de-gozar e o gozo feminino. Em termos lógicos, seria então no gozo fálico que a sublimação incide em sua especificidade? Em um primeiro momento a resposta é sim, já que, “no essencial” (Patrick Valas vem em seu auxílio aqui), é naquilo que se faliciza do gozo que o significante (sublimatório) pode operar. Em um segundo momento, porém, a sublimação parece indicar algo da ordem do gozo feminino, ou seja, para além da castração, pois o de que se trata agora é de uma posição frente ao gozo que “desconsideraria” o recalque. Quanto a isso, é como se Lacan antecipasse Lacan, pois a posição lacaniana da sublimação como elevação do objeto à dignidade da Coisa não apenas se refere ao vazio real da Coisa mas é também anterior à álgebra do gozo feminino; e o fato de que a sublimação não exija o Nome-do-Pai para operar neste para além da norma fálica se torna, aqui, crucial.
O que conduz o leitor a uma conclusão muito interessante: sobrepondo[11] o conceito de sublimação ao grafo do desejo — Metzger o faz tomando como exemplo a formalização de J.-A. Miller, de quem ela aliás discorda! –, é possível extrair uma possibilidade lógica para pensar o tratamento do gozo em paralelo ao fim da análise, cujo objetivo seria justamente o de levar o sujeito a prescindir do fantasma. Se concordarmos com a autora, então a sublimação configuraria uma possibilidade de tratar o gozo sem tamponar a falta no Outro, o que é absolutamente coerente com a conclusão indicada por Lacan em seu texto sobre o estádio do espelho, por exemplo: a psicanálise não é exclusiva no que tange a conduzir o sujeito à verdadeira viagem, ou seja, a produzir, nele, efeitos analíticos… A arte seria, igualmente e há mais tempo, capaz de fazê-lo.
Com respeito à possível relação sobre entre sublimação e psicose, é claro que a discussão é de extrema importância em relação à clínica, sobretudo no sentido de tomar em questão o sujeito que sublima. No que se refere à definição do conceito, é preciso retomar certas mediações, já que, no que concerne à psicose, o objeto parece ser, curiosamente, mais relevante que o sujeito, embora a tese seja clara quanto à exigência da posição subjetiva que está em jogo: mesmo que a um psicótico não seja possível (na teoria, ao menos) operar por sublimação, este não seria capaz de produzir objetos sublimatórios? Em outras palavras, como, enfim, diferenciar objetos de sublimação em termos subjetivos se o que confere seu estatuto é justamente à alusão ao vazio, leia-se, os aspectos formais que ele contém e que fazem o espectador se inclinar a uma dada interpretação? Se, por exemplo, para um Bispo do Rosário — tomando como exemplo esse artista que é reconhecidamente louco —, os objetos que produziu não eram fruto de sublimação, para a cultura eles definitivamente são.
Disse Lacan no seminário sobre a lógica do fantasma (1966-7): “Qualquer que seja ela, de qualquer forma que ela seja tomada, a obra da sublimação não é de forma alguma forçosamente a obra de arte, ela pode ser muitas outras coisas ainda, inclusive o que estou aqui fazendo com vocês que não tem nada a ver com a obra de arte”;[12] a obra, por sua vez, acrescenta o psicanalista, mas no seminário do ano seguinte, é “o que faz cócegas por dentro em das Ding”[13] — ainda que nem toda obra toque exatamente neste ponto. É o mesmo que dizer que o objeto da sublimação opera como semblante de das Ding, ou seja, está no ponto de encontro entre a Coisa e o(s) objeto(s) imaginário(s) que, ao fim e ao cabo, personificam a possibilidade de dar forma ao não-formado. E é nesse sentido que a autora visa justamente apostar no potencial clínico que a sublimação pode abarcar: “satisfação da pulsão que opera sem inibição”, por um lado, mas também “produção de um gozo diferente do gozo fálico”, por outro, “já que com o fim de análise ocorre a queda dos ideais que estariam mais estritamente ligados” àquele.[14] Não se trata evidentemente de tomar o conceito de sublimação em seu sentido “prescritivo”, o que implica, por conseguinte, numa ética da análise.[15] Ora, se a sublimação é um saber-fazer-com o gozo, logo não há porque não concordarmos que seja efetivamente um tratamento. Deste modo prova-se, portanto, a hipótese inicial o livro, a saber: a de que a sublimação deva ser uma resposta entre outras possíveis em relação ao tratamento do gozo, pois, diante da irrupção do real, é comum apresentar certas características que a autorizam a tanto. Sua aposta, enfim, é a de que o conceito não é apenas sócio-estético, digamos assim, mas eminentemente clínico uma vez que a sua operatividade supõe esse saber-fazer-com o real.
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Logo no início de seu percurso, o livro cria uma expectativa apetitosa para o leitor, prometendo tomar a categoria de sublimação em sua vertente mais específica de manejo, para com isso evitar a saída mais óbvia pela via da arte — não obstante qualquer ato de falar sobre a sublimação, em que pese sua importância no campo “extra-clínico”, seja uma espécie de “reflexão estética psicanalítica” (ainda que indireta). Mesmo assim — e este é o único embaraço que se pode apontar acerca deste importante livro —, a meu ver o trabalho deixa um tantinho a desejar justamente acerca deste ponto, a despeito de a autora justificar sua escolha em não se apoiar em um caso clínico. Trata-se de uma contradição diante da qual é difícil desviar os olhos, pois ela nega, precisamente, o que afirmara logo antes. A análise que se conduziu a respeito do filme não deixa de ser interessante, muito pelo contrário, já que se movimenta junto aos contornos do vazio deixado por Elena[16] que o documentário buscou edificar (os contornos, evidentemente, não o vazio) — assim, é como se a autora tomasse o filme como sache para pensar das Ding, o que não deixa de ser bastante valioso. Além disso, as razões para que não se utilizasse de um caso para provar sua tese estão muito claras ao longo da argumentação; mas não deixam de criar, no leitor — é preciso insistir nisso —, uma certa vontade de escuta, algum fragmento de caso clínico propriamente dito que permitiria saborear um pouco mais deste percurso…
Afora este pequeno impasse, a maior certeza de quem ler este livro é a de se deparar com o valioso esforço de uma autora que não se esquiva de apresentar problemas difíceis lado-a-lado com panoramas didáticos, e isto somado à coragem de revelar certas nuances que por vezes chegam a ser paradoxais ou excessivamente ambíguas em Lacan. A propósito, deve-se sublinhar que seu texto é de uma clareza admirável, sobretudo porque faz questão de estar a anos luz de um lacanês empolado do qual já estamos fartos, “estilo” que a bem da verdade expressa mais confusão sob um disfarce de complexidade. Assim, creio que A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo será um livro de grande utilidade na práxis psicanalítica, e não tenho dúvida de que os seus demais leitores terão idêntica impressão. ♦
REFERÊNCIAS
METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp.
* Gustavo Henrique Dionisio é psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social da Arte pelo IP-USP, Prof. Assistente Doutor no Depto. de Psicologia Clínica da Unesp-Assis. E-mail: gustavohdionisio@gmail.com.
[1] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 24.
[2] Quanto a isso, é preciso ponderar: ainda que um objeto venha a ser socialmente reconhecido, isto não equivale afirmar seu valor comercial – dado que acabou causando confusão em certas leituras que visaram criticar Freud.
[3] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 118.
[4] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 199.
[5] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 198.
[6] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, os. 29-41.
[7] Em leitura diferente, Janine Chasseguet-Smirgel sugere uma teoria diferente desta proposta: para ela o mecanismo de criação perverso seria a idealização, nunca a sublimação. Cf. CHASSEGUET-SMIRGEL, Janine (1981) Ética e estética na perversão. Porto Alegre: Artes Médicas.
[8] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 79-81.
[9] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 206, grifos meus.
[10] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 126.
[11] Sobreposição que, a rigor, nunca se deu em Lacan, como indica o texto.
[12] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 163.
[13] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 171.
[14] METZGER, Clarissa (2017) A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo. São Paulo: Edusp, p. 226.
[15] Vale destacar um ponto de interesse quanto à ética e à clínica, nesse sentido: seguindo os passos de Lacan, a autora indica que a estrutura perversa teria uma capacidade maior de sublimar, na medida em que o sujeito da Verleugnung se desvia da castração – tese contrária a de Chasseguet-Smirgel, há pouco citada.
[16] Elena suicidou-se, o que motivou a realização do filme.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | DIONISIO, Gustavo Henrique (2018) Resenha: A sublimação no ensino de Jacques Lacan: um tratamento possível do gozo (Metzger, 2017). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -5, p. 11, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/06/04/n05-11/>.