por Mara Caffé
ALONSO, Silvia Leonor et al. (orgs.) Corpos, sexualidades, diversidade. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae / Escuta, 2016.
Em junho de 2015 foi realizada a III Jornada Temática do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, organizada pelo grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo (desse mesmo Departamento) e documentada no presente livro. Trinta e sete autores apresentaram seus trabalhos, dos quais trinta e cinco são psicanalistas ligados ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e dois são convidados externos (José Miguel Wisnik e Bia Abramo), que contribuíram para o debate sobre o filme De gravata e unha vermelha, dirigido por Miriam Chnaiderman. A grande extensão do grupo de colaboradores chama a atenção, revelando a produtividade desse grupo de pesquisa, bem como a sua capacidade de mobilização e convocação para o trabalho no âmbito do Departamento. O conjunto dos textos publicados apresenta algumas coordenadas comuns como, por exemplo, o diálogo intenso com a obra freudiana, a preocupação com os temas sociais e políticos, e a presença balizadora da clínica psicanalítica contemporânea. Ao mesmo tempo, com relação a esses pontos, as abordagens e composições são bastante diversas, cabendo, portanto, a singularidade do pensamento de cada autor, cumprindo-se a condição autoral intrínseca a toda escrita psicanalítica.
De modo geral, vemos a presença significativa dos temas relacionados ao gênero em diversos trabalhos. Em decorrência, as questões sobre o feminino, que atravessam a totalidade dos textos do livro, acham-se fortemente interpeladas por novas grades conceituais que atingem em cheio as concepções binárias e essencialistas sobre a sexualidade, operando modificações importantes, como o deslocamento da noção chave de “diferença de sexos” para a noção de “diversidade de sexos”. A esse respeito, Sílvia Alonso, coordenadora do grupo desde 1997, apresenta, em seu texto de abertura, as contribuições que os estudos de gênero trouxeram à psicanálise, destacando o seu grande potencial crítico, bem como os problemas para integrar o conceito de “gênero” ao campo propriamente psicanalítico. Oferece um painel rigoroso dos conceitos em jogo, situando-os historicamente e buscando as discriminações necessárias ao trabalho. Assim, de saída, observamos o peso dessa temática no desenvolvimento da jornada, o que parece ter contribuído para a escolha do termo diversidade no título do evento e do livro. Afinal, o uso recente e reiterado dessa palavra se deve, em parte, ao diálogo com os estudos de gênero (ainda que, bem antes disso, Derrida e Deleuze a tenham empregado em suas obras, dialogando com a psicanálise), contrapondo diferença e diversidade, conforme já dito — a primeira mais afeita à lógica binária. Neste sentido, tomando o eixo da diversidade, cada vez mais falamos em feminilidades, no plural, o que produz efeitos importantes a serem explorados pelas teorias e práticas psicanalíticas. Na mesma linha, falamos em sexualidades, no plural. Assim, o título Corpos, sexualidades, diversidade parece oferecer um recorte e até mesmo um analisador para a leitura do livro, dispondo três termos, sem conectivos, ao mesmo tempo relacionados e independentes entre si, constituindo aberturas mais do que direções. A seguir, comentarei brevemente alguns textos, certa de não contemplar toda a riqueza do extenso livro, o que dificilmente caberia no espaço de uma resenha. Trata-se de um registro pessoal, guiado por um fio associativo, e não por temáticas específicas. Começo com os trabalhos referidos ao corpo, deixando os seguintes se sucederem conforme as minhas impressões a partir da leitura.
Os três textos que compõem a primeira mesa referem-se ao campo das artes, visando especialmente o registro do sensível e do performático, como a body art, a pintura e as atividades cênicas relativas ao cinema e ao teatro. Elaine Armenio comenta diversas apresentações artísticas em que o corpo é exposto a dores, cortes, imobilismos, transformações — enfim, excessos que provocam/indicam/estabelecem limites radicais à experiência humana —, indagando sobre os registros do real e do simbólico nessas condições. Miriam Chnaiderman reflete sobre o processo de realização do filme De gravata e unha vermelha, destacando as transexualidades e as participações de Laerte, Bertholini e Letícia Lanz, trabalhando com a hipótese da psicanálise como compreensão cênica. Discute noções lacanianas como “semblante”, “real” e “gozo” a partir dos paradigmas relacionados às teorias de gênero. Paula Francisquetti apresenta o pensamento da pintora e psicanalista israelense Bracha Ettinger, que, pautada nos próprios processos artísticos, propõe uma teoria bastante original acerca do feminino, denominada “teoria matricial”, descentrada do referente fálico e ligada às intensidades sensoriais e às ressonâncias não discursivas. Aproxima-se, assim, da noção de “chôra” (Fédida) e de “devir” (Deleuze e Guattari).
De outro lado, referidas à experiência clínica, Maria Elisa Labaki e Luciana Cartocci postulam alguns aspectos do enquadre como relativos ao materno, acentuando a função primária do cuidado e o vazio receptivo necessários à regressão na análise. A partir de uma vasta bibliografia, dialogando com Ferenczi, Winnicott, Fédida, Green, Aulagnier, entre outros, as autoras refletem sobre o corpo do analista no campo da transferência, sua fala associada aos comportamentos, mímicas, gestos, olhares, propiciando a sustentação do processo analítico. Em outra visada sobre o materno, temos o texto de Sérgio Telles, que, apoiado nas teses de Amber Jacobs, trata da hipótese de que haveria uma repressão do matricídio nas teorias psicanalíticas, em detrimento do primado da estrutura parricida edipiana, o que argumenta a partir de uma análise do mito de Orestes. De volta à trilha das temáticas do corpo, há o texto de Tide Nogueira, que aborda a questão das transmissões transgeracionais traumáticas enquistadas no corpo, tomado como morada para o que é da ordem do irrepresentável. A autora traz aportes de Kaës, Abraham e Törok, apresentando um caso clínico muito ilustrativo, conduzido com grande sensibilidade. No terreno das experiências coletivas traumáticas, temos o interessante texto de Renata Cromberg, que reflete sobre o nazismo e o julgamento dos crimes de guerra pelo Tribunal de Nuremberg, postulando relações entre corpo judeu e corpo mulher, holocausto e misoginia. Seguindo o fio da misoginia e da violência contra o corpo da mulher, há o impressionante relato de Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo sobre o caso do médico Roger Abdelmassih, cujos crimes permaneceram silenciados durante anos, em decorrência de um pacto social-institucional macabro, para dizer o mínimo. No tema da violência política, há também o excelente texto de Maria Cristina Ocariz, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” a barbaridade ocorrida contra as mulheres durante a ditadura civil-militar brasileira, relatando a experiência do Projeto Clínica do Testemunho desenvolvido no Instituto Sedes Sapientiae. A autora reflete sobre a particularidade da tortura política e seu caráter transsubjetivo.
Enfatizando a perspectiva política, temos o texto de Maria Silvia Bolguese, que, com muito critério e numa perspectiva pouco comum em nossa área, traz à baila os registros da biologia e da fisiologia numa reflexão psicanalítica sobre a menstruação, a gravidez, a menopausa e o envelhecimento da mulher, considerando os efeitos do saber/poder médico e das normatividades sociais. Numa abordagem diferente e igualmente interessante, há o texto primoroso de Helena Albuquerque que descola a menopausa da velhice, situando-a como um tempo de descobertas, de novos erotismos, de perdas e desamparos específicos. Evoca diversas passagens de Freud e Laznik, entre outros, entrelaçando psicanálise e referências da antropologia e da história. Também sensível aos referentes da cultura, visando as novas configurações da família, a transmissão dos cuidados e o papel dos avós, há o belo texto de Gisela Haddad, que reflete criticamente sobre as condições contemporâneas ao projeto de filhos. Trabalhando, ainda, com os referentes da cultura, temos o divertido texto de Silvia Alonso e Mário Fuks, comparando a conhecida peça de Tennessee Williams, Um bonde chamado desejo (1947), depois levada ao cinema em 1951, com o filme de Woody Allen, Blue Jasmine (2013), chegando a uma montagem caleidoscópica acerca da histeria: ambos os filmes mobilizam roteiros e elementos muito semelhantes, exibindo formas e roupagens distintas conforme o tempo histórico. Por sua vez, Maria Aparecida Aidar apresenta uma discussão rigorosa sobre o supereu da mulher, considerando o cenário clássico da obra freudiana e o cenário contemporâneo. Identifica os aspectos conservadores e os avanços do pensamento de Freud, refletindo sobre culpabilidade, responsabilidade, pudor e moralidade, indagando o que hoje tem distinguido homens de mulheres, sexual e socialmente.
Por fim, menciono três excelentes textos sobre sexualidade e gênero, que compuseram uma das mesas da jornada, sendo interessante considerá-los em conjunto, nas interpelações que fazem uns aos outros. Ana Maria Sigal coloca em questão os conceitos de “falo” e “inveja do pênis”, cotejando as teorias de Freud, Klein e Laplanche, apoiando-se em novos modelos epistemológicos da ciência e da filosofia, propondo considerações à teoria da sexuação. A autora critica a adesão maciça às teorias de gênero, entendendo-as como relativas ao campo do eu, fora da especificidade da psicanálise. Em um texto muito original, Nayra Ganhito reflete sobre o masculino a partir da obra de Freud, lançando mão de alguns referentes da história e da cultura, auxiliada principalmente por Monique Schneider. Apresenta novos referentes de análise, alertando contra o risco de perpetrarmos um recalque e uma violência ao masculino, propondo um outro modo de vê-lo, fora da chave fálica. Podemos dizer que o texto de Sigal acentua a positividade do feminino, o que Ganhito faz com respeito ao masculino. Nelson da Silvia Junior explora as origens da noção de “performatividade”, trazendo as importantes contribuições de Derrida, habilitando essa noção para o campo propriamente psicanalítico. Traz uma excelente discussão sobre o amálgama entre masculinidade e metafísica, abrindo a análise para as temáticas do gênero. Neste sentido, formula condições estratégicas para importar os estudos de gênero à psicanálise, o que contrasta em parte com a perspectiva de Sigal, que vê limites claros quanto a isso. Por sua vez, com respeito ao texto de Nelson, Ganhito indaga o que estaria forcluído nas reificações metafísicas do masculino, visibilizando os seus registros não fálicos. Enfim, o livro oferece uma rica e variada série de textos, havendo muitos outros além dos mencionados nesta resenha. Vale conferir! ♦
* Mara Caffé é psicanalista, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no Curso de Psicanálise desse mesmo Instituto. É autora dos livros Psicanálise e Direito – a escuta analítica e a função normativa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2010 e Crítica à normalização da Psicanálise. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2014.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | CAFFÉ, Mara (2018) Resenha: Corpos, sexualidades, diversidade (Alonso et al., 2016). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -5, p. 12, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/06/04/n05-12/>.