As relações entre a psicanálise e a política nunca foram tema fácil. Decerto, por décadas, a abstinência analítica parece ter sido importada (sem muitos impostos) da técnica para uma espécie de modo de vida no qual a única posição possível do analista é a do questionamento da posição do outro. Assim, nosso pendor anti-civilizatório, pretensamente marginal e as benesses da não relação com o Estado parece terem funcionado muito bem para o estabelecimento de um campo, não menos político, ainda que não partidário. Contudo, a realidade brasileira desnudada pelo resultado do último pleito parece ter deflagrado uma espécie de prazo de validade da sustentação hegemônica desta postura. Não poucos coletivos de psicanalistas — formação que, por si só, é digna de atenção — se organizaram e, mais ainda, vieram a público não na qualidade de cidadãos, mas de analistas, posicionar-se contra o horizonte de barbárie colocado pela eleição de Jair Bolsonaro. Dada a inescapável polarização social houve, é claro, manifestações que denunciavam tal expediente e até mesmo notas de isenção. De toda forma, seja pelo resgate, incubação e reflexões dessa natureza no interior das universidades e, mais recentemente, de algumas instituições de formação, seja pela radicalização de uma extrema direita que produziu uma relativa unidade entre psicanalistas, parece ter emergido algo um tanto inédito: a defesa coletiva de ideais democráticos e, no limite, civilizatórios por parte de psicanalistas.
Talvez ainda seja cedo para colher os efeitos das mudanças políticas em curso no interior do campo analítico. Mas isso não impede que nos posicionemos face ao momento, na qualidade de uma revista que se propõe a tratar a psicanálise na cultura, assumindo a crítica à toda forma de exclusão de sujeitos minorizados, a defesa radical dos pactos democráticos consolidados na Constituição Federal e da laicidade do Estado. Muito além do questionável mantra que reza sobre a impossibilidade da prática analítica em Estados totalitários, defendemos que a psicanálise é uma prática baseada no desvelamento e exploração da diferença no sujeito e, portanto, incompatível com qualquer silenciamento da marginalidade em nome da lei e da ordem. A abstinência analítica é, antes de mais nada, uma posição que visa promover e até mesmo incitar a fala plena. Mas quando a cultura começa a impor silêncios, violências e apagamentos, parece-nos que a única forma de, eticamente, garantir um espaço no qual o sujeito emerja é pelo ato, por um fazer que nos coloque na cena, neste caso, pública.