Bantu no banheiro – sobre o julgamento de Oscar Pistorius

Bantu in the bathroom ]

por Jacqueline Rose

Tradução| Hugo Lana

No dia 3 de março de 2014, o primeiro dia do julgamento de Oscar Pistorius pelo assassinato de Reeva Steenkamp, a juíza Thokozile Matilda Masipa atravessou lenta e hesitantemente a sala do tribunal GD em North Gauteng High Court em Pretoria. Ela sofre de uma artrite severa e durante o julgamento sentou-se em uma cadeira ortopédica muito menor do que os assentos grandes de couro de seus dois assessores em cada lado. A entrada da juíza Masipa não poderia ser mais diferente do que a do réu que ela estava lá para julgar. De acordo com um observador, Pistorius caminhou a passos largos para seu lugar. “Eu executo cada passo com um objetivo” é uma frase de um verso dos salmos de Coríntios que Pistorius tem tatuado em seu ombro.

Dependendo de como é a tua opinião sobre o julgamento final da juíza Masipa, ou ela era especialmente qualificada ou inadequada para a tarefa. Como é bem conhecido, ela considerou Pistorius inocente do assassinato mas culpado de homicídio culposo – o equivalente a manslaughter na lei anglo-americana. Após o julgamento, ela tornou-se o alvo de críticas misóginas e condescententes; foi chamada de “uma negra incompetente”, insultada como sendo “cega e surda” e pediu proteção 24 horas a sua casa. Muitos daqueles a acusando falaram em nome da justiça para a mulher. O apelo contra o seu veredito foi ouvido ante a Suprema Corte da África do Sul na semana passada e uma auditoria é esperada.

A juíza Masipa chegou tarde ao direito tendo realizado sua formação nos seus quarenta anos. Aceita como advogada em 1991 como uma das únicas três mulheres negras na corte de Joanesburgo, ela foi apontada como juíza na Divisão Pronvincial de Transvaal da High Court da África do Sul em 1998 – somente a segunda mulher negra a ser apontada para o tribunal. Apesar de sua sentença no caso de Pistorius, Masipa é conhecida pelas sentenças máximas que ela defere em casos envolvendo violência contra a mulher. Em 2009 ela deu uma sentença de prisão perpétua para um policial que havia atirado em sua mulher e a matado: “você merece passar sua vida na cadeia”, ela afirmou em sua sentença, “porque você não é um protetor, você é um assassino”. Em maio de 2013 ela sentenciou um estuprador em série a 252 anos de prisão – 15 anos para cada um dos 11 casos de roubo, 12 anos por tentativa de assassinato e prisões perpétuas para cada uma das três acusações de estupro. A juíza Masipa conhece a violência. Ela nasceu em Soweto, em uma família de dez filhos em que quatro deles morreram jovens, um deles morreu esfaqueado por perpetradores desconhecidos quando tinha 21 anos.

Como muitos personagens nessa história, a vida da juíza Masipa seguiu a violência desde o apartheid até o seu rescaldo, e é reveladora da realidade dos crimes obscuros e não-obscuros da África do Sul. Ela tem, como se poderia dizer, cumprido o seu tempo. Ela sabe o que significa estar no lado errado da lei (mesmo que a própria lei na África do Sul do apartheid estivesse errada). Nos anos 70 ela foi uma repórter criminal para o World, um jornal banido em 1977 pelo ministro da justiça Jimmy Kruger e pelo Post, então possuído por brancos. Lá, ela marchou em protesto com colegas mulheres contra a prisão de muitos repórteres homens negros. Quando cinco das mulheres, incluindo Masipa, foram presas, encarceradas e levadas à corte, elas se recusaram a apelar com a justificativa de que não reconheciam a autoridade do Estado do apartheid. Antes de liberar os prisioneiros para uma aparição na corte, quatro agentes penitenciários brancos exigiram que limpassem suas privadas – enfiando suas caras nelas, como se poderia dizer (eles se recusaram). A juíza Masipa é “compassiva” – sua palavra. Ela traz sua história, a história racial da África do Sul, para a corte. Você olha para a lei, disse ela em uma entrevista, “com olhos diferentes… porque você é compassiva”. Se uma mulher negra está sendo julgada, ela continuou, “você pode tornar as coisas mais fáceis para ela explicando coisas e não sendo muito duro com ela. Mas não são todos que compreendem isso”. Nem todos compreendem o cuidado racialmente aplicado que, como uma das primeiras mulheres negras juízas da África do Sul, Masipa trouxe à lei. Em outro de seus julgamentos ela julgou em favor de um grupo de posseiros de Joanesburgo nas premissas de que a cidade havia falhado em seu dever de cuidar: a cidade, ela disse, estava tentando “se distanciar” dos posseiros. “Eu como que posso me identificar com o que esses jovens estão passando”, ela disse dos jovens infratores que passaram pela sua corte, “porque isso é de onde eu venho”. O quão notável essa afirmação é pode ser aferido quando você a compara com a instrução dada por Susan Shabangu, ministra das minas na época do massacre das minas de Marikana em 2012, para um grupo de policiais sobre como lidar com infratores: “Vocês devem matar os desgraçados se eles ameaçarem a vocês ou à comunidade. Vocês não devem se importar com as regulações. Essa é minha responsabilidade.”

Alguns argumentam que a compaixão de Masipa turva seu julgamento: que ela teve muita empatia para com Pistorius e sua deficiência. Como uma psicanalista, ela deveria ter colocado sua empatia, suas preferências, mesmo sua própria história de lado (mesmo que seja questionável se um psicanalista possa, ou deva, fazê-lo). Durante o julgamento, a voz de Masipa era firme, diferentemente daquela do réu, que titubeou e desmoronou a todo instante. Mas o que quer dizer falar da voz firme e calma da lei nas condições desenfreadas da violência e desigualdade sexual e racial?

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A cada quatro minutos na África do Sul é relatado o estupro de uma mulher ou menina – frequentemente uma adolescente, às vezes uma criança – e a cada oito horas uma mulher é morta por seu parceiro. O fenômeno tem um nome na África do Sul: “feminicídio íntimo”, ou, como a jornalista e repórter criminal Margie Orford chama a repetição de assassinatos de mulheres pelo país, “feminicídio em série”. Em 2 de fevereiro de 2013, menos de duas semanas antes que Reeva Steenkamp fosse morta, uma menina de 17 anos foi estuprada e assassinada em Western Cape. Quando as duas mortes são mencionadas juntas, o são principalmente em termos da disparidade cruel entre o corpo negligenciado da mulher negra e aquele da sua glamourosa contraparte. Steenkamp viu as coisas de maneira bem diferente. Para ela, a violência contra a mulher não conhecia fronteiras raciais. Uma semana após o assassinato de Booyesen, ela tuitou um relato de seu funeral e postou em sua conta de Instagram uma imagem de uma mão masculina silenciando um grito de uma mulher com as palavras: “eu acordei em um lar feliz e seguro essa manhã. Nem com todas foi assim. Denuncie o estupro de individuos.” No dia antes de morrer, ela estava trabalhando em um discurso a ser realizado em uma escola em Joanesburgo em honra de Anene Booysen e em apoio da Sexta-Feira Negra (Black Friday) em campanha para a Consciência do Estupro.

Em seu último ano do curso de direito, Steenkamp quebrou suas costas em um acidente de montaria. Em recuperação, ela retornou para completar seu curso e resolveu seguir seu sonho de se tornar uma modelo na cidade grande. “Eu acredito,” ela disse em uma entrevista, “que eu tenha a habilidade de confiar em minha mente jurídica sob a pressão de minha vontade de ser bem-sucedida”. Sua mente jurídica sempre estaria ali, mesmo se na superfície ela começasse a parecer e depois ser tratada como uma modelo e nada mais. A lei tornaria-se uma companheira invisível de sua ambição, a resposta conjunta a uma vida que poderia ter sido – quase foi – passada em uma cadeira de rodas. Esse não foi o seu primeiro encontro com a debilidade. De acordo com sua prima Kim Martin, que falou no julgamento de Pistorius (a única vez durante todo o julgamento que a família de Steenkamp foi ouvida), que quando Reeva era uma garota o poodle da família ficou paralítico e seria sacrificado. Reeva salvou o cachorro, “tornou-se suas pernas”, como Martin disse, carregando o animal para todo lugar. Steenkamp foi vítima de uma identificação fatal? A sua compaixão pelo mais fraco – um cachorro nesse caso – desempenhou um papel no que a matou? Uma das coisas mais impactantes sobre esse julgamento é que para onde quer que se olhe você vê corpos que estão partidos, débeis. Próximo ao fim do julgamento, antes do fechamento dos argumentos, o irmão mais velho de Pistorius, Carls, esteve envolvido em um acidente de carro de colisão frontal que esmagou ambas suas pernas abaixo do joelho -a ligação com seu irmão era gritante – deixando pouco claro se ele viveria ou mesmo andaria novamente. Na verdade, ele se recuperou rapidamente o suficiente para conseguir ir ao julgamento em uma cadeira de rodas em tempo para o veredito.

Juíza, vítima, perpetrador: as linhas do caso não poderiam estar mais claramente desenhadas. Nunca foi uma questão se Oscar Pistorius havia disparado os quatro tiros que mataram Reeva Steenkamp. Sim, ele havia. Na visão de Masipa a questão era inteiramente “subjetiva’. O que estava se passando dentro da mente de Pistorius quando ele atirou através da porta do banheiro? Tudo dependia dessa pergunta. Ele sabia que estava atirando em Reeva Steenkamp? Ou ele acreditava que era um invasor, como afirmou desde mais ou menos o momento em que aconteceu, inclusive a seus amigos e à polícia que chegou primeiro à cena do crime? E se nós acreditarmos nele, então ele sabia que ele poderia matar a pessoa do outro lado da porta e disparou assim mesmo? Nas palavras de Masipa, “O acusado vislumbrou a possibilidade do resultado de morte e assim mesmo persistiu em suas ações imprudente se se seguiu a morte ou não? Se ele o fez, seria culpado do que a lei sul-africana chama dolus eventualis, uma categoria de intenção criminal que não configura premeditação, mas que ainda implica em assassinato porque a possibilidade de morte foi vislumbrada. A menor acusação de homicídio culposo, matar por negligência, da qual Pistorius foi considerado culpado, só se mantem se concordarmos que não pode ser provado que Pistorius sabia que suas balas pudessem matar. A rejeição da acusação de dolus eventuais por Masipa está no coração das disputas legais em torno de seu veredito e foi a base para o recurso atual.

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Aconteceu-me de estar na Cidade do Cabo uma semana após o assassinato de Reeva Steenkamp. Na época eu estava lendo Um Banto em meu Banheiro (A Bantu in My Bathroom), um livro de ensaios de Eusebius McKaiser, um político, teórico social e apresentador de rádio sul-africano. Ele é conhecido por ser provocativo e gosta de desafiar os sul-africanos a confrontar seus pensamentos mais obscuros. (Sua coleção é sub-intitulada “Debatendo raça, sexualidade e outros tópicos sul-africanos desconfortáveis”). Em 2012, 18 anos após o fim do apartheid, ele estava procurando um quarto para alugar e reparou em um anúncio de uma mulher disposta a dividir sua casa mas somente, o anúncio estipulava, com uma pessoa branca. No telefone, McKaiser a levou ao ponto de quase fechar negócio antes de anunciar que ele não era branco (ela desligou quando ele sugeriu que a escolha dela poderia ser racista). Quando ele relatou o incidente à audiência de seu programa de rádio semanal, Política e Moralidade (Politics and Morality) no Talk Radio 701, duas respostas predominaram. Ou bem os ouvintes ficaram do lado da dona da casa (sua propriedade, sua preferência, nada diferente de “somente não-fumantes podem se candidatar”), ou bem eles fizeram uma distinção mais sutil e inquietante: se o quarto era em uma edícula no seu quintal, a escolha seria racista, mas ela claramente tinha o direito de compartilhar sua casa ou não, com quer queira que ela quisesse.

Tão “razoável” quanto a segunda resposta pode parecer, McKaiser concede em seu ensaio, é ainda ‘moralmente odioso”, ainda “o produto de nosso passado racista”. “Esse ponto de vista”, ele elabora, é um reconhecimento (de fato, uma expressão) de uma profunda angústia racial. Por que se estaria de acordo com Sipho (o nome que McKaiser deu ao inquilino negro ficcional) dormindo em um flat fora mas, Deus proíba se você acordar de manhã e a primeira coisa que você vir em seu caminho para o banheiro for o espetáculo indutor de um ataque cardíaco de Sipho sorrindo para você, um horror que poderia resultar em um grito de proporções “apartheidescas”: “Socorro! Há um Banto em meu banheiro!”

 “Nem um ouvinte”, Mckaiser escreve, “lidou com a fato de que 18 anos após nossa jornada democrática… o alcance e persistência do racialismo (racismo) dentro de seus lares e corações não ousa ser mencionado”. Ninguém evitou o clichê – na verdade todos o ensaiaram à perfeição – de que sua vida privada é privada e você decide o que faz em seu próprio lar (um clichê cujas consequências potencialmente letais fora, claro, desmontadas há muito pelo feminismo). Ao falhar em realizá-lo, eles “traíram segredos obscuros sobre eles próprios e nosso país”. Em outro ensaio McKaiser se refere às Pessoas de Cor da Cidade do Cabo – ele próprio sendo uma pessoa de cor –  como “o segredo sujo” da cidade: “A Cidade do Cabo trata as pessoas de cor como sujeira.” “Os segredos sujos de ambos Jozi (Joanesburgo) e da Cidade do Cabo são uma mancha em ambas as imagens das cidades, como lama em uma calça branca nova de uma criança.”

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Logo ficou claro que uma distinção estranha, racialmente carregada e legalmente confusa estaria no coração do julgamento. Se Pistorius não disparou os disparos pela porta do banheiro, sabendo que Steenkamp estava dentro, então ele acreditava que estava atirando em um intruso, caso em que a acusação de assassinato premeditado não resistiria. Não havia dúvida de que a segunda possibilidade era vista – ou melhor seria apresentada por Barry Roux para a defesa – como a menor ofensa, e não apenas porque a categoria legal de ‘legímitma defesa putativa’ (defendendo-se contra um presumível atacante, mesmo se a presunção estivesse errada) poderia apresentar os disparos como uma resposta legítima ao medo. O que não foi dito em grande parte foi que, no segundo caso, podemos estar mais ou menos certos de que a pessoa morta no banheiro seria – só poderia ser – imaginada como negra. “Como o juiz não terá deixado de se registrar”, escreve o jornalista John Carlin em Chase Your Shadow: The Trials of Oscar Pistorius, “se sua história fosse verdadeira – e mesmo que não fosse – o intruso sem rosto de sua imaginação tem um rosto negro, porque o fato é que, para o crime dos brancos, a maioria tinha uma face negra.

Margie Orford foi uma das poucas a extrair as implicações racistas. “É”, ela escreveu em um artigo para o Sunday Times da África do Sul, “o corpo ameaçador, sem nome e sem rosto, de um intruso negro armado e perigoso … a versão contemporânea do laager[1]“; é “nada mais que a recuperação do velho medo branco do swart gevaar[2]” – o perigo negro. Para Orford, há algo profundamente errado – moralmente, com certeza, e talvez legalmente – se essa é a defesa principal de Pistorius. “Se Pistorius não estava atirando para matar a mulher com quem acabara de compartilhar uma cama”, continua ela, “essas quatro balas indicam que ainda não há meio termo. Porque quem quer que Pistorius pensasse estar por trás daquela porta, atirando a uma distância tão próxima significava que, quando ele terminasse, haveria um corpo no chão do banheiro. Um bantu no banheiro. Ou para elaborar o argumento de McKaiser: na imaginação racista branca, o único Bantu permitido em um banheiro branco é um Bantu que está morto. Dependendo de como você olha, o assassinato de Reeva Steenkamp foi um crime sexual ou um crime racial. Se o raciocínio de Orford estiver correto, o que isso também significa é que a acusação de dolus eventualis – procedendo com um ato violento sabendo que a morte pode vir a acontecer – seria válida (Pistorius seria culpado de assassinato). De fato, a dispensa de Masipa da acusação de dolus depende de uma distinção que ela mesma não é capaz de fazer: “Como”, ela pergunta em seu julgamento, “poderia o acusado razoavelmente prever que os tiros que ele disparou matariam o falecido? Claramente, ele não previu subjetivamente isso como uma possibilidade de que ele mataria a pessoa atrás da porta, quanto mais a morta, como ele pensava que ela estava no quarto no momento.” Para mim, a questão aqui não é que ela escolhe acreditar sua alegação de que ele achava que Steenkamp ainda estava na cama – como ela corretamente aponta em lei, o contrário não pode ser provado. Pelo contrário, é a confusão entre o intruso e Steenkamp que é para mim o ponto de revelação: é de fato claro que ele não poderia ter previsto que ele poderia matar Steenkamp se “ele pensou que ela estava no quarto no momento”, mas como pode isso também se aplica a ‘a pessoa atrás da porta’, quem quer que fosse, dado que ele estava atirando naquela porta com uma pistola 9mm? De acordo com Masipa, no entanto, se ele não sabia que estava matando Steenkamp, ​​ele não era culpado de assassinato, independentemente de quem estivesse no banheiro. O Bantu desliza sintaticamente sob a porta do banheiro.

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O ensaio de Eusebius McKaiser me fez pensar sobre o julgamento – e sobre os banheiros – no contexto do passado da África do Sul. Sob a lei do apartheid, as regras para residências particulares brancas eram explícitas: os alojamentos dos empregados tinham que ficar do outro lado do pátio, “quartos pequenos com pia e banheiro”, nas palavras do jornalista sul-africano Mark Gevisser em seu livro de memórias Lost and Found in Johannesburg. Nenhuma parede compartilhada entre mestre branco e servo negro, acima de tudo sem instalações de ablução compartilhadas através de linhas raciais, o que sugere que, para o apartheid, é sobretudo os fluidos corporais e matéria das raças que não devem se misturar, especialmente se você também tiver em mente a proibição do apartheid de relações sexuais inter-raciais – uma proibição que é muito mais conhecida, provavelmente porque é mais fácil, como mais limpo, falar sobre isso. Os entrevistados fastidiosos de McKaiser, que consideram as preferências de um banheiro racista branco como não apenas uma questão de gosto e etiqueta pessoais, estão, portanto, representando uma forma de memória tão soterrada quanto historicamente precisa. O mundo branco, Gevisser escreve, foi definido “por contra o quê que havia sido murado “. Para ilustrar a extensão insana a que este projeto poderia ser levado, Gevisser dá o exemplo da cerca de três metros de altura construída pelas autoridades do apartheid no promontório rochoso ao largo da costa da Cidade do Cabo, onde homens gays de diferentes raças se reuniam na década de 1960. Para garantir que as pessoas de cor não cruzassem as residências brancas em Clifton, onde sua família vivia, eles a estenderam a cerca de seis metros para o Oceano Atlântico.

Há uma política da água e há uma política da merda. Na cidade negra de Alexandra, onde não havia esgoto, os moradores tinham que deixar sua merda fora de casa todas as noites para ser recolhida (a base de um poema de protesto de Wally Serote – “O que há nessa merda negra?”). Ainda mais notável então, como observa Gevisser, eram aqueles que lutavam  sua luta contra o apartheid não apenas na privacidade de seus lares, mas na água, permitindo que os corpos nadassem, se tocassem e se misturassem contra a mão bruta e enrijecida da lei. Havia a piscina de Bram Fischer na Beaumont Street, lendária por suas festas de negros e brancos, fotografada adoravelmente pela revista Drum nos anos 60, quando Fischer apresentava os argumentos finais no famoso Julgamento de Traição de 156 membros do ANC. E a casa oferecida por um dos conhecidos de Gevisser, Roger, e seu amante negro, para uso de gays inter-raciais, uma casa protegida dos olhares indiscretos da lei por ciprestes altos, onde a banheira sempre ficava cheia para que você pudesse lavar os fluidos corporais de alguém se houve uma batida policial. O julgamento de Pistorius, Gevisser escreve, “atravessou a temporada eleitoral como um rio sujo carregando os legados do país de medo e violência em suas correntes”. A analogia é eloquente. Como um rio sujo, trazendo pestilência, a matança no banheiro tanto encenou quanto atraiu para a superfície da psique nacional seus mais profundos medos raciais. O que, pergunta Orford, é esse “medo irracional que se instalou profundamente na psique”? Ou nas palavras de McKaiser, “lama na nova calça branca de uma criança”.

Pistorius certamente não estava ciente, pelo menos não conscientemente, que, quando ele insistiu que a pessoa que ele atirou no banheiro era um intruso, ele estava exibindo novamente uma vertente do passado mais cruel de sua nação. Que desculpa, poderíamos dizer. No mínimo, mesmo que essa defesa se sustente, ele dificilmente pode ser considerado inocente. Como diz Margie Orford, “quem quer que Pistorius encontrasse por trás daquela porta, atirando a curta distância significava que, quando ele terminasse, haveria um corpo no chão do banheiro.” A arma de Pistorius estava carregada de balas Black Talon que explodem ao atingir o tecido humano: como Mandy Weiner e Barry Bateman apontam em seu livro sobre o caso, “munição assassina projetada para causar o máximo de dano possível ao alvo”. 3

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Então, Pistorius sabia que era Steenkamp no banheiro? É aqui que passamos para o reino da especulação e do sonho, onde a lei atinge a barreira daquilo que, ao mesmo tempo, grita por nossa atenção e não pode ser conhecido. Quando sugeri à escritora Rachel Holmes, durante décadas minha principal informante na África do Sul, que este era um caso em que o saber e o não-conhecimento colidiam – sabemos que ele sabia que era Steenkamp no banheiro, só que é claro que não sabemos, podemos pensar que sabemos, mas nosso conhecimento tem seus limites; nosso conhecimento, poderíamos dizer, não está nivelado com nosso desejo – ela sugeriu que a distinção correta e muito mais simples neste caso é entre saber e não ter provas. Legalmente, ela tem razão, pois Masipa recusou a acusação de homicídio premeditado, alegando que a intenção de matar Steenkamp não havia sido provada além de qualquer dúvida razoável. Mas, de qualquer maneira que você leia, fica claro que, nas palavras de Masipa, “há vários aspectos no caso que não fazem sentido.” Em seu julgamento, ela listou uma série de questões que, ela afirmou, ‘infelizmente continuam a ser uma questão de conjectura’. Por que, quando Pistorius ouviu a abertura da janela do banheiro, como afirmou, ele não perguntou para a morta se, quando ouviu a janela abrir, ela também tinha ouvido alguma coisa? Por que ele não perguntou se a falecida o ouviu desde que ele não obteve uma resposta da falecida antes de ir para o banheiro? Por que a falecida, no banheiro e a poucos metros do acusado, não se comunica com o acusado, ou telefona para a polícia como solicitado pelo acusado?

“Não faz sentido”, observou Masipa, dizer que não a ouviu gritar “Saia”, já que “foi a versão do acusado que ela gritou em cima de sua voz.” Por que o acusado disparou não um, mas quatro tiros antes de correr de volta para o quarto para tentar encontrar a falecida? Ao que podemos acrescentar às perguntas de Gerrie Nel, procurador, e às do juiz na audiência de fiança original. Por que alguém que dormia com uma arma de fogo embaixo da cama e aparentemente estava com medo do crime dormia com uma porta de correr para a varanda? Embora Pistorius afirmasse que ele havia sido vítima de violência e assaltos, não havia registro policial dele ser vítima de um crime. Por que ele não viu que Steenkamp não estava na cama no momento em que ele sacou sua arma? Por que o acusado não averiguou o paradeiro de sua namorada quando saiu da cama? Por que ele nem sequer tentou descobrir quem exatamente estava no banheiro?

rose pistorius

O layout do quarto de Pistorius. Steenkamp foi baleado em B, por Pistorius em A.

Nenhuma dessas perguntas foi totalmente respondida (embora a defesa de Pistorius tenha trabalhado arduamente para derrubá-las uma a uma). Os policiais que chegaram ao local não fizeram nenhum comentário sobre o fato de acreditarem que a história do intruso era falsa. A história não faz sentido, como admitiu Masipa, mesmo argumentando que o testemunho confuso, contraditório, evasivo e não confiável de Pistorius não era em si mesmo uma prova de culpa. A ex-namorada de Pistorius, Samantha Taylor, colocou de forma mais simples: “Definitivamente não fazia sentido para mim. Eu … eu não sei, eu acho isso meio estranho, eu definitivamente não fecharia a porta, especialmente se ela nem mesmo está conectada ao quarto. Eu não sei por que alguém trancaria a porta, mesmo se esse alguém estivesse na casa do namorado.” Os comentários dela têm toda a força de uma empatia de alto risco: ela está disposta a se imaginar onde ela poderia ter acabado – no lugar de Reeva Steenkamp.

Para quem lê esse assassinato através do prisma da violência doméstica, e em nome das legiões de mulheres que têm sido alvo dela, uma questão certamente se destaca de todo o resto. Por que – como Pistorius sempre insistiu – Steenkamp não falou ou gritou, do quarto, se é onde ela estava, ou do banheiro? Por que, o tempo todo ele gritava e mesmo quando ele estava no banheiro, ela não pronunciou uma palavra? Este é Pistorius em sua declaração final: “Cheguei à entrada do banheiro, no final da passagem, onde parei de gritar … A essa altura, comecei a gritar novamente para que Reeva ligasse para a polícia … continuei gritando … eu gritei por Reeva … continuei gritando para Reeva.” Por que ela não respondeu ou gritou? Uma mulher morta se torna uma testemunha silenciosa no tribunal, sem voz agora, sem voz então. Duas vezes, Pistorius silenciou Reeva Steenkamp, transformou-a em um fantasma.

Essa questão da voz produziu um dos giros mais extraordinários e imprevistos do julgamento. Quatro vizinhos – Estelle van der Merwe, Johan Stipp, Michele Burger e seu marido Charl Johnson – testemunharam que ouviram a voz inconfundível de uma mulher antes que os tiros fossem disparados: uma mulher, insistiu mais de um deles, que soou como se ela temia por sua vida. No banco das testemunhas, cada um deles estava convencido de que a voz da pessoa “gritando histericamente” era a voz de uma mulher. Seu testemunho foi finalmente descartado como inconclusivo (em grande parte devido a inconsistências no tempo). O argumento para a defesa era de que os gritos que ouviram vieram depois, não antes, dos disparos fatais e dos de Pistorius, pois ele percebeu o que ele havia feito: estabelecer a linha do tempo entre gritar e atirar era crucial para o argumento, assim como foi a afirmação de que Steenkamp teria sido tão gravemente ferida – provavelmente fatalmente – depois do primeiro disparo que ela teria sido incapaz de emitir qualquer som.

Masipa não pareceu registrar o fato de que a afirmação de Pistorius de que ele estava gritando “a todo pulmão” enquanto seguia pelo corredor em direção ao banheiro era inconsistente com o argumento da defesa de que os gritos ouvidos pelas testemunhas vieram depois que os tiros foram disparados: “Foi a versão do acusado que ele gritou em a todo pulmão ao ordenar que os intrusos saíssem.” Quando você lê a declaração de Pistorius, parece bastante claro que sua insistência repetida de que ele estava gritando era o sua forma – sob instrução legal, sem dúvida – de contrariar as testemunhas que alegaram ter ouvido a voz gritante de uma mulher antes que os tiros fossem disparados.

Mas se havia gritos antes dos tiros, como se livrar da acusação de que poderia ter sido a  voz dela? A essa altura, o julgamento repentinamente virou de ponta-cabeça para uma narrativa heterossexual perfeita que explica tão bem a atração sedutora desse caso. Quando ele grita, a defesa afirma, Oscar Pistorius – corredor de ponta, garanhão, herói – soa como uma mulher. Em um ponto, em apoio a este argumento, Roux pediu duas testemunhas do sexo feminino para demonstrar o choro que ouviram: sem surpresa, elas soavam como mulheres (ele não repetiu o experimento com nenhuma das testemunhas masculinas, que presumivelmente teria soado como homens). Ele também anunciou que testes de decibéis e uma testemunha especializada estabeleceriam que, quando Pistorius está ansioso, ele grita como uma mulher. Na verdade, nenhum testemunho desse tipo jamais foi colocado na corte e nenhum áudio de Pistorius gritando nunca foi tocado. Samantha Taylor testemunhou que quando Pistorius gritou “parecia um homem”, mas Roux rejeitou suas provas, alegando que ela nunca o ouvira em situações em que ele percebia sua vida como estando em perigo, o que ela teve de admitir.

Melhor soar como uma mulher do que ter assassinado uma. Melhor uma identificação entre gêneros do que uma masculinidade letal (nesse aspecto, o feminismo, mas não apenas o feminismo, certamente concordaria). Para salvar sua pele, Oscar Pistorius foi ventríloquo uma mulher, ou foi guiado por sua equipe jurídica para sê-lo. Ele tomou o lugar dela. Por trás do que pode ser visto como um momento de imprevisível e bem-vinda confusão de gêneros – já que a confusão de gênero é sempre, ou quase sempre, bem-vinda – podemos também, ou melhor, ver um homem indo até o mais longe possível, incluindo sacrificar a imagem de si mesmo como homem, para ter absoluta certeza de que ninguém ouve a voz de uma mulher gritando de medo por sua vida.

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O problema de gênero tornou-se um dos mantras teóricos do nosso tempo. Mas há formas de incerteza de gênero que acrescentam insulto à injúria e um dos exemplos mais gritantes que eu encontrei estava em exibição neste julgamento. Sabemos que para as mulheres do ANC que protestavam fora do tribunal e para as mulheres em todo o mundo, este caso apresentava os sinais inconfundíveis de violência doméstica letal (mesmo que Steenkamp e Pistorius não dividissem estritamente uma casa). Sabemos que o que muitas vezes mesmo o que parece ser – ou de fato ser – o relacionamento mais íntimo e amoroso pode deixar de proteger as mulheres. Sabemos que o apego apaixonado pode envolver o ódio que, como muitas mulheres descobrem tarde demais, o sexo muitas vezes é o companheiro de crime – embora eu não seja uma feminista que acredite que todos os homens, simplesmente por serem homens, são violentos em relação às mulheres. Também notamos, como Suzanne Moore apontou, que Pistorius recebeu uma punição menor por matar Reeva Steenkamp do que teria recebido por matar um rinoceronte: um caçador ilegal foi recentemente sentenciado a 77 anos de prisão; Pistorius foi condenado a cinco anos com liberdade condicional após dez meses (no caso, ele serviu 12).

Mas o fato de que este era um caso em que um homem matou sua namorada não impediu a defesa de argumentar – incrivelmente – que quando Pistorius atirou por aquela porta ele próprio poderia ser melhor compreendido, por causa de sua deficiência, por ser comparado com um mulher abusada que, após anos de pressão, finalmente surta e mata seu agressor. Quando, como seria de se esperar, a analogia foi contestada por Masipa – “Como [a situação de uma mulher abusada] se aplica ao acusado neste caso?” – Roux, creio, só piora as coisas:

Eu não estou falando sobre abuso aqui. Você sabe que não posso fugir. Eu não posso fugir. Eu não tenho uma resposta de fuga … A experiência dele com essa deficiência, com o tempo você recebe uma resposta de fuga exagerada … Esse é o efeito de “fogo lento”. Não abuse… Esse lembrete constante… eu não sou o mesmo… ele pode fingir… ele pode fingir que está bem… por causa da ansiedade… é nesse sentido que eu digo que o abuso é diferente, mas é o mesmo. Sem pernas, abuso, abuso, abuso. Então, finalmente, quando aquela mulher pega aquela arma de fogo … nós podemos usar a palavra comum, eu já tive o suficiente, eu não estou atirando em você porque você acabou de me agredir, não por causa de um soco na minha cara. Eu nunca teria atirado em você por causa de um soco com a mão na minha cara, mas se você fez isso sessenta, setenta vezes, o efeito disso com o tempo encheu o copo até a borda… nesse sentido, minha senhora.

Então, Pistorius não somente soa como uma mulher, ele é uma mulher. Isso quase desafia o comentário, mas não é bem assim. Esta afirmação, mais uma vez, de estar falando na voz de uma mulher – “eu já aguentei o bastante” – a voz de uma mulher que, como imaginamos, acaba de ser, pela vigésima ou septuagésima vez, alvo de abuso físico – apesar de claramente óbvio, pode ao mesmo tempo ser lido como uma confissão velada, um reconhecimento inconsciente pela defesa da própria versão da história que eles estão fazendo o máximo para repudiar: que este é o caso de um homem representando violência contra uma mulher , uma mulher que (se as declarações dos amigos e da família de Steenkamp forem alguma coisa) tinha aguentado o bastante.

Aqui está parte de uma mensagem WhatsApp de 516 palavras que Steenkamp enviou a Pistorius 18 dias antes de sua morte, como lida no tribunal em um dos poucos momentos em que suas próprias palavras foram ouvidas: ‘Você me pegou incessantemente desde que voltou do CT e eu entendo que você está doente, mas é desagradável … Eu estou com medo de você às vezes e como você reage a mim e de como você reage a mim … Eu não sou outra vadia que você pode conhecer, tentando matar sua vibe. Os relacionamentos normais – comentou Masipa em seu julgamento – são dinâmicos e imprevisíveis a maior parte do tempo, enquanto os seres humanos são volúveis. Nem a evidência de um relacionamento amoroso, nem de um relacionamento azedo pode ajudar este tribunal a determinar se o acusado tinha a intenção necessária para matar o falecido. Por essa razão, o tribunal se abstém de fazer inferências de uma forma ou de outra a esse respeito. ”Novamente, ela está certa – certamente sobre relacionamentos. No entanto, para mim, este é talvez o momento mais sombrio do julgamento, quando a lei, quando uma mulher julga, deixa de dar o devido peso a outra mulher, que não sobreviveu. Eu não acredito que todas as mulheres estão em risco de todos os homens, mas eu acredito que uma mulher não diz que ela está com medo de um homem sem causa e que, quando ela faz, devemos ouvir. É o medo no tempo futuro – “Eu tenho medo de você às vezes … e de como você vai reagir a mim” – que, para mim, chama mais alto nossa atenção. Nenhum dos quais exclui a presença do amor, como qualquer mulher abusada irá testemunhar (seu medo não é incompatível com ela, deixando-lhe uma carta de Valentine). Pela mesma razão, a dor de Pistorius pela morte de Steenkamp – que deve incluir os repetidos momentos de choro, ânsia de vômito e vômito no tribunal – certamente não pode ser tomada como prova de que ele não tinha a intenção necessária para matá-la. Como se a culpa não pudesse intensificar o luto, como se você não pudesse se arrepender de todo o seu coração, o que era o seu desejo mais fervoroso apenas alguns segundos atrás, como se o amor e o assassínio fossem incompatíveis. Mas Masipa argumentou que a dor de Pistorius teria que ser falsa se ele quisesse matar sua namorada, o que claramente não era – um momento no processo em que precisávamos muito de Freud. Aqui está outro. Interrogado por Nel sobre por que ele achava que Steenkamp não gritou, Pistorius respondeu: “Eu presumo que ela pensaria que o perigo estava se aproximando dela. Então, por que ela vai gritar? ”Outra confissão velada – embora o momento pareça não ter recebido nenhum comentário – na qual Pistorius, tentando se esquivar de um canto (por que ela não gritou?), Se apodera de outro corretamente. se não intencionalmente, identificando-se como o perigo que se aproximava contra o qual Steenkamp estava se protegendo (“o perigo estava se aproximando”). E outro: interrogado por Nel sobre por que ele estava gritando depois de disparar os tiros, Pistorius disse: “Eu queria perguntar a Reeva por que ela estava ligando para a polícia.” Surpreendentemente, essa escolha de palavras – “por que ela estava ligando para a polícia?” – Não foi pego pela acusação ou por qualquer outra pessoa.

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Sexo, raça, deficiência e isso não é tudo, mesmo que seja mais do que suficiente. Então, vamos voltar ao comentário de Roux: “Ele pode fingir que está bem”. Pistorius e Steenkamp eram, é claro, o casal perfeito. Ambos afiaram seus corpos. No tornozelo esquerdo, Steenkamp fez uma tatuagem da palavra “Lioness” (ela era uma Leo), que ela explicou no Twitter: “A abundância e o poder são seus, pois você é a leoa.” Ela treinou-se para “super impecável”. -fitness ‘, Hagen Engler, editora da revista FHM, relembrou em uma coluna dias depois de ter sido morta. A citação completa do versículo de Coríntios tatuada na parte de cima do Pistorius diz:

I do not run like a man running aimlessly;
I do not fight like a man beating the air;
I execute each stride with intent;
I beat my body and make it my slave
I bring it under my complete subjection
To keep myself from being disqualified
After having called others to the contest.[3]

A linha sobre tornar meu corpo meu escravo não está na maioria das traduções do Coríntios, nem a sujeição é descrita como “completa”. Pistorius estava aumentando as apostas. Ele também punia, ou até mesmo indiciava a si mesmo. “Para me impedir de ser desqualificado” está dizendo. Em 2007, Pistorius estava sendo investigado pela Associação Internacional de Federações de Atletismo para determinar se sua prótese lhe dava uma vantagem competitiva injusta. (Ele finalmente ganhou seu caso e foi autorizado a competir nas Olimpíadas de Pequim em 2008.) As lições que sua mãe lhe transmitiu, John Carlin observa em seu livro, comentando sobre uma entrevista que ele conduziu com Bill Schroeder, diretor da Pretoria Boys School. “tudo se resumia à mesma coisa … correr o mais rápido que podia”. Nós não precisamos da ajuda de Freud para perceber a ambiguidade e o peso dessa demanda, uma demanda que ele então fez, infalivelmente, de si mesmo: correr o mais rápido possível, como ganhar, mas também fugindo, fugindo. Schroeder recorda que, quando ele perguntou a mãe de Pistorius sobre seu filho de 13 anos, “Mas … ele vai lidar com isso?”, Referindo-se às suas pernas protéticas, ela trocou olhares com o filho e deu de ombros: “Eu não acho Eu sigo. O que você está dizendo? “E então observou:” Não há problema algum. Ele é absolutamente normal. ”Na primeira página de sua autobiografia, escrita antes do assassinato de Steenkamp, ​​Pistorius explica a atitude inerente à filosofia de sua família: ‘Este é Oscar Pistorius, exatamente como deveria ser. Perfeito em si mesmo. ”De fato, sua mãe era uma depressiva que morreu de envenenamento por álcool quando Pistorius tinha 15 anos. Como Carlin ressalta, as duas palavras que Pistorius repetiu com mais frequência em seu testemunho foram” minha mãe “. (Como sua mãe, que dormia com uma arma de fogo debaixo do travesseiro, Pistorius dormiu com um debaixo da cama.)

Muitas pessoas envolvidas em estudos de deficiência sustentariam que a descrição que Sheila Pistorius faz do filho e da filosofia da família de Pistorius está correta, que todos os corpos são como deveriam ser. Na Grã-Bretanha hoje, com um governo cuja reafirmação da aspereza em relação à deficiência parece não ter limites, pode ser mais importante insistir nisso do que nunca. Como Cora Kaplan observou 15 anos atrás, o discurso da responsabilidade fiscal nos EUA e no Reino Unido há muito tempo tem a deficiência como um fardo econômico intolerável para os cidadãos “normais”. A frase de Sheila Pistorius “ele é absolutamente normal” pode ser lida como uma resposta necessária. A única resposta à desumanidade burocrática deve ser argumentar que a necessidade ou a fragilidade deve ser reconhecida, mas também a dignidade – na verdade, a “normalidade” – dos deficientes. Estamos falando de justiça e direitos humanos, que são os termos em que estudos recentes sobre deficiência definem sua tarefa. Mas isso é um tipo de ligação dupla. Quando você insiste em dignidade e normalidade, o risco é que tanto o sofrimento físico quanto o psíquico se tornem invisíveis, negados e depois tenham que se negar (“ele é perfeito”). Pior, tal negação se aproxima perigosamente do repúdio à fraqueza e ao sofrimento que historicamente tem licenciado uma crueldade às vezes genocida contra os deficientes: porque você sofre, porque temos que ver seu sofrimento, não vamos sofrer você. A poeta e crítica Nancy Mairs, que sofreu esclerose múltipla aos 28 anos, fez o caso alternativo mais forte em seu ensaio de 1986, “On Being a Cripple” (agora uma palavra indescritível, mas que ela reivindicou para si mesma): A sociedade “, escreveu ela,” não é mais pronta para aceitar o aleijado do que aceitar a morte, a guerra, o sexo, o suor ou a doença. “Para Mairs, é emancipatório não opressivo e o oposto de inumano falar abertamente de um corpo que falha. Merryll Vorster, o psiquiatra forense chamado pela defesa, não tinha dúvidas de que a amputação de ambos os membros de Pistorius como uma criança pré-verbal, antes de ele ser um, teria sido experimentada como um ataque traumático, que a atitude da família significava ele nunca foi autorizado a se ver como deficiente, e isso teve um impacto prejudicial significativo em seu desenvolvimento: “Ao esconder sua deficiência, isso o tornava menos capaz de acessar o apoio emocional que ele requeria.” Em um ciclo vicioso, ela argumentou, sua vulnerabilidade física o deixou mais ansioso, o que o fez mais intencionado em esconder sua vulnerabilidade física do mundo. Poderíamos dizer que sua deficiência tornou-se o segredo criptografado de seu corpo e sua vida.

Quando a promotoria viu que os comentários de Vorster poderiam levar a uma defesa baseada no Transtorno de Ansiedade Generalizada, Nel imediatamente exigiu que Pistorius passasse por uma avaliação psiquiátrica completa. Foi um momento de grande drama, levando a uma suspensão de um mês do processo. Nel havia assumido um risco. Na esperança de descartar uma possível defesa para Pistorius, ele poderia estar abrindo a porta para ser absolvido por motivos de incapacidade mental. Quando a corte voltou a se reunir, no entanto, a decisão foi inequívoca: Pistorius não sofria de nenhuma forma de debilidade mental, não demonstrava falta de capacidade criminal; não havia nada que o impedisse de saber as conseqüências de seu ato ou de distinguir entre o certo e o errado. “Havia”, observou Masipa em seu julgamento, “nenhum lapso de memória ou qualquer confusão por parte do acusado”. A batalha no tribunal agora repetia o dilema interno do próprio Pistorius, que dividia o meio entre os dois modos de ver a deficiência: Pistorius aleijado e vulnerável, Pistorius tão perfeito e fortalecido. Se o primeiro, então ele atirou Reeva Steenkamp fora de seus medos profundos; se o segundo, ele atirou nela porque sua coragem física, e a aclamação que se seguiu, lhe permitiu nutrir a ilusão de que ele governava o mundo e poderia tomar a lei em suas próprias mãos. Ironicamente, foi a acusação que teve que acreditar sem reservas em Pistorius em seus próprios termos, tinha – com efeito – de lado com ele. “Para que a acusação tenha sucesso”, escreve Carlin, “ele precisava que Pistorius fosse considerado pelo juiz como ele sempre havia retratado antes do julgamento… Nel teve que negar a existência do amputado secretamente vulnerável e atormentado pelo medo tão vigorosamente quanto o próprio Blade Runner havia tentado fazer toda a sua vida até a noite do tiroteio. ”A defesa, por sua vez, só podia prosseguir desmantelando impiedosamente sua imagem de si mesmo:“ Sem pernas, abuso, abuso, abuso. ‘ Foi, portanto, a defesa que mutilou as próprias defesas de Pistorius, pois passou a descobrir sua deficiência aos olhos do mundo. Em duas ocasiões, ele foi obrigado a revelar seus cotos para a sala de audiências (pode-se também ver seu choro, ânsia de vômito e vômito no tribunal, enquanto seu corpo se derramava sobre suas bordas e se revelava). Na verdade, ele próprio estava mais do que pronto para seguir esta linha: “A descarga da minha arma de fogo foi precipitada por um ruído no banheiro que eu, em meu estado de medo, sabia que estava em meus cotos, incapaz de fugir ou defender adequadamente. eu, fisicamente, acreditava-se ser o intruso ou intruso, saindo do banheiro para atacar Reeva e eu. ”Observe que a descarga da minha arma de fogo foi precipitada – como se a arma tivesse disparado sozinha. Banners nas Olimpíadas de 2012 leram: ‘Paraolímpicos. Somos os super-humanos. Não aleijados, mas gladiadores, como observou um comentarista. Pistorius, como declarou o slogan em seu site oficial, era a “bala na câmara”. Entre Pistorius, seu pai, dois de seus tios e seu avô, sua família possuía 55 armas. Em um episódio notório, Pistorius disparou através do teto solar aberto de um carro após uma discussão sobre sua arma com um policial que havia puxado o carro por excesso de velocidade: “Você não pode simplesmente tocar a arma de outro homem”, ele ofereceu por meio de explicação para sua raiva – sua arma uma parte do corpo, a parte mais íntima de si mesmo. Samantha Taylor falou sobre sua arma como um “terceiro” em seu relacionamento. Uma bala Luger de 9mm estava em pé no balcão da cozinha. No momento do assassinato, ele estava esperando para receber seis armas de fogo, incluindo uma semi-automática do tipo usado pelo Serviço de Polícia da África do Sul, e 580 cartuchos de munição.

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Há, novamente, uma história da África do Sul a ser contada aqui. Os africânderes conquistaram a ponta sul da África com armas, uma herança da qual, observa Carlin, o clã Pistorius estava orgulhoso. No romance mais recente de Zakes Mda, Black Diamond, um magistrado branco está sob ameaça por sua repressão ao crime. Quando ela insiste para o protetor negro designado para ela que ela não quer armas em sua casa, ele responde com um sorriso no rosto: “Você não quer armas? Que tipo de Afrikaner você é? ”Como Gillian Slovo colocou em uma palestra na LSE em maio, as armas que apoiaram e se opuseram ao apartheid ainda estão muito presentes na África do Sul hoje. Pistorius estava com medo do crime, mas nenhum sul-africano branco, na verdade nenhum sul-africano, pode evitar ter medo do crime: roubos em imóveis residenciais aumentaram 70% entre 2003 e 2012, embora em 90% dos casos as vítimas de tais crimes assaltos são ilesos e são os pobres que são mais frequentemente vítimas. De fato, apenas 5% dos sul-africanos possuem armas de fogo. Neste Masipa foi unethitant. As ações de Pistorius não poderiam ser justificadas por seus medos. “Eu apresso-me a acrescentar que o acusado não é único a este respeito”, disse ela, que para mim foi um dos melhores momentos do seu julgamento. “Mulheres, crianças, idosos e todos aqueles com capacidade limitada cairiam na mesma categoria.” “Mas”, ela perguntou, “seria razoável se eles se armassem com uma arma de fogo se estivessem ameaçados de perigo? … Muitos foram vítimas de crimes violentos, mas não recorreram a dormir com armas de fogo embaixo de seus travesseiros. ”Vulnerabilidade não é uma licença para a violência. Você acha que é único nesse sentido? Pense de novo. Deficiência ou fraqueza é algo que você pode sofrer, mas nunca possui. Não é desculpa. Por essa razão, não estou persuadida por aqueles que argumentam que a simpatia de Masipa pela deficiência de Pistorius influenciou seu julgamento, embora seja certamente verdade que ela se recusou a participar do ódio dirigido a ele. Ela é uma universalista, movida por uma compaixão que consegue, ao mesmo tempo, ser específica da África do Sul, ao mesmo tempo em que absorve os vulneráveis ​​- mulheres, crianças, idosos, todos aqueles com capacidade limitada – em toda parte. Também não estou convencido de que ela foi, acima de tudo, motivada pelo desejo de evitar ser vista como uma forma de vingar a justiça de um homem branco rico (embora seja certamente o caso de que, como uma juíza negra, ela também estava sendo julgada).

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Sexo, raça, incapacidade (deficiência), o que resta? O que resta é a vida da mente, os limites do conhecimento, o imperativo psíquico e político do pensamento. Há armas e há o pensamento. Em seu testemunho, Pistorius insistiu repetidamente que ele não estava pensando quando ele disparou quatro tiros através da porta. “Naquele exato momento eu acreditava que alguém estava vindo para me atacar. Isso me fez disparar. Por medo. Eu não tive tempo de pensar.” E: “eu não atirei em ninguém. Eu não quis atirar em alguém. Eu atirei por medo… Eu disparei minha arma de fogo antes que eu pudesse pensar.” Ou, como Masipa colocou em seu resumo do que ela havia ouvido ele dizer, “Eu sou um entusiasta de armas. Eu não tive tempo para pensar.”

Mas se ele não tinha a intenção de atirar em ninguém e não estava pensando, então ele não pode basear-se no argumento de legítima defesa putativa (putative private defense) (que ele atirou em resposta a uma ameaça percebida). Se ele atirou porque ele pensou que estava correndo o risco de ser atacado, então ele claramente teve tempo de pensar. Se ele quisesse matar um invasor, ele explica, ele teria atirado mais para cima em direção ao peito. “Eu pauso para afirmar”, comentou Masipa, “que sua afirmação é inconsistente com alguém que atirou sem pensar.” A “infinidade de defesas” de Pistorius, como Masipa as descreve, obedecem à lógica do inconsciente, cada uma cancelando a próxima. Ele foi julgado parcialmente de acordo se o seu comportamento foi de uma “pessoa razoável”, mas foi algo para além da razão com o quê a lei se deparou. Não pensar não te faz mais inocente do que ter medo. É em uma fração de Segundo entre pensamento e não-pensamento que você mata. Lembrem-se que em sua rejeição do dolus eventualis, Masipa argumentou que Pistorius não poderia “razoavelmente ter previsto” que os tiros que ele disparou poderiam matar “a pessoa atrás da porta, menos ainda os falecidos, como ele pensou que ela estava no quarto no momento”. Ainda assim, julgando-o culpado de homicídio culposo, ela perguntou: “Teria uma pessoa razoável nas mesmas circunstâncias que o acusado previsto a possibilidade de que, se ele disparou quatro tiros na porta do banheiro, quem queira que estivesse detrás da porta poderia ser atingido por uma bala e morrer como resultado? Uma pessoa razoável teria tomado atitudes para se prevenir dessa possibilidade? A resposta para ambas as questões é sim.” Isso é a razão estivando sua corda: o acusado não podia prever a morte do falecido, ainda assim uma pessoa razoável teria tomado atitudes para prevenir a morte da pessoa detrás da porta. Quem é essa pessoa razoável? Se Masipa estiver errada – e deverá estar claro agora que eu acredito que ela estava nessa questão – poderia ser porque a lei não pode medir completamente as complexidades humanas às quais nós, irracionalmente, esperamos ser equivalentes. Também pode ser porque sua categoria de razão, ainda mais no reino de crimes violentos, é polimorfa. “O homem razoável”, observou Masipa em uma citação de um julgamento precedente, “claro que evolui com os tempos. O que era razoável em 1933 não necessariamente seria razoável hoje.”

Há também uma questão de linguagem envolvida, como a atribuição de culpa se equilibra nas discriminações linguísticas mais finas, particularmente na forma verbal condicional. Alguns exemplos: “Eu não estou convencida de que uma pessoa razoável com as limitações do acusado nas mesmas circunstâncias teria disparado quatro tiros naquele cubículo de banheiro pequeno.” A responsabilidade criminal é atribuída de acordo com se “ele deveria ter previsto a possibilidade razoável de morte resultante.” A corte, comentou Masipa, citando outro julgamento anterior, “deveria se restringir de proceder de ‘deveria ter previsto’ para ‘deve ter previsto’ e, portanto para ‘através de ter a inferência necessária de fato previsto’ as possíveis consequências da conduta sendo investigada.” A inferência de “previsão subjetiva não pode ser extraída se há uma possibilidade razoável de que o acusado não previu, mesmo se ele deveria razoavelmente tê-lo feito e mesmo se ele provavelmente o fez.” Nesse ponto, aparentamos ter entrado no mundo daquele primeiro romance experimental, Tristam Shandy (A Vida e Opiniões de Tristram Shandy). Como, pergunta o tio de Tristam, Toby, alguém pode falar sobre um urso branco se ele nunca viu um? Ao que o pai de Tristram produz este hino ao condicional e seu poder de invocar o que não está lá:

UM URSO BRANCO! Muito bem. Você já viu um? Poderia eu em algum momento ter visto um? Em algum momento vou ver um? Eu deveria ter visto um em algum momento? Ou posso ver um em algum momento? Eu teria visto um urso branco (pois como posso imaginá-lo?)

Se eu visse um urso branco, o que eu diria? Se eu nunca visse um urso branco, e então?

Se eu nunca vi, posso, devo ou verei um urso branco vivo; já vi a pele de um? Já vi alguma vez um pintado? – descrito? Nunca sonhei com um?

Meu pai, mãe, tio, tia, irmãos e irmãs já viram um urso branco? O que eles dariam? Como se comportariam? Como o urso branco teria se comportado? Ele é selvagem? Dócil? Áspero? Macio?

Vale a pena ver o urso branco?

Não há pecado nisso?

É melhor do que UM URSO-NEGRO?

Esta é a linguagem como decadência especulativa, perdendo o controle sobre a realidade que – como sabemos desde Saussure (e Sterne) – nunca teve de qualquer maneira.

*

“O que é esse medo irracional que se enterrou fundo na psiquê?” perguntou Margie Orford. Voltemos para o assunto dos banheiros. Afinal, não é somente na imaginação sul-africana em que eles são cenas de crime – a cena do banho em Psicose é o que vem mais obviamente à mente. Em uma célebre passagem de Proust, o narrador – não sem um pequeno risco físico – se pendura em uma escada e espia através de uma janela para dentro da loja onde o barão de Charlus e o alfaiate Jupien desapareceram após uma sedução mútua no pátio. “Lá ele escuta sons tão violentos que ‘se não fossem constantemente levantados uma oitava por um gemido paralelo, eu poderia ter pensado que uma pessoa estava cortando a garganta de outra ao meu lado, e que o assassino e sua vítima ressuscitada estavam então tomando um banho para lavar os vestígios do crime.” Um banheiro é um lugar de pureza e perigo. Não somente a cena de um assassinato, mas o primeiro lugar que se vai para lavar as evidências de um crime.

Na cultura ocidental, banheiros são lugares nos quais submetemos a aspereza de nossos mundos interno e externo ao regime do controlado e do limpo. “Não há como negar a limpeza”, Junichirō Tanizaki lamenta ao se referir ao banheiro ocidental em sua meditação de 1977 Em Louvor da Sombra (In Praise of Shadows), “cada canto e esquina é branco puro.” Ainda assim “a limpeza do que pode ser visto apenas chama os pensamentos mais claros do que não pode ser visto… eu suponho que eu esteja soando terrivelmente defensivo,” ele continua, “se eu digo que os ocidentais tentam expor cada partícula da sujeira e erradica-la, enquanto que os orientais a preservam cuidadosamente e até mesmo a idealizam.” Em Pureza e Perigo (Purity and Danger), Mary Douglas escreve sobre a Nyakyusa, que “veneram os seus próprios detritos e varrem o lixo em direção aos que choram o luto, sendo o seu ritual de luto dar as boas-vindas à imundície”. Uma cultura obsessiva, por outro lado – a cultura ocidental – é culpada, insegura nas discriminações que mais sinceramente deseja policiar (a distinção entre homens e mulheres, ou entre negros e brancos). Como Douglas também aponta, é apenas em torno de normas e comportamentos que são contraditórios ou instáveis – por exemplo, a tentativa de subordinar as mulheres em uma cultura que parcialmente reconhece sua autonomia como humana – que os medos da contaminação tendem a se agrupar e raramente são independentesde sexo (ela dá o exemplo do marido “precisando ser convencido de sua própria masculinidade e dos perigos dela”). No caso de Pistorius, não era apenas o corpo dele – “Eu venci meu corpo e o tornei meu escravo” -, mas também sua mente que ele queria subordinar: “Toda corrida é ganha ou perdida na cabeça, então você tem que ter o conteúdo da sua cabeça todo certo ”, ele respondeu a uma pergunta sobre seu hábito de anotação obsessiva em uma entrevista ao Financial Times. “Escrever as coisas ajuda você a controlar seus pensamentos.”

Mas há um limite para esse controle. Quando Mark Gevisser foi atacado em uma casa particular com duas amigas próximas, no início ele acreditou que suas vidas foram salvas pelo respeito que deram aos intrusos negros. Mas então ele passou a ver as coisas de forma diferente: “Você não tem controle sobre o que vai acontecer com você. É aleatório e é caótico, e mesmo se o seu comportamento razoável diminuir as chances de você ser ferido ou morto, isso não lhe garante nada. Você não tem controle sobre quando e como vai morrer. Uma vez que você entende isso, você aceita que a vida é um dom.” Isso é o oposto do pensamento obsessivo, que, como Freud coloca, retorna infinitamente para “aqueles assuntos sobre os quais toda a humanidade é incerta e sobre os quais nosso conhecimento e julgamento devem necessariamente permanecer abertos à dúvida” – uma forma de pensamento que não pode suportar a ambivalência humana. Sobre isso, a história de Gevisser é exemplar. Ele sentia uma empatia genuína com seus intrusos, mas isso não o impediu de procurar um deles no tribunal, um imigrante zimbabuense cuja história de apenas sobreviver na cidade ele escreve com o máximo cuidado. Mas ele também o odeia: “Eu o odiei por me odiar e odiei a mim mesmo por odiá-lo.” Esse conto conclui o livro Lost and Found in Johannesburg , e sua complexidade é certamente o complemento ideal para a ideia de que a única maneira de lidar um intruso na África do Sul de hoje é atirar quatro vezes através de uma porta trancada.

Mais de vinte anos após o fim do apartheid, a África do Sul está repleta de violência, ainda sofrendo o legado de sua história, “o negócio inacabado incrustado no corpo político sul-africano”, como colocou Hedley Twidle em seu comentário sobre o caso, que o herói paraolímpico Oscar Pistorius foi chamado para ajudar a nação a negar e transcender. Poderíamos dizer que foi sua tragédia, embora tenha sido muito mais a tragédia de Reeva Steenkamp, ​​que, vítima de uma fantasia de onipotência com a qual o mundo inteiro foi conivente, ele tentou tomar o controle de tudo o que podia: seu corpo, sua mente, sua mulheres, suas armas. Se há uma lição que tirei de tudo isso, é que não devemos repudiar nossos ódios em um esforço fútil para nos tornarmos – para tornar o mundo – limpo. “O buraco escuro no chão” – observou Rebecca West de um banheiro na velha Sérvia em sua extraordinária viagem pelos anos 1930 através da Iugoslávia – “fazia parecer que esterco, tendo sido expulso pelo homem, se transformara em um novo e hostil elemento magicamente poderoso que poderia cobrir toda a terra.” Expulsar a sujeira é tão auto-destrutivo quanto assassino. Alguém – uma raça, um sexo – tem que levar a culpa.


*     Jacqueline Rose é acadêmica britânica e professora de Humanidades no Birkbeck Institute for the Humanities.


** Hugo Lana é psicanalista, doutorando e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.



[1] um acampamento temporário dentro de uma barricada cercada de vagões.

[2] Swart gevaar (africâner para “perigo negro”) foi um termo usado durante o apartheid na África do Sul para se referir à ameaça percebida de segurança da maioria da população negra africana ao governo branco sul-africano.

[3] Portanto, não corro como quem apenas soca o ar. Mas esmurro o meu próprio corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de haver pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ROSE, Jacqueline (2015) Bantu no banheiro – Jacqueline Rose sobre o julgamento de Oscar Pistorius. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -6, p. 1, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/11/30/n06-01/>.