Resenha | O não ao manicômio — fronteiras, estratégias e perigos (Nader, 2019)

por Jonas O. Boni Jr.

O ato de realizar uma resenha, ao tom de declarar certa posição de interpretação e transmissão de sentido alcançado a partir de um material inscrito na cultura, pode resvalar menos no aspecto de resumo do compêndio sobre o qual o resenhista se debruçou e mais nas trilhas encontradas nos entres e nos vãos deixados pelo autor do material original: um debruçar-se de resenha sobre o tratamento das negações. Esse anúncio não é sem razão e encontra seu ponto inicial no próprio horizonte dos destinos do não como um dos principais eixos que sustentam a escrita de André Nader em seu livro de estreia, “O não ao manicômio fronteiras, estratégias e perigos” prefaciado por Ilana Katz e publicado pela Benjamin Editorial.

A estrutura dessa resenha se apoia, portanto, em termos de formato, homóloga ao trabalho de Nader, bordeando as fronteiras de apresentação dos desenvolvimentos argumentativos realizado pelo autor, mas também evidenciando as aberturas que os furos e os restos deixados na escrita de seu trabalho me permitiram navegar sobre os litorais de sua escritura, e assim, levantar o holofote de relevância para um futuro leitor desse livro. Livro que pode ser qualificado como um dos mais importantes do ano relacionados ao tema da saúde mental e das práticas nos dispositivos instituídos no Brasil, exatamente pela generosidade com que ordena os passos lógicos, históricos e epistemológicos relacionados à Reforma Psiquiátrica no Brasil, e dos riscos incluídos em propostas fundantes e fundamentais na Luta Antimanicomial, pelo tratamento dos “nãos” que fundam instituições e demarcam lugares subjetivos.

Trata-se de um livro que levanta as razões que permitem bordear desde a criação dos muros dos manicômios às consequências inexoráveis que a linguagem imputa ao ser humano pelo recorte do manicômio como significante e de seus riscos de sentido no cotidiano de uma prática. O brilho que o livro traz ainda se intensifica tendo em vista o tsunami, que afeta os litorais da Saúde Mental no Brasil, advindo dos tempos de cólera e de desmonte de políticas de coletividade do governo contemporâneo, tal qual uma espécie de caráter antecipatório que o crivo de leitura da materialidade do objeto de estudo do livro de Nader permite ao leitor: quando se nega radicalmente, como se não tivesse existido, o retorno é no Real.

O tema da Saúde Mental circunscreve diversas possibilidades de arestas nas análises dos litorais que atravessam suas superfícies e materialidades: das bases epistemológicas que sustentam um compêndio teórico e chave de leitura das fenomenologias apresentadas em casos clínicos, até as balizadas da práxis e seus edifícios que suportam as condutas de profissionais diante do sofrimento psíquico, que se cristaliza no termo saúde mental. A eleição de um objeto de estudo diante de tal campo evidencia de modo privilegiado a importância e necessidade de anúncios dos pontos de partidas e de vieses teóricos, mas também ideológicos, que compõem as articulações teórico-conceituais sobre tal campo.

Atuar nos dispositivos de cuidado e tratamento em Saúde Mental demandam uma reflexão constante, como se pode inferir como um dos produtos mais bem delimitados do livro de Nader, no qual torna-se fundante o respaldo múltiplo de referências teóricas e conceituais, que permitem ao leitor cingir a complexidade que envolve o mapeamento das consequências de negação fundante da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Como Nader afirma, “A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil, como qualquer trajetória histórica, não foi linear[1]

Desenvolver um mapeamento a respeito do campo da Saúde Mental pode revelar a complexidade das humanidades, desde que o autor da escrita do trabalho permita se apoiar numa posição de advertência a respeito do modo como as Ciências Humanas explicitam os paradoxos incluídos em suas proposições. Nem toda proposição hipotética se apoia numa lógica inclusiva dos paradoxos e das contradições, e por tal razão há aquelas que tratam as hipóteses e antíteses de modo a se orientar a uma síntese dos problemas levantados para o conjunto de argumentos. Por outro lado, há as propostas científicas que se apoiam num método lógico de análise dos fenômenos humanos e das bases institucionais de suas subjetivações de modo a incluir seus restos impossíveis de significação, e que apesar da ilusão de inexistir, produzem impacto nas formulações e em seus efeitos, simultaneamente. No horizonte, a ciência produz operações de negação sobre seus objetos de estudos, a fim de cercar os limites de suas proposições e resultados coletados na pesquisa, que acabam por não apenas recortar um objeto da realidade, mas produzi-los à sua desmedida de afirmação. Em outras palavras, o tratamento de linguagem, por meio do método científico e da teoria que o fomenta, está balizado sobre os destinos dados aos “nãos” que circunscrevem o próprio objeto de estudo. Assim, a grande questão pode ser concentrada no tratamento dos produtos avindos de negações em suas formulações: recusados, rechaçados, desmentidos, tal qual o fundador da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939) desenvolveu em seu texto de 1925, “A negativa” (Die Verneinung) (FREUD, 1925/2007) a respeito da gênese da simbolização pela articulação entre afirmar e negar a palavra de nomeação da experiência com o objeto[2], e dos avatares do porvir que tal inscrição permite na subjetividade.

Nader é profundamente atravessado por tais condições de pesquisar e de escrever, tal qual uma luta constante com os recobrimentos possíveis de seu objeto de trabalho, ao que tange a saúde mental e os dispositivos de cuidado e tratamento encontrados, até o presente momento, nas políticas e nas diretrizes advindas da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial iniciada, no Brasil, na década de 1970, com o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental[3], cujo marco inaugural se deu no II Congresso Nacional do Movimento de trabalhadores em Saúde Mental, em 1987[4] e alcançou sua narrativa sob os termos de Movimento de Luta Antimanicomial (MLA) ao ponto de produzir diretrizes políticas ao tom de recusa de todo confinamento asilar, dirigido ao horizonte de “por uma sociedade sem manicômios[5]

Esse breve ponto de apoio, a respeito da correlação entre modelo de ciência e operações de negação, permite-me evidenciar as fronteiras com as quais Nader se desdobra, do início ao fim de seu trabalho, como um pêndulo que realiza um movimento elíptico e não concêntrico, que varia de posição e desloca o foco narrativo em relação ao objeto de análise, a fim de sustentar uma posição advertida de escrita como forma de luta[6], tal qual André Nader, como autor e a posteriori, se encontra balizando as afirmações e as recusas sobre as experiências advindas de cenas quaisquer e situações não exemplares da práxis em saúde mental pós a recusa dos manicômios e a abertura para os desenrolares da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que a luta antimanicomial permitiu aos dispositivos físicos e subjetivos na rede de assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), via Centros de Assistência Psicossociais (CAPS), via Serviços residenciais Terapêuticos (SRT), via Coletivos em Prol da Saúde Mental, entre outros.

A posição de Nader, como pesquisador, flutua sobre os litorais de apresentação crítica a respeito “das fronteiras que delimitam o antimanicomial[7], em três capítulos que levam ao leitor a nadar em posições divergentes e complexas em relação à negação que o efeito do anti do antimanicomial pode carregar na história recente dos apoios teóricos e dos dispositivos práticos que sustentam seus apoios argumentativos em (1) “Uma tarefa comum: por uma sociedade sem manicômios[8], (2) “O não ao manicômio[9] e (3) “O ideal comunitário[10].

O autor se ocupa da escrita dos restos que as proposições da Reforma Psiquiátrica acabaram por produzir na comunidade, nos profissionais e nas subjetividades visadas em suas emendas de formulação, sem invalidar a relevância e pertinência de tais atos históricos e marcas humanas sobre a Saúde Mental no Brasil, mas declarando os riscos dos tracejados delimitados e idealizados por tais portarias, que podem “produzir, a partir da gramática do caso exemplar, um apagamento das singularidades[11]

É por contemplar a ambiguidade e os paradoxos das formulações, por se apoiar nas desmedidas que a linguagem imputa pela nomeação, e por incluir os restos das inscrições lógicas de uma constituição, que Nader realiza o movimento pendular em sua escrita de elaboração das práticas associadas aos manicômios e dos efeitos recentes que o saber produzido pela luta antimanicomial ainda pode evidenciar: de certa forma há luta em sua escrita, pela defesa de uma proposição de intervenção em Saúde Mental que não retorne aos horrores dos manicômios, mas também há o luto, por constatar que as bases semânticas da Reforma permitem reproduzir o próprio objeto de suas causas, tal qual Foucault denunciou das afirmações decorrentes com a cartografia da História da Loucura” e os dispositivos de poder nas relações. Como Katz sintetizou em seu prefácio “[…] o texto arrisca, risca e descobre que o limite não está apenas onde a relação ao ideal o colocou inicialmente[12]

O livro se funda na oscilação de uma escrita em três movimentos mais evidentes:

(1) de posição epistemológica, convocando autores fundamentais para o conjunto temático como M. Foucault, G. Agamben, P. Amarante, F. Basaglia, de forma mais evidente, e tantos outros que aparecem nos vãos da escrita como S. Freud, J. Lacan, J. Derrida, G. Deleuze e F. Guattari entre outros, e também apresentando, analisando e absorvendo conceitos de tais autores, por exemplo, loucura, poder, liberdade, comunidade, tratamento, cuidado e subjetividade, para os desenvolvimento argumentativos e para as proposições possíveis de levantamento do objeto de estudo e das cenas estratégicas que montam a estrutura de suas hipóteses. As fundamentações teórico-conceituais demonstram um discurso pautado no rigor e na crítica, que demonstram a sustentação ampla e fronteiriça que a Saúde Mental demanda aos interessados nessa discussão. Uma proposição teórica e consistente que embasa de modo paradoxal o universal de uma teoria.

(2) de referências às práticas ou de narrativas sobre o fazer, momentos nos quais Nader ordena uma posição de inclusão na narrativa, produzindo sentenças em primeira pessoa do singular: o Eu no ato de escrever a respeito das práxis que o envolve e torna-se produto de sua reflexão teórica. Emergem as cenas principais de seu atuar crítico e advertido, que alcançam os pontos altos de seu trabalho, como com a cena do laço entre ele e a senhora qualquer, e do laço entre os profissionais com Jonathan e entre os pares com Jonathan. Diferentes modalidades da prática que revelam os escombros das semânticas negadas da teoria e dos obscuros perigos que a subjetividade carrega, por ser efeito da linguagem e de seus restos. Do eu para o mundo, esse movimento permite ao profissional de saúde mental ancorar pontos de apoios sobre as reflexões da prática de modo privilegiado e fundamental, recusando as falácias idealizantes do saber fazer independente da cena. Eis a ênfase da singularidade no particular da atuação.

(3) de relação com as negações que o constituem como leitor de uma teoria e atuante de uma prática, do início ao fim do texto, o intertexto está voltado para uma transmissão do efeito com que a negação cria uma razão afirmativa, mesclando um ponto de apoio na báscula do pêndulo de sua escrita que risca os litorais da totalidade que um não pode afirmar, ou da alternância com que a simbolização do não complexifica a inclusão do próprio resto ou dos vãos, como autoria advertida e crítica que o percurso singular de uma luta pode tecer para as bordas que um traço rasga na escrita pela negação primordial como gênese da extração do objeto e suas consequentes afirmações no porvir das letras: um tema, um objeto de estudo, um livro. “Diversos movimentos de pensamento possibilitaram a escrita deste livro, escrita que, desde seu início, forma tomada como uma forma de luta[13]. Assim, a escrita das negações está marcada pela lógica, pela torção, do universal, do particular e da singularidade ao longo do texto.

Portanto, ora tocando a fronteira da recusa radical do “manicômio, não!” quando documenta as passagens epistemológicas e históricas das razões asilares de tratamento da loucura, ao ponto alto de revelar “a linha de força que carregou consigo o imperativo do isso não!, ou seja, a negação de tudo aquilo que historicamente foi associado ao manicômio: controle, dominação, encarceramento, exclusão, campos de concentração, eugenia, ditadura e indústria da loucura[14], e assim, defender o não ao manicômio. Ora denunciando os limites obscuros de silenciamento subjetivo e surdez profissional que o rechaço do manicômio pode produzir, por um não categórico, sob o apoio dos preceitos legítimo da Reforma Psiquiátrica, como na cena com a senhora qualquer no mote inicial para o trabalho, ou ainda do caráter móbil que o significante manicômio pode imputar aos sujeitos que utilizam serviços residenciais e de livre circulação, esse último carregado da metáfora do “entre aspas”, como no usuário com nome próprio e de seus pares, na narrativa final do último capítulo.

É nessa esteira que há fundamentos que extrapolam a linearidade da lógica clássica — pautada pela, tese, antítese e síntese – no enredo do material produzido como livro, e torna-se possível vislumbrar, pelos entre e pelos vãos, a eleição conceitual, pela inclusão do paradoxo, da contradição e do contrário clássico nos enquadres teórico-clínicos que as escolhas semânticas por termos como “qualquer[15], “necessário[16], “universal[17], “particular[18], “singular[19], nos movimentos de escrita e delimitação de posição teórica, que são referidos a Agamben, mas certamente também são efeitos das influências de sua leitura da teoria psicanalítica de J. Lacan, pela perspectiva de cuidados com os aspectos lógicos que fomentam uma proposição conceitual[20]

Isso é: “a apresentação de uma narrativa que, conforme propusemos, pretende lançar luz sobre o campo da luta antimanicomial brasileira – em especial, sobre seus modos de luta e seus efeitos na formação de percepções discursos e práticas [..]. Podemos denominá-lo como o combate à criação de universais, à produção de modelos totalizantes ou à tendência de querer sempre reencontrar o mesmo objeto, situação ou regra[21]

No entanto, o rigor lógico que embasa o texto e as delimitações teórico-conceituais, que recortam as cenas quaisquer no livro, não carregam o tom para uma retórica barroca ou decifrativa, tampouco demanda do leitor leitura prévia e aprofundada, principalmente para aqueles que não estão familiarizados com os autores eleitos por Nader. A habilidade em apresentar a densidade por meio de explicitação e didática, nos anúncios e nas voltas realizadas no intertexto, torna o livro acessível e conota ao autor um paradoxo exemplar entre generosidade e advertência.

Por fim, a escrita como luta girou em torno do enfrentamento dos efeitos de enclausuramento que um rechaço das práticas institucionalizadas imputara no silenciamento da senhora qualquer ou aos arrolares subjetivos que podem levar qualquer profissional da saúde mental à posição manicomial como ocorreu com Jonathan e seus pares. A possibilidade binária e maniqueísta que as formas de lutas podem infringir à prática demarcada desde o “manicômio, não!” e, carregam a possibilidade de silenciamento e de surdez diante de sujeitos quaisquer, produzindo inconscientemente um encarceramento subjetivo pelo não tratamento do não imbuído na recusa ao manicômio, mas também na complexa operação de afirmação da advertência que se pode produzir com os saberes que se orientam para a liberdade do ser humano.

O livro de Nader torna evidente a possibilidade de deslizar de sentido que o significante luta, inicialmente alojado em seu objeto de estudo, com o discurso de sustentação para a luta antimanicomial, para uma escrita que implica os perigos da repetição com que o que é negado pode retornar; ou seja, o não ao manicômio cerca as fronteiras das proposições inaugurais, ao tom de um compêndio de referência para o campo temático de seu objeto de estudos, e analisa criticamente os efeitos das estratégias que sustentam a consolidação de uma proposta, tal qual o limiar de advertência sobre os perigo que rondam toda e qualquer formulação.

A importância desse trabalho ganha ainda mais relevância, considerando o ano de sua publicação, e a rapidez com que os primeiros indícios revelados por Nader, a respeito das políticas em Saúde Mental, alcançam com as eleições presidenciais de 2018, pelo horror de uma política que vem, e está vindo, quando se ignora a violência de certas formulações totalizantes, que por serem tão absurdas é que ganham sua materialização na realidade: “não vai acontecer, depois de tantos avanços nos últimos anos”. Pois vem… e a depender do como se nega.

Em 2019, ano marcado no Brasil pelo início de um dos governos mais polêmicos desde o período denominado democrático, com a presidência de Jair Bolsonaro, encontramos uma série de indícios que apontam para propostas políticas e de ordenação social ao tom de retrocesso: não só de proposições relacionadas aos eixos fundamentais de sociedade como as leis trabalhistas e a reforma da previdência, mas também para as condições de sustentação de todo o campo da saúde, com a ativa desestabilização e precarização do Sistema Único de Saúde, produzindo uma reviravolta, também, nas propostas em saúde mental e para os tratamentos possíveis que a rede do SUS disponibiliza para toda ordem de sofrimento psíquico, da loucura ao uso de psicoativos, da infância ao adulto.

Um desses indícios pode ser vislumbrado nas propostas de investimento financeiro em saúde mental em relação às Comunidades Terapêuticas[22], que tem recebido incentivo declarado do Governo Federal, em 6 de janeiro de 2019[23], alcançando verba similar ou superior aos Centros de Atendimento Psicossociais, os conhecidos CAPS. Além do tom religioso e privado das comunidades, denotando o vetor de investimento para além do bojo vinculado ao SUS, tal incentivo conota o foco de atenção dirigido ao sofrimento psíquico de modo privilegiado à sombra do que foram, um dia, as internações asilares e as privações de liberdade que simbolizaram a força motriz da luta antimanicomial, um de cujos produtos está demarcado pelos serviços interdisciplinares característicos do CAPS.

Ainda mais, a recusa das bases científica e de pesquisa pelo atual governo torna tal medida mais assustadora quando, diante do resultado desfavorável a tal política, o relatório realizado pela Fiocruz, a partir de estudos estatísticos, sobre o consumo de drogas no Brasil é rechaçado, ao ponto de as mídias afirmarem: “Estudo da Fiocruz sobre uso de drogas no Brasil é censurado[24].

A proposta que prioriza o cuidado via Comunidades Terapêuticas e a recusa dos estudos da Fiocruz parecem ser um dos primeiros pontos de apoio para a chancela que é realizada em 06 de junho de 2019: “Bolsonaro sanciona lei que permite internação involutária de dependentes químicos[25]. Essa tríade revela o retorno do negado, de modo mais clássico e incisivo no porvir dessa temporalidade obscura que os mares revoltos sinalizam com as propostas desse governo, ou seja, desde o enclausuramento pela lógica da internação à recusa das bases científicas, já materializada com os ataques às Universidade, o manicômio reencontra suas bases fundantes: intolerância ao diferente, retórica totalitária e excludente, além de patologização de fenômenos do vivente.

Esses pontos podem ser localizados de modo claro no livro de Nader, que os discute – na história das gêneses dos manicômios nas décadas de 1940 a 1970 – e denuncia de modo antecipatório, inclusive como marola que já se pronunciava com as frustrações advindas em 2013, por duas medidas aparentemente distintas, porém aproximadas, das elencadas acima, já em 2014, durante o Governo Dilma: (1) o episódio do CAPSad do Complexo Prates[26] e (2) Documento elaborado pela Área Técnica de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de são Paulo (SMS-SP) sobre novas diretrizes para os CAPS – em relação às farmácias e equipe mínima.

A partir de ambas as situações, verifica-se a existência de uma grande preocupação de que estivesse em curso um desmonte dos equipamentos de saúde mental, o que impossibilitaria a realização de um atendimento de qualidade aos usuários dos serviços. Sentia-se fortemente o risco de um “retrocesso histórico sem precedentes no Movimento da Luta antimanicomial”, tendo em vista que a precarização dos serviços substitutivos poderia comprometer a diminuição de internações psiquiátricas como medida de tratamento. Ao mesmo tempo, havia a preocupação de que estivesse em curso um movimento de silenciamento das vozes dissonantes”[27]

Há uma tentativa de reviravolta nos preceitos que sustentam a direção da saúde mental no Brasil, para aquela que foi negada veementemente no “Manicômio nunca mais”. A política de governo recente tem o foco no retrocesso, das ovações para o regime militar aos confinamentos asilares: o não ao manicômio, fundante da luta antimanicomial, produziu um resto que retorna de modo ainda mais incisivo no Brasil, com Bolsonaro.

A fim da advertência da não linearidade da história, o pêndulo da escrita de André Nader também permite revelar o aspecto oscilante de nossas raízes institucionais e instituintes que emergem sobre seu objeto de estudo: os destinos dos restos que estão incluídos no “não” desde as possibilidades de uso da palavra no mundo, não só pelos efeitos da nomeação – mas também pelos riscos do registro sobre os quais o retorno se realiza: no Real, no Simbólico ou no Imaginário.

Nader adverte do “perigo que está em nós”, e isso inclui a possibilidade do fascismo entre nós, por meio do uso dos Manicômios voltar a ser o muro concreto dos horrores que nos cercam, tal qual a sutiliza do slogan Manicômios nunca mais” correr o risco e perigo de se tornar “Manicômios nunca é demais”.

REFERÊNCIAS

CESAROTTO, O.A.; LEITE, M.P.S & COSTA, N.C.C. (2014). Psicanálise e lógica – Entrevista histórica com Newton C.A. da Costa falando sobre lógica paraconsistente e sua contribuição na teoria lacaniana. Em: Revista Leitura Flutuante. v. 02, n. 06, pp. 51-77.

KATZ, Ilana (2019) Prefácio: Fronteira é risco. Em: NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, 2019.

NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. Prefácio Ilana Katz – São Paulo: Benjamim Editorial, 2019.


* Jonas O. Boni Jr. é psicanalista. Professor Associado aos Cursos de Pós Gradução: Psicanálise e Saúde – Hospital Israelita Albert Einstein e Psicologia hospitalar – Hospital Israelita Albert Einstein. Doutor em Psicologia pela FFCLRP – USP. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Pós-Graduação em Psicologia Clínica Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da FMUSP.



[1] NADER, André (2019) O não ao manicômio fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 21.

[2] FREUD, Sigmund. (1925/2007). A negativa. Em: HANNS, L. A. (trad.) Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Volume 3. Imago. Ed. Rio de Janeiro.

[3] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 21.

[4] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 22.

[5] Trata-se do produto reescrito da dissertação de mestrado, intitulada “Entre a negação do manicômio e a afirmação de um modelo comunitário: fabricando formas de luta” apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 2017, sob orientação de Adriana Marcondes Machado.

[6] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 125.

[7] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 18.

[8] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, pp. 21-54.

[9] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, pp. 55 – 102.

[10] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 103 – 124.

[11] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 97.

[12] KATZ, Ilana (2019) Prefácio: Fronteira é risco. Em: NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, 2019, p. 7.

[13] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 125.

[14] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 63.

[15] Por exemplo, NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 35.

[16] Por exemplo, NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 29; p. 130.

[17] Por exemplo, NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 29.

[18] Por exemplo, NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 29.

[19] Por exemplo, NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 34.

[20] CESAROTTO, O.A.; LEITE, M.P.S & COSTA, N.C.C. (2014). Psicanálise e lógica – Entrevista histórica com Newton C.A. da Costa falando sobre lógica paraconsistente e sua contribuição na teoria lacaniana. Em: Revista Leitura Flutuante. v. 02, n. 06, pp. 51-77.

[21] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 36.

[22] Comunidades Terapêuticas são instituições privadas, sem fins lucrativos, que prestam serviços de acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. (https://www.justica.gov.br/sua-protecao/politicas-sobre-drogas/backup-senad/comunidades-terapeuticas).

[23] Governo multiplica investimento em comunidades terapêuticas de cunho religioso para atender usuários de drogas (https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-multiplica-investimento-em-comunidades-terapeuticas-de-cunho-religioso-para-atender-usuarios-de-drogas-23617574).

[24] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/29/estudo-da-fiocruz-sobre-uso-de-drogas-no-brasil-e-censurado.ghtml

[25] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/06/bolsonaro-sanciona-lei-que-permite-internacao-involuntaria-de-dependentes-quimicos.ghtml

[26] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 38-9.

[27] NADER, André (2019) O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos. São Paulo: Benjamim Editorial, p. 40.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | BONI Jr, Jonas O. (2019) Resenha – O não ao manicômio – fronteiras, estratégias e perigos (Nader, 2019). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -7, p. 9, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/08/07/n-7-9/>